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Atraso do progresso | de Alckmar Luiz dos Santos

“… a civilização é a criação de estímulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reação a eles. (…) ser civilizado é inventar reações para os estímulos que excedem já a reação possível, isto é, inventar reações artificiais…”
Fernando Pessoa, A influência da engenharia nas artes nacionais

Given that our days are limited, our hours precious, we have to decide what we want to do, what we want to say, what and who we care about, and how we want to allocate our time to these things within the limits that do not and cannot change. In short, we need to slow down.”
John Freeman, Not so fast. Sending and receiving at breakneck speed can make life queasy; a manifesto for slow communication 2

O que pretendo desenvolver aqui não é, de modo algum, uma lamúria conservadora acerca de nossas relações com as tecnologias. Não haverá neste ensaio a menor sombra de saudosismo das origens, nem lamentação pela pretensa perda de uma suposta época de ouro, no que teria sido uma espécie de tragédia inaugural da civilização. Isso funciona muito bem nos mitos e, talvez, na psicanálise. Aqui, teria o grave defeito de encobrir processos e desdobramentos muito mais interessantes. D. H. Lawrence, em seu Lady Chaterley’s Lover, afirmava que sua época era trágica 3 Ora, em vários sentidos, todas as épocas são trágicas, pois, frequentemente o excesso e o excessivo travam barulhentos combates em que o campo de batalha está em todos e em cada um de nós 4 . Ou, como diz George Simmel, Pues existe lo trágico allí donde la tribulación o la anulación de una energía vital por su adversaria no se debe al choque casual o externo de ambas potencias, sino donde el destino trágico que una preparaba a la otra se encontraba prefigurado ya en ella como algo inevitable. La forma de unidad de esta contradicción es la lucha. 5
É curiosa a retomada de uma perspectiva heracliteana por um pensador, como Simmel, que foi certamente influenciado por Hegel. Contudo, me interessa justamente essa contraposição entre pensamentos de recorte heracliteano e pensamentos de filiação platônica (e, talvez, hegeliana). De certa maneira, boa parte da filosofia ocidental — que François Châtelet caracterizou como um longo diálogo direto com a filosofia de Platão — desprezou uma linhagem mais próxima de Heráclito e que consiste na capacidade de tratar os contrários sem reduzir um a outro, ou sem substituir a ambos por um terceiro. Esta linhagem, curiosa e paradoxalmente, tanto permitiu o surgimento de correntes gnósticas e iniciáticas da Idade Média, quanto influenciou, por menos que fosse, a criação da lógica paraconsistente, por Newton da Costa, em meados do século XX .6
É assim que estou buscando entender as relações entre as artes (em particular, as literaturas, que constituem o campo de onde falo) e as tecnologias, nesse nosso ambiente atual de intensa saturação tecnológica 7 , partindo do que seria próximo de uma perspectiva heracliteana… ou, talvez, paraconsistente. De toda maneira, até aqui, não há nada de substancialmente novo nesse contraste que busco apresentar entre ambas (artes e tecnologias): as primeiras estão sempre fundadas em algumas técnicas (que são, na maior parte, internas às artes) e mantiveram relações constantemente tensionadas com as tecnologias (que são, estas, na maior parte, externas às artes). E quando falo em relações tensionadas, isso quer dizer que estou buscando entender as diferenças e as aproximações das artes com as tecnologias, sem que se tenha de escolher definitivamente uma possibilidade ou outra, como quase sempre tem sido feito ao longo do tempo por artistas, estetas, críticos ou teóricos. Quero dizer com isso que, no mais das vezes, se tem optado pela aproximação com o tecnológico de forma quase sempre submissa e empobrecedora, ou se tem escolhido um distanciamento, frequentemente estéril. O que pretendo aqui é manter visões opostas, sem ser obrigado a adotar uma das posturas rivais; sem ser obrigado, muito menos, a resolver a contradição através de uma síntese dialética unificadora tão artificial quanto impossível. Ao se conservar essa oposição, chegaremos à dinâmica da tragédia como a descreve Simmel, mas também chegaremos a uma perspectiva trágica, no sentido do teatro grego, em que o sofrimento encenado e assistido era o início de um percurso de conhecimento. Em outras palavras, posso dizer que nossas relações com as tecnologias (e não apenas no âmbito das artes) são trágicas, por que elas, as tecnologias, são ao mesmo tempo nocivas e benéficas (e não, de modo simplista, nocivas ou benéficas). E não se pode ter uma perspectiva, sem manter a outra.
Com essa opção, torna-se impossível ou, ao menos, improdutiva a escolha de qualquer uma das duas possibilidades — a tecnofobia ou a tecnofilia. A partir daí, impõe-se reformar a noção de progresso, que, não por acaso, está ligado a vários racionalismos nossos velhos conhecidos. Em vez de progresso, quero propor aqui a noção de avanço, o que implicaria estar livre das camisas-de-força dos esquemas deterministas de presivibilidade. Baseada frequentemente nas mentalidades positivistas, a ideia de progresso parece necessitar desses saltos epistemológicos, em que a síntese em direção a um novo estado se dá pela supressão de um ou até dos dois membros da disjunção anterior. Em vez disso, creio ser possível optar pelo que estou entendendo como avanço, isso é, uma transição complexa e indefinida, em que as disjunções não se resolvem por uma concórdia otimista entre os opostos, nem pela imposição de um oposto sobre o outro. Contudo, ainda não é o momento de aprofundar essa distinção entre progresso e avanço. Mais adiante o faremos. Por ora, voltemos a nossas relações com as tecnologias.
De tudo que acima foi dito, pode-se resumir que não é possível adotar qualquer espécie de luddismo, que renega o acúmulo e a complexidade tecnológica; também não me deixo seduzir pelas vozes entusiastas da tecnologia, mesmo as que se enfeitam com alguma sofisticação, a exemplo de Pierre Lévy. Por outro lado, não há neutralidade possível nesse embate… E nem meio-termo… Dito de outra maneira, nosso diálogo com as tecnologias é muito mais profundo e muito mais antigo do que pode parecer à primeira vista, ou do que tem sido constantemente afirmado. Se me permitem usar uma figura, eu diria que o lado negativo e saturante das tecnologias é como um bola de ferro que, amarrada a nossos pés, pode nos fixar, imóveis, em algum ponto de nosso percurso; ou pode ser jogada à frente, com grande esforço, lançando-nos para bem mais adiante do que iríamos normalmente. Em outras palavras, esse lado negativo das tecnologias não nos abandona nunca e é constitutivo de nossa dimensão cultural.
Alguns terão notado, nos meus comentários acima, alguns ecos longínquos da psicanálise. Em outra perspectiva, trata-se de um raciocínio semelhante ao que aparece no excerto de Fernando Pessoa, transcrito acima. Sem deixar de ecoar as muitas discussões sobre o mal-estar da civilização, o poeta português, nesse trecho citado, associa à civilização um incômodo que é também estímulo, propondo uma postura que pode ser invocada como possível resposta à (correta!) observação de Freeman, também citada acima. Se não temos como deixar de lado nossas limitações 8 , é possível fazer com que elas sirvam de estímulo a nosso trato com as tecnologias.
Assim, de maneira criativa (e a arte não está aí para outra coisa!), é possível usar a saturação e os processos pretensamente deterministas e falsamente ilimitados das tecnologias, para fazer com que tal incômodo nos permita inventar reações artificiais que tomem distância de qualquer lógica de reafirmação da artificialidade tecnológica. Em outras palavras, trata-se de escapar de antigos limites para inventar novos limites para nós, o que significa que não nos conformaríamos com algum estado anterior já adquirido e pretensamente estável. Mas isso tem que ser feito agora, nesta nossa época, justamente quando os mitos contemporâneos das tecnologias nos acenam com redes de informação supostamente infinita possibilitando conhecimento pretensamente ilimitado. E não é preciso dizer que inventar novos limites para nós, implica necessariamente impor também limites às tecnologias, mas limites inesperados, situados fora das lógicas com que elas foram projetadas e das lógicas com que foram construídas 9 .
* * *
Todo esse preâmbulo serve para situar melhor um dos motivos principais deste ensaio — a situação dos estudos críticos e teóricos do texto digital, particularmente os que se desenvolvem a partir do campo literário. Contudo, em relação a este, tomo algumas premissas que ainda devo explicitar, do modo mais claro e simples que me seja possível (mesmo que não constituam absolutamente grandes novidades). Vamos a elas!
1. Quando falo de estudos que se desenvolvem a partir do campo literário, quero chamar a atenção para o fato de que os estudos de literatura, em particular as diversas teorias do texto, surgem dentro do âmbito literário, mas podem ser usados em outros campos: a crítica e a teoria das artes ligadas ao meio digital; as questões relativas aos hipertextos; os processos de construção de redes de informação e de sentidos no ciberespaço; os sistemas de construção de grandes narrativas tecnológicas (especialmente as digitais)10 e que constituem uma nova mitologia imanente em oposição às mitologias transcendentais que vêm da tradição oral… E assim por diante. Posso ainda afirmar sem hesitação que os estudos do texto literário estão em posição privilegiada no que se refere à investigação das relações tumultuadas entre arte e tecnologia. Essa capacidade não viria de nenhuma superioridade do literário com relação a outros campos do conhecimento, mas do simples fato de que é em nosso campo que as investigações sobre processos expressivos e sobre estratégias e campos de construção de sentidos se aprofundaram mais, nas últimas décadas.
2. Sem embargo, assim como é possível fazer os estudos literários saírem de seu âmbito específico e serem utilizados em outras instâncias, é também possível (como, aliás, sempre foi) trazer, para o literário, contribuições de outros campos, notadamente os das diversas artes. Com isso, processos e situações semelhantes já vividas em outras épocas, por outras artes, podem muito bem servir como modelos para se entender paradoxos, impasses e limites dos estudos literários, como os que se experimentam atualmente quando se examina a literatura do meio digital. Com isso, essa atual mudança de paradigmas, do impresso para o ciberespaço, pode ser mapeada, estudada e compreendida, a partir de mudanças de paradigmas com dinâmicas e condições algo semelhantes às que hoje se observam.
3. Uma última premissa se refere às vanguardas e aos experimentalismos, que impuseram seus ritmos e suas perspectivas às discussões sobre as artes, do início do século XX até os dias de hoje. De fato, é impressionante a frequência com que Marcel Duchamp ainda é invocado atualmente como inspiração, como santo protetor das artes contemporâneas. É como se não se tivesse passado quase um século desde suas primeiras intervenções vanguardistas; como se suas relações equivocadas com as técnicas, com as tecnologias e com os meios de produção em massa não fossem já um capítulo mais do que superado na história das artes. Aliás, a esse propósito, haveria que se destacar com mais ênfase a figura de Alfred Jarry (quase contemporâneo de Duchamp), na maneira como se coloca ao mesmo tempo dentro e fora das tecnologias e das ciências, de maneira muito mais interessante do que o fez o próprio Duchamp11 . Em suma, é inegável que todas as discussões sobre literatura e meio digital não podem ficar alheias às questões envolvendo os diferentes experimentalismos, tanto nos acertos quanto nos lapsos destes.
Dito isso, voltemos à segunda premissa para desenvolver alguns de seus elementos. Há que se reconhecer que estamos ainda passando pelas turbulências de uma evidente mudança de paradigmas nos estudos literários, a partir do advento das tecnologias digitais. No dizer de vários teóricos e críticos, praticamente todos os elementos que alicerçavam os estudos da literatura impressa se encontram em processo de contestação ou, declaradamente, de dissolução. E nem é preciso citar nomes, basta uma ligeira busca pela internete para se dar conta desse quase genocídio que vem atingindo conceitos que, até há pouco tempo, eram essenciais e incontornáveis: leitor, escritor, autor, gêneros, texto, leitura, retórica etc. A impressão que se tem é que pouca coisa fica de pé, depois desse furacão chamado internete. Às vezes, autor e escritor parecem condenados aos museus das citações e das referências arcaicas, como antiqualhas que apenas servem, atualmente, para obscurecer a extrema e exclusiva importância dos processos digitais de construção, armazenamento e disseminação de objetos (assimilados a gestos expressivos). Pierre Lévy afirma que “The distinction between author, editor, publisher, critique (assessement) and librarian (categorization) will continue to blur 12.” Philippe Bootz diz que “… bug et obsolescence sont les deux maîtres mots de la condition de l’auteur numérique” 13 . A respeito do leitor, Serge Bouchardon, por exemplo, fala de uma “mise en échec du lecteur” que “fait écho à une autre mise en échec, celle de l’auteur” 14 . Contudo, muitos teóricos passam ao largo de propostas mais bem fundamentadas como as de Bouchardon, na qual se parte da premissa de que leitor é também, mais do que nunca, uma função, uma estratégia, e não apenas uma perspectiva a ser exercida com autonomia por um terceiro 15 . Todavia, não são poucos os que se apressam em esconder essa colocação em xeque do leitor, para alçá-lo ao que seria a nobre função de criador, vaga com a morte do autor 16 . O rei está morto; viva o Rei!, parecem pensar. Quanto aos gêneros, Philippe Bootz, em “Vers de nouvelles formes en poésie numérique programmée 17 ?” , tenta construir uma nova grade para a poesia digital, a partir das primeiras tentativas mais sistemáticas de criação poética:

Le milieu des années quatre-vingts voit la reconnaissance de la spécificité de la poésie numérique à travers trois genres qui sont la génération automatique de textes développée par Jean-Pierre Balpe dès 1980, l’hypertexte, surtout développé aux USA, et la poésie animée, développée en France, principalement sous la forme de l’animation syntaxique, à partir de 1985 par les poètes qui formeront le collectif L.A.I.R.E. en 1988.

