Ano XVII 01
1º semestre de 2022
resenha
Tempo de leitura estimado: 11 minutos

O UNIVERSO FRACTAL: BUCARESTE-BUDAPESTE: BUDAPESTE-BUCARESTE

Uma estátua iluminada a furto. A cabeça degolada de Lênin e duas fronteiras que se cruzam. Tal é o cenário que abre a narrativa de Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste (2021) – livro de Gonçalo Tavares, publicado no Brasil pela editora Oficina Raquel. Em analogia com seu título, a tríade de estórias presentes em Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste se estabelece a partir de uma poética especular do conto dentro do conto. Partindo de um jogo de espelhamentos entre cidades – entre Bucareste e Budapeste, e, também, alusivamente, entre Buda e Peste, entre Berlin oriental e ocidental, entre Berlin e Belgrado –, as três estórias que compõem a obra tavariana são atravessadas pelas matérias misturáveis de acontecimentos que se sucedem no texto. Narrando-se sob o ponto de vista de um narrador ora neutro, ora reflexivo, a tríade fabular tavariana mais ganha vulto através de uma leitura de progressão temporal que se desenvolve na obra como num jogo especular entre diferentes registros e passagens.

Publicado originalmente em 2008 numa antologia de contos policiais, “Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste” é a narrativa que abre o livro a partir de um jogo de espelhos entre duas estórias paralelas veiculadas do outro lado da fronteira, entre a Romênia e a Hungria. A se iniciar por um tensionamento entre duas perspectivas distintas, “Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste” narra a estória do furto de uma antiga estátua de Lênin que necessita ser desmembrada nos arredores de Bucareste para passar na fronteira húngara desapercebida. Para tanto, a cabeça degolada da estátua de Lênin é transportada de bicicleta num cesto entre maçãs. Do outro lado da divisa territorial que separa os dois países, um homem de nome Miklós parte de Budapeste a Bucareste com o intuito de enterrar a mãe em sua cidade natal. Do lado de lá, os personagens que participam do comboio que transporta a estátua furtada de Lênin (de Bucareste a Budapeste) e Miklós irão se entrecruzar nas últimas páginas do conto.

Diferentemente estranha e ambígua, a segunda estória narra a fábula urbana de Radislav Vujik – o vampiro de Belgrado – e de sua paixão erotizada pelas fotografias. Além de aludir à cena de abertura do filme O fantasma da Liberdade [1974] de Luís Buñuel, em que um casal de amantes se comunica a partir de um jogo erótico entre cartões postais, tal argumento ficcional contém os tons quixotescos de um personagem que busca pela beleza infiltrada no humano através da virtualidade dos simulacros. Prolongando a sua missão de tirar prazer das partes de um corpo – no caso, o da prostituta Marka –, tal personagem vampiresco se utiliza de Marka como veículo para as suas incursões eróticas-fotográficas. Qual um homem-máquina nutrindo-se de fragmentos de imagens, o vampiro de Belgrado raciocina por sucessivas colagens de cenas não interligadas em antecipação – tais quais as Portas de Brandemburgo e as pontes de Zagreb. Num labor de engrenagens, a cada repetição ele retém das imagens as suas memórias devoradas, fazendo desaparecer delas, por instantes, as coisas representadas.[1] Violador de figuras, corpos e paisagens, o vampiro de Belgrado pode ser lido como um ente de ficção que vem desestabilizar o pleno funcionamento das engrenagens fabulares do conto e de seus sistemas de vida.

Por outra via especular-fabular, Martha é a protagonista da terceira estória que encerra o livro com um relato situado em território oriental berlinense. Composto originalmente para ser uma peça teatral, o conto “Episódios da vida de Martha em Berlin” gravita em torno das sensações da personagem principal acerca de acontecimentos exteriores que vão sendo, progressiva e fantasticamente, narrados em terceira pessoa. Ao atravessar de bicicleta as suas ruas noturnas, Martha se relaciona com Berlin como se essa fosse uma cidade-personagem. Com os olhos estrangeiros de quem a percorre em seus limites inacabados, Martha encena um drama agônico de existência-resistência. Com traços de Sísifo,[2] Martha percorre as ruas berlinenses como documentos-arquivos de uma cidade-museu que guardasse objetos de memórias deitadas abaixo pelo fogo e pelo esquecimento. Entre a vida pequena e seus sobressaltos, ela devaneia sobre um mapa vivo que estivesse por sempre preparado para receber novos traçados firmes por cima de velhos traços frágeis. Sonhando corroer os grandes diques da História, Martha confronta Berlin como a uma cidade recém-nomeada, a ser arriscada numa nova síntese de formas. Como num mapa vivo a lhe demarcar as fronteiras, a cidade-corpo de Martha não tem nenhuma clara divisa demarcatória.[3]

