Ano XII 0201
2º semestre de 2017
artigo
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

A SOLIDÃO EM CORPO: OS DUOS DISSONANTES EM BEATRIZ BRACHER

Resumo: Estes escritos têm como objetivo fazer uma leitura dos personagens Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, respectivamente, dos livros Azul e dura (2002) e Anatomia do paraíso (2015), primeiro e último romance de Beatriz Bracher. A esses pares, chamarei de duos e justamente não de casais, apropriando-me de um termo oriundo da música. Para pensar essa dualidade recorrerei a associações com a música e as artes visuais, demonstrando que nos dois romances há uma figura insistente do isolamento e da solidão: os personagens estão a sós no meio da paisagem congestionada da modernidade.

Palavras-chave: Beatriz Bracher; literatura brasileira contemporânea; música; artes visuais; solidão.

Abstract: These writings aim at making an interpretation of the characters Mariana and Jorge, and Felix and Vanda, respectively from the books Azul e dura (2002) and Anatomia do paraíso (2015), both of the author Beatriz Bracher, her first and last novels. To these pairs, I will call duos and not couples, appropriating a term from music. To think of this duality I will consult associations with music and the visual arts, to demonstrate that in these two novels there is a persistent figure of isolation and solitude: the characters are alone in the midst of the congested landscape of modernity.

Keywords: Beatriz Bracher; contemporary Brazilian literature; music; visual arts; solitude.

Sintesi: Questo articolo ha come obiettivo quello di presentare una interpretazione dei personaggi Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, rispettivamente dei libri Azul e dura (2002) e Anatomia do paraìso (2015), il primo e l’ultimo romanzo di Beatriz Bracher.  Queste due coppie di personaggi le definisco “duos” duetto, prendendo in prestito un termine che proviene dal campo della musica. In tal modo, vorrei dimostrare che nei due romanzi ricorre la figura insistente dell’isolamento e della solitudine: i personaggi sono soli nel paesaggio della modernità.

Parole chiave: Beatriz Bracher; letteratura brasiliana contemporanea; musica; arte visuale; solitudine.

 

Nos quadros representando janelas, fachadas de prédios, ruas, praças, restaurantes, estações de trens, bombas de gasolina em estradas isoladas pintados por Edward Hopper, o espectador, trazido “voyeuristicamente” para observar a cena, parece condenado a compartilhar a mesma solidão dos personagens representados. Uma espécie de solidão e distância urbanas (quase) inevitáveis parecem invadir a todos, personagens e espectador, todos ao mesmo tempo juntos, porém separados, uma existência a dois (ou três) a sós, um eu com (sem) o outro. Em lugares que comumente se esperaria pela presença de pessoas, encontramo-los vazios. Mesmo quando há mais de um sujeito ocupando o mesmo espaço, todos parecem isolados, incomunicáveis. A sós. Um crítico escreveu que “a solidão de Hopper é a solidão a dois, a mais angustiante de todas, porque divide o que não se consegue somar”.

Edward Hopper, Room in New York, 1932
Edward Hopper, Room in New York, 1932

Esse parece ser o mesmo movimento que acontece com os personagens Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, respectivamente dos livros Azul e dura (primeira edição de 2002 – a segunda que será usada é de 2010) e Anatomia do paraíso (de 2015), ambos da autora Beatriz Bracher, seu primeiro e último romances. A esses pares, chamarei de duos, e justamente não de casais, apropriando-me de um termo oriundo da música por razões que ficarão claras a seguir. A oposição e simetria revestem uma dualidade conceitual e metafísica: profundidade e superfície, interioridade e exterioridade, transcendência e imanência, mundo das palavras e mundo concreto. Para pensar essa dualidade recorrerei aqui a associações com a música e as artes visuais (pintura, instalação, filme). Entrar na literatura pela porta da música e das artes plásticas me parece um exercício justificado pelos próprios romances de Beatriz Bracher. Os duos se dividem, assim, em metades complementares que nunca se completam, por vezes desejam o outro e desejam ser o outro, sem que esse desejo jamais se realize. A solidão a dois é a dissonância nos duos, é a comunicação fissurada, ausente, é o que há na conversa desencontrada entre Félix e Vanda. A comunicação que não se dá envolve dois mundos: o mundo da profundidade interior, solitária do sujeito e a da superfície exterior da existência. É essa passagem incompleta que as artes visuais nos ajudarão a vislumbrar, como veremos adiante. Em uma passagem do livro, Félix diz: “você só sabe ouvir com um ouvido. Existem muitos e todos são verdadeiros” (Bracher, p. 2015, p. 231); o que Vanda refuta: “eu posso ouvir o que você fala. Mas você não fala […]. Você se perde dentro de você, eu fico esperando aqui fora” (2015, p. 231-232). A solidão que os dois personagens compartilham ao mal se comunicarem é o que denominarei a solidão em corpo, posto que essa experiência parece acometer ao homem que a sente por dentro, como se a solidão fosse um órgão que abarrota o corpo por inteiro e que não se pode compartilhar. Servi-me de uma passagem do livro Anatomia do Paraíso em que o personagem Félix pensa essa expressão para o título de sua dissertação de mestrado, mas acaba por usar outro. Assolados por uma interioridade avassaladora, os personagens que parecem viver “dentro” de si mesmos almejam o “fora”, a superfície, como maneira de recusar a solidão. Assim, Mariana, de Azul e dura, diz:

As coisas existem vivas, não as tornamos vivas, ao contrário. Talvez. Preciso lembrar do que acontecia fora de mim, preciso saber do que acontece agora. Escrever o fora deve me ajudar. […]. Preciso ir mais fundo ao avesso, ir mais para a superfície (Bracher, 2010, p. 112, grifos meus).

