A Barbárie em face do humano: as tribos pós-modernas | de Michel Maffesoli

* Dados do autor
** Tradutora Rosza vel Zoladz

As tribos pós-modernas fazem parte, agora, nos dias atuais, da paisagem urbana. Isso, após terem sido objeto de uma conspiração silenciosa das mais estritas – quanta tinta elas fizeram correr! Tudo de uma vez, para relativizá-las, marginalizá-las, invalidá-las depois de denegri-las. Coloquemos uma questão simples. Essas tribos, não são elas a expressão da figura do bárbaro que, regularmente, retorna a fim de fecundar um corpo social, um pouco debilitado? O que há de certo é quando uma forma do laço social se satura e que uma outra (re)nasce – isso se faz, sempre, com temor e vacilação. É o que faz com que certas boas almas se choquem por essa renascença, porque ela desloca um pouco a moral estabelecida. Do mesmo modo, certas belas almas podem se ofuscar, pois essas tribos não fazem senão privilegiar a primazia do Político. Eu o disse, em textos anteriores. Política ou Jogo. E a prevalência deste último (Jogo) é tão evidente que a Política, ela mesma, se teatralizou e tornou-se objeto da des-razão: resumindo foi contaminada pelo lúdico.

Qual seja, e qualquer que seja o sentimento que a elas se atribua, essas tribos pós-modernas estão lá. E, a menos que as exterminem todas, o que corre o risco de ser difícil, pois nossas crianças são ingênuas, é preciso fazê-lo com a acomodação de suas maneiras de ser e de aparecer, com os seus piercings e tatuagens diversas, de seus curiosos rituais, de suas músicas barulhentas: em poucas palavras, a nova cultura, da qual elas são seguidoras advertidas de uma seita e dinâmicas. Certo é que a (re)emergência dessas novas maneiras de estar junto não lhes falta ser desconcertantes. Ela não é menos compreensível. Com efeito, como isso se passa pelo indivíduo, traduz um simples processo de compensação. Progressivamente, esquecendo-se do choque cultural que lhe deu nascimento, a civilização moderna se homogeneizou, ela se racionalizou ao extremo. E sabe-se que o enfado nasceu da uniformidade. A intensidade de ser se perde quando a domesticação se generalizou.

De onde e quando, um ciclo acaba o mecanismo da compensação. Pouco a pouco, a heterogeneidade ganha terreno. No lugar de uma razão soberana, o sentimento de pertencença retoma direito de cidade. E, confrontá-la a uma enfadonha segurança da existência, o que denominava a efervescência, como elemento estruturante de toda comunidade, retorna com força sobre o que se tem diante da cena social. O gosto do risco, de maneira difusa, reafirma sua vitalidade, o instinto domesticado tende a se mostrar selvagem; em poucas palavras, sob formas múltiplas, a barbárie se refere a nossa boa lembrança. Mas em uma palavra, pode ser preciso lembrar de onde vem esta tenaz e constante inquietação de domesticação própria à tradição judaico-cristã,ou melhor dizendo, à ideologia semítica. Tudo simplesmente decorre da certeza da natureza corrompida do ser humano. É isto que funda a moral e o que retorna ao mesmo assunto, a política da modernidade. No lento processo de secularização, a Igreja, depois o Estado, cujo braço armado é a Política e a Tecnoestrutura, têm por função essencial corrigir o Mal absoluto e originário. Trata-se de uma missão, na qual se verá mais adiante a hipocrisia, que sob nomes diversos vai continuamente irrigar a vida publica ocidental.

Projeto prometeano, se ele o é, sobre o qual não se dirá jamais o suficiente, que encontrará sua fonte na injunção bíblica de “submeter a natureza” (Genèse.ch.1.,v.28) em seu aspecto envolvente; fauna e flora, mais igualmente fundante do indivíduo e do social. É, seguramente, em uma tal lógica da dominação que vai se elaborar o mito do Progresso e do igualitarismo, que é o seu corolário. Para dizê-lo em termos mais familiares, os três mamilos de um tal projeto eram o higienismo (ou o risco zero), a moral e a sociedade “Nickel”. É preciso acrescentar e isto não é negligenciável, a especificidade cultural dessa tradição que foi o Universalismo. De São Paulo de um ponto de vista teológico, às Luzes de uma perspectiva filosófica, a o que tenha sido o apanágio de alguma tribos nômades do Oriente Médio, depois o que foi peculiar de um pequeno cantão do mundo, a Europa, deveria servir de critério para o mundo em sua totalidade.

Notemos que houve fanatismo numa tal pretensão. Mas é esse fanatismo, que ao final do século XIX permitiu que esses valores específicos se tornassem valores universais. E desde que o imperador Meiji abriu suas portas aos navios europeus ou desde que o Brasil inscreveu na sua bandeira a célebre fórmula de Augusto Comte: Ordem e Progresso, se pode dizer que a homogeneização do mundo alcançou um apogeu até aquele momento desconhecido. Mas não se pode ignorar que existe também uma patogênese de certa pulsão dominadora. Sem falar dos estudiosos e outros genocídios culturais. Não será inútil de se lembrar o laço existente entre o mito do Progresso e a filosofia das Luzes de um lado, e os campos de concentração (em nome da pureza da raça ou da classe) e as guerras enraivecidas e suicidas do século XX de outro lado.

A INOCÊNCIA DO DEVENIR

Colocando o acento sobre a moral, do que o lembro repousa sobre uma lógica do dever-se e se acaba em excessos não previstos. Isso se chama hétérotélie. Se obtém o contrário do que se desejava. Por exemplo a tentativa de domesticação do animal humano o conduz a ser bestial. Isto é o que testemunham os diversos campos e goulag do século passado. Efeito perverso se o é, mas bem na lógica da pesquisa da perfeição. Há ainda a sabedoria popular, que vem depois de Blaise Pascal, que pode nos ser de alguma utilidade, remarcando fortemente ao que se diz “quem quer fazer o anjo, faz a besta”. Indicarei aqui sob forma de alusão, mas há aí dois vícios na abordagem dos detentores do universalismo ou o que retorna da mesma maneira nos protagonistas a filosofia da Luzes: a hipocrisia e o auto-engano. Assim R. Roselleck (La règne de la critique, 1979) fez bem em chamar a atenção de que isso se dava, sempre, em nome da moral, de uma nova moral, que queria governar no lugar daqueles que governam. Assim, falar em nome da Humanidade e da Razão é particularmente pérfido, pois isso mascara (de leve) o fato de que a motivação real de todos esses “moralistas” é, pura e simplesmente, o poder.

Poder econômico, poder político, poder simbólico, tais são bem, a finalização normal da filosofia da história e dos filósofos moralistas. E sempre em nome do Bem, do Ideal, do Humano, da classe e outras entidades abstratas que se cometem as piores Torpezas. Há aí sempre no moralista um homem ressentido que está adormecido! Eis de onde se vem. Eis o que constitui o cérebro venal do homem moderno, e que fica no fundamento das formas de pensamento estabelecido e das instituições sociais. Mas essa bela construção, em aparência que não sofre danos, é fissurada de todas as partes. E esta é bem de uma tal porosidade que as tribos pós-modernas são todas, ao mesmo tempo, a causa e o efeito. Que exprimem elas, senão o que de um modo premonitório, Nietzsche denominava “a inocência do devenir” Aceitação do amor fati. Consenso nesse plano a esse mundo. Esse último, ao encontro da doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação que vem do nada, mas ele está ali, tal como um “dado” com o qual convém tanto para o bem como para o mal, concordar. Eis o que o bárbaro um pouco pagão se empenha em nos lembrar!

Certo, tudo isso não é conscientizado, nem mesmo verbalizado enquanto tal. Mas amplamente vivido no retorno às tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades no quotidiano, na revivescência, digamos, das forças primitivas. Isto conduz à (re)valorização dos instintos, das éticas, das etnias. O que induz essa nova sensibilidade, se poderia dizer esse novo paradigma, é um poderoso imanenteísmo. Isso pode tomar formas as mais sofisticadas e mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências, o presenteísmo estão aí tanto como pontuação daquilo que não é um ativismo voluntarista, mas também como expressão de uma real contemplação do mundo. Ou, para dizer em outros termos, a aceitação de um mundo que não é o céu sobre a terra, que também não é o inferno sobre a face da terra, mas, sim, a terra sobre a terra. Com tudo o que isso comporta de trágico (amor fati) mas também de júbilo. Deixai fazer, deixai viver, deixar ser. Eis o que poderiam ser as palavras chave dessas tribos “inocentes”, instintuais, um pouco animais e, certamente, bem vivas.

A EXPERIÊNCIA TRIBAL

A modernidade terminante em seu estrito sentido ”desinervou” o corpo social. O higienismo, a securização, a racionalização da existência, as interdições de todas as ordens, tudo isso foi agregado ao corpo individual ou ao corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias na sua sobrevida. Pareceria, para retomar uma expressão de Georg Simmel, que se assiste, com a pós-modernidade, a uma “intensificação da vida nervosa”. O instinto, o primitivismo, encontra seu lugar nos “nervos”. Isto é considerar que o peculiar da natureza humana não se resume somente ao cognitivo, ao racional, mas bem um “complexio oppositorum” que se poderá traduzir como uma assemblage, uma tecelagem de coisas opostas. Tudo isso que convém saber ver na efervescência tribal contemporânea. Algumas dessas manifestações podem, eu o disse, nos desgostar ou nos ofuscar. Elas exprimem, por vezes de uma maneira desajeitada, a afirmação que ao encontro do pecado original, que à oposição da corrupção estrutural, existe uma bondade intrínseca ao ser humano. E que no cofre no qual esse último se situa, a terra, ela é igualmente desejável.

Mas um tal imaneteismo acaba por murchar a política. Ou antes, ao que essa, estando de alguma forma transfigurada, se inverte em doméstica, torna-se ecologia. Domusoikos, termos designando a casa comum que convém proteger dos saques aos quais a modernidade nos fez habituar. As maquinações deste homem “mestre e possuidor do universo” segundo a expressão de Descartes, acabaram na devastação que se sabe. As tribos, mais prudentes, mais precavidas também, se empregam a menos “maquinar“ os outros e a natureza, e é isto que faz sua inegável especificidade. É igualmente a recusa da maquinação política que está na origem do seu receio, que inspira essa nova maneira de estar junto. Receio, que engendra as muitas faltas cometidas pelas bárbaras tribos, em particular nas “cidades” e diversas periferias urbanas. A “imprensa de todas as peles”, e não somente aquelas direcionadas ao sensacionalismo fez sua escolha sem obter resultado. E numerosos são os foliculares que se utilizam disso para fazer chorar Margot. No franglês contemporâneo, isso se chama a pesquisa doscoop. A expressão habitualmente utilizada para estigmatizar o fenômeno tribal é o termo “comunitarismo”. Como toda estigmatização oriunda do medo daquilo que é, é uma forma de preguiça pela qual se pode pagar caro. Tique de linguagem amplamente distribuído, tanto à esquerda como à direita. Isso é também uma forma de tolice. Com efeito, não se resolve o que é posto em questão suprimindo-o ou denegando-o.

Atitude infantil, igualmente, que é a de encantação: se repetem as palavras, a maioria delas vazias de sentido, e se pensa assim resolver um problema. Mas para além do medo, da preguiça, da tolice é do infantilismo de fato do que se trata? Foi a especificidade da organização social da modernidade no que pretendeu reduzir toda coisa à unidade. De evacuar as diferenças. De homogeneizar as maneiras de ser. A expressão de Auguste Comte: redutio ad unum, resume bem um tal ideal, o de uma República Una e Indivisível. E não se pode negar que se trata aqui de um verdadeiro ideal cujos resultados culturais, políticos, sociais foram inegáveis. Mas, na longa duração, as histórias humanas nos ensinam que nada é eterno. E não é a primeira vez que se observa a saturação desse ideal unitário. Impérios romano, inca, asteca, se poderia, ao infinito, multiplicar os exemplos de formas organizacionais centralizadas, reunidas no ossário das realidades.

Realidades que nos forçam a constatar, como indiquei sob a forma de alusão, que a heterogeneidade está de volta. É aquilo a que Max Weber dava o nome de politeísmo dos valores. Assim, a reafirmação da diferença, os “localismos” diversos, as especificidades das línguas e culturais, as reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, as múltiplas coisas parecidas em torno de uma origem comum, real ou mitificada.

Tudo serve para celebrar um estar junto, cujo fundamento é menos a razão universal que a emoção partilhada, o sentimento de pertencença. É assim que o corpo social se difracta em pequenos corpos tribais. Os corpos, em sua teatralidade, se tatuam, se furam. As cabeleiras se eriçam ou se cobrem de lenços, de kipas, de turbantes ou de outros acessórios, tal como griffe Hermès. Em breve, no incandescido cotidiano, a existência com manchas púrpuras de cores novas traduz assim a fecunda multiplicidade das crianças dos deuses. Porque se sabe que aqui existem muitas casas na morada do Pai.

