Ano XVII 01
1º semestre de 2022
dossiê
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DO MEU ENCONTRO COM RÍSIA: MIGRÂNCIA E AUTOCRIAÇÃO NA TESSITURA LITERÁRIA

Quando Marilene Felinto pariu Rísia, ela estava ainda na primeira metade de seus vinte anos. Rísia me esperou no tempo, menos por querer e mais pela perversa estrutura racista do solo em que nascemos. Eu estava então na casa dos 30 – Marilene, se não erro as contas, nas dos 50 – quando a encontrei e alinhamos nosso sentimento de existir por entrelugares. Um certo meio-fio que encorajou Rísia a percorrer os territórios sinuosos da sua infância na busca por um mapa que a levasse de volta para casa. Trajeto de elaboração de lutos tantos que um “mundo doído demais” provocou. Eu, também em ânsia por “um mundo consertado”, pude me ver refletida no Abebé devir das Mulheres de Tijucopapo (Felinto, 2019). Essas irmãs guerreiras que cavalgam pelas eras e rasuram interdições, amazonas nordestinas que sob as frondosas árvores da ancestralidade nos ensinam sobre o amor. Ou ainda sobre uma ternura preta que, como Calila das Mercês bem analisou, nada tem a ver com docilidade ou submissão (Das Mercês, 2021). Recife-SãoPaulo-Recife-Tijucopapo, eis a jornada de deslocamentos tantos que Rísia empreende, sendo o retorno à cidade de sua mãe uma busca por sua origem. A escrita que se segue, em seu processo de refundamento da linguagem que me narra, se faz em trânsito e em companhia de Rísia, que me convoca a retornar àquele Juazeiro do Norte, cidade de minha mãe, que tanto me moldou, mas onde, quiçá, eu nunca tenha efetivamente estado.

Nessa encruzilhada de tempo-espaço-pertencimento, a tessitura literária em afluxo me lembra como ritualmente, anualmente, o pouco pão, o pouco leite e o muito trabalho se convertiam no mágico bilhete da Itapemirim. Era então aquele alvoroço. Esforço por fazer caber um tantim da cidade louca numa caixa grande. Se o carnê permitisse, ia também uma televisão. Presente que dependia de choro e súplica para adentrar o bagageiro do ônibus sem taxa extra. Se não desse, a televisão ficava, “voltava pra trás”. Éramos três numa única poltrona. Desafiávamos a lei da física numa proposição de fórmula que compreendia as vistas grossas dos motoristas e a disposição dos passageiros jovens e solitários que, solidários, topavam percorrer de pé algum breve trecho da longa viagem, enquanto aquelas meninas – minha irmã e eu – tiravam um cochilo em seus assentos. Mas eu gostava mesmo era do corredor. Aquele calorzinho do motor e o treme-treme da estrada sob a camada perfumada da manta que minha mãe estendia. Meu corpo novo não sentia desconforto na contagem dos quase três mil quilômetros em frações de horas que se dividam em causos e confissões, músicas e programas de rádios, confusões por causa do volume das músicas e programas de rádios, reclamações por conta do mau cheiro do banheiro ou da cachaça de algum passageiro e o degustar de doces ou biscoitos que, na volta de alguma das paradas, nos eram oferecidos pelos adultos.

Era estranho, mas, de repente, a gente parecia uma família. Eu admirava o modo como minha mãe falava com aquelas pessoas, era como se as conhecesse desde sempre. E isso se intensificava na noite de vigília que marcava a metade da viagem, a noite em que ninguém dormia por medo de o ônibus ser parado e assaltado. As rezas preenchiam o silêncio daqueles já conhecidos e perigosos caminhos e eu me sentia muito protegida pela presença dos meus novos companheiros. Se o sol nascia, a gente estava vivo, as caixas grandes e televisões sacudindo no bagageiro e as economias dos últimos meses – ou anos –, agarradas nos bolsos, meias e calcinhas, eram motivo de alívio e festa.

Me animava, especialmente, a expectativa de reencontrar minhas primas, amigas e as vizinhas de vó. Cantigas novas, correr na rua e pular trancelim. Que demais o trancelim, pena que ninguém conhecia em São Paulo. As meninas de lá riram de mim quando eu cheguei na escola com o elástico na mão, “que estranha essa filha da cearense”. São Paulo, “a terra dos rotos, arrotos e onde se toma um guaraná inteiro”, diria Rísia, a terra das barbies e dos tamagotchis, acrescentaria esse meu eu-criança. O fim de férias e o retorno para Pauliceia doía mais do que qualquer marca de guerra que a infância congela.