Dessa forma, viso demonstrar que nos dois romances há uma figura insistente do isolamento: os personagens estão sós no meio da paisagem congestionada da modernidade. Perguntar-nos-emos em que medida a linguagem de Beatriz Bracher é atravessada, necessariamente, por uma figura da dissonância, da fissura e da solidão a dois que se infiltra entre os membros dos duos, Mariana-Jorge e Félix-Vanda. A solidão é sempre dupla: a acompanhada, entre pessoas e a solidão como separação para com o mundo. O que pode levá-los à ânsia e ao desejo da experiência da superfície, um devaneio que aspira a existência livre do pensamento em consonância com os homens e com as coisas.

Os personagens Mariana e Felix experienciam a solidão, o que implica em uma leitura do isolamento contemporâneo. Nele, o fechamento do mundo se abre em uma experiência de transcendência, no entanto, incompleta e fragmentada. Interrompida. Fazendo com que a iluminação fissurada vivida pelos personagens seja o passo anterior da vivência da solidão e do caos, pois ambos os membros dos duos a cada vez enxergam a unidade, mas não podem vivê-la na totalidade. Eles enxergam o real, mas esta visão apenas faz com que afundem ainda mais na solidão e almejem com força redobrada a superfície. Uma via de mão dupla da perigosa estrada dos personagens solitários na comunhão rompida com a experiência contemporânea. Por isso os diálogos entre Mariana e Jorge e Félix e Vanda são sempre dissonantes, pois, como pode haver consonância quando a dissonância é a única possibilidade de junção? Como disse o teórico musical Bohumil Med a respeito das expressões de origem musical, intervalos dissonantes e consonantes:

Dois ou mais sons simultâneos produzem o efeito de consonância ou dissonância. A consonância proporciona uma sensação de repouso e estabilidade […]. Intervalo consonante é aquele cujas notas se completam. Tem o caráter estável, conclusivo, passivo e de repouso. […]. A dissonância proporciona uma sensação de movimento e tensão. […] cujas notas não se completam. Têm o caráter ativo, dinâmico, transitivo, instável e de movimento. […]. Criam a impressão de intranquilidade […] soam como se fossem incompletos ou inacabados […] (Med, 1996, p. 97 e 274, grifos meus).

Por isso insisto aqui nas expressões de origem musical, duo e dissonância, porque me parece que apenas pela música se pode entender o drama dual contido nos romances que tentei encerrar no título deste trabalho. Entre os duos não há consonância, posto que não encerram em si uma sensação de estabilidade, relaxamento e tranquilidade, como dito na passagem acima de Med. De maneira oposta, são dissonantes em razão de manifestarem uma sensação de incompletude, instabilidade, intranquilidade e, sobretudo, tensão. Mariana e Félix são dissonantes ao mesmo tempo em que se portam dessa mesma forma com os seus respectivos pares complementares, Jorge e Vanda, pois os primeiros vivem na solidão, no profundo estar a sós com o mundo e no mundo, ao passo que os últimos vivem na superfície do mundo concreto, e essa dessemelhança entre íntimos engendra a dissonância, mesmo ela sendo alguma coisa que pode estabelecer um diálogo.

Schoenberg (1999, p. 59) definiu a dissonância como “as relações mais afastadas e complexas”, como Mariana e Félix (respectivamente, de Azul e dura e de Anatomia do Paraíso), que acabam por gravitar em torno da solidão que produz a dissonância na relação com seus “complementos”, Jorge e Vanda. Estão sozinhos juntos no ermo labirinto da unicidade de cada um.

Mariana-Jorge, Félix-Vanda não conseguem constituir o que na música pode ser chamado de “conversa” ou “interação”, posto que a dissonância está sempre presente, expondo-os ao perigo dos aspectos contraditórios da alma, causando-lhes tensão, instabilidade e incompletude. No entanto, parecem almejar a consonância para que haja o “consoar”, cujo sentido etimológico pode ser conferido no dicionário Latim-Português:

Consŏnu, -as, -are, -sonui (-sonitum) I – Sent. Próprio: 1). Produzir um som junto, ressoar juntamente, consoar, retumbar (Verg. En. 8, 305). II – Sent. Figurado: 2). Estar em harmonia com, estar de acordo com (Sên. Ep. 88, 9). Na língua retórica: 3). Ter o mesmo som, ter a mesma terminação (Quint, 9, 3, 75); e concordar (concordância) (Quint. 9, 3, 45). (Faria, 1962, p. 238).