Eis o que caracteriza o tempo das tribos. Sejam sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e até políticas, elas ocupam o espaço público. É uma constatação que é pueril e irresponsável de negar. Não leva a nada as estigmatizar. Será mais bem inspirado, fiéis com isso a uma imemorial sabedoria popular, acompanhar uma tal mutação. E isto, para evitar que ela se torne perversa, depois totalmente incontrolável. Após tudo, por que não enfocar a res publica, a coisa pública que se organiza a partir do ajustamento, a posteriori dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social, mais perto de sua etimologia (cum sensualis) possa repousar sobre a partilha de sentimentos diversos?

Desde que elas estão ali, por que não aceitar as diferenças comunitárias, ajudar a encaixá-las e aprender a compor com elas? O jogo da diferença, longe de empobrecer, enriquece. Após tudo uma tal composição pode participar de uma melodia social, ao ritmo talvez um pouco mais “coaligido”, mas não menos dinâmico. O ajustamento dos diversos teclados da música techno traduz, também, uma forma de cultura. Resumindo, é perigoso, em nome de uma concepção um pouco retrógrada da unidade nacional, não reconhecer a força do pluralismo. O centro da união pode se viver na conjunção, a posteriori, de valores opostos. À harmonia abstrata de um unanimismo, digamos, de fachada, está se sucedendo, por meio de múltiplos ensaios-erros, um equilíbrio conflitual, causa e efeito da vitalidade das tribos.

INTERNET: A INICIAÇÃO A UMA NOVA ORDEM COMUNICATIVA

Não há mais lugar para ser velhos rabugentos, ofuscados pelos “bons velhos-tempos” de uma Unidade fechada sobre si mesma. O que os filósofos da Idade Média denominavam unicidade, exprimindo uma coerência aberta, poderia ser uma boa maneira de compreender uma ligação, um laço social fundado sobre a disparidade, o policulturalismo, a polissemia. O que, certamente, se denomina de uma audácia intelectual. Essa de saber pensar o verdor de um ideal comunitário em gestação. Sim, há momentos onde é importante pôr em marcha um pensamento de longo curso que seja capaz de aprender as novas configurações sociais. E por isso não se pode ficar satisfeito com esses conceitos autistas, rarefeitos, fenômeno a que, em italiano, se dá o nome, bem adequadamente, deconcetti, vistos do espírito. Em resumo, não se pode, o que é o pecado mignon do intelectual, criar o mundo do que se quer que ele seja. Audácia, portanto, permitindo entender que, em oposição à solidariedade puramente mecânica que foi a marca da modernidade, o ideal comunitário das tribos pós-modernas repousa sobre o retorno de uma sólida e rizomática solidariedade orgânica.

Porque, paradoxo que não é menos considerável, esta velha coisa que é a tribo, e estas antigas formas de solidariedade que são vividas no cotidiano, exercidas o mais próximo, nascem, se exprimem, se confortam graças às diversas redes eletrônicas. Daí a definição que se pode dar à pós-modernidade: sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico. Lembrando certamente que o arcaico, no seu sentido etimológico, o que é o primeiro, fundamental, vê desdobrados seus efeitos pelos novos meios de comunicação interativa. A imagem do que foi a circunavegação na madrugada dos tempos modernos, navegação sendo a causa e o efeito de uma nova ordem do mundo (o que Carl Schmitt denomina o “Nomos da terra”), certos sociólogos mostram bem em que a “circunavegação” própria à Internet está na iminência de criar novas maneiras de ser, de mudar, em profundidade, a estrutura do laço social (www.ceag-sorbonne.org, Gretech, grupo de pesquisa sobre a tecnologia, direção Stéphane Hugon).

Não é necessário ser perdidamente apaixonado por essas novas tecnologias interativas para se compreender a importância do que se convencionou denominar, justamente, de sites comunitários. My SpaceFacebook, que permitem aos internautas tecer os laços, trocar idéias e sentimentos, paixões, emoções e fantasmas. Do mesmo modo You Tube favorece a circulação do vídeo, da música e de outras criações artísticas. E, mais ultimamente, Lively tenta liderar a vida on line de seus usuários. A expressão mestra, se declinando até não ter mais sede, é a da vida comunitária. E ali onde se vê que o medo do comunitarismo é bem o fantasma de uma outra época, e é totalmente defasado em relação ao mundo real daqueles que constituem a sociedade, já hoje, num golpe certo de amanhã.

Graças à Internet, com efeito, uma nova ordem comunicativa se coloca. Quem favorece os encontros, o fenômeno dos flashmob como testemunho; onde, a propósito das coisas fúteis, sérias ou políticas, as mobilizações se fazem e se desfazem no espaço urbano e virtual. Dá-se o mesmo com o streetbooming, permitindo que nas grandes megalópolis contemporâneas, nessas selvas de pedras que favorecem o isolamento, ao se conectarem à Internet as pessoas se encontram, se falam, se conhecem, criando assim uma nova maneira de estar junto, fundada sobre a partilha da criatividade. Tais redes sociais on line, assim como os fenômenos de encontros a que isto induz, deverão nos tornar atentos a uma sociedade específica, onde o prazer lúdico comporta a simples funcionalidade. Aliás, é interessante notar que se utiliza, cada vez mais, os termos dos iniciados para caracterizar os protagonistas desses sites de encontro.

Iniciação sob novas formas de generosidade, de solidariedade em minúsculo, que não têm mais nada a ver com o “Estado providência” e sua visão deformada. Se, como indica Hélène Strohl, um boa conhecedora deste problema, “L’État social ne fonctionne plus” (Albin Michel, 2008), isto é bem porque é a base, no quadro comunitário, graças às técnicas interativas, que se difundem, mutuamente, sob todas as forma. Retorno curioso a uma ordem simbólica que se acreditava ultrapassada. Mas para bem compreender uma tal ordem, importa colocar a mão na massa não com pensamento crítico, i.e., judicativo, mas um questionamento bem mais radical, tendo de apreender os arcanos da socialidade. Há, aqui, com efeito, no coração mesmo do desenrolar histórico, como ação política, um princípio secreto que é preciso saber descobrir. Nesse ponto é que nos diz a verdade, na sua origem grega: aletheia, o que desvela o escondido? Ainda é preciso que se saiba respeitar o velado! Estranho paradoxo do pensamento radical: saber dizer claramente o que é complicado, aceitando totalmente reconhecer que as “pregas” do ser individual ou coletivo permanecem uma realidade intransponível. É esta a lição de coisas que, continuamente, nos dá a existência. É isto aqui que constitui o mistério da vida.

PROCURAR O ESSENCIAL NO INAPARENTE DAS APARÊNCIAS

No desprezo do romantismo, desde o surrealismo, os situacionistas, nos anos 60 do século passado, partiram à procura dessa mítica passagem do noroeste abrindo sobre os horizontes infinitos. E para fazer isso, colocaram em marcha uma psicogeografia, ou deriva, lhes permitindo descobrir, para além da simples funcionalidade da cidade, que existe um labirinto do vivido, contrariamente mais profundo e assegurando, invisivelmente, os fundamentos reais de toda existência social. Pode-se extrapolar um tal questionamento poético-existencial e os arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura tácita que, em certos momentos assegura a eternidade da vida em sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que tudo é subentendido. Implícito: que vai se alojar na dobra do mistério e do inconsciente coletivo.

Jean Baudrillard, no seu tempo, tornou-se muito atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ventre mole” do social. Da minha parte, de diversas maneiras, analisei a centralidade subterrânea, a socialidade obscura e outras metáforas, pontuando a retirada do povo sobre seu Aventino. Orfandade da tradição mística, retornando, subrepticiamente, ao gosto do dia! Um tal tecido repregueado é frequente nas histórias humanas. E ele é sempre o indicador de uma demanda de reconhecimento. Contra o patriciado romano, o povo se refere a seus direitos. Isso se dá igualmente em nossos dias. E a demanda implícita, silenciosa, que tem dificuldade em se formular, necessita que se saiba fazer uma espécie de geologia da vida social. E, na maneira de ser, uma pesquisa das estruturas heterogêneas que a constituem. Mas fiquemos nesta ambivalência. Esta bipolaridade entre isto que é retraído e o que se mostra. Ainda mais hermético que em evidência. Salvemo-nos aqui do comentário que fez Lacan do conto de Edgar Poe, “a carta roubada”. É porque ela está aqui, sob o manto da chaminé que o comissário que está à sua procura não a vê. E como em eco, ouçamos o conselho de Gaston Bachelard: “não há ciência fora do obscuro”.

Dizendo com clareza esse escondido nos arruína os olhos. E por pouco que se tome seriamente a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi, de antiga memória, se saberá aí ver os novos modos de vida em gestação. Para além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas, religiosas, científicas, convém se por em acordo simplesmente, humanamente, ao que se dá a ver. Procurar o essencial no inaparente das aparências. Estas da vida cotidiana. Estas desses prazeres miúdos e de pouca importância, constituindo o humano onde cresce o estar-junto. Não será isso a cultura? “Os aspectos os mais importantes para nós estão escondidos por causa de sua banalidade e de sua simplicidade” (WITTGENSTEIN). Talvez a partir de um tal principio de incerteza se será capaz de fazer um bom prognóstico. Quer dizer, ter a intuição dos fenômenos, esta visão do interior, fazendo tanta falta à paranóia tão frequente nas elites. A partir do olhar penetrante nos será permitido ver o núcleo fatíco das coisas. Fatídico, porque nos falta ser mestres. Isso vem de bem longe, e não se deixa dominar pela pequena razão instrumental peculiar à modernidade. Núcleo arquetípico, no qual é importante localizar a fecundidade.

(2007)

 

* Michel Maffesoli é professor na Sorbonne e membro do Institut Universitaire de France.

 

** Rosza vel Zoladz: Sou imensamente agradecida ao sociólogo da Sorbonne, Michel Maffesoli, pelo envio do texto por mim traduzido. Foi uma satisfação enorme traduzí-lo, às vésperas das Festas do fim de ano (2008). A amizade, a colaboração intelectual com Maffesoli estão sempre, para mim, se renovando por meio de iniciativas acadêmicas, concretizadas no Brasil e no exterior, que já datam de 1981 e se reforçaram com o convite que lhe enderecei para fazer palestras, conferências, seminários, na Escola de Belas Artes da UFRJ. Ali, as iniciativas dessa ordem devem muito à Linha de Pesquisa da Imagem e Cultura do PPGAV, sempre com o estímulo do Coordenador do Programa, Prof. Dr. Rogério Medeiros, e o apoio do Consulado da França no Rio de Janeiro. Agora, tenho que agradecer a Heloisa Buarque de Holanda, Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-FCC-UFRJ) que, de muitas maneiras, com seu apoio e amizade, me faz encorajar para o que é aqui apresentado e também me incentiva a realizar, publicar, produzir inúmeras iniciativas acadêmicas. Beatriz Resende, com quem realizei o Pós-doutorado no Programa, me estimulou tanto que continuo as minhas pesquisas iniciadas naquele Programa. Last but not least, não posso deixar de mencionar o psicanalista Dr. Edson Lannes, um interlocutor inestimável, que muito contribui, com as suas idéias, disponibilidade e pertinência, nos meus trabalhos e pesquisas. Continuo fiel ao meu objeto de estudo de toda a vida, ou seja, o artista e a arte. Agora, examinando o seu mundo do trabalho.

 

O “velho” bardo, uma nova tradução, um pequeno comentário | de Josely Vianna

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Há mais mitologia em torno de William Shakespeare do que necessita a nossa vã idolatria. O resultado é uma certa esquizofrenia (com o perdão da rima pobre). Pois enquanto a obra do “bardo” é felizmente encarada sem muita cerimônia, em versões várias para o teatro, o cinema etc., seu nome vive cercado por uma névoa de mitos que, essencialmente, comprazem-se em negar a possibilidade chã de certo cidadão inglês do século XVI, dedicado profissionalmente ao teatro, ser o autor das peças e dos poemas a ele desde sempre atribuídos. Se isto, somado ao título de “maior poeta da história”, de fato não compromete a recepção de seu teatro, de alguma forma impregna a de sua lírica.