Em resumo, ainda estamos mergulhados em uma crise dos modelos oriundos da tradição impressa e, consequentemente, dos elementos a ela associados (autor, escritor, leitor, gêneros, texto etc.). Para alguns, isso parece indicar que seria aconselhável, ou até mesmo mais produtivo, que se desistisse de trabalhar com a tradição ou com a história dos estudos literários. Mais radicalmente, há mesmo quem passe rapidamente da desistência para o desconhecimento. Para chegar a isso, partem da constatação, correta, de que há um desvio epistemológico entre a tradição do escrito e do impresso, com respeito à tradição do digital, mas entendem esse desvio epistemológico de modo simplista e errôneo. Como se ele significasse uma desvinculação radical entre os paradigmas do ciberespaço e os da “galáxia de Gutenberg”; como se nenhum elemento, processo ou estratégia de um paradigma viesse se misturar àquele que lhe é posterior. Isso está expresso claramente, por exemplo, na ideia de Pierre Lévy de que a telemática possibilitaria a existência uma nova humanidade 18 .
É claro que, apressadamente, é até mesmo fácil concluir que tela digital não teria nada que ver com papel; que a linguagem verbal já não seria mais a melhor base para as construções de um pensamento que se tornaria icônico ou imagético à semelhança dos espaços de navegação 19 ; que a ergonomia pode ser melhor critério que a retórica ou a estética para medir o alcance e a profundidade de qualquer expressão, pensamento ou gesto de criação. Ora, abandonar ou ignorar o paradigma anterior, ligado ao impresso, implica muita coisa, menos um aprofundamento na maneira como se podem entender as literaturas do meio digital. De fato, só podemos ter prejuízos quando esquecemos a tradição anterior e nos fixamos na ilusão de que o desvio de paradigmas implica uma ruptura radical e impõe a elaboração de estratégias e de conceitos ab ovo. Desconhecer a tradição anterior e a história dos conceitos e dos métodos, nos obrigaria a propor perspectivas completamente novas, o que só pode ser feito a partir do circunstancial e do imediato. Nesse caso, o risco é cair rápida e facilmente nesses ceticismos ou relativismos contemporâneos, companheiros fraternos da preguiça intelectual. Diga-se, a bem da verdade, que estou muito tranquilo para propor esse diálogo entre paradigmas, na medida em que, desde 1995, para ler e analisar os textos digitais, venho defendendo a utilização de conceitos oriundos do que se convencionou chamar de teoria do texto francesa 20 . E diga-se também que tal diálogo nunca representou para mim uma continuidade de esquemas e teorias antigas, ou uma submissão cega a eles.
Contudo, o que está por trás de todo esse imbróglio poderia talvez ser resumido à antiquíssima dicotomia entre unidade e multiplicidade (que se desdobrou nas várias polêmicas entre idealistas e sofistas, entre realistas e nominalistas, entre racionalistas e empiristas etc.). De fato, o ciberespaço é uma multiplicidade(pois está sustentado por uma imensa quantidade de técnicas, tecnologias, processos, gestos, expressões e obras) híbrida (pois nenhum de seus componentes tem uma primazia evidente e concreta sobre os demais). Com isso, torna-se impossível compreendê-lo em sua totalidade através de uma leitura específica, individual. É claro que isso poderia ser dito do mundo vivido da tradição filosófica ocidental e, ainda uma vez, não teríamos aí nada de novo. Contudo, com relação ao ciberespaço, a diferença reside no fato de que essa impossibilidade está imediatamente diante de nós, disponível como se fosse a singularidade de uma função matemática que é, ao mesmo tempo, infinita em valores, mas restrita a um único ponto do plano cartesiano. De fato, o ciberespaço nos torna capazes não de manipular o infinito, mas sim a sua imagem especular, ou seja, a sua infinitude 21 .
E, nesse caso, mais uma vez batemos de frente com os limites da dedução ou da indução. Até poderíamos tentar entender a multiplicidade como resultado de derivações imperfeitas de um princípio unificador; mas, neste caso, o excesso de significantes do meio digital (que é correlato da saturação tecnológica contemporânea) não se deixa resumir a uma unidade, como quer o dedutivismo; rapidamente, o excesso parece se converter em excessivo e põe diante de nós, concretamente, essa multiplicidade imediata do ciberespaço, tornando aparentemente impossível qualquer operação dedutiva pré-concebida. Diante disso, poderíamos tentar outro caminho e aceitar a limitação de nossos atos de leitura, restringindo nosso percurso de conhecimento ao limite mais imediato dos objetos e das experiências imediatamente disponíveis; fazendo uso de um empirismo que se baseia em alguma forma de indutivismo. Mas, neste último caso, rapidamente o objeto se fecha sobre ele mesmo, a singularidade assume o lugar da generalidade, e o excesso cede lugar à lacuna. Como resultado, ficamos com as mãos vazias de qualquer certeza sobre o objeto que estávamos investigando. De fato, temos aqui um problema de método de pensamento, de leitura, de investigação 22 . É preciso sublinhar que não somos obrigados a escolher uma de duas opções: ou reduzimos tudo a um só esquema totalizante, ou nos restringimos ao horizonte da experiência imediata. Creio ser possível um exercício de pensamento e de leitura dos objetos digitais, que nos faça escapar tanto do reducionismo, representado pela empolgação tecnológica dos inúmeros tecnófilos contemporâneos, quanto do ceticismo (ou do niilismo) dos muitos tecnófobos.
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Nesta nossa época de intensa saturação tecnológica (e não é demais repetir esta expressão!), penso que uma abordagem pelo viés da estética pode nos fazer avançar no entendimento das artes digitais, especialmente das literaturas de que me ocupo. O apelo à dimensão estética da criação e da leitura digitais será capaz de nos fazer ir além dos dualismos redutores com que muitos teóricos do ciberespaço temos trabalhado: linear e não-linear, contínuo e fragmentário, limitado e ilimitado, e assim por diante. No caso da literatura, diria que essas disjunções têm servido para manter as discussões ainda presas à oposição entre impresso e digital, como se estivéssemos condenados a permanecer indefinidamente nessa transição específica. Ou como se não houvesse uma transição contínua em que nos movemos sempre. Vem daí a distinção que mencionei acima entre progresso e avanço. Nesse caso, avanço se oporia a progresso como as imagens fractais se opõem à linha (mesmo que seja uma linha descontínua como a da função tangente).
De outro lado, essa abordagem estética é fundamental para entender de modo mais aberto a criação literária digital. De fato, as dificuldades de explorar e de organizar o campo dessas literaturas estão ligadas diretamente às decorrências estéticas da leitura de obras literárias, sejam elas digitais ou não. De modo geral, isso sempre foi relegado a segundo plano, como se estética e arte não dissessem respeito à literatura. Para confirmar esse juízo, basta ver que poucos manuais de história ou de teoria literária utilizam conceitos que se fundamentam suficientemente em alguma perspectiva estética.