“Ter a mesma terminação e concordar” com os homens e com o mundo tangível e dizível daqueles que apenas existem. Mas não, Mariana e Félix estão sempre na irresolução, na indeterminação. Comunicam-se na superfície pela dissonância antes do retorno ao profundo exílio no espírito que os conduz. Comunicam-se, pois, afastados uns dos outros, na solidão a dois que “divide o que não se consegue somar”, retomando aqui o comentário sobre Edward Hopper.

Quando, por exemplo, ouvimos a belíssima gravação de Almost Blue executada por Chet Baker ao trompete e Bill Evans ao piano, ouvimos não somente um consoar, mas um diálogo, mesmo solitário, que cria a atmosfera do almost, do quase. Estão imersos um com o outro, quase um-no-outro em absoluta consonância. Um discorrer íntimo e belo. Ou, quando ouvimos a segunda parte do Concerto n° 2, de Sergei Rachmaninoff, apreciamos a interação entre os membros da orquestra, mas principalmente entre três músicos. No documentário dirigido por João Moreira Salles sobre o pianista Nelson Freire, há uma cena que se chama “uma conversa entre o piano, a flauta e o clarinete”. Em intensa consonância uns com os outros os músicos Natalia Setchkariova à flauta, Adil Fiodorov ao clarinete e Nelson Freire ao piano parecem submergir num alumbramento musical à beira do precipício da solidão, ainda que “acompanhados” em uma sala de concerto, seja pelos outros músicos da orquestra, seja pelo público na plateia, ou assistindo por uma tela de cinema. Ao contrário, os personagens dos duos parecem apenas se comunicar superficialmente numa sequência estática de palavras que se sobrepõem umas às outras, mas sem profundidade. É comunicação, não é uma conversa. Dizem, mas não falam, não se ouvem, colidem na assimetria de suas palavras.

Posto isso, a consonância, ou o “ressoar juntamente” como inscrito no dicionário latino por Faria, parece apenas anteceder o caos, a dissonância e a tensão. Assim, pois, ocorre a fissura entre Mariana-Jorge, Félix-Vanda, duos que não se unem pela consonância ou em uma resolução harmônica, mas apenas pela superficialidade interlocutória subjazida pela incompletude, pela dissonância. Este trabalho não é sobre teoria musical ou sequer sobre música, porém é a música, enquanto uma experiência passiva de audição a sós, que nos permite acessar algo da experiência dos personagens de Bracher. Eis o que escreve Hegel sobre ela:

(…) o som penetra no eu, percebe-o em sua existência simples, coloca-o em movimento e o leva em seu ritmo cadenciado, enquanto que as outras combinações de harmonia e de melodia, como expressões de sentimentos, completam e precisam o efeito produzido sobre o sujeito, contribuindo para comovê-lo e despertá-lo (Hegel, 1964, p. 103, grifos meus).

Trata-se, em suma, de despertar o homem em sua solidão. A música é a arte subjetiva por excelência.

A nomenclatura musical permite incrível consonância com a literatura e vice-versa. Os subtítulos deste trabalho foram escolhidos não por uma questão de métrica ou estilo, consonância ou dissonância, mas por uma questão de gosto e atentando ao fato de que todas as músicas citadas possuem na letra a palavra “alone”, ou, “sozinho”. Ao longo do texto, outras ressonâncias aparecem, com a pintura e o cinema, mas sempre atentando ao mesmo problema: a dissonância e a fissura nos duos Mariana-Jorge, Félix-Vanda, atentando, pois, à solidão que aparece no intervalo entre os duos.

ALMOST BLUE
Almost blue,
Flirting with this disaster became me
(Chet Baker)

Se a prática da dúvida foi meu inferno, o exercício da ingenuidade, minha possibilidade
(Beatriz Bracher, Azul e dura)

“Mariana, nunca te perguntei, mas o que aconteceu naquele dia? Como foi o acidente?” (Bracher, 2010, p. 117). A pergunta fatídica desdobra o inferno de Mariana, personagem principal do primeiro romance de Beatriz Bracher, Azul e dura, como já vimos. A partir de leituras de velhas anotações guardadas na mala – que dá título ao livro – e de novas escritas que se perdem dentro de si mesma, Mariana se debruça sobre um jogo reflexivo arriscado: dias perdidos do passado, dias perdidos do presente. O entrelugar da loucura e da sanidade, da loucura sobre a dúvida como sanidade, o benefício da ingenuidade e da escrita como a possibilidade da redenção: “Havia, quando comecei a escrever, sem que eu soubesse, havia o desejo de ser absolvida, de morrer com a consciência limpa, em dia com os homens” (2010, 111).

Mariana atropela e mata uma criança. Não sabe se dolosa ou culposamente. Ela própria não sabe. Não sabemos. O buraco da dúvida se sobrepõe à vida concreta, sobre o próprio tempo, às vezes narrado de trás para frente, às vezes de frente para trás: “Lerei com ácido minhas anotações antigas. Se do que restar não sobrar mais eu, então veremos” (2010, 14). As anotações remetem aos tempos da juventude saudosa, quando estudante de cinema, vívida e inflamada pelo impulso artístico da profissão. Logo, o casamento e a vida estreita e comprimida de esposa exemplar de um advogado bem-sucedido, Jorge. Filho e filha, Tomás e Gabriela, as preocupações mornas de família de classe média da zona sul do Rio de Janeiro. Tempos em uma estação de esqui nos alpes suíços e a tentativa de evocar e reviver o dia do acidente. Rememorações distorcidas: não se sabe se lúcidas ou insanas mas, por certo, labirínticas. Por conseguinte, entrega-se ao alcoolismo e à depressão, toma remédios entre doses de vodca e bitucas de cigarros esquecidos. Ocorre a separação do marido e ela descobre que a prática da dúvida foi seu inferno.