Os sonetos de Shakespeare são, assim, cercados de questões extrapoéticas que ameaçam torná-los mais opacos do que o mais esotérico poeta barroco. Shakespeare, porém, era um classicista. A clareza e a relativa simplicidade sintática de seus sonetos costumam ser muito maiores que a da maioria de seus contemporâneos. Saber então quem foi a tão famosa quanto desconhecida “dark lady”, presumida destinatária de alguns sonetos, ou decidir se outros, cujo imputado destinatário é um homem jovem, possuem ou não viés homoerótico, pode ter algum interesse acadêmico, e mesmo muito interesse amador, mas pouco ou nada diz de sua poética. Além disso, e mais importante, tais mistérios não são capazes de alterar certos fatos intrínsecos, como o de que seus sonetos envelhecem mais que suas peças. Melhor dito: que seus sonetos envelhecem visivelmente (ao menos em alguns aspectos), enquanto suas peças parecem imunes à ação do tempo (em parte graças às próprias releituras).

O contrário acontece, por exemplo, com a obra de seu contemporâneo Luís de Camões. Enquanto seu épico nacional-imperial, Os Lusíadas, parece cada vez mais um épico nacional-imperial do século XVI (sem compromisso das magnificências de sua poética), muitos de seus sonetos soam surpreendentemente modernos. A ponto de um deles, há pouco tempo, ter sido musicado por um grupo pop brasileiro (se a grandeza poética do soneto nada perdeu, e se a pobreza musical típica do pop pouco ganhou, o resultado, em todo caso, não pareceu um híbrido absurdo ou impossível). Guardadas as proporções, principalmente quanto à distinta popularidade dos dois poetas, é o equivalente ao que acontece cotidianamente com as peças de Shakespeare. Mas não com seus sonetos. Um dos motivos fica claro ao se analisar, por exemplo, o “Soneto XIV”, recém traduzido por Josely Vianna Baptista.

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O “Soneto XIV” não apresenta, nas duas primeiras quadras, maiores dificuldades de interpretação. Mas apresenta algumas na terceira quadra e no dístico final – equivalentes, no soneto inglês, aos dois tercetos do soneto italiano. Equivalência que explica a divisão temática deste soneto. A forma soneto possui uma estrutura que pressupõe ou impõe um arranjo de silogismo, pelo qual a primeira estrofe apresenta os pressupostos ou argumentos, a segunda os desenvolve e as duas finais os resolvem. Se no caso do soneto italiano a divisão estrófica, em 4-4-3-3 versos, marca ou traduz tal estrutura temática, no caso do soneto inglês isto não acontece. Assim, se o soneto inglês seguisse sua própria divisão/organização, em 4-4-4-2 versos, teria três estrofes para apresentar e desenvolver os argumentos, e apenas dois versos finais para concluí-los, o que resultaria pesadamente desequilibrado (se o número total de versos da terceira quadra e do dístico final ingleses é o mesmo, seis, dos dois tercetos italianos, a igualdade de dimensão entre a terceira quadra e as duas primeiras a torna parte de seu conjunto, deixando apenas o dístico isolado – enquanto no soneto italiano as duas primeiras quadras formam um conjunto e os dois tercetos outro). Isto explica, afinal, que este soneto tenha uma estrutura inglesa, mas uma organização de argumentos claramente italiana.

As duas quadras iniciais, assim, apresentam e desenvolvem a tese de que o personagem em primeira pessoa não pratica ou não sabe praticar previsões habituais baseadas nos astros, o que não o impede, porém, de acreditar (methinks) que tenha alguma “astronomia”: “And yet methinks I have astronomy”. Tal “astronomia” (ou astrologia, em termos contemporâneos) particular será afinal apresentada, portanto, no primeiro verso da terceira estrofe (depois de o argumento inicial ocupar as duas primeiras). A explicação está nas “estrelas” em que essa “astronomia” peculiar se baseia, que são os olhos do interlocutor. Se isto explica o fato de o narrador ter e não ter “astronomia” (não tê-la no sentido habitual, e tê-la no sentido particular que é o próprio objeto do poema), não explica, porém, quem é esse interlocutor.

Tratando-se de Shakespeare, há aqui muitas interpretações correntes e concorrentes. Tratando-se, porém, de Shakespeare, há interpretações francamente dominantes. Neste caso, a maioria dos sonetos shakespearianos é lida como tendo por destinatário um jovem companheiro do poeta, que assume a posição e o ponto de vista do homem mais velho (enquanto uma minoria seria destinada à “dark lady”). É o caso do “Soneto XIV”. Seu tema retoma um antigo e conhecido topos medieval (Shakespeare, afinal, viveu na transição entre a Idade Média e a Moderna), o da efemeridade da carne – aqui referida, por metonímia, como “truth and beauty”. A equivalência entre carne e beleza não carece de explicação. Já o par “beleza e verdade” não carece de explicação trabalhosa: a identificação entre o belo e o verdadeiro, de matriz e matiz platônicos, é tradicional. O que, enfim, o poeta sabe ler nas “estrelas confiáveis” (“constant stars”) dos olhos, o conhecimento que deles deriva (“from thine eyes my knowledge I derive”), sua sapiência ou expertise (ou art, no original, no sentido medieval de engenho, aprendizado), é: ou aquele que possui a beleza e a verdade as preserva, ou se transforma em seu destruidor. Pois o seu fim é o fim das mesmas beleza e verdade, segundo o belíssimo e aliterante último verso: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”.

O verso que introduz a condição de preservação diz: “If from thyself to store thou wouldst convert”. To convert, aqui, tem o sentido de virar (-se para). O verbo to store significa manter, estocar, preservar. Trata-se, então, de dizer para o interlocutor voltar-se, isto é, voltar sua atenção, para a preservação daquelas qualidades. Como, porém, preservá-las, se somos mortais e se, antes de morrer, envelhecemos? Daí, afinal, a leitura desse to store, de modo figurado, como mantê-las vivas, ou seja, semeá-las, procriá-las. Ou o destinatário se decide a se reproduzir, e assim reproduzir sua beleza e verdade, ou encara o fato de ter se tornar o veículo de sua destruição, depois de ter sido o de sua materialização. O poema é, em suma, uma exortação à procriação, à paternidade, ainda que o seja como uma convocação à perpetuação da beleza. De qualquer maneira, é inevitável a percepção de que se trata de algo estranho à nossa época, ao contrário, por exemplo, dos solilóquios de Hamlet. Em primeiro lugar, beleza e verdade há muito deixaram de ser sinônimos, complementares ou mesmo próximos. Entre inúmeros motivos, porque a beleza é hoje por construção falsa, no sentido de artificial, enquanto a verdade existe apenas no sentido e na dimensão comezinhos e cotidianos de sinceridade. Além disso, somos ambíguos quanto às excelências de nossa descendência. Se por um lado louvamos, por exemplo, sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, por outro lado lamentamos sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, que se dá em detrimento de inúmeras outras capacidades, desde o hábito de leitura até o da conversação civilizada. Por fim, os atributos tanto físicos quanto intelectuais de nossa prole são hoje creditados não tanto às excelências ao mesmo tempo morais e transcendentes dos progenitores (cuja beleza física costumava idealmente traduzir a beleza ou virtude de seu espírito, ou seja, sua Verdade), mas à qualidade dos genes e dos exames pré-natais. Isto dito, a beleza do poema parece tão verdadeira quanto duradoura.

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Seus pentâmetros iâmbicos, versos de cinco pés sem correspondência exata no português, têm como equivalente o decassílabo heróico (pois cada um dos cinco pés do pentâmetro possui duas sílabas), acentuado obrigatoriamente na sexta e na décima sílabas. Este é, portanto, o metro escolhido por Josely Vianna Baptista. A maior dificuldade tradutória talvez resida então no fato de que o inglês é uma língua rica em monossílabos e dissílabos, enquanto no português predominam os trissílabos e tetrassílabos. Como o pentâmetro tem grosso modo o mesmo número de sílabas que o decassílabo, a tendência é caber mais informação no verso inglês do que em seu equivalente em português. “Of plagues, of dearths, or season’s quality”: “Das pragas, das misérias ou da qualidade da estação”. Na tradução de JVB, “Ou o tempo, a miséria, a epidemia”: “a qualidade” do tempo, do clima, é portanto elidida.

O “Soneto XIV”, em todo caso, demonstra que Shakespeare é de fato mais simples do que se costuma supor. Ao menos em termos sintáticos. Pois tem a clareza (sintática) como objetivo, nos sonetos ainda mais do que nas peças, porque o texto destas é cercado de inúmeros recursos não-verbais, enquanto um poema conta apenas consigo próprio, e porque seus modelos eram os clássicos greco-romanos então em voga, nos quais a clareza era de rigor. Daí a simplicidade, a diretividade sintática dos oito primeiros versos, seguida de perto por JVB, que, isto resolvido, dedica-se a recuperar a beleza da sonoridade original com o ritmo e as rimas da língua portuguesa.

As maiores dificuldades, como referido, começam a partir do nono verso. Não porque então Shakespeare se torne “barroco”, mas porque passa a usar imagens menos diretas. A sintaxe, porém, continua simples, advindo a complexidade dos últimos versos da sutileza imagética e, principalmente, da densidade sonora. Exemplo maior é o verso final: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”. “Seu fim é a condenação e a extinção da beleza e da verdade”, diz simplesmente. Porém a forma como materializa essa afirmação nada tem de simples. Ou seja, sua sonoridade e a organização dessa sonoridade.

Em primeiro lugar, o ritmo. Há aqui uma marcação quase marcial, pela qual cada par de palavras curtas recai quase perfeitamente sobre um dos pés duplos (feitos de uma sílaba breve e uma longa) do verso: Thy end / is truth’s / and beau / ty’s doom / and date (a última sílaba átona, -te, não entra na contagem). As separações entre as palavras e as divisões entre os pés têm, portanto, uma correspondência perfeita (o que não é necessário nem comum: “Or else of thee this I prognosticate”). Sobre esse ritmo ominoso, Shakespeare amarra uma densa trama sonora, feita, primeiro, pela repetição dos tt (“Thy end is TruTh’s and beauTy’s doom and daTe”), e, segundo, pelo par doom and date, que pela carga semântica, pelo ritmo marcado, pela aliteração e, afinal, pela gravidade de suas vogais, parece o bater de um tambor. Sem falar na perfeita interação entre significado e posição, esta reforçando aquele, pois a palavra date, data, no sentido de duração de tempo, logo, de seu fim, fecha o verso e o poema.

Como reproduzir ou recuperar tudo isso numa tradução? Não recuperando nem reproduzindo. A tradução de um poema, porém, é ainda assim a tradução de um poema, logo, deve traduzir o poema, objeto feito de significantes e de significados – e mais ainda, das relações particulares que podem adquirir na linguagem poética em geral e que de fato adquirem nas mãos de um grande poeta em particular. Enfim, se não se pode reproduzir tudo, deve-se recuperar o máximo (torna-se então notável, nos dois sentidos, a elegância e a clareza, na presente tradução, daquele complexo verso 12 – “Se o que te é dado dás a semear-te” –, ou a recuperação do par aliterante final doom and date pelo par anagramático termo e morte).

Traduzir, sabe-se, é um jogo de perdas e ganhos. Vence aquele cujos ganhos, sempre difíceis, equilibram as perdas sempre inevitáveis. Portanto todos perdem e todos ganham. Perde o poema o que tinha de irrecuperável, ganha a tradução o que havia de recuperável, ganha o tradutor ao não se deixar vencer, ganha a língua de chegada um novo poema, e ganham um novo poema os leitores dessa língua. Há perdas que não se pode deixar de querer ganhar. Pois se traduzir mal é, enfim, falhar simplesmente, traduzir bem, ou muito bem, é buscar a melhor, mais trabalhosa e mais bela maneira de fracassar. JVB “fracassa” belissimamente.

Luis Dolhnikoff

William Shakespeare, Sonnet XIV

Not from the stars do I my judgment pluck;
And yet methinks I have astronomy,
But not to tell of good or evil luck,
Of plagues, of dearths, or seasons’ quality;
Nor can I fortune to brief minutes tell,
Pointing to each his thunder, rain and wind,
Or say with princes if it shall go well,
By oft predict that I in heaven find:
But from thine eyes my knowledge I derive,
And, constant stars, in them I read such art
As truth and beauty shall together thrive,
If from thyself to store thou wouldst convert;
Or else of thee this I prognosticate:
Thy end is truth’s and beauty’s doom and date.