Em um ensaio publicado há alguns anos 23, procurei justamente desenvolver esses aspectos estéticos, com respeito aos poemas digitais, investigando-os como coisa, como objeto e como obra, a partir do que diz Heidegger em A origem da obra de arte 24 . Para retomar brevemente essa discussão, poderia dizer que, como coisa, a literatura digital é explorada como interação imediata, ou seja, como realidade palpável, direta e concretamente disponível aos sentidos do corpo e aos sentidos de algum discurso outro que tente falar de suas especificidades. Como objeto, é vista como resultado de uma criação, como resposta (conflitante ou obediente) a um conjunto de significações possíveis e de utilidades de que as coisas vão sendo dotadas para que apareçam então como objetos. É a partir daí que se torna possível sua utilização como instrumento de observação do mundo e do vivido. A passagem de coisa a objeto se faz quando se explicita que a coisa se reveste de linguagem. Desvela-se assim o objeto, que, nessa operação, se desdobra em interioridades e exterioridades. Todavia, para que cheguemos à perspectiva deobra, é necessário que o objeto deixe de ter interior, é necessário compreender que seu interior se torna imediatamente feito de mesma matéria, a saber, linguagem. Nesse caso, já não resta nenhum espaço para qualquer relação utilitária com a literatura digital.
Se essas descrições dão conta dos aspectos específicos das criações literárias digitais, ou seja, de suas singularidades, elas não exploram suficientemente sua dimensão cultural e histórica. E esta perspectiva é sempre necessária; desprezá-la significaria ser obrigado a optar por concepções redutoras das literaturas digitais, como já apontei acima. Sem isso, não se pode entender suficientemente as condições e as características das artes e das literaturas contemporâneas (digitais ou não). É justamente o que pretendo fazer aqui.
Na história das ideias estéticas, uma questão que me parece muito relevante diz respeito à autonomia das artes, processo que se instala a partir do século XVIII (nas literaturas, essa dinâmica vai surgir bem depois, no final do século XIX, mas é fundamental para se compreender tantos as literaturas impressas que desde então se vêm realizando, como as atuais literaturas digitais). De modo geral, pode-se afirmar que, a partir do século XX, passou-se para um segundo estágio desse processo de autonomia. Quero dizer com isso que ele se radicalizou de tal forma, que chegou a algo que nem mais era autonomia, mas sim desvinculação da arte de outras instâncias culturais. Isso representou na verdade uma postura narcísica ou, em alguns casos, quase um fechamento autista. As artes que levaram esse processo de autonomização às últimas consequências esgarçaram-se, diluíram-se e se tornaram, paradoxalmente, dependentes da figura do artista. Em muitos casos, o objeto artístico tornou-se mero pretexto para a publicização das pessoas envolvidas, isto é, artistas, teóricos e críticos. Em outras palavras, o objeto de arte ficou como que abandonado e perdido em algum lugar ignorado do campo cultural. Nesses casos, só o que temos concretamente diante de nós, no campo artístico, é o artista; no campo estético, o crítico ou o teórico. Resumindo, pode-se dizer que a arte se reduziu ao artista e a estética se reduziu ao crítico e ao teórico. Isso explicaria afirmações do tipo “não há sentido em discutir se um objeto ou processo é arte ou não; se o criador diz que é, aceita-se!…25” ; daí vem essa redução do processo criativo à figura do artista; da crítica à pessoa do crítico ou do curador. O que vale é o gesto que remete à persona e não o objeto em si! Mas, de fato, que autonomia é essa?! Por esse viés, nunca a arte esteve tão presa e tão sujeita a outras esferas que não a sua! Da autonomia, passou-se imperceptivelmente para sua dependência total com relação às pessoas envolvidas (artistas, curadores, compradores, público especializado). Certamente, não há autonomia possível em um processo em que o objeto não apenas se desmaterializou, mas foi abandonado, claramente afastado do horizonte de leitura, lançado fora como escolho, como estorvo; ou, o que dá mesmo, devendo ser acolhido com toda a complacência possível, sempre considerado como prova irrefutável da genialidade de algum indivíduo (artista, crítico, ou curador). Com a ilusão de se estar criando um objeto totalmente autônomo, passou-se a um objeto 26 totalmente dependente das pessoas envolvidas. Mesmo a arte que se diz engajada, que criticaria a sociedade, o consumo, o desastre ecológico, a perda de identidade dos indivíduos etc., mesmo essa arte não faz mais do que ressaltar a figura do criador, ao se tornar mera porta-voz deste. De fato, como combater a perda de identidade dos indivíduos, com manifestações artísticas que perderam sua própria identidade, ainda que seja em proveito de um criador, esse sim!, com identidade hipertrofiada?! Parece-me que temos aqui um processo muito semelhante ao que Simmel descreveu, quando comentou o Futurismo: “… las formas que la vida se ha construido como vivienda se han vuelto una vez más cárcel para la vida 27.” Cárcere para a vida, assim me parece uma boa parte das artes contemporâneas, ao optar pela facilidade do imediatismo, pelo empirismo desajeitado 28 , pelo conceito exposto grosseiramente em forma de alegoria simplista.
À guisa de resumo, poderia dizer, mais uma vez, que se trata de optar por uma visada decididamente epistemológica, no que se refere às artes: é fundamental acercar-se do objeto sem abstrair o sujeito; igualmente, deve-se pôr o sujeito em meio às coisas, sem que estas se reduzam a juízos daquele. E tudo permeado por uma visão do campo artístico como processo eminentemente histórico, maneira consistente de fazer com que nem sujeito (criador ou leitor), nem objeto (criado ou lido) sejam tomados como referência única e privilegiada. Assim, nesta nossa época de substituição do meio impresso pelo digital, é importante aprender com outros períodos em que também se viveu alguma importante mudança de paradigmas. Uma das possibilidades é investigar, mais uma vez, o que ocorreu no século XVIII, época de rebaixamento dos cânones clássicos, em prol de uma nova sensibilidade, mais apropriada ao mundo moderno que então surgia. Pode-se dizer que as intensas discussões estéticas que apareceram nesse período preparavam e anunciavam essa nova sensibilidade, um outro ambiente e uma dinâmica diferente, antes mesmo de que se consolidassem as criações artísticas já integradas a essas situações recentes. Assim, num primeiro momento, os conceitos estéticos que surgiam e tentavam se impor como padrão, deviam encarar criadores e criações artísticas que ainda tinham suas bases solidamente estabelecidas na sensibilidade clássica. É claro que isso é comum a todo câmbio de paradigma nas artes, mas o que me interessa, nesse caso, é justamente essas mudanças que se anunciam no século XVIII, em que claramente se passava por um aumento quantitativo na produção e na leitura de arte, com a incorporação de amplos setores da sociedade ao grupo dos consumidores de objetos artísticos (entenda-se aí não apenas compradores, mas sobretudo observadores). Isso representou inegavelmente um acúmulo de informações como nunca havia sido visto anteriormente, o que exigia dos críticos e do público 29 que se adaptassem a essa situação inusitada em que começavam a dispor de muito mais estímulos para processar e a que responder, do que estavam habituados. Balzac descreve muito bem essa situação na abertura do romance Pierre Grassou 30 :