Milton Ohata, na orelha de Azul e dura, explica que “a fragilidade da personagem é acolhida pela consciência da fragilidade do ato de narrar”. Ora, a fragilidade é a própria solidão, é por causa dela, e nela, no labirinto da solidão, que Mariana se perde e se encontra a um só tempo, a própria lucidez ou a própria loucura. A solidão em corpo, enfurnada e isolada no meio do caos que assoma em meio aos seus dias perdidos e encontrados na mala de azul e dura, nas velhas anotações que conservam o que sobrou e o que há de sobrar. É aí que lemos com ela o tormento de suas descobertas e hesitações, mas lemos sobretudo a sua solidão. A sua solidão em corpo.

SOLITUDE
In my solitude
You haunt me
With dreadful ease
Of days gone by
(Billie Holiday)

Em Azul e dura, Mariana diz: “Quando nos casamos, estar com Jorge era estar com o real. Jorge era a parte ativa do mundo existente […] Jorge estava em contato com o mundo, não com o pensamento sobre o mundo” (Bracher, 2010, p. 25, grifos meus). Jorge é advogado e seu trabalho é a lei, não o pensamento sobre a lei. Ele busca recursos externos à lei para absolver a mulher. O “pensar a lei” é feito por Mariana. O pensamento em si é objeto de sua reflexão e loucura. Ela se encontra no lugar privilegiado da classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, o que lhe faculta uma condenação amenizada por atenuantes: ré primária e sem intenção de matar, veredicto: homicídio culposo. No entanto, paira sobre a situação sendo ela própria ré, promotora e juíza, condenada e condenando em pensamento e ao pensamento:

Pensei que chegaria lá, diria o que tinha acontecido e acabou. Mas o delegado, o policial que nos recebeu, o escrivão, Maria Alice […] diziam, não se preocupe, nós vamos te proteger da lei. […]. Existem códigos, existem leis, coisas escritas, sólidas […]. Não importa o delegado, o ministro, elas estão lá, é só ler e ver qual a punição. Pronto, é tão seguro isso, porque é claro, não depende da boa vontade de ninguém, de favor nenhum, de merda de delegado e polícia nenhuma (2010, p. 88).

Após o acidente, esperando o veredito e mesmo após o veredito, Mariana parece procurar elucidar a própria vida como maneira de fazê-la voltar ao seu sentido sem saber que as suas indagações, as suas maiores verdades, suas únicas certezas, acabam por transformar o mundo inteiro, colocando-a de encontro às suas visões fragmentadas com a mala de azul e dura (a própria mala que dá nome ao livro), ela mesma já enxergando o mundo dessemelhante de si. Seus escritos são o que sobrou, relatos dela mesma como outro alguém que se perdeu no tempo. A busca por alguma coisa, talvez a inquietação que a movia na juventude quando estudante de cinema, talvez a busca por Jorge, seu marido, um homem que existe na concretude. No entanto, a perda acontece como um encontro e a escrita é o meio para se encontrar. A loucura acaba por produzir a lucidez sobre as coisas: ela significa ao mesmo tempo um afastamento de si mesma e uma profunda aproximação, impossibilitando-a de estar na “parte ativa do mundo existente” (2010, p. 25).

Mariana parece viver no entrelugar de seus escritos. Ela faz um percurso interno duplo e contraditório: rememora o que é e o que já foi, julga seus atos e seus anos do passado, ao mesmo tempo em que é julgada (e que julga a si mesma) pelo acidente de carro. Ela se aprofunda em literatura jurídica, ao mesmo tempo em que submerge em si e julga a si mesma: homicídio doloso.

Lembra-se de seus pais, culpa seus pais e Jorge. A culpa é o predicado do pensamento que a leva à solidão e à beira da insanidade. Já não parece enxergar a si mesma, e mesmo os seus escritos da mala de azul e dura já a confundem, misturam e atordoam: “Espremo de mim fracassos orgulhosos […] forço a sair o relato de quem fui. Não sei quem fui. Desempenhei o papel de quem tenta organizar e fazer” (2010, p. 35). Ela se confunde com os outros familiares e busca a sua própria imagem nos parentes. Novamente perde-se em fragmentos da memória e na escrita: “Reli o que escrevi nessa primeira semana e não me suportei […]. É a escrita feminina no que ela tem de pior” (2010, p. 73).

Mariana busca a superfície em Jorge. Busca estar na superfície se segurando na mala de azul e dura, sempre procurando estar “lá fora”, onde “há vida no chão, nas paredes, nos panos, nos esquiadores” (2010, p. 112). Arrumando obsessivamente a casa: “os armários tornaram-se minha obsessão […]. Arrumar, arrumar, manter arrumado.” (2010, p. 59). Tentando “arrumar-se”. Ela: o armário bagunçado e solitário da cozinha e do banheiro.