 

Soneto XIV (tradução Josely V. Baptista)

Não está nas estrelas o meu tino;
Sei um pouco, porém, de astronomia,
Mas não para prever qualquer destino,
Ou o tempo, a miséria, a epidemia:
Não posso em um minuto dar a sorte,
A cada qual seu raio, ou chuva, ou vento,
Nem por indícios a que o céu me aporte,
Ao príncipe augurar feliz intento.
Mas de teus olhos vem-me esse saber,
E os vejo (astros constantes) com tal arte,
Que o belo e o verdadeiro irão crescer
Se o que te é dado dás a semear-te:
Senão teu fim, prevejo a tua sorte,
Da beleza e verdade é o termo e a morte.
*Josely Vianna Baptista é poeta, editora e tradutora de literatura hispano-americana. Recebeu em 1999 o Prêmio Jabuti pela tradução de livros de Jorge Luis Borges para as Obras Completas. Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2007) reúne parte representativa de sua poesia, que inclui os livros Ar (Iluminuras, 1991), Corpografia (Iluminuras, 1992; com arte visual de Francisco Faria) e Outro (Mirabilia, 2001, em colaboração com Maria Angela Biscaia e Arnaldo Antunes), entre outros.

 

Jovens de favelas na produção cultural brasileira dos anos 90 | Silvia Ramos

Para Paul Heritage

Neste artigo, pretendo identificar a existência de traços comuns em iniciativas culturais de jovens de periferias e favelas de centros urbanos brasileiros, surgidas em meados dos anos 90. Proponho que, embora se constituam como experiências heterogêneas e não-articuladas, algumas delas apresentam, em primeiro lugar, aspectos inovadores no repertório de princípios e práticas das Organizações Não-Governamentais (ONGs) e do campo da esquerda, nos quais as iniciativas da sociedade civil brasileira tradicionalmente se inscrevem. Em segundo lugar, proponho que algumas dessas expressões se tornaram uma referência forte no contexto das manifestações culturais, da segunda metade da década passada e da atual. Ao identificar pontos de contato entre manifestações produzidas por jovens das favelas e aspectos da contracultura dos anos 60 e 70, e estabelecer ligações entre alguns de seus personagens, busco responder à questão: serão os grupos de jovens das periferias, na presente década, com sua “arte a serviço da justiça social”, os herdeiros mais diretos da tradição cepecista de “arte engajada”? Entre “CPC, vanguarda e desbunde”, quais continuidades e rupturas é possível estabelecer?

Três ou quatro características da produção cultural de jovens de favelas

Entre os acontecimentos marcantes na cena política brasileira dos anos 90, no campo de iniciativas da sociedade civil, está o surgimento de grupos de jovens de favelas e periferias ligados a iniciativas de cultura e arte. Em geral, começam como projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, frequentemente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos desses empreendimentos são os grupos Olodum, em Salvador, o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (CUFA), no Rio de Janeiro, além de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip-hop nas periferias de São Paulo, nas vilas de Porto Alegre, nos aglomerados de Belo Horizonte e em bairros pobres de Recife, Brasília e São Luís. Acompanho mais de perto a trajetória de três desses grupos, o AfroReggae, o Nós do Morro e a CUFA e creio que algumas de suas principais características anteciparam aspectos que estão presentes entre dezenas, talvez centenas de grupos espalhados por favelas e bairros de periferias em centros urbanos brasileiros.

Esses grupos expressam, por meio de diferentes linguagens, como a música, o teatro, a dança e o cinema, idéias e perspectivas dos jovens das favelas. Ao mesmo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da criminalidade e do fracasso associados a esse segmento da sociedade. Alguns falam abertamente no compromisso de produzir alternativas para os jovens fora da criminalidade e das fortes atrações materiais e simbólicas oferecidas pela rede de tráfico de drogas, presentes na maioria desses territórios – dinheiro, “respeito” imposto pela ostentação das armas, acesso às roupas e aos tênis da moda, enorme capacidade de atração de garotas bonitas, ambiente onde circulam carros e motos e em que a música rola pela madrugada, além, obviamente, do acesso às drogas. Outros grupos, como indicarei, recusam-se a situar seus esforços num suposto dilema “crime x arte” e apresentam um discurso que recusa a idéia de “tirar jovens do tráfico”; apenas falam em produzir arte de qualidade para romper estereótipos e estigmas. Seja como for, todas as iniciativas procuram exercer não só na comunidade de jovens locais, mas também em outras comunidades, uma sedução ligada ao glamour da arte, à visibilidade e ao sucesso.

Apesar de configurarem um campo heterogêneo, e até bem recentemente não-articulado, é possível identificar pelo menos quatro aspectos comuns a esses grupos. Tais características surpreendem, sobretudo, pelo fato de surgirem no campo de ações da sociedade civil, no qual predominam, desde os anos 90 até a presente década, modelos associativos bem estabelecidos, o das chamadas organizações não-governamentais.1

Celebridades. A primeira característica forte é o componente de investimento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida. Vários grupos valorizam o campo simbólico da subjetividade e investem na formação de artistas e líderes, cuja fama passa a servir como modelo. Numa contra-operação de criação de estereótipos, procuram construir imagens de jovens favelados que, contrariando a profecia, tornaram-se dançarinos, cineastas, artistas de teatro ou músicos. Usam insistentemente a grande mídia e tentam parcerias com os fortes conglomerados de comunicação, aparecendo simultaneamente como artistas e como ativistas que falam em nome dos jovens das favelas. Nesse sentido, eles se afastam do modelo sindical e associativo de esquerda, no qual a cultura do “coletivo” deve imperar sobre as trajetórias individuais. Não há apenas um foco voltado para “o grupo”, “a favela”, mas há um investimento explícito na construção de “personagens”. Anderson e José Júnior, do AfroReggae e MV Bill, da CUFA, são os exemplos mais evidentes dessa estratégia. Em outras palavras, o sucesso e a fama seriam entendidos como metas políticas e as estratégias de mídia, muitas vezes bastante sofisticadas, seriam elementos de uma militância.2

Mercado. Uma segunda característica marcante desses grupos é o seu interesse no mercado. Ao contrário das ONGs tradicionais, buscam a curto prazo alternativas de renda e emprego para seus integrantes, além de colocação no mercado e profissionalização. Neste sentido, criam uma cultura oposta à do “sem fins lucrativos” que caracteriza as ONGs brasileiras.3 Ao serem simultaneamente “ponto-org” e “ponto-com”,4 em geral operam com duas identidades jurídicas: como organização não-governamental (a partir da qual recebem doações de fundações internacionais, nacionais e governamentais), e como “empresa cultural”. Embora reafirmem o pertencimento ao campo do “trabalho social”, a maioria desses grupos move-se no sentido de dependência cada vez menor das doações internacionais e das governamentais, isto é, viver cada vez menos “de projetos”, “de avaliação de impacto” etc.,5 na procura pela capacidade de sustentação como empresas culturais que disputam o mercado.

O Grupo Cultural AfroReggae, por exemplo, estabeleceu explicitamente metas relativas ao autofinanciamento. Em abril de 2007, afirmava que 30% de sua receita total como ONG mantenedora de mais de 60 projetos advinha da venda de shows de sua banda profissional e de produtos associados à marca AfroReggae.6 Neste ano, o AfroReggae passou a custear a maioria de suas atividades por meio de uma nova modalidade de financiamentos: ofereceu “cotas” da organização que foram compradas por duas empresas (uma privada e outra estatal) as quais, por três anos, fornecerão recursos em troca da propaganda das suas marcas em todas as ações do grupo.

Território. A terceira característica bastante comum a quase todos os grupos de jovens de favelas é sua afirmação territorial. As letras de músicas, as camisetas e as roupas, as imagens associadas aos grupos reafirmam permanentemente os nomes das comunidades de origem (Vigário Geral, Vidigal, Cidade de Deus, Alto do Vera Cruz, Capão Redondo, Brooklin, Alto do Pina etc.). Curiosamente, a reiterada afirmação de compromisso com o território de origem não se traduz em bairrismo ou nacionalismo. Os grupos combinam o “amor à comunidade” com a adesão aberta aos signos da globalização (Coca-Cola, tênis Nike e outros) e produzem conexões entre o local e o universal via internet, sites e revistas. Atribuem alta prioridade aos intercâmbios com outras comunidades – inclusive com jovens de classe média – e às viagens nacionais e internacionais.

Orgulho racial. Um último componente do novo repertório introduzido por jovens de favelas é a forte presença da denúncia ao racismo e à afirmação racial negra, seja nas letras das músicas, nas indumentárias (cabelos afro, roupas), seja nos nomes de projetos e líderes (AfroReggae, Companhia Étnica, Negros da Unidade Consciente, Mano Brown, Zé Brown etc.). Nos anos 90, esses grupos foram responsáveis, no âmbito da cultura, juntamente com outros grupos de expressão mais comercial, mas igualmente preocupados com a juventude das periferias, como O Rappa,7 pelo rompimento do silêncio sobre a temática racial que, curiosamente, predominou na fervilhante cena musical desde os anos 60. Isto se deu não só nas expressões culturais tradicionais como o samba, mas também na bossa nova, na jovem guarda e na maioria das manifestações culturais em que “juventude” era sinônimo de estudantes de classe média dos centros urbanos.

A incorporação da temática racial na produção cultural dos grupos oriundos das favelas situou-os, nos anos 90, em uma curiosa posição: aparecem como “porta-vozes” da problemática da desigualdade racial e, ao mesmo tempo, mantêm certa dessintonia com o tom de vitimização usado por lideranças negras tradicionais. Sem pertencerem ao chamado “movimento negro”, esses jovens referem, em grande parte das músicas, dos filmes ou das entrevistas, o fato de serem “negros” e “favelados” e de pertencerem à periferia ou ao “gueto”. E o fazem por meio de uma fórmula curiosa, que combina denúncia com orgulho racial e territorial, muitas vezes cantados e dançados numa explosão de alegria que não combina com a sisudez e as estratégias punitivas que predominaram no movimento negro tradicional, como é o caso de grupos como o Olodum e o AfroReggae. As expressões “atitude” e “auto-estima” são as que melhor definem, na linguagem nativa, a ideia de que em todos os grupos se pretendem forjar novas imagens e novos estereótipos associados aos jovens negros das favelas.8

O papel dos grupos de jovens de favelas nas respostas brasileiras à violência

No campo dos estudos sobre as respostas brasileiras à violência, vários desses grupos tornaram-se importantes como “mediadores”, ou seja, como tradutores entre a juventude das favelas e governos, mídia, universidades e, muitas vezes, atores internacionais, como fundações e agências de cooperação. Esses jovens estabelecem pontes entre os mundos fraturados da cidade e da favela e frequentemente são os únicos pontos de contato para quem pretende entender como pensam, o que sentem, como vivem e o que querem esses moradores de bairros pobres das cidades. Como se sabe, os jovens, em especial os jovens negros moradores das periferias brasileiras, estão no centro do problema da violência, seja como vítimas, seja como protagonistas.9 As ações culturais dos jovens de periferias são parte importante dessas respostas, mas estão longe de ser um campo homogêneo de ações convergentes.

No que diz respeito à violência e à criminalidade, alguns desses grupos procuram exercer diretamente papéis de mediadores na “guerra” entre facções do tráfico de drogas, e assumem a missão de “tirar jovens do tráfico”. É o caso, por exemplo, da CUFA e do AfroReggae,10 mas esta não é a regra. Por exemplo, o grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro, recusa sistematicamente aproximação ou diálogo com os chamados “traficantes” locais e não alude ter qualquer compromisso associado à criação de alternativas à criminalidade entre os seus objetivos.11

Outras iniciativas, por sua vez, assumem posições até mesmo ambíguas em relação ao “mundo do crime”. É o caso do grupo de rap Racionais MCs que, exercendo forte influência sobre muitas “posses” de hip-hop pelos bairros de São Paulo e mesmo do Brasil, identifica-se com os “manos” presos e faz poucas concessões aos discursos politicamente corretos contra a criminalidade, atitude que se depreende das letras de suas músicas. Nas raras entrevistas de componentes deste grupo, as posições são menos duvidosas,12 mas identificam um discurso bastante diverso, por exemplo, daquele do MV Bill que, após a exibição de Falcão, meninos do tráfico, em outubro 2006, aceitou discutir com o presidente Lula e os seus ministros a construção de alternativas para prevenir e recuperar jovens envolvidos com o tráfico de drogas. Um outro tema delicado que parece ser bastante heterogêneo entre os grupos que estamos analisando é o das drogas. Enquanto AfroReggae e MV Bill passaram a assumir discursos críticos não só em relação ao tráfico, mas ao consumo de drogas, Nós do Morro mantém silêncio sobre o assunto e Racionais, entre outros grupos de hip-hop evocam claramente em suas músicas o “barato” do consumo.

Uma outra distinção necessária é que essas iniciativas – que no campo de respostas à violência identifico como novas mediações – não são nem as únicas, nem as principais, nem necessariamente as mais eficientes para “tirar jovens do tráfico”. Hoje desenvolvem-se no Brasil um sem-número de ações em favelas e bairros de periferias voltadas para jovens. São projetos governamentais, empresariais e civis, liderados por grupos religiosos, associações de moradores ou ONGs, ligados à educação, ao esporte, à saúde e também à cultura, que têm capacidade infinitamente maior de atingir diretamente jovens em risco de ingresso na criminalidade.