Toutes les fois que vous êtes sérieusement allé voir l’Exposition des ouvrages de sculpture et de peinture, comme elle a lieu depuis la Révolution de 1830, n’avez-vous pas été pris d’un sentiment d’inquiétude, d’ennui, de tristesse, à l’aspect des longues galeries encombrées ? Depuis 1830, le Salon n’existe plus. Une seconde fois, le Louvre a été pris d’assaut par le peuple des artistes qui s’y est maintenu. En offrant autrefois l’élite des œuvres d’art, le Salon emportait les plus grands honneurs pour les créations qui y étaient exposées. (…) Aujourd’hui, ni la foule ni la Critique ne se passionneront plus pour les produits de ce bazar. Obligées de faire le choix dont se chargeait autrefois le Jury d’examen, leur attention se lasse à ce travail ; et, quand il est achevé, l’Exposition se ferme. Avant 1817, les tableaux admis ne dépassaient jamais les deux premières colonnes de la longue galerie où sont les œuvres des vieux maîtres, et cette année ils remplirent tout cet espace, au grand étonnement du public. (…) Au lieu d’un tournoi, vous avez une émeute ; au lieu d’une Exposition glorieuse, vous avez un tumultueux bazar ; au lieu du choix, vous avez la totalité. (…) Maintenant que le moindre gâcheur de toile peut envoyer son œuvre, il n’est question que de gens incompris. Là où il n’y a plus jugement, il n’y a plus de chose jugée. Quoi que fassent les artistes, ils reviendront à l’examen qui recommande leurs œuvres aux admirations de la foule pour laquelle ils travaillent…