Divulgação, disponível em: https://www.oficinaraquel.com.br/livro/bucareste-budapeste-budapeste-bucareste/.
Divulgação, disponível em: https://www.oficinaraquel.com.br/livro/bucareste-budapeste-budapeste-bucareste/.

Contextualizando-se na Europa oriental, “como se o Ocidente estivesse prestes a ser invadido”, as três narrativas que compõem Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste podem ser lidas à luz de um projeto ficcional-urbano – uma ciência imaginativa das cidades.[4] Configurando-se às margens arquitetônicas de um bairro imaginário habitado por ficcionistas urbanos – os “senhores” Valéry, Henri, Brecht, Juarroz, Kraus, Calvino, Walser, Breton, Swedenborg, Eliot –, as cidades-personagens em Gonçalo Tavares têm agência própria e coexistem como organismos viventes e independentes: “Em Budapeste, a Europa confirma ser, em arquitetura, um continente de baixa estatura; o rio Danúbio manda e a cidade é feita de ruas paralelas ou perpendiculares à água principal; como se esta fosse um Deus antigo. Nenhum edifício cresceu demasiado. Tal crescimento foi deixado aos homens húngaros, que são altos e largos”.[5]

Ademais, estamos aqui no reino da ficção e do intertexto. Nele, a instância ensaística de um texto se desenvolve em prol de uma escrituração prismática de onde se é possível observar os diferentes ângulos sobre um mesmo acontecimento narrado.[6] Vinculando a vivência de uma cidade-personagem a um risco permanente de invisibilidade e de rasura, em suas teias de intertextos vêm se articular as estórias de efeitos dramáticos diversos. Com os preceitos e as premissas de uma construção permanente em termos de escrita, o estranhamento e o distanciamento se transformam, no universo fractal de Gonçalo Tavares, em procedimentos constitutivos de uma produção ficcional que narra a artificialidade do drama literário em face do inacabamento perpétuo dos sentidos e dos signos. Como aludido anteriormente em seu livro de devir enciclopédico Atlas do corpo e da imaginação (2013), a ficção se formula em Gonçalo Tavares como uma máquina de produzir inícios e indícios, devaneios e anseios múltiplos.[7] Num limiar de divisas e fronteiras – entre Bucareste e Budapeste, entre corpo e território, racional e primitivo, intelecto e loucura, pensamento e ação –, na inventiva narrativa tavariana são os textos ficcionais que absorvem, situam e redimensionam os textos não ficcionais num manancial potencialmente inesgotável de composição. À expansão de autorias de territórios, suas narrações misturam reflexões com ações dramáticas num mesmo plano de enunciação. Partindo de uma ideia-motivo bachelardiana de que a imaginação não conhece o não-ser, para o motivo ficcional tavariano é imperativo pensar numa unidade mínima do mundo em termos de escrita. Especulando-se numa dinâmica fabular própria, seus ensaios de narrativas se desenvolvem em analogia a uma nova concepção do sagrado – uma sacralização sem Deus; um sagrado da ficção.[8] Tal é o universo fractal de Gonçalo Tavares que aparece renovado em Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste.

Divulgação, disponível em: https://www.oficinaraquel.com.br/livro/bucareste-budapeste-budapeste-bucareste/.
Divulgação, disponível em: https://www.oficinaraquel.com.br/livro/bucareste-budapeste-budapeste-bucareste/.

* Augusto Guimaraens Cavalcanti é pós-doutorando do PACC-Letras da UFRJ com a pesquisa “Ficção e metacrítica: Rayuela e Museo de la novela de la Eterna; Julio Cortázar e Macedonio Fernández” (bolsista do FAPERJ Nota 10, sob orientação de Beatriz Resende). É poeta-ficcionista com seis livros publicados, entre eles: Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras) e Máquina de fazer mar (2019, 7Letras).