As marcas específicas e fortes dos grupos que produzem cultura e arte nas favelas e assumem o papel de mediadores entre “favela” e “cidade formal” não são, portanto, os chamados “projetos socais” que eles desenvolveriam, mas sim a liderança assumida por seus jovens componentes. Essa liderança traz como novidade a produção de um discurso na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e, ao mesmo tempo, de criar modelos que recusam as imagens tradicionais; a criação de metáforas por meio das histórias de vida; por último, a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes facções, classes sociais e governos; percorrer o local e o internacional. Em outras palavras, esses grupos são tão ou mais importantes como interlocutores na vida da “cidade” (na relação com governos, mídia, universidades) do que na vida da própria “favela”.

Se é inegável que tais iniciativas culturais fizeram desses grupos atores centrais do debate sobre juventude e personagens definitivos das soluções que o país terá que encontrar para reduzir a violência e a chamada “exclusão” da juventude pobre, resta perguntar: que importância esses grupos, esses artistas têm para a cena cultural dos anos 90 e da presente década?

Tropicalismo, contracultura e favelas: personagens e pontos de contato

Ao contrariar o bom senso, eu gostaria de argumentar que há mais arte e produção cultural na trajetória de alguns desses grupos do que a onipresença dos “projetos sociais” permite identificar a olho nu. Que foi exatamente a incorporação do papel de artistas – músicos, escritores, cineastas, atores – que impediu que essas lideranças e esses grupos tivessem se tornado, ainda nos anos 90, apenas operadores da justiça social ou defensores dos oprimidos.

Quando traduzimos a questão para os termos do debate que suscitaram o presente livro, em que medida esses grupos de jovens de favelas, voltados para cultura e para a arte, seriam tributários de influências do CPC, da esquerda nacionalista e populista ou da opção revolucionária dos anos 70? No dilema luta armada x desbunde (ou mais especificamente arte engajada x vanguarda experimentalista) dos anos 60 e 70, que grosseiramente poderia ser transposto hoje para trabalho social x produção cultural, quanto existe de produção de arte nos grupos oriundos das favelas preocupados com a violência e a justiça? Efetivamente, há uma tensão permanente, um dilema entre a “cultura a serviço do social” e a opção pela arte. Isto se verifica e se reitera ao longo da história de organizações como o AfroReggae e o Nós do Morro,13 que têm feito esforços para não sucumbir aos riscos inerentes ao seu percurso: a influência demasiada de seus patrocinadores, especialmente quando eles são grandes empresas ou governos e as eleições se aproximam, e a construção involuntária de novos estereótipos, como o de garotos negros bem comportados que fazem música e teriam “escapado do crime”, ou ainda o de “favelados que fazem teatro” etc.14

No caso da banda AfroReggae, o grupo parece responder a isto procurando uma solução estética própria, fugindo não só do estereótipo “meninos que tocam tambor”, mas também do estilo “batidania”.15 O antropólogo Hermano Vianna definiu assim a música da banda:

o multiestilo afroreggae é produto do encontro de algumas das manifestações mais vitais surgidas na música brasileira em tempos recentes: mangue beat; rap paulistano; samba-reggae baiano; funk carioca. Aqui e ali os ecos do reggae jamaicano traduzido pelo Rappa, do hip-hop-hardcore transformado pelo Planet Hemp, das batidas de xaxado e techno ou de toques de capoeira e candomblé. Não é fusão. Mas é mais que justaposição. Música-Barraco: construída com uma variedade estonteante de elementos, mas elementos que se juntam seguindo um método, um plano e transformam-se em lares (sonoros ou não), e o conjunto dos lares forma uma comunidade.16

As novas produções musicais de MV Bill, segundo a crítica, vêm seguidamente incorporando formas mais musicais, além de samplers de samba e de músicos, como Caetano e Sandra de Sá,17 inovações heterodoxas no contexto hip-hop, como se observa em seu último CD, Falcão, o bagulho é doido. Como escritores, MV Bill e Celso Athayde tornaram-se primeiramente co-autores, com Luiz Eduardo Soares, e depois autores de livros com grande vendagem nacional. Como cineastas, Bill e Athayde optaram pela parceria com a Rede Globo para finalizar seu primeiro documentário.18

O Nós do Morro tem dado inúmeras mostras de sua preocupação com uma produção efetivamente artística e de qualidade. Ao combinar, na trajetória de 20 anos, criações coletivas (Amores trágicos) com textos clássicos (Sonhos de uma noite de verão e Dois cavaleiros de Verona), uma preocupação central tem sido a profissionalização de atores e a produção de bons espetáculos.

Tudo indica que esses grupos sabem que sucumbirão num mercado altamente competitivo se permanecerem na perspectiva dos “jovens de projetos socais”, e vêm investindo enormes esforços para se capacitarem como artistas profissionais. Além disso, a circulação desses grupos e de suas lideranças entre artistas da música, da literatura e do cinema contemporâneos da cena cultural brasileira dos anos 90 e da presente década marcou possivelmente suas trajetórias culturais tanto quanto seus compromissos com a comunidade.

É o que se denota da intensa e surpreendente relação entre o grupo AfroReggae e Waly Salomão, desde o segundo ano de criação do grupo, em 1993. Segundo longos depoimentos de José Júnior, coordenador executivo do AfroReggae, Waly foi responsável por ter intuído que o AfroReggae “seria uma potência social e cultural quando a base do grupo era um quarto e uma dúzia de garotos voluntários com muita boa vontade”.19 Além de tê-los apresentado a Caetano Veloso e a Regina Casé, que depois se tornariam “padrinhos” do AfroReggae, Waly levou o grupo para tocar no lançamento de Algaravias, na livraria Timbre, no Shopping da Gávea, em 1996; também os levou ao lançamento de Tarifa de embarque, em 2000, com um show na rua Dias Ferreira, no Leblon – experiências que Júnior descreve como altamente impactantes no livro Da favela para o mundo.

Segundo Júnior, Waly amava as favelas, os becos, Vigário, Conexões Urbanas – este um projeto que entre 2002 e 2005 levou 40 shows com artistas famosos para o interior de favelas do município do Rio de Janeiro. O livro Da favela para o mundo é dedicado a dois “mestres”, Waly Salmão e Lorenzo Zanetti (coordenador da FASE, organização não-governamental que orientou a elaboração dos primeiros projetos do AfroReggae).

Sintomaticamente, Júnior fala da importância de Waly, como “mestre, guru e ídolo”, que o ajudou a lapidar o conhecimento artístico e cultural que tem, que o ensinou a ler e a escrever e que semanalmente agendava encontros e eventos culturais para o grupo. Waly é sempre referido em reuniões do AfroReggae como o responsável pela quebra de paradigmas e preconceitos, não só musicais e artísticos, mas também de padrões afetivos e sexuais.20 A casa-estúdio multimídia que está sendo construída em Vigário Geral e que pretende ser o principal pólo de produção cultural de favelas da cidade será chamada “Waly Salomão”.

De fato, não só Caetano, Gil e Regina Casé, personagens com intensa participação no movimento tropicalista e “pós-tropicalista”,21 no caso de Casé, mas Jorge Mautner e, posteriormente, Gerald Thomas tornaram-se parceiros artísticos do AfroReggae,22 em um caminho certamente tributário à influência inicial de Waly. Também é expressivo o fato de que no festival “Tropicália, a Revolution in Brazilian Culture”, organizado pelo Barbican, em Londres, entre fevereiro e maio de 2006, o AfroReggae tenha sido o grupo jovem convidado para apresentar dois shows e a participar de uma semana de oficinas e debates.23 Efetivamente, é possível estabelecer linhas de contato entre a “atitude incorporativa”, a operação com a idéia de “inclusão”, e a “bricolagem”, típica dos tropicalistas,24 e o multiestilo AfroReggae, que não é fusão e é mais que justaposição, segundo Hermano Viana, citado acima.

Também a assunção radical do palco, a movimentação cênica parodística25 conectam-se ao estilo de palco do grupo de Vigário Geral, já definido como de uma “alegria guerreira”. O namoro com os canais de massa e o desejo de “cantar na televisão”, abertamente assumidos pelos tropicalistas, em oposição às restrições da “produção cultural engajada” dos anos 60 e 70, reportam para as posições do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro. Incluem-se, ainda, os debates acalorados no interior do movimento hip-hop e as restrições das organizações de esquerda. Por último, a desconstrução das oposições fetichizadas entre o “nacional” e o “autêntico”, de um lado, e o “alienígena” e o “descaracterizador”, de outro,26 operada pela atitude tropicalista, encontra nexo na curiosa capacidade de convivência que o AfroReggae e os outros grupos são capazes de estabelecer com a dedicação quase obsessiva à “comunidade” e a abertura para signos e marcas nada locais, como internet, Coca-Cola ou Red Bull.27 Em outras palavras, a possibilidade de manterem o foco na favela sem se tornarem provincianos, bairristas ou nacionalistas e a capacidade de articularem diálogos com o “estrangeiro” e o “multinacional” indicam uma operação sofisticada que a maioria desses grupos tem sido capaz de fazer até aqui, mais relacionada à ousadia tropicalista do que à tradição cepecista ou de esquerda.

Chama a atenção igualmente que outros participantes ou personagens do momento da contracultura, como Cacá Diegues, seja conselheiro e colaborador da CUFA – e diretor de clipes de artistas desses grupos, além de diretor de um documentário sobre o AfroReggae – assim como André Midani, colaborador deste último grupo.

Em 2006, o Nós do Morro iniciou sua comemoração de 20 anos com a apresentação de Dois cavaleiros de Verona, em montagem apresentada em Stratford-upon-Avon, a convite da Royal Shakespeare Company. Trata-se de encenação que dialoga com elementos do tropicalismo, reunindo dança, música e acrobacias, num resultado que surpreende não porque os atores são negros e da favela, mas porque são jovens e preparados. Enfatizo este ponto para indicar que o Nós do Morro não comemora seus 20 anos com um teatro “engajado” ou “do oprimido”, nem com um espetáculo que “fala sobre a favela”, mas com uma, digamos, montagem-favela de Shakespeare.

Recentemente, no início de 2006, três desses grupos – AfroReggae, Nós do Morro e CUFA – criaram, juntamente com a organização Observatório de Favelas (um grupo que trabalha com educação e pesquisa, originalmente baseado na favela da Maré), uma instância, um “dispositivo” chamado Favela 4, ou F–4. Trata-se da primeira articulação formal entre essas iniciativas e, segundo José Júnior, resulta de uma ação “política e empresarial”, que procura ligar conceitos, saber e tecnologias sociais. Possivelmente essa articulação deverá aprofundar ou potencializar os dilemas ou a tensão entre trabalho social e produção cultural; em torno dela a vida desses grupos – muitas vezes intuitivamente – tem se organizado desde os anos 90. Os próximos anos dirão se serão capazes de sobreviver ocupando com tanta intensidade, como têm feito até aqui, os cadernos de cultura e os cadernos de política dos jornais.

Na minha opinião, engana-se quem imagina que a função ou o “valor” dessas manifestações seja “tirar jovens do tráfico”. Pelo contrário, há milhares de iniciativas que desenvolvem esse papel provavelmente melhor que esses grupos. As novas lideranças políticas surgidas nos anos 90, esses jovens artistas, estão trazendo novidades importantes para a cena cultural. E isto não só porque transportam a periferia para o centro e produzem um discurso, falado na primeira pessoa, sobre a favela – ou porque, pela primeira vez, um movimento político e cultural jovem não corresponde a um acontecimento exclusivo das classes médias – mas também porque têm a função de indicar que não há só marasmo depois dos anos 70.

A despeito das restrições desses grupos em relação às drogas, acho que não há nenhuma experiência tão forte atualmente, no Rio de Janeiro, no sentido das “viagens que podem mudar a sua vida”, muitas vezes referidas no contexto da “explosão anárquica do tropicalismo” ou da “opção vitalista de produção alternativa”,28 como a de ir a uma favela à noite para assistir a uma peça do Nós do Morro ou a um show do AfroReggae.

* Silvia Ramos é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.