Ora, numa situação de excesso de informações, a primeira reação é adotar uma lógica de exclusão como faz Balzac, insinuando a necessidade de livrar as exposições (e, em decorrência, a própria arte) dessas criações secundárias ou inferiores. Contudo, eu diria que essa não é, definitivamente, a melhor escolha: afinal, criações secundárias ou inferiores, se não concretizam nenhum progresso artístico, são fundamentais para isso que venho chamando de avanço, desde que não sejam acompanhadas de outra exclusão, a dos juízos críticos que apontem tanto as qualidades (o que se pode fazer com facilidade) quanto os defeitos ou impropriedades das obras (o que se faz sempre com dificuldade). Explico melhor: para que tenhamos de verdade essa dinâmica que venho chamando de avanço, é fundamental que nem obras, nem juízos críticos sejam excluídos. De fato, quando me refiro a problemas e obstáculos (limites e pequenezas) das artes (atuais ou não), pode parecer que estaria lamentando uma decadência evidente das criações artísticas. Mas não é nada disso. Esses equívocos fazem parte de toda dinâmica cultural, e as artes não estariam imunes a eles. Pode-se dizer que a lógica do avanço implica que não haja mesmo esse progresso inevitável, sobretudo no campo das artes. O que se pode e se deve lamentar é que, tentando preservar, inutilmente, a noção de progresso, não se exerça a crítica com toda a profundidade desejável. É fundamental justamente apontar essas falhas, essas faltas, essas criações superficiais e inócuas. Esses defeitos, claramente, não fundamentam nenhum progresso; todavia, sem eles e, a fortiori, sem uma crítica feita a eles, não se constrói nenhum avanço.
Voltando à discussão sobre o século XVIII e à mudança de paradigmas estéticos e artísticos que veio com ele, é interessante analisar o caso da literatura. Nela, o abandono dos padrões clássicos só se efetivou com a consolidação do romance como gênero literário, na primeira metade do século XIX. Houve aí então um período de mais de cinquenta anos de defasagem com relação às artes em geral. Algo muito semelhante ocorre hoje em dia. Desde o início do século XX, várias das artes (as plásticas e as visuais, sobretudo) vêm discutindo suas relações problemáticas com as tecnologias 31 , mas a literatura mal começou essa discussão. E isso se reflete na maneira como muitas dessas questões, exploradas pela crítica e pela estética das demais artes, chegam com atraso à literatura; e, quando o fazem, muitas vezes parecem repetir o mecanismo das ideias fora de lugar, que consagrou o crítico brasileiro Roberto Schwartz 32 : são ideias e princípios que, se funcionam bem na pintura, na instalação, na performance, não apresentam o mesmo rendimento na literatura, mostrando-se aí desfocados e deformados. Haja vista a tentativa inábil (e muito frequente) de utilizar os conceitos de original e deaura, de Walter Benjamin, para uma arte, a literária, em que a noção de originalidade tem muito pouco que ver com o que ocorre com a pintura e com a fotografia.