TEA FOR TWO
I’m discontented with homes that I’ve rented
So I have invented my own
(Ella Fitzgerald, “Tea for two”).

Uma história tem que se cercar de histórias (…) A cegueira clareia os ouvidos e nos dá a antevisão, é isso o que contam os livros
(Beatriz Bracher, Anatomia do paraíso).

“O que você viu, Félix? Escreva!” (Bracher, 2015, p. 53). Félix é um estudante de mestrado que está escrevendo sua dissertação sobre o Paraíso perdido, de John Milton. Mineiro, bissexual e epilético, submerge e absorve-se nas traduções do poema que o conduz a um salto no vazio da leitura, que o conduz à irresolução do poema. Não o compreende, e o narrador, como Deus, o expulsa do paraíso, relegando-o ao paraíso perdido num perpétuo castigo na cidade do Rio de Janeiro, em seu cubículo-quarto. Ainda assim, o romance é de uma beleza arrebatadora porque há mais que metalinguagem (ou “metaescrita”, “metaleitura”) em Anatomia do paraíso. Nele, há uma espécie de corporificação, um belíssimo e violento relato (ou bem mais que um relato!) do exercício da leitura e da escrita. A beleza da recepção e da gênese das palavras que se unem, constituem e estabelecem formas, atribuem significados umas às outras, ou umas nas outras, como se dependessem mútua e reciprocamente para conferir-lhes um significado total, talvez uma história, qualquer coisa da ordem do dizível. A leitura e a escrita aparecem como processos e formas de descobertas das coisas, nomes, gestos, palavras. Mais que a fruição estética, trata-se, em Anatomia do paraíso, da fruição da criação e das possibilidades da criação. Félix descobre as possibilidades criativas nas traduções do poema épico de Milton, numa atmosfera de devaneios e invenções que o levam à profundidade e à descoberta. O percurso que Félix faz o leva do jogo arriscado com a reflexão à solidão: as palavras se processam na interioridade, o personagem é todo interioridade.

Em vista disso, ele busca a superfície em Vanda, sua vizinha e técnica de autópsia no Instituto Médico-Legal. Como diz José Luiz Passos, na orelha de Anatomia do paraíso, o romance enfeixa uma contradição entre idealismo e mundo prático: um “contraste entre o idealismo de Félix e as exigências práticas do cuidado com a vida – representadas sobretudo por Vanda” e de outro modo com Maria Joana (a “Jojô”), irmã de Vanda, e o tenente Nildo.

Em Félix, parece que há um vislumbre direto da matéria sensível espiritualizada, aquilo que as coisas emanam, dizem de si silenciosamente como uma natureza que falasse, disseminada em palavras. “Quem será a Luz feita pela voz?” (2015, p. 120), pensa ele em comentário a um trecho de John Milton. Aqui, as palavras são mais do que vocábulos que dão nomes às coisas. São manifestações aparentes, apresentam-se ao mundo. Já não parece haver distinção entre ele e John Milton, entre o Paraíso perdido e ele como próprio sujeito do mundo. Félix parece ser tomado pela visão já perdida de Milton, já completamente cego no momento em que escreveu Paraíso perdido, tornando-se ele próprio o narrador do poema de Milton, de Anatomia do paraíso, o livro que estamos lendo e de tudo o que ele vê com seu olhar físico. O céu não é mais apenas o céu que os homens enxergam; é o céu estendido do Paraíso perdido, estendido acima de Copacabana, mesmo deslocamento que acontece com o Inferno. O corpo de Félix é uma extensão de sua leitura meticulosa e apaixonada: paraíso, inferno, anjos, demônios. Adão e Eva perambulam e coabitam em seu bairro, em tudo. E em Milton ele encontra a razão da sua escrita, de sua própria vida. As palavras dizem mais que o Paraíso perdido, envolvem Félix e sua visão é tomada e derramada sobre o poema, e também fora do poema. Ele vive na sensação: “sendo guia […] querendo ser cego, mesmo nos dias em que consegue enxergar, Félix entende de novo o caminho, entende que o caminho é dele” (2015, p. 152). No entanto, parece haver a ânsia e o desejo de apenas existir, de viver apenas na superfície, assim como Vânia, assim como Jorge, de Azul e dura. Grosso modo, ele almeja ser uma pessoa comum e não percorrer “extensas solidões” na sua condição de homem enfurnado e isolado em si mesmo (Bracher, 2010, p. 187):

Ter uma televisão ver televisão, ter dinheiro e ir ao cinema, ler jornal, gostar de futebol […], pensa que […] seria uma pessoa mais densa. Enxergar o mundo, ter olhos e ver. Mas não. Sempre na órbita dos cegos, orgulhoso com sua cegueira, enfurnado e vendo o que não existe, pureza e podridão (Bracher, 2015, p. 186, grifos meus).