Referências Bibliográficas

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YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

 

NOTAS

1 Ver Landim, 1988 e Fernandes, 1988.
2 Note-se que essas operações nem sempre se realizam sem contradições. O acordo da CUFA com a Rede Globo de televisão, para a exibição do documentário Falcão, meninos do tráfico, e a participação de MV Bill no programa Fantástico, em outubro de 2006, gerou polêmica no “mundo do hip-hop”. Acalorados debates em entrevistas e sites se verificaram na ocasião. A superexposição de José Júnior, do AfroReggae, promovida tanto por entrevistas como por filmes, muitas vezes gerou suspeitas de lideranças de grupos de favelas e de militantes de ONGs. Os argumentos mais frequentes são de que o AfroReggae estaria perdendo seus ideais. Igualmente, o contraste com a estratégia do grupo Racionais MCs, de São Paulo, que via de regra não dá entrevistas e “não vai onde a Globo está”, demarca posições fortes sobre como a produção dos grupos de favelas deve se relacionar com a grande mídia.
3 Ver Landim, 1988.
4 Sintomaticamente, as páginas web do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro, podem ser acessadas tanto pelo endereço de prefixo “org” como “com”.
5 Para uma discussão sobre o “império dos projetos” como formato obrigatório de sobrevivência de organizações que vivem de doações internacionais, ver Arantes, 2000 e Landim, 2002.
6 Veja referência na página web: www.afroreggae.org.br (acessado em 10 abr. 2007).
7 Frases que ficaram famosas nos anos 90, como “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (O Rappa) e músicas como Negro Drama, Periferia é periferia, Racistas otários, Favela Sinistra, Favela 100%, A cada 13 minutos (Racionais MCs); Coisa de Negão, Som de VG e Tô Bolado (AfroReggae); Preto em movimento, Um crioulo revoltado com uma arma e Manifesto do Gueto (MV Bill) são expressões da reiterada tematização do racismo, do pertencimento à favela e da violência policial.
8 Ver Soares, 2004.
9 Entre os quase 50 mil brasileiros assassinados por ano no Brasil, os jovens de 15 a 24 anos são vitimados em proporções extraordinariamente altas. A taxa de homicídios do país situava-se em 27 por 100 mil habitantes em 2004 (países da Europa Ocidental, como França, Inglaterra e outros, têm taxas de 3 homicídios por 100 mil habitantes). Em alguns estados, como Rio de Janeiro e Pernambuco, essas taxas atingiram 50 por 100 mil. Entre jovens de 15 a 24 anos, as taxas ultrapassam 150 por 100 mil habitantes, como é o caso de São Paulo, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro. A grande maioria dessas vítimas é pobre, negra e mora nas favelas dos grandes centros. Para uma discussão sobre o assunto, ver Silvia Ramos, 2006.
10 Neat & Platt, 2006 e Bill Soares & Athayde, 2005.
11 Ver www.nosdomorro.com.br (acessado em 10 abr. 2007).
12 Para conhecer posições dos Racionais ver, por exemplo, entrevista de K.L Jay em julho de 2002: http://cliquemusic.uol.com.br/br/entrevista/entrevista.asp?Nu_Materia=3699 (acessado em 16 abr. 2007). Em uma entrevista em outubro de 2005, ao jornal Agora São Paulo, Mano Brown, líder dos Racionais, assumiu a defesa do desarmamento.http://www1.folha.uol.com.br/agora/spaulo/sp1010200501.htm (acessado em 10 abr. 2007).
13 Para uma discussão sobre o dilema, ver Yúdice, 2004 e Ochoa, 2003. Para conhecer os pontos de vista dos próprios grupos, ver Júnior, 2003 e entrevista concedida por Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, a Mauro Ventura, s/d. (http://www.nosdomorro.com.br/acontece.htm) (acessado em 10 abr. 2007).
14 Fraga, idem.
15 Referência à idéia de batida e cidadania. Ver Yúdice, 2004:208.
16 CD Nova Cara.
17 Ver Luiz Fernando Vianna. Folha de S. Paulo, 09 de junho de 2006.
18 É sintomático que MV Bill e Celso Athayde venham se definindo em entrevistas, a partir de 2006, como “escritores e cineastas” e não como ativistas sociais. Ver http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG73596-6014-410,00.html. Publicada em 23 mar. 2006 (acessado em 10 abr. 2007).
19 Júnior, 2003:11.
20 É preciso ter em mente que grupos como o AfroReggae e diversos outros ligados aos jovens de favela são organizações predominantemente masculinas, marcadas por evidentes traços de misoginia e homofobia. A “bissexualidade” de Waly, seu estilo de amor declarado pelos meninos, suas risadas e brincadeiras irreverentes marcaram fortemente a formação do AfroReggae.
21 Hollanda, 2004.
22 Além de Mautner, chama a atenção que uma das músicas de grande sucesso do grupo é Mosca na sopa, de Raul Seixas. O último CD do grupo traz canções compostas em parcerias com Arnaldo Antunes, Nando Reis e Geraldinho Carneiro, além dos rappers ingleses Ty e Estelle.
23 Ver http://www.barbican.org.uk/artgallery/series.asp?ID=261 (acessado em 16 abr. 2007).
24 Ver Naves, 2001.
25 Naves, idem.
26 Naves, 2002:54.
27 No caso específico do AfroReggae, os pontos de interdição situam-se na recusa de patrocínios ou parcerias com empresas de cigarro ou bebida alcoólica. Ver Júnior, 2003.
28 Ver Hollanda, 2004:15.

 

Dona Zefa, a criação do mundo através de imagens: do verbo faz-se a carne | de Zeca Ligiéro

“Nas história antiga, que eu conheci, dos meus bisavós… e os antigos, né?! Porque de livro não me interessa. Pelo menos, eu sei, eu vou contar as histórias do que se contava no passado.”

O presente artigo investiga as narrativas da artista, contadora de caso e benzedeira dona Zefa, moradora de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha. Muitas de suas histórias são baseadas na Bíblia, mas passam por um processo de reinvenção, onde a narradora acrescenta elementos não originários das escrituras sagradas. As forças da natureza aparecem eloquentemente, tanto em seu trabalho escultórico como em sua narrativa, o que nos convence de que suas histórias se referem diretamente ao universo afro-ameríndio. Exclusivamente, por meio da sua performance, a narradora não só encarna a história como reinventa seus significados originais, dando-lhes novos contornos e novos contextos. Seu texto existe apenas como parte da sua performance oral, portanto ele só existe enquanto toma forma na voz e no corpo da performer, que literalmente o corporifica pela comunicação com o ouvinte/espectador. O artigo, portanto examinará a narrativa não apenas como texto literário, mas como elemento propriciador da performance oral, onde a história narrada não só exemplifica a relação do sujeito com o tema, mas o posiciona como criador de imagens vivas. Zefa reúne em seu ofício as diversas atividades ocupadas tradicionalmente pela pessoa de teatro: o dramaturgo ou adaptador do texto, o diretor de cena, o ator e espectador privilegiado da própria história já que ela faz pequenos comentários que poderíamos classificar como próximos à proposta do teatro Épico de Bertolt Brecht, coisa que, naturalmente, nunca ouviu falar. Seu cenário de fundo é composto de duas cortinas com estamparia floral que dão acesso a outros cômodos da casa e duas paredes totalmente revestidas com uma coleção de fotos de família, de colecionadores de seus trabalhos e amigos intercalados com toda a sorte de imagens de santos, cartões postais, recortes de jornal etc. Isto é sua sala de visita e oficina repletas de suas esculturas recém-terminadas ou ainda em processo, feitas em troncos de madeiras. A maioria delas é feita na forma de colunas com caras duras, anjos retorcidos junto, peregrinos e beatos das memórias longínquas das mesmas terras onde pisaram Antonio Conselheiro e Lampião e de onde ela tem as suas raízes familiares e onde viveu a sua juventude.

Mas, ao contrário do griôs conhecidos, Zefa não interpreta os personagens de suas histórias, ela os apresenta. Ela reproduz seus diálogos curtos com uma comedida pontuação, uma prosódia peculiar, emprestando-lhes sempre um tom coloquial como o da conversa de vizinhos na varanda de suas casas nas noites de lua cheia, assim ela trata os seus espectadores, não importa se autoridade ou criança que se chega. Seu teatro aproxima-se do universo da performance, pois ela conta com a imaginação do espectador para completar a história, embora o sentido da mesma ela não deixe escapar. Em nenhum momento cria a mimesis ou a linguagem corporal do personagem, não há em nenhum momento preocupação em recriar alguma atmosfera “teatral”, imitando trejeitos ou forma de falar de algum personagem. Os fatos são mais importantes que as reações físicas dos personagens, o que eles fazem e falam é mais importante do que eles sentem. Ela talha a sua narrativa num tom firme e extremamente convincente. São histórias do sertão, das terras secas e quentes do norte da Bahia, de Sergipe e Alagoas onde perambulou quando jovem, e as terras misteriosas das Gerais, os serros frios e desertos, serpenteados pelo rio Jequitinhonha.

Além de contadora de histórias, dona Zefa é uma ativa escultora em madeira, profissão que abraçou depois de fugir da seca do nordeste, onde trabalhou como feirante, vendedora ambulante, construtora de malas e carpinteira de camas “feitas a prego” para finalmente fixar residência no Vale do Jequitinhonha, uma região repleta de histórias e lendas. Ali também encontrou seu oficio mais nobre: a arte – ceramista por três anos, quando adoece e descobre a escultura em madeira que a projetou nacionalmente. Zefa Alves dos Reis é originária da região fronteiriça entre os estados de Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando seu irmão mais velho, em 1958, foi construir Brasília em busca de uma situação melhor para família, viu-se em completa miséria, pois o irmão nunca mais deu notícias e nem retornou ao lar, ela então, como milhares de nordestinos, migrou para o sul ao lado da cunhada, que também não tinha uma profissão definida, em busca de uma vida melhor. O mundo encantado das lendas que ouviu, a Bíblia aprendida dentro de uma tradição oral e a própria história de vida se mesclam em seu trabalho escultórico bem como em suas narrativas épicas. Ela é contadora de caso desde criança como ela própria aponta em uma de suas histórias:

Foi lá na Serra dos Aimorés, (…) também tinha essa família que era de imigrante que veio de Portugal, aí os pais moraram lá numa sede muito boa, eram muito ricos, aí eles morrero e deixou duas filha. Duas foi vizinha nossa, uma morava, a casa dela ficava na frente da casa que nós morava e a outra morava mais longe, não sei cumé o nome dela, sei que eu fiquei na casa dela muitos dias com ela, porque naquela época não havia televisão e eu contava muita história de folclore né, porque na fazenda de meu avô, naquele tempo todo mundo sabia história, mas quem tinha memória boa pra guardá história, pai dizia assim “Zefa vai divertir o povo” contando história né, aquele multidão de gente sentava na calçada e eu sentava o pau pra contá história, e Preta, essa menina de Portugal, chamavam ela Preta. Mas era branca de olho azul, a peça mais bonita, parecia uma grande modelo né, era bonita demais. Ela casou com um tenente, o tenente era mineiro, mas naquele tempo que a tuberculose era igual a AIDS agora, que não encontra remédio, então a tuberculose tava matando gente demais, então o moço um dia começou a sentir uma dor, assim que ele casou, ele começou a sentir uma dor, por dentro nos intestino. Aí ela levou ele pra Belo Horizonte, aí ele passou no raio X, quando passou no raio X aí era tuberculose, tinha começado a mancha da tuberculose. Interessante, que o homem tava quase de lua de mel né, aí o médico disse assim “Aparta a dormida com sua esposa porque você ta contaminado, tuberculoso”, aí ela disse que veio, esse homem veio desesperado, aí passou remédio, aí retorna lá de novo em Belo Horizonte, aí ele foi e chegou, passou um dia, no outro dia, que ele disse assim “Ô Preta vai pegar uma água pra mim”, aí ela foi. Quando ela foi pegar a água, a casa era muito grande, quando ela foi pegar a água lá na cozinha, ele detonou o revólver perto do ouvido e morreu, aí ele morreu e ela ficou desesperada também, bom, quando nós chegamo lá tinha quinze dia que o marido dela tinha se matado e ela tava impressionada né. Aí de parente dela…. tinha uns amigo né, que os pai deixou, os parente são os amigo como eu tenho aqui né, é os amigo, só tinha uma irmã, aí eu contando muita história e o amigo disse assim, “ô Preta vamo divertir na casa de Sô Jão”, Zefa tá lá contando história e tem muita gente assistindo. Aí ela foi, assistiu, se divertiu muito, aí disse “Seu João”, meu pai se chamava João Aldo né, “Seu João Aldo, o senhor pode me dá a Zefa pra ela passar uns dia comigo, pra ela me divertir, contar história”. Porque ela perdeu o marido, tava pra perder o juízo, aí pai disse assim “Ah, a menina ta fazendo nada não, ela pode passa até meses com você, é aqui vizinho…”