Além do princípio da autonomia da arte, discutido acima, há outros elementos, nessa transição da sensibilidade clássica para a sensibilidade moderna, que ainda podem nos ser úteis, para entender a atualidade das literaturas digitais. Contudo, vou abordar apenas mais um, para não me estender em demasia: o conceito de unidade. Ele é fundamental para as estéticas e as artes clássicas e, a partir da decadência delas, foi colocado em xeque, especialmente no que se refere à ideia de beleza. Trazido para os dias de hoje, esse processo deperda da unidade parece corresponder ao que se convencionou chamar de fragmentação, de não-linearidade, de descontinuidade. Contudo, a despeito da infindável quantidade de discussões a esse respeito, me parece que ainda não se aprofundou suficientemente a oposição entre unidade e multiplicidade nas artes contemporâneas (aí incluída a literatura 33) .

Mas isso nem é o mais importante. O que me parece relevante é que esses debates quase sempre têm insistido em deslizar, imperceptível mas inapelavelmente, para uma outra oposição, aquela que se dá entre materialidade e objetividade. É claro que esse reino do fragmentário e do descontínuo é correlato da desmaterialização da criação artística. Contudo, muitas análises também dão um segundo passo, chegando de forma apressada, fácil e indevida a uma pretensa desobjetivização. O argumento parece ser o seguinte: por ser fragmentária e descontínua, a criação artística se desmaterializa (até aí, creio que estamos todos de acordo), o que significaria que ela também perderia sua objetividade. O problema se dá justamente nessa passagem do desmaterializado ao desobjetivizado. De fato, trata-se de uma ilusão: se se admite que há um processo de desmaterialização nas artes em geral, a partir do século XX, é preciso se dar conta de que esse processo se torna, por sua vez, um objeto. Ora, é justamente quando se faz de conta de que há tal desobjetivização, que se abre caminho para a supremacia atual da persona em detrimento do objeto artístico, como discuti acima. Ao contrário, abandonando essa solução tão fácil quanto improdutiva, pode-se descobrir onde está e como se dá a objetividade (desmaterializada, certo!) da arte contemporânea, o que vale dizer que é possível associar a ela algum tipo de unidade. Mais ou menos como o fizeram os românticos, que substituíram a unidade externa do objeto artístico clássico por uma unidade interna baseada frequentemente na imaginação.

Nesse caso, a questão importante é: como propor uma perspectiva de unidade, nesta nossa época em que circulam quantidades imensas de informações, em que a descrição coerente, de agora há pouco, de um dado objeto, de um certo processo, parece ser posta em dúvida pela informação que nos chega no instante seguinte? Diria que é a primeira vez que a humanidade enfrenta tal desafio, em que a informação não se divide apenas em útilinútil einacessível, como antes, mas em útilinútilimpossível de ser processada por nós 34 . Contudo, também o século XVIII representou um salto bem perceptível na quantidade de informação disponível. Kant possuía em sua biblioteca mais de duas centenas de volumes, o que já era uma enormidade diante das bibliotecas particulares que encontrávamos nos séculos anteriores; mas era bem menor diante das bibliotecas do século XIX. É certo que nossa época se baseia num acúmulo impressionante de informações. Diante dela, os séculos XVIII e XIX apresentavam bem menos informações circulando, com muito menos velocidade. E, nessa situação, levou cinquenta anos para que se consolidasse o abandono dos padrões da arte clássica em proveito da arte moderna. Contudo, nesta nossa época, em que há muito mais informação, circulando com muitíssima mais velocidade, isso não implica que as mudanças de paradigmas ocorram com mais rapidez e com mais facilidade. Ao contrário! Minha hipótese é que, muito provavelmente, a consolidação de novos modelos e novos gêneros vai demorar muitíssimo mais. Talvez se possa investigar até a hipótese de que não haverá mais estabilização alguma de gêneros, modelos, padrões, de que não haverá aí progresso algum! É nessa perspectiva, assim, que estou propondo utilizar a expressão atraso do progresso. Em outras palavras, se podemos eventualmente falar de progresso tecnológico, isto é, aceitar que há uma acumulação aparentemente linear de habilidades e de possibilidades técnicas, isso não significa que essa mesma progressividade linear esteja presente em todos os processos culturais 35 . Ora, a própria progressividade dos processos tecnológicos é causa de atrasos, de crises imprevistas, de retornos inesperados de situações (ou seja, semelhantes a algumas já passadas). E é a conjunção desses progressos e desses atrasos que permite acontecer o que estou chamando de avanço. Vou explicar melhor! No caso da sociedade contemporânea, o acúmulo e a circulação de informações progrediram (ou seja, aumentaram) de maneira vertiginosa, mesmo sendo movimentos conflitantes (de fato, acumular e circular se opõem de várias maneiras). Todavia, de quando em quando, aqui e ali, alguma perturbação (inesperada e limitada a alguns locais) no sistema tecnológico faz com que essa oposição se torne explícita, evidente, efetiva: é o que ocorre quando o acúmulo excessivo obstrui a circulação de informações e, ao mesmo tempo, a velocidade se torna obstáculo ao acúmulo de informações. De uma só vez, temos velocidade reduzida com grande acúmulo, e acúmulo deficiente com alta velocidade, numa situação que chega à paralisia e à indecidabilidade. Talvez esteja eu aqui falando algo próximo do que propõe Virilio, quando menciona a possibilidade de um “grande acidente”. Mas há uma diferença: Virilio o esboça como catástrofe, eu o proponho como solavanco, como percalço. No meu modo de ver, são os acidentes que podem fazer com que passemos da ilusão do progresso para a construção e a constatação do avanço. Enquanto Virilio associa ao “grande acidente” um alcance unitário global (e, claro!, catastrófico), procuro entendê-lo como um processo descentralizado, em que não se pode prever quando irá surgir e, quando surge, vem certamente perturbar a lógica progressista das tecnologias, estabelecendo uma dinâmica que, ao contrário, pode estar longe de ser catastrófica.