A contrariedade inscrita pela conjunção adversativa, seguida por um advérbio de negação, na expressão, “mas não”, exprime a condição do homem enfurnado e isolado em si mesmo, que não pode sair pelo fato de ter nascido humano e pensar. Ele não pode possuir uma natureza que não lhe pertence. Não pode apenas existir livre do pensamento sobre a própria existência. Como a própria Beatriz Bracher disse em entrevista ao jornalista Daniel Benevides: “os narradores do Félix e da Vanda são na terceira pessoa, mas são diferentes: o do Félix é de pensamento interior e o da Vanda é mais realista”.

Félix se expande para as coisas, seus aspectos constituídos, reais, palpáveis e os vocábulos e passagens que sucedem dão formas aos seus atos, mostram gestos que não se dizem mais abstratos, impalpáveis, quase que obscuramente incompreensíveis àqueles que não sentem o mundo e seu peso. Ele sente as coisas, talvez como uma busca desesperada de pertencer a alguma coisa. Ele desenha como se fosse a única forma de sair de seu isolamento subjetivo e indefinido: desenha a linha da parede, a linha do chão, da cama, da estante (…). Segura o cabo com o punho fechado, abre sulcos na madeira deixando ver a cor castanho clara do compensado sob a fórmica, o canivete escapole e fere o polegar de sua mão esquerda. (…). Olha para o dedo, a lâmina fez um corte reto na almofada da última falange do polegar, continua sangrando (Bracher, 2015, p. 175, grifos meus).

O sangue é o ultimato de suas ações, o que mostra sua natureza, vivo, carnalmente vivo, humanamente vivo. Assim como Mariana, de Azul e dura:

Sempre sangra um pouquinho, sangue nunca é morto. Nunca é só pele, é um pouco carne. Pele é carne, casca é fruto. É o que protege e separa, mas é corpo, não só capa. Furar a casca para achar o dentro, para descobrir a verdade, mas a casca já é verdade. E de qualquer forma se rasgo o fora, o dentro se transforma no fora no instante preciso em que encontra o ar, em que meu olhar o encontra, nesse instante ele já está se coagulando, se tornando avesso, casca (Bracher, 2010, p. 34-35, grifos meus).

A vida concreta é metaforizada em uma única coisa, sangue: “Assim como o sangue é sangue, ele é um mortal, tem um corpo” (Bracher, 2015, p. 220-221). Vê-se homem, “livre para pecar, livre para não aceitar a salvação nem o amor do pai” (p. 175), sente-se homem, frágil e findável, desolação do mundo exterior e do seu próprio mundo interior. Um ser que também morre. Mas ainda assim, livre, ou querendo ser livre. É a inversão do paraíso. Félix é aquele que “come” a maçã do pecado, por isso perderá a ligação direta com seu criador, jamais entendendo o Paraíso perdido. Ele está no próprio paraíso perdido. E, apesar disso, a trajetória que percorre é outra, que não a da liberdade, mas a ânsia e o desejo de apenas existir, assim como Vânia, assim como Jorge, de Azul e dura, como vimos.

Por outro lado, em oposição simétrica a Félix, a natureza de Vanda é a da concretude, tão belamente e simbolicamente inscrita em sua profissão, como técnica de autópsias. Não se trata de uma mulher das palavras, não é uma mulher da escrita, trabalha com corpos, costura corpos. E é no Instituto Médico-Legal que forma pensamentos, mas a eles não se entrega. A única coisa que examina é a carne em seu desfecho, que é a morte:

Mas eu nunca tinha pensado no amor que a gente tem pelo corpo da pessoa que morreu e que, enquanto não começa a apodrecer, está lá para ser amado e protegido. […] nunca achei o meu trabalho ruim, mas hoje foi estranho mexer com os corpos. Não porque estavam mortos, mas porque tinha gente esperando por eles (Bracher, 2015, p. 244, grifos meus).

Ela é também uma mulher que está grávida e carrega em seu útero um pedaço de corpo, um pedaço vivo de si. Tudo nela está relacionado ao estrito mundo da existência desde os seus pequenos gestos à novela que assiste ao jantar que prepara para a irmã, Maria Joana, até a matéria que estuda no pré-vestibular: medicina.

Vanda não entende o mundo de Félix, a dissonância entre suas conversas é extremamente visível, ele diz: “você só sabe ouvir com um ouvido. Existem muitos e todos são verdadeiros.” (Bracher, 2015, p. 231). A que Vanda refuta: “eu posso ouvir o que você fala. Mas você não fala […]. Você se perde dentro de você, eu fico esperando aqui fora” (2015, p. 231-232). Sempre essa insuficiência na interlocução. Os duos como a fissura entre dois corpos. A dissonância como a possibilidade da fala.

ALONE TOGETHER
Through the window, the night’s so still
And if you listen you can hear
That lonesome whippoorwill
(Chet Baker)

Mariana (de Azul e dura) e Félix (de Anatomia do paraíso) estão “sozinhos juntos” (ou “Alone together” como a música de Chet Baker) e se dissolvem no mundo, com o mundo às vezes longe ou intimamente ligados ao seu próprio ser e estar no mundo, mas em uma espécie de “conexão” distante, fissurada. A disposição entre eles lembra a fórmula de Lukács sobre os tempos afortunados do mundo grego que se perderam para nós e agora tudo é distância e abismo: “de agora em diante, qualquer ressurreição do helenismo é uma hipóstase mais ou menos consciente da estética em pura metafísica.” (Lukács, 2000, p. 35, grifo meu).