Da série Jatobá (2019), de Rosana Paulino. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2022/02/02/cecilia-alemani-reveals-her-plans-for-this-years-venice-biennale.
Da série Jatobá (2019), de Rosana Paulino. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2022/02/02/cecilia-alemani-reveals-her-plans-for-this-years-venice-biennale.

Já o momento de uma chegada em Juazeiro tinha o passar do tempo, com seus grandes ou pequenos intervalos, transfigurados no crescente número de sapatos ou na novidade de um sutiã. Será que minhas antigas amigas iam me reconhecer? Acho que no meu pequeno coração de criança, filha mestiça de migrantes nordestinos, a falta fez morada cedo e, nessas muitas idas e vindas, ela quase que sumia quando o motorista anunciava: “última parada antes do Cariri”. Pronto! A senha estava dada e de repente o ônibus parecia uma comitiva de gala, as expressões gastas se revestiam de luz e as roupas cansadas davam lugar aos trajes aprumados, óculos de sol, relógios, batom, tudo aparecia de repente nas caras e corpos daquela gente – e em mim também! De algum lugar do ônibus, começava a exalar um cheiro novo, de despedida, que, no entanto, era apaziguado pelo preenchimento da fabulação compartilhada e enunciada em alto e bom tom sobre quem estaria à nossa espera na rodoviária ou sobre que comida seria oferecida em nossa recepção.

Naquele ano, minha mãe completava 20 anos de migrância, empreitada sofrida e não escolhida de se refazer e gerar família na terra dos outros. Ela tão jovem foi levada pelo irmão um pouco mais velho. Meu tio Antonio. Triste destino o dele, morrer como carona num acidente de carro, ter enterro em solo estrangeiro… Minha mãe precisou encarar sozinha a vida nessa voraz boca de lobo e em pacto de fé jurou não deixar a memória desse meu tio vagando em solidão por entre os prédios e avenidas opacos. Ficou para fazer companhia ao que já não estava. Mas ela evitava olhar por esse retrovisor e, perto do ponto de chegada daquele nosso itinerário-de-de-vez-em-quando-dá, ela cantava e falava: “Minha terra estou chegando, obrigada, Padim Ciço”.

Na rodoviária, o vínculo profundo que os três dias de viagem gestaram entre nós passageiros da Itapemirim verteram-se em trocas de telefones e promessas de reencontro. Já em casa, o abraço da minha tia e a benção da minha avó confirmaram que a expectativa cultivada era real. Estávamos de volta, nossa terra, nossa casa. O piso fresco de terra batida, o pote d’água, a mesa dos santos – à espera da Renovação. Em pouco tempo, a sala foi ocupada pelas presenças das crianças da rua e primas que se achegavam pela porta aberta, sem precisar pedir licença, e, curiosas, me olhavam, mas mantinham certa distância. Minha garganta se fez em nó, os olhos ficaram grandes e pulsantes com a velocidade acelerada do coração. Do alto de meu desejo de abraçá-las e de ser abraçada por elas, contudo, cai ao ouvir o cochicho entre risos: “Que estranha essa paulista”. Não era aquela minha terra e minha família? Esvaziada, evoquei meus companheiros da viagem e senti falta do calor de pertencer àquele ônibus grande e amarelo.

No Juazeiro do Norte da minha infância não encontrei Tijucopapo, mas fui iniciada no mistério de compreender minha constituição de lama. Rísia com sua ciência de percorrer estradas, anos depois, me oferendou um punhado de vocábulos e sentidos, que, muito embora não sejam capazes de refundar essas experiências-memórias, conferem a elas uma dimensão partilhada e de lastro antigo, profundo. “Era uma noite, uma vez, minha mãe nasceu no meio de um pântano. Num sertão de lama. Mulheres como a minha mãe trazem a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe que do amor” (Felinto, 2019, 72).

Enquanto tento acompanhar o galope de minha mãe, que ainda pendula na busca por referências de seu existir, eu me valho do amor que pude provar no meu ofício com as letras. Amor que abranda a incontornável – e dolorosa – rasura da origem e me coloca ao lado de Rísia e de muitas outras narradoras e personagens. Em meu encontro com a literatura de autoria negra e indígena, reconheci a minha herança, assentei em minha montaria e iniciei a viagem que tem nessa grafia, como em tantas outras que me brotam, uma instável, mas amorosa, parada.


* Fabiana Carneiro da Silva é neta de Amada e de Quitéria, filha de Lourdes, mãe de Imani e de Yeté. Oleira da palavra-corpo. Tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Autora do livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor (EDUFBA,2019).

 

Referências

DAS MERCÊS, Calila. “Movimentos e (re)mapeamentos de mulheres negras na literatura brasileira contemporânea”. Tese. Universidade de Brasília, 2021.

FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. São Paulo: Edição da Autora, 2019.