Em resumo, atraso do progresso é usado aqui no sentido de uma estrutura de acontecimento — à falta de melhor expressão —. Uma estrutura de acontecimento nodal, singular, que surge aqui e ali, quando percebemos um certo deslocamento, um deslizamento de sentidos 36 : algo rompe as lógicas e os sentidos 37 de percurso do progresso tecnológico, para trazer uma dinâmica que se lhe opõe (o travamento; no nosso caso, a impossibilidade de avançar na formulação de modelos, de gêneros, de paradigmas novos). Sem embargo, isso não se resolve pelo esquema hegeliano, pois não parece haver caminho para uma superação dialética em direção de uma síntese. O avanço não se faz como síntese totalizante, como instalação de um modelo a ser submetido futuramente a novo período de contestação (como disse Thomas Khun), mas como um fluxo constante de idas e vindas, mais no sentido de uma dialética heracliteana 38 . Essa dinâmica é importante para entender propostas que surgem no campo da tecnologia, como a recente, de um engenheiro da Microsoft, de um dispositivo supostamente capaz de armazenar toda informação referente à vida de um indivíduo (como se essa bobagem fosse possível). Mas não só! Ela também é fundamental para compreender como paradigmas se desenvolvem no campo da estética, onde, mais claramente, não há uma progressão linear e contínua de modelos ou de padrões, mas um avanço que se constrói também através de hesitações e de recuos. É assim que a proposta de gêneros literários e de elementos de leitura para as textualidades digitais só pode ter alguma viabilidade, se entendemos sua formulação como uma dinâmica de avanço e não de progresso. Nesse caso, os paradigmas estéticos que vamos desenvolver devem estar atentos às dobras e singularidades que podemos vislumbrar na história das artes e na história da tecnologia. São essas dobras e singularidades que nos fazem ver a impossibilidade do progresso linear e que, por isso, nos permitem dar, não uma sobrevida, mas uma nova vida a elementos aparentemente mortos e enterrados, como leitor, autor, obra e texto. Ou a formas discursivas como a narração. Ou a gêneros antigos como a poesia lírica. E não se trataria de dar-lhes uma continuidade, mas de renová-los diante da realidade tecnológica que é essa nossa contemporânea. Esse caso dos gêneros literários digitais é, assim, bastante ilustrativo. No que diz respeito a essa dificuldade de propor categorias, modelos ou tipologias, como já venho afirmando neste ensaio, não se trata apenas de obstáculos passageiros que serão superados assim que tivermos uma visão mais larga, com mais distanciamento temporal das criações digitais literárias (como parece ter acontecido até aqui, na história da literatura). De fato, o progresso tecnológico saturante causa modificações profundas na maneira como podemos (ou não) organizar as criações literárias. Por vezes, parece que surgem ou desaparecem tantos gêneros quanto surgem ou se tornam obsoletos programas de computador usados na criação. Temos diante de nós uma situação em que a sofisticação tecnológica parece ter tornado quase impossível uma categorização dos objetos literários (e artísticos em geral).

Sob outro ponto de vista, essa sofisticação tecnológica não é distinta da atual multiplicação dos instrumentos e das perspectivas de análise teórico-crítica literária. Em outras palavras, a vertiginosa multiplicação informacional também chegou (como não poderia deixar de ser) a nossos instrumentos de leitura. Ampliou-se assustadoramente o acesso a periódicos especializados da área; abriu-se a possibilidade de acesso a gigantescos bancos de dados (que não se comparam aos das ciências exatas ou biomédicas, mas, gigantescos, assim mesmo); é cada vez mais fácil a frequentação de congressos, ou a consulta a seus anais etc. etc. Com tudo isso, é evidente que fica cada vez mais penosa a dinâmica da atualização constante e do (re)conhecimento das teorias e das críticas que vão sendo feitas e publicadas. Dinâmica que é imposta como moeda-corrente no mercado da notoriedade intelectual e acadêmica. Dinâmica que tenta esconder os óbvios (e cada vez mais prementes) problemas para se manter o ritmo de sofisticação das teorias e dos aparatos críticos que se verificava até há algumas décadas atrás. Em outras palavras, temos também aqui uma situação em que o progresso das teorias e das críticas levou muitos de nós, de fato, a uma imobilização intelectual. Mas esta, muitas vezes, vem a ser disfarçada a golpes de citacionismo desenfreado, vocabulário absconso, arrogância hermética. Assim, o melhor que a maioria dos atuais críticos e teóricos consegue fazer é improvisar um ecletismo à la mode, leviano e passageiro, brandindo algumas das últimas novidades para esconder a angustiosa sensação de que elas seriam, de fato, as penúltimas, e já estariam correndo o risco de uma iminente desatualização. Assim, como propor gêneros mais estáveis que permitiriam estabelecer tipologias convincentes e produtivas? Impossível, diriam muitos leitores. Dessa maneira, parece que temos diante de nós, novamente, uma situação em que a sofisticação dos elementos de um setor cultural (a teoria e a crítica literárias) causou, ao revés, uma limitação dos processos de compreensão de seus objetos. Essa virtual impossibilidade de propor gêneros, sejam duradouros ou não, pode ser entendida como mais outro sintoma desse atraso do progresso. Ora, outras épocas passaram por essa situação de dificuldade ou mesmo de impossibilidade de propor gêneros. Foi o caso das literaturas medievais ibérico-provençais. E nem por isso os críticos e teóricos que a estudaram deixaram de sistematizar suas visões e suas leituras das obras produzidas naquele período, adaptando ou propondo outras tipologias (como a noção de registro, em lugar de gênero). Em nossa época digital, me parece perfeitamente possível aprender com esse passado em que a noção de gênero era estranha a criadores e a leitores. Pode ser um caminho interessante a seguir, encontrando aí uma maneira de chegar a um avanço na compreensão das obras literárias digitais (à semelhança do que já fiz acima, quando propus voltar ao século XVIII para deslindar impasses do nosso século XXI).

De outro lado, uma possibilidade que se apresenta a mim, como criador, pode ser a construção artificial de uma situação em que possa observar mais de perto essa dinâmica do avanço. Seria como uma singularidade artificial 39 , criada e utilizada para adquirir algum conhecimento dela e algum controle sobre esse processo. Em outras palavras, trata-se de inventar, através de um processo da criação artística, uma situação em que o progresso (a rapidez, a quantidade) das tecnologias seja contestado pelas limitações inerentes à arte; e trata-se também de acelerar os gestos artísticos pela influência inegável da velocidade dos processos tecnológicos contemporâneos. É o que estou tentando fazer atualmente, com uma criação que denomino Pequeno jornal das notícias diárias desimportantes. Trata-se de um esforço consciente para diluir um gênero tradicional (a narrativa) e uma retórica específica (a dos jornais), dentro do gênero e da retórica dos poemas em versos, propondo um deslocamento constante de gêneros, um deslizar incessante entre sistemas retóricos diferentes; trata-se de uma tentativa para experimentar ritmos arcaicos, como os do hai-kai e os da terça-rima, perturbando-os ou acelerando-os com os linques e as contínuas sobreposições dos significantes digitais. No caso, é importante sublinhar que não se trata da formulação de conceitos através da criação literária (e já conhecemos bastante bem os equívocos e as fraquezas das artes conceituais). Afinal, fazer da arte apenas uma crítica aos mitos da tecnologia ou limitar-se a uma anteposição de “arte elevada” a “tecnologias depravadas”, significaria uma simples retomada de posturas já gastas do século XIX (lembremos Marx: “a história ocorre uma vez como tragédia, depois se repete como farsa”). Esse confronto entre arte e tecnologia, feito através da criação artística, não pode ser um fim nele mesmo (novamente: cairíamos aí na mera e paupérrima arte conceitual). Essa contraposição que estou buscando não é conteúdo a expressar, nem conceito a exprimir, nem ideal a defender. Repito, não é um fim, mas um meio para atingirmos uma arte que expresse e permita expressar a experiência humana nos dias de hoje. E nos faça trabalhar com toda a complexidade da criação, campo onde todo avanço nasce justamente dos atrasos do progresso.