Assim, os personagens parecem findar no enfrentamento do vazio com uma visão metafísica, dirigida ao mundo, que quer se dirigir ao mundo: “Possa eu olhar e contar as coisas invisíveis à vista dos mortais” (Bracher, 2015, p. 120), pensa Félix sobre uma citação de John Milton. Entretanto, irrealizável, posto que os duos vivem em sua própria solidão, na solidão em corpo. Para eles, a superfície é uma quimera que os leva à dissonância com a contemporaneidade mas ao mesmo tempo a uma vivência em consonância, ainda que ilusória, com o mundo grego da plenitude líquida das coisas, sobre a qual fala Lukács:

Aqui não é o lugar para discutir se o nosso avanço (como ascensão ou declínio, tanto faz) é causa da mudança ou se os deuses da Grécia foram expulsos por outros poderes. (…) a força sedutora, que jazia ainda no helenismo morto, cujo brilho luciferino, ofuscante, fez sempre esquecer as cisões insanáveis do mundo e sonhar novas unidades, em contradição com a nova essência do mundo e, portanto, em constante ruína (Lukács, 2000, p. 35, grifos meus).

No outro extremo se situam Jorge e Vanda (Azul e dura e Anatomia do paraíso, respectivamente) que representam a concretude, a existência sem reflexão. Nas palavras de Bracher, o “real” (Bracher, 2010, p. 25), a “parte ativa do mundo existente” (p. 25), uma vivência de certa forma ambicionada pelos personagens que vivem no alumbramento das coisas, Mariana e Félix.

Puramente interiores, Mariana e Félix parecem incertos quanto ao exterior das coisas. Instabilidade e incertezas das coisas deste mundo, um desatino que chamo “descômodo” (por oposição a “incômodo”) e que quer ser perturbado, ser descoberto, descortinado, vulnerabilizado. Eles querem perturbar as certezas e as incertezas. Debruçam-se sobre si mesmo através do exercício de reflexão, o próprio sujeito narrativo sendo observador ativo das coisas, das palavras, dos homens e do mundo. Há nisso algo de semelhante ao que Lukács descreve n’A teoria do romance. Na fissura ou na dissonância, que se abre com a modernidade, ocorre a perda de um mundo unitário no qual o homem se reconhecia:

Eis por que a filosofia, tanto como forma de vida quanto como a determinante da forma e a doadora de conteúdo da criação literária, é sempre um sintoma da cisão entre interior e exterior, um índice da diferença essencial entre eu e mundo, da incongruência entre alma e ação (Lukács, 2000, p. 26, grifos meus).

E assim, os personagens passam a buscar a experiência nas coisas e a partir delas. Uma busca talvez pela potência. Félix e Mariana pairam sós sobre o mundo: eles problematizam a existência, habitando no interstício que existe entre o mundo representado e o mundo das ideias, o pensamento e a metafísica, tentando decifrar a grandeza do Universo. Há nisso tensão, medo, loucura. O medo da inexistência, medo de existirmos e estarmos no mundo sem resposta sobre a pergunta do porquê da existência. Um vazio: “Deus – que exista Deus! – livre de mim o peso que me constringe a respiração e a existência, a pedra que me aperta coração, pulmão, garganta, céu da boca, dentes e língua” (Bracher, 2015, p. 209).

Dessa forma, para Mariana e Félix, as palavras apresentam e retratam imagens silenciosas, movimentadas pela rapidez da modernidade e dotadas de significados pela contemplação dos personagens. Eles se abrem ao meticuloso deslumbramento do pensamento não só com o Belo, mas com o Real da presença das coisas. Eles perturbam ao mesmo tempo em que, às vezes, são involuntariamente perturbados. Buscam a quietude e mergulham na solidão na profundidade que impossibilita que alcancem a superfície e os seus respectivos pares dos duos, Jorge e Vanda, que alcancem, portanto, a consonância. Assim, apenas a tensão da dissonância comunica a fissura, apenas por ela é permitida a comunicação entre eles.

A sombria desordem que se manifesta nos personagens de Bracher, faz com que pareçam perder suas identidades como sujeitos do mundo, pendendo para a loucura. Eles são verdadeiros loucos naquilo que toca a sensibilidade de seu próprio eu, de um ser ou estar no cosmos, que esconde a máxima de sua natureza, no concreto das cidades e dos homens que são símbolos de inquietudes, arbitrariedades, traumas, o desvario do mundo medíocre. Vale lembrar aqui as palavras de Foucault sobre uma dimensão da loucura como inseparável da verdade:

A denúncia da loucura torna-se a forma geral e crítica. […] Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade – desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras. Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade […] ele diz […] a medíocre realidade das coisas para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos (Foucault, 2012, p. 14, grifos meus).

Os personagens Mariana e Félix dizem a verdade, mas quem há de ouvi-la quando a dissonância é a única forma de comunicação? Eles passam a ser tidos como loucos, mesmo e sobretudo porque a loucura é um caminho para a verdade. Eles mergulham no desconhecido como forma de conhecimento, sempre uma busca, talvez buscas que se desdobram em hesitações, fragmentações, duplicação entre dois sujeitos. Sempre há mais personagens em um só: aquele que é e aquele que quer ser. Aquele que quer existir: a existência livre do peso do pensamento, entretanto, irreal, posto que eles próprios indagam, divagam, refletem e, sobretudo, pensam.