Interessante como ela própria percebe o poder performativo de suas histórias, capaz de, como afirma Schechner, “transportar e transformar o espectador”. (SCHECHNER: 1985) O contato com as narrativas orais permite a viúva da história narrada transcender a sua própria dor individual ao mergulhar num universo místico criado pela contadora. Sua história, mesmo sem intenção, exerce um alto poder terapêutico. Atualmente com 84 anos, Zefa escreve a própia história de mulher e cidadã em Araçuaí, uma comunidade dominada pelo imaginário de vaqueiros e mineiros, tradições de lavadeiras cantoras e com muitos artistas e artesões, onde se destacam também suas conhecidas ceramistas: dona Lira, famosa por suas máscaras com motivos afro-brasileiros e dona Isabel, por suas bonecas grandes de cerâmica vestidas de noivas coloridas com os diferentes barros da região. Dona Zefa, não atribui a si própria a versão das histórias que conta, mas ao que foi aprendido com os mais velhos. Em suas histórias, se destaca a sua relação com a Mãe Terra, algo apreendido ao longo de sua existência e que considera primordial passar para os outros, como narra:

O moço da imprensa falou comigo “Zefa, é engraçado que eu tenho feito entrevista no mundo inteiro. Eu nunca soube da pessoa conversar com Deus considerando a Mãe Terra como mesa da comunhão. É a coisa mais bonita que eu achei na minha vida e eu vô passar pruns amigo meu que é estrangeiro.” Porque é assim: antigamente… são confissão de antigamente, dos antigo. Então antigamente a cidade, pra você conhecer o padre era muito difícil, então tinha a santa confissão é… que os padre andava celebrando santa missão para confessar os povo, para confessar os povo, que era muito bruto e inocente, que morava nas montanha, no centro da roça. Então… você tem uma pessoa doente, que ele tá pra morrer. E como é que ele confessa se num tem padre? Eu moro num lugar distante, e aí? A cidade fica distante 5 ou 6 légua, e meu parente na cama da morte, e como é que ele confessa? Então antigamente a cidade era muito distante uma das outra. O antigo ensinou… essa oração da confissão ela já vem de muito mais de mil anos… muito mais! Muito mais! Isso vem dos antigo. Então diz assim. A pessoa vai conversar com Deus. Foi a confissão que o Cabeça de Ferro fez. Aqui teve um.. no mundo… teve um valentão igual a Lampião, igual a cangaceiro. Vivia matando os outro pra roubar. Só que ele não tinha companheiro, ele era sozinho. Então, chamava… o povo tinha tanto medo dele que chamava “Cabeça de Ferro”, porque não tinha ninguém. Era… o destino dele era o de matar, né? De dia… de noite… de dia ele tava no mato escondido e de noite ele saía escondido pra matar. Só que ele matava porque aquilo parece que era uma fraqueza da cabeça dele, ele era um matador de fama, né? Conta há muitos anos atrás, né? Milhares de anos… o Cabeça de Ferro era conhecido no mundo inteiro, né? Um caçador tava caçando e o Cabeça de Ferro tava escondido no mato que era pra noite… Ele invadir as casas, né? Aí quando o caçador viu o Cabeça de Ferro, ele desmaiou e caiu com a espingarda na mão. Aí o Cabeça de Ferro falou “Já viu um homem cair sem eu matar?” Mas mesmo assim o homem tava morto. Aí ele disse assim “eu não sou gente não, se o homem só de me ver, ele morre, eu não quero ter mais vida”. Aí foi e se ajoelhou num pedá de pau e disse assim: “Aqui me ajoeio, Senhor, nesta mesa de finar, minha alma se alegra de ver tão rico manjar. O manjar excelente dado pelo Senhor, que os pecado que eu tinha, agora num dia se confessou. Eu agora vós digo, Senhor, sem saber quanto eles são, perdoai os meus pecado, na santa mesa da comunhão.’’ Aí vai e beija… a terra, ce reza oiando pra o céu, porque é ajueiado, né? Você se ajueia e reza, porque tá conversando com Deus, com Jesus Cristo.

Quase sempre ela ilustra o pensamento com uma história, criando uma espécie de parábola em que demonstra uma espécie de moral sobre o assunto abordado. Em outra ocasião ela teoriza sobre o poder da Mãe Terra:

Porque a Mãe Terra é a dona de nosso corpo. Ela tem todo o poder. Ela tem a graça de Deus de criar nóis. Ela criô nóis, cria tudo que nela existe, ela muda uma serra de um lugar pro outro, conforme uma tempestade de chuva. Ói, eu merma visitando a Lapa de Bom Jesus, eu merma vi o rio onde é que era… ele foi mudado… mudado, né? Bom, então a Mãe Terra muda a serra dum lugar pro outro. Por que ela não pode mudar nossa vida?

Dentre as inúmeras histórias colhidas, sem dúvida, a da Criação do Mundo, por ser a mais conhecida de todos, se torna a mais interessante por apresentar uma versão bastante inusitada, pois seus protagonistas são apresentados de forma coloquial, demasiadamente humanos em suas reações: Adão um tipo curioso e metido a esperto, Eva ingênua e gulosa, o Anjo um tanto futriqueiro e Deus, onipresente, mas meio esquecido. Ela não faz comentário sobre os personagens, percebemos seu comportamento através de algumas reações tão diferentes da percepção clássica de quadros estereotipados como “A tentação de Eva”, “A expulsão do paraíso” etc. A história de Zefa começa com que o já é conhecido, Deus criando Adão a partir de um monte de barro e deixando-o para que ele possa descobrir, sozinho, a natureza. Em algum momento depois, ele fica curioso para saber como está a sua criação e ele pede ao Anjo:

“- Óia, vai ver como Adão tá.” E Deus sabia tudo que ia acontecer né. Aí o Anjo chegou lá, Adão tava acocorado por trás do pau com a mão na cabeça. O Anjo chegou assim: “- Ó Adão, que tristeza é essa? Você tem tudo nas suas mão, tem tudo à vontade e você tá triste assim, tem tudo enquanto é bicho pra você se divertir.” E ele tá calado. “- É o quê, Adão? Por que você tá triste? O que é que te faz alegrar?” E ele dizia assim ó: “- Só tenho alegria se aparecer uma companheira.”

Em sua narrativa mítica ela trata os personagens sagrados sem nenhuma cerimônia, como fazendo parte do universo caipira em que ela se insere, com tranquilidade e respeito; eles são extremamente informais e falam a linguagem do povo. Quando o Anjo dá a notícia para Deus, ele decide ir lá falar com Adão pessoalmente:

“- Adão”, “- Tô aqui.” “- Cê tá querendo uma companheira, né, Adão? Tão deita aí.” Aí pegou a costela mindinha dele e fez a mulher, deu vida. Aí Deus contou a ele; aí ele perguntou assim: “- Por que o Senhor tirou o osso menor, a costela menor da cintura?” “- Porque a mulher tem que ser igual a você.” “- Por que não tirou da cabeça?” “- Porque a mulher não pode dominar o homem.” “- E por que não tirou dos pés?” “- Porque o homem não pode pisar na mulher.” Aí foi perguntando tudo.

Aqui a preocupação entre a equidade entre os gêneros surpreende, pois tradicionalmente o papel da mulher tem sido pouco enfatizado pela visão ortodoxa católica. Entretanto, o enunciado acima pode ser interpretado também como uma máxima reguladora da visão do universo católico rural, na qual o homem é quem tradicionalmente domina a mulher, portanto o inverso nunca pode acontecer. Ele, uma vez exercendo esse domínio, nunca deve maltratá-la. Mas de qualquer forma, a igualdade do paraíso, onde pareciam feitos um para o outro, nivelados pela inocência, um estado de graça foi definitivamente perdido e alcançado apenas num mundo mítico.

Mas Deus sabia de tudo que ia acontecer. Aí foi mostrou os arvoredos tudo. “- Agora desse arvoredo aí, que vocês não podem comer, viu?” E a serpente tava perto, escutando. “- Não pode, porque se vocês comer desse arvoredo é pecado mortal, não pode de jeito nenhum!” A tentação ficou lá. Não apareceu a Adão. A mulher sempre tem a cabeça, o juízo, mais leve, leve, assim iludida né (riso). Aí a tentação tava toda graciosa lá no pé do arvoredo, né?! Aí a mulher assim: “- Ô fruta bonita, meu Deus!” Aí ela foi e comeu. Aí disse: “- Ó, Adão, vem cá. Vem comer um pouco pra você ver.” Aí Adão chegou e falou:” “- Devera, mas é bão de mais, tá doido! (riso).

E quando Deus mandou o Anjo ver como Adão estava, a visão foi inesperada e ele detalhou para Deus a situação em que encontrou o primeiro homem:

“- Ó Senhor, ele desobedeceu ao senhor porque ele tá vestido de fôia. Tá vestido. E se apadrinharam, tudo envergonhado com vista no chão.” E foi ele pessoalmente chamar a atenção “- Ó, Adão, que que aconteceu com você mais com sua mulher? Foi você que inventou de atrair ela pra comer daquela fruta?” “- Foi ela. Foi ela que me iludiu e eu comi. Fiquei nesse estado.” “- Pois é, se vocês agora vocês tão vestidos, vocês se viram. Eu vou dar uma semente pra você plantar, dagora por diante você vai comer do suor do teu rosto. Porque você perdeu a veste da graça de Deus. Então agora você vai se vestir e comer do suor do teu rosto. Ademais, eu vou mandar o Anjo trazer tá?! Pra você plantar.” Aí foi, mandou o Anjo. O Anjo chegou com a enxada e a semente. Diz: “- Óia Adão, aqui é a semente do algodão, que a profissão de Eva é tecer roupa. Porque vocês, a geração de vocês vai se estender. Aí você pega a enxada e vai trabaiá. Aí ele foi, aí o Anjo foi embora.

A história bíblica toma um caráter extremamente nordestino, campesino: aqui a divisão do trabalho é claramente definida, embora sem hierarquia. O homem é o lavrador e a mulher a tecelã, enquanto ele lida com a terra, ela com o trabalho da criação das vestimentas. Entretanto, o grande ponto de mudança proposta pela história de dona Zefa ocorre neste momento:

Quando bateu a enxada no chão aí brotou sangue da… do corte da enxada na terra, a terra foi e gemeu. Aí ele disse assim: “- Você é igual meu corpo, pois eu não vou cortar mais não, cê gemeu. Ah não, ah não. Não vou desobedecer, cortar ninguém não.” Aí foi pra casa, foi comer fruta. No outro dia, aí Deus mandou o Anjo: “- Vai ver se Adão plantou mesmo.” Chegou lá: “- Adão, por que você não plantou?” Aí ele contou o caso. Aí o Anjo voltou. Já foi ao Senhor: “- Ele não plantou nada não. Que a primeira enxadada que ele deu, a terra gemeu e brotou sangue. E ele disse que se era igual o corpo de que ele não ia plantar não.” Aí o Senhor falou: “- Eu tenho que ir lá.” Chegou assim: “- Ó Adão. Como é que aconteceu que diz que você cortou a terra e ela gemeu?’E disse assim:“- Ó Adão, é porque ela é virgi, porque o homem nunca cortou, porque o homem nunca trabalhou na terra. Eu vou conversar co ela pra fazer sua plantação.” Aí foi ele e disse assim ó: “- Mãe Terra você deixa Adão cultivar você, cortar você, porque você mesmo dá, você mesmo come.”Você vê que tudo que a terra produz ela mesmo come, né. E aí falô: “- Corta terra agora.”Aí ela não gemeu mais e Adão foi e plantou.

A terra desempenha um papel crucial na história, pois o próprio Deus vai pedir licença à Grande Mãe para que seu filho possa trabalhar nela. A explicação sobre o sangue e a virgindade da terra a torna humana. Mesmo sendo a Grande Mãe, ela permaneceu virgem até o homem perder a sua “vergonha”. A terra não fala, mas geme, ela parece ter sofrido ao primeiro corte dado, pois Adão a ouve e recua. Poderíamos levantar questões sobre uma religiosidade pré-cristã, relacionar aos mitos romanos e gregos, a Deméter e a Gaia, mas certamente estas culturas não parecem estar presentes nas palavras de Zefa. Ao que tudo indica devemos considerar muito mais o manancial indígena das culturas fortemente presentes na região de onde ela veio, inúmeros grupos, dentre os quais poderíamos destacar os Kariri-Xocós, os Pankarus, os Funiôs, os Pataxós, cujas culturas estabelecem uma forte relação com a Mãe Terra. E embora a presença Guarani nesta região não seja significante, sua mitologia é de forte impacto no imaginário da população brasileira, assim vemos muita semelhança com este momento engendrado na mitologia bíblica pela contadora. Na mitologia de origem Guarani, a Mãe Terra nasce do sopro do cachimbo do Grande Deus, que mandou os sete anciãos com as sementes-desenhos de tudo que seria criado com a missão também de criar o ser humano como o guardião da roça.