 

Referências

EIRAS, Pedro. A moral do vento. Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares. Lisboa: Caminho, 2006.

TAVARES, Gonçalo M. Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.

TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Porto Alegre: Dublinense, 2021.

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Eliot e as conferências. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Henri e a enciclopédia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Válery e a lógica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Breton e a entrevista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Walser. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Calvino. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Krauss. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Juarroz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. (O Bairro).

TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Brecht. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. (O Bairro).

VAZ, Madalena Pinto (org.). Gonçalo Tavares: Ensaios, aproximações e entrevista. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.

 

Notas

[1] “no fundo és capaz de prestar vassalagem à bela montanha (…) e exiges, então, que a paisagem na tua cabeça se transforme, como na cabeça de Dom Quixote, em movimentos humanos perigosos e deixe assim de existir paisagem – palavra neutra (…) que sabem as fotografias?” (Tavares, 2020, p.44-58).

[2] “És como Sísifo, e falas alemão, mas, pelo menos, neste século, já temos escadas rolantes; agora, para entrar no desespero médio da cidade nem precisas mexer os pés. (…) Berlim. Martha. Piso-1. Estás sempre num piso negativo, e tentas subir. (…) Menos um: eis o número exato para os habitantes de qualquer cidade.” (Tavares, 2020, p.84).

[3] “está tudo à procura de um sítio onde dormir, pensa Martha. Berlim, subitamente, parecia não ter um único habitante do dia anterior (…). Em Berlin as ruas são deliberadamente não sentimentais. Não te podes perder nelas. Vão de um sítio para o outro; começam, têm uma parte a que se chama meio, e têm um final que na verdade nunca o é porque cada rua escorrega para dentro de outras como se a cidade estivesse a diferentes níveis. Uma cidade não tem final, pensa Martha.” (Tavares, 2020, p.90-8).

[4] “Projeto, pois, que se põe a caminho de uma certa ciência narrativa das cidades. Ciência imaginária e, também por isso, indispensável. (…) O Projeto das Cidades – entre o Reino e o Bairro – procura ocupar, aos poucos, como fazem os indícios, essa tabela periódica urbana com narrativas que se vão infiltrando em cada um dos elementos, como se as narrativas fossem a substância central das cidades; uma substância não material. (…) cidades que sempre me pareceram não uma geografia ou uma arquitetura, mas um conjunto de movimentos humanos com uma tensão particular.” (Tavares, 2020, p.106-7).

[5] (Tavares, 2020, p.32).

[6] “O lugar da escrita, o lugar do discurso na obra de Gonçalo M. Tavares é esse espaço lacunar de onde se observa o mundo sob diferentes ângulos. (…) Se estivéssemos em Odessa e não em Bucareste, talvez pudesse ser o bebê do carrinho de Eisenstein voltando para recuperar a mãe que ficara morta nos degraus desde o tempo de Potemkin.” (Salles in : Vaz, 2018, p.66-70).

[7] Num sentido análogo a esse, Luís Mourão (in: Vaz, 2018, p.80) sugere que o universo dos romances de Gonçalo Tavares, tal como o contemporâneo, é habitado por um mundo sem Deus, mas não sem o sagrado: “Dizer que o fragmento é uma máquina de produzir inícios é ser antimelancólico, essa melancolia que se inscreve na habitual forma de considerar o fragmento como parte de um todo que se perdeu. (…) em Gonçalo Tavares, em vez do luto pela perda irremediável de uma unidade plena, hipostasiada sempre no passado, o que temos é a produção de inícios, uma afirmatividade que não se deixa embaraçar pelo peso da história ou do pensamento já construído, mas que precisamente trata a história e o pensamento já construído como uma contemporaneidade (…) que exige a tarefa da continuação do tempo e do pensar”.

[8] Para um desenvolvimento do tema, ler o livro “Gonçalo Tavares: Ensaios, aproximações e entrevista” (organizado por Madalena Vaz Pinto), publicado pela editora Oficina Raquel em 2018; em particular, o artigo “A caixa negra do mundo: apontamentos do Atlas”.