A dissonância entre os personagens Mariana e Jorge, Félix e Vanda consiste num abalo das possibilidades de comunicação. Os personagens se comunicam, mas superficialmente apartados uns dos outros. Eles se comunicam desarmonicamente pela tensão e pela dissonância. É a pintura quem melhor descreve esse jogo entre profundidade e superfície. Assim, existe a profundidade, mas a superfície é sempre mais clara para aqueles que nela vivem, como na série de quadros de David Hockney, Swimming pools. Dentre eles, um dos mais famosos, A bigger splash (de 1967), parece figurar o limite entre o piso de pedra e a água da piscina que se mostra sem profundidade, superfície azul clara enquadrada no plano do quadro. O quadro representa um salto que não é visto e o que resta é o grande “splash”.

Por outro lado, e em sentido inverso, a instalação feita pelo artista argentino Leandro Erlich, que criou uma piscina falsa para o Museu de Arte Contemporânea do Século XXI em Kanazawa no Japão pode mostrar duas possibilidades: que a profundidade, vivenciada através da sensibilidade, pode ser sempre mais clara para quem nela está a superfície turva, movente em seu próprio reflexo e quem olha da superfície vê apenas a opaca movimentação. O que lembra a definição da sensibilidade formulada por Kant em A crítica da razão pura: “A capacidade (receptividade) de receber representações através do modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade” (Kant, 2012, p. 71). O resultado é a incomunicabilidade. Os personagens dos duos são assim: alguns parecem findar em sua presença e profundidade, mesmo almejando a superfície e outros existem na superfície, ainda que experimentem pequenos lampejos do splash, o mergulho fugaz na profundidade que ao perder o ar retorna à superfície, assim como Jorge e Vanda, de Azul e dura e Anatomia do paraíso, respectivamente.

David Hockney, A bigger splash, 1967
David Hockney, A bigger splash, 1967
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999

O isolamento sempre existirá, estar no mundo não é ser para o mundo. Nos romances de Bracher, o ser é para dentro, vive para dentro como os próprios órgãos que existem em si, por mais que almejem a superfície. Os personagens solitários se dissolvem nas coisas e as coisas se dissolvem neles. Por vezes, vivem na presença delas. Deleuze, em um belíssimo capítulo do livro, Francis Bacon. Lógica da sensação escreve: “Ao mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro […] é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto como sujeito” (Deleuze, 2002, p. 42). Mariana e Félix são para o mundo, eles ao mesmo tempo existem e se dissolvem nele, mas como uma angústia do eterno retorno à solidão de si mesmos, o corpo único com a potência pairando sobre o indeterminado. Porque vivem a solidão em corpo. Apenas pela dissonância conseguem enxergar uma parte da superfície em Jorge e Vanda. Um instante fugaz que lhes permite respirar a resolução da consonância lacônica, mas que em seu íntimo sabem eles que estão irremediavelmente sós. Termino estes escritos com uma citação da própria Beatriz Bracher: “Não quero mais reler quem fui. Esse tipo de memória fixada na escrita não me interessa mais” (Bracher, 2010, p. 153).


* Ana Beatriz Costa da Silva de Castro é mestranda em Teoria Literária, pelo programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Esta publicação responde a um convite.

 

Referências

BRACHER, Beatriz. Azul e dura. São Paulo: Editora 34, 2010.

BRACHER, Beatriz. Anatomia do paraíso. São Paulo: Editora 34, 2015.

BENEVIDES, Daniel. Dissecando desejos. Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2015/11/dissecando-desejos/. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

ERLICH, Leandro, Swimming pool, 1999. Disponível em: <https://www.ignant.com/2016/01/07/an-illusory-swimming-pool-by-leandro-erlich/>. Acesso em: 9 de setembro de 2017.

FARIA, Ernesto, Dicionário escolar latino-português. 3ª edição. Rio de Janeiro: C.N.M.E, 1962.

FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HEGEL, G.W.F. Estética. Trad. Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores.

HOCKNEY, David. A bigger splash, 1967. Disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/2016/feb/10/an-even-bigger-splash-why-david-hockneys-pop-art-poem-lives-on> Acesso em: 9 de setembro de 2017

HOPPER, Edward. Room in New York, 1932. Disponível em:  <https://www.edwardhopper.net/room-in-new-york.jsp>. Acesso em: 9 de setembro de 2017

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José M. M. de Macedo. São Paulo: Duas cidades/ Ed. 34, 2000.

OHATA, Milton. Orelha de Azul e dura. São Paulo: Editora 34, 2010.

PASSOS, José Luiz. Orelha de Anatomia do paraíso. São Paulo: Editora 34, 2015.

SCHOENBERG, Arnold 2002. Harmonia. São Paulo: Editora da UNESP [1911]

Filmografia

Nelson Freire. Direção: João Moreira Salles, 2003.

 

Recebido em: 04 de setembro de 2017
Aprovado em: 16 de outubro de 2017