 

1- Este trabalho foi realizado graças a uma bolsa concedida pela CAPES.
3-“Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically.”
4-Sobre excesso e excessivo, ver o meu livro Leituras de nós. Ciberespaço e Literatura. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, pp. 113 e ss.
5- “Miguel Angel”, Sobre la aventura. Ensayos filosóficos. Barcelona: Península, 1988, p. 132.
6-A respeito dessa lógica, verwww.inf.ufsc.br/~barreto/trabaluno/TC_Nerio_Mauricio.pdf ou www.cfh.ufsc.br/~dkrause/pg/cursos/lparac.htm.
7- Por “saturação”, não quero entender nenhum processo em vias de finalização, ou que apresente uma aproximação assintótica com algum limite definitivo. Saturação, aqui, diz respeito à complexidade heterogênea dos muitos processos e objetos tecnológicos com que lidamos no dia-a-dia e aos quais somos praticamente obrigados a atribuir um sentido imediato e pragmático.
8- Em Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, o mesmo Fernando Pessoa faz seu heterônimo Alberto Caeiro dizer, pela voz de Álvaro de Campos, outro heterônimo: “Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?”.
9- E diga-se que, no campo tecnológico, lógicas de projeto e lógicas de construção não são necessariamente as mesmas, a despeito de os técnicos assim o afirmarem.
10- Como discutido em meu trabalho “La technologie: un récit”, apresentado no seminário L’internet littéraire francophone, em Cerisy-la-Salle, agosto de 2005.
11- Estou me referindo sobretudo a seu romance Le surmâle. Ibid.
12- “From Social Computing to Reflexive Collective intelligence: The IEML Research Program” – http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML-Levy.pdf.
13- “Une poétique fondée sur l’échec”, passages d’encres 33. poésie : numérique, 2008, pp. 119-122.
14- Hypertexte et art de l’ellipse. D’après l’étude de NON-roman de Lucie de Boutiny- http://www.utc.fr/~bouchard/articles/Bouchardon_article-cahiers-du-numerique.pdf.
15- E este último ponto-de-vista implica quase sempre uma visão psicologizante do leitor.
16- Que, a bem da verdade, já havia sido anunciada antes do advento da era digital, como bem se sabe.
18- Como ele afirma em Les Technologies de l’intelligence.
19- Recentemente, em palestra organizada pelo Instituto Madroño, em Madri, com a participação de profissionais da Springer-Verlag, tentava-se vender um banco de imagens da editora, e um dos argumentos favoráveis foi tirado da fala de uma usuária das imagens disponibilizadas pela Springer, que afirmava: “You can in fact skip reading the whole paper, and honestly that is a huge improvement…”
20- Especialmente abordagens teóricas de Julia Kristeva e Gérard Genette.
21- Do mesmo modo como não controlamos nem contamos os valores infinitos Y de uma função matemática, mas podemos calcular e controlar os valores de X, nos pontos em que ela é infinita. Um bom exemplo é a função tangente:
22- Problema que, de fato, não atinge apenas o modo de tratar com as criações digitais, ou seja, ao modo como se articulam concepções teóricas e explorações críticas, mas diz respeito também ao modo como estas minhas reflexões e este meu artigo estão sendo construídos.
23- “O ser e o existir do poema digital”. Gragoatá, Niterói, v. 16, p. 143-152, 2005.
24- Publicado em Arte y Poesía, tradução de Samuel Ramos, Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
25- Como ouvi em recente defesa de um trabalho acadêmico.
26- Que já nem mesmo é mais uma criação específica, mas a generalidade do campo artístico.
27- El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 134.
28- Picasso podia dizer, com toda autoridade, “je ne cherche pas, je trouve”, mas quantos picassos temos hoje em dia? Pelo que dizem de si mesmos, milhões. A julgar por suas criações, pouquíssimos.
29- E era a primeira vez que esta categoria ganhava assento no campo artístico.
30- http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k101303h.r=.langPT#. Como outras referências deste meu trabalho, devo esta à muito útil Historia de las ideas estéticas y de las teorias artísticas contemporáneas, organizada por Valeriano Bozal (Madri: A. Machado Libros, 2004).
31- O que não quer dizer que as tenham solucionado.
32- Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Ouhttp://www.culturabrasil.pro.br/schwarz.htm.

33- Rapidamente, diria que, no caso dos objetos artísticos digitais, a unidade está onde sempre esteve, isto é, na estreita e incontornável tensão entre sujeito e objeto. Quero dizer, com isso, que a unidade não se encontra numa inteireza independente do objeto, tal como pregavam as estéticas clássicas; nem numa decisão unilateral e constituinte do cogito, tal como impunham os racionalismos tradicionais. Ela está numa adesão (que é também tensão, como disse acima) que se estabelece entre leitor e obra, de maneira que o leitor (sujeito) se torne obra por meio de seu objeto, quando reconhece a adesão com seu objeto: nesse caso, ele, sujeito, se dá a ler quando lê a obra, se dá a ler por outros e por ele próprio. Mas isso é discussão para ser aprofundada em outra ocasião, não aqui!

34- Como indica John Freeman em uma das epígrafes deste ensaio. No trabalho “La technologie: un récit”, acima citado, mencionei as estratégias de esquecimento próprias à nossa cultura de saturação tecnológica e que seriam necessárias para construir o conhecimento em nossa época.
35- De fato, ela não está nem mesmo na tecnologia, mas isso é discussão que escapa dos limites deste trabalho.
36- Semanticamente falando.
37- Topologicamente falando.
38- Como já venho apontando desde o início deste ensaio.

39- Singularidade no sentido das matemáticas; artificial no sentido que lhe empresta Pessoa, na epígrafe.

 

* Alckmar Luiz dos Santos é pesquisador convidado da Universidad Complutense de Madrid, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.