Na história narrada por Zefa, a terra ao se permitir ser germinada, após ter oferecido o seu próprio barro, a matéria prima para criação do primeiro corpo humano, ela então permite que em seu ventre sejam geradas as sementes plantadas por mão humana que vão servir de alimentos e algodão para criar abrigos. E desta forma, permitir ao homem que possa executar o seu castigo principal, o trabalho, pois a sua prole é uma consequência inexorável de sua existência comum com o sexo oposto.

“- Ói, só tem uma coisa. A sua desobediência foi demais. Seu trabalho é plantar algodão. Agora vai vim filho de toda parte. Vai encher a casa deles. Faz uma casa grande porque home não pode morar no tempo. E o trabalho de Eva é só fiar pra vestir os filhos porque vem filho demais por aí.” Aí foi de geração em geração e foi gente toda vida, e gente toda vida, e Adão trabaiando e trabaiando junto com os filhos mais véio.

A história poderia terminar aqui, como geralmente acontece, “e a partir daí as gerações foram se sucedendo…” Mas Zefa introduz um elemento inesperado, a incapacidade do homem de vestir a sua prole. Quanto mais o casal trabalhava, mais filhos tinha e mais gente nascia para ser vestida. E Deus mandou o Anjo, mais uma vez, para verificar como estava indo a coisa. Mas aí, novamente, a narradora expõe Adão como um orgulhoso a querer enganar ao seu pai.

“- Cês se esconde pro Anjo não ver.” Mas os menino queria ver né. Aí ele disse assim: “- Amanhã o Senhor vem te visitar e conhecer seus filho.” Aí ele foi mais Eva e disse assim:“- Vocês fiquem bem ó, vocês se esconde viu?! Porque o Senhor não pode ver vocês despidos não. Só aparece os vestidos.” O Senhor sabia de tudo né. Aí quando o Senhor chegou, chegou a multidão de filhos tudo vestido. E arvoredo tava por todo lado, os outros ficaram por lá apadrinhado, escondido, à frente dos arvoredo e apontando as cara, como macaco ainda por cima. O Senhor tava conversando com ele e disse assim: “- Que mói de gente é esse aí?” Quando Adão, não pôde falar nada, abaixou a cabeça assim.” “- Adão cê mentiu pra mim né? Né Adão?! Que tanta gente pelado é esse me espiando atrás dos pau? Nem é filho seu não Adão?” “- Não, num é meus fio não. Deve ser de algum bichinho por aí.”

Percebemos já no primeiro homem, os graves defeitos da raça humana, querer enganar ao próximo, e no caso o próximo era Deus. Mas, ao contrário da imagem do Deus colérico judaico-cristão, temos nesse de Zefa um Deus com um grande senso de humor. Pois diante da multidão de cabeças saindo de trás das árvores, e ao perceber que Adão estava trapaceando ele completa:

“- Pois é, esses que tão me espiando é seus fio né. Mas você escondeu de mim, então, em macaco eles se transformará.” Aí ficou a geração braba de macaco no mundo todo. Mas é tudo família de Adão. Tudo que é completo no homem é completo no macaco.

A história aponta para as semelhanças entre o homem e o macaco e sua origem comum, explicando de forma mítica o elo perdido entre as duas espécies. É crucial percebermos na narrativa desta história a luta entre o mundo perfeito, sem pecado, proposto por Deus, (mesmo sabendo do seu insucesso na empreitada da criação, de acordo com a autora) e a vida humana enquanto conflito permanente. Ou poderíamos avançar e tomar a definição de Fitzgerald, empregada por Deleuze na abertura do seu capítulo Porcelana e Vulcão: “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição.” Comentando o autor, Deleuze acrescenta:

Eis um homem e uma mulher, eis casais (por que casais, a não ser porque já se trata de um movimento, de um processo definido como díada?) que têm tudo para serem felizes, como se diz, belos, encantadores, ricos, superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa se passa, fazendo com que eles quebrem exatamente como um prato ou um copo. (DELEUZE, 2006:157).

 

É claro, que na ótica de Zefa, o sentido da demolição ou da fissura, como aponta Deleuze passa por um filtro extremamente bem humorado. Ela, como mística e perfeitamente harmonizada com as forças da natureza está muito mais próxima da perfeição do criador do que do mundo da geração braba de macacos consumidores. Ela, portanto, vê o casal primeiro, que mal pode saborear as delícias do paraíso, para ter que dar duro para sustentar uma prole, cada vez mais necessitada, como algo que cotidianamente escolhemos na nossa vida distraída e descomprometida com as necessidades da Mãe Terra. E conclui com certa ironia a sua história da Criação do Mundo: “As história antiga são essas, é piada, né?! Uma coisa muito bonita pra se contar. Bom, eu gosto do antigo, a história antiga faz sentido né?!” O sentido que faz é sua possibilidade de associação e contextualização, a sua performance.

Zefa conta as suas histórias sentada no mesmo banquinho, junto ao chão em que trabalha fazendo suas esculturas em madeira. Seus gestos são econômicos, sua voz mansa, não dramatiza e não dá pronto os estados dos seus personagens. Sua palavra então, como uma lâmina de cristal, oferece transparência total e o verbo se faz carne não pelo que representa, mas pelo que criamos enquanto ela desfila seus incontáveis casos antigos. Acompanhamos sutilmente a sucessão de fatos, nos quais suas lembranças mais remotas se desenovelam em fios de lembranças recuperadas, sentimentos recuperados, não em função de um princípio religioso, mas pelo prazer fundamental de fazer do verbo carne. E por momentos fugazes experimentamos as delícias do paraíso perdido, transformados e transportados pelas palavras-imagens de Zefa.
Fotos de Lucas Vandebeuque

* Zéca Ligiéro é professor do PPGAC-UNIRIO, coordenador do Núcleo de Estudos de Performances Afro-Ameríndias -NEPAA. Dirigiu espetáculos no Brasil e no exterior. Entre os seus livros se encontram: Iniciação ao Candomblé (1993),Iniciação à Umbanda (1998) e Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra um malandro típico da Lapa Carioca (2004), Teatro a partir da comunidade (2005) eCarmen Miranda: uma performance afro-brasileira (2007).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Editora Perspectiva, São Paulo, 2006.

LIGIÉRO, Zeca. Entrevistas realizadas pelo autor com dona Zefa, Arquivo do Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias, NEPAA-UNIRIO (2006, 2007 e 2008).

SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. University of Pennsylvania Press, 1985.

 

Poesia e Vídeo-arte – algumas aproximações | de Renato Rezende

Alguns poetas brasileiros contemporâneos têm produzido vídeos que os inserem ao mesmo tempo no campo das artes visuais ou, sem que haja contradição nisso, num campo ampliado da poesia. Podemos citar André Sheik (Eu sou mais do que aparento), Laércio Redondo (Eu não te amo mais), Ricardo Domeneck (Garganta com texto), Laura Erber (História antiga), Renato Rezende (Ímpar; Tango), Guilherme Zarvos (Muro burro) e Domingos Guimaraens (Gema), entre muitos outros. Este ensaio procura delinear algumas aproximações históricas, teóricas e práticas entre a poesia e a vídeo-arte no contexto da produção brasileira.

Poesia e Pensamento

Discorrendo em seu blog sobre a separação entre poesia e música, oralidade e escrita, o poeta brasileiro Ricardo Domeneck lança uma provocação e um desafio: “Insisto: poesia não é uma parte da literatura, mas é a literatura que é apenas uma parte da poesia. Quem achar que isso é picuinha, sugiro que medite por pelo menos alguns segundos sobre as implicações desta idéia”.1 Se para Domeneck – e não nos interessa aqui investigar suas razões –, a literatura é apenas uma subdivisão da poesia, Susan Sontag, numa instigante nota de rodapé em seu ensaio “Contra a interpretação”, afirma ser o cinema uma “subdivisão da literatura”.2De fato, a forma hegemônica do cinema espetáculo, que, com seu modelo narrativo-representativo-industrial, se estabeleceu no início do século XX e se sobrepôs como fenômeno social e mercadológico às correntes do cinema de vanguarda e do cinema experimental, herdou sua linguagem narrativa do romance.3O romance, como gênero literário, por sua vez, surgiu no século XVIII com a definitiva ascensão da burguesia ao poder, e substituiu a poesia épica, de origem homérica, que vigorou na Europa pós-renascentista e produziu obras de grande fôlego e envergadura como Jerusalém LibertadaOrlando Furioso (obras que no século XX, com toda certeza, seriam estimulantes longas-metragens, e estão na origem de sucessos comercias como E o vento levouLawrence da Arábia eTitanic).

Do mesmo modo, como lembra o mesmo Domeneck em seu blog, é moeda corrente que a separação entre poema e música (ou seja, a forma por excelência da poesia lírica), ocorreu aos poucos após o desmantelamento das estruturas sociais do amor cortês, vigentes principalmente nas cortes provençais e catalãs do fim da Idade Média. Essa tradição ressurge com toda força, como um grande catalisador social, na forma de música popular, na era da cultura de massas e da indústria cultural, com a possibilidade da ampla difusão em ondas de rádio e reprodução em LPs, CDs etc., e portanto toda a discussão sobre o status literário da letra de música e de seus compositores não é sem fundamento. Amputada ou mancando seriamente de duas de suas três pernas (a épica e a lírica), a poesia se renova no Modernismo apostando todas suas fichas no pensamento e/ou no poema que discorre sobre si mesmo ou seu meio (a linguagem).4 No entanto, nos anos 1960, com o advento da arte conceitual, mas na verdade desde Duchamp, a filosofiaaproxima-se das artes visuais, que passam cada vez mais a gerar pensamento em alta voltagem, depreciando os valores preponderantemente estéticos que até então as orientavam. Neste contexto, e com a tecnologia da câmera de vídeo portátil, nasce, entre os artistas visuais, a vídeo-arte. Se o cinema, narrativo e metonímico, é literatura (ou seja, prosa), a vídeo-arte, metafórico e conceitual, aproxima-se da linguagem da poesia.

Metáfora e Metonímia

Roman Jakobson, em “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, discrimina dois modos de arranjo do signo linguístico: combinação e seleção. O primeiro trata da hierarquização das unidades linguísticas, das mais simples às mais complexas, o que as torna inseridas numa contextura sintagmática. O segundo trata da possibilidade de substituição paradigmática de um termo por outro afim. Jakobson identifica o primeiro modo, o da contiguidade, com o polo metonímico (característico da prosa), e o segundo modo, o da similaridade, com o polo metafórico (característico da poesia). Jakobson também distingue seis funções de linguagem, relacionando cada uma delas a um dos componentes do processo comunicativo, entre elas, a função poética é aquela que se foca na própria mensagem. A experiência dos elementos formais, ou seja, a experiência da linguagem em si mesma, é o que, para Jakobson, caracteriza a poesia.5 Segundo A. L. Rees, em seu A history of experimental film and video, a distinção entre prosa e poesia serve como um excelente guia para se compreender o projeto do cinema de vanguarda. Em fato – e aqui Rees cita o ensaio “Poetry and prose in the cinema”, de Shklovsky :

prosa e poesia em filme são dois gêneros distintos; não se diferem pelo ritmo – ou melhor, não apenas pelo ritmo – mas pelo fato de que no cinema de poesia elementos da forma prevalecem sobre os elementos do significado e são eles, e não o significado, que determinam a composição.6

 

Pensando nos termos de dois gêneros distintos em filme, os predominantemente metonímicos e os predominantemente metafóricos, chegamos na mesma distinção que existe na literatura entre prosa e poesia. Transcendendo a questão do meio (a imagem ou a palavra) e do suporte (a película e a página) e pensando nos gêneros artísticos de acordo com o uso que fazem de sua linguagem, seria lógico alinhar de um lado a vídeo-arte e o poema; e de outro o cinema narrativo e a prosa de ficção. Para Tunga, artista contemporâneo brasileiro cujo trabalho carrega fortes conteúdos psicanalíticos e faz uso recorrente de metáforas (é interessante notar que, para Lacan, a própria linguagem é metáfora, metáfora da metáfora, metáfora de um real inatingível), é o uso da linguagem (qualquer linguagem) que caracteriza a poesia:

Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é a coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.7

 

Neste sentido, por sua forte densidade metafórica – e pelas próprias palavras do artista, colocando-se como poeta –, alguns trabalhos em vídeo (e também em performance, quase sempre, aliás, acompanhadas de um texto) de Tunga poderiam ser considerados como poemas. Alguns desses exemplos são Medula e Quimera, ambos de 2005 e feitos em parceria com o cineasta Eryk Rocha.

Tempo e Espaço

Numa reação aos preceitos modernistas, entre as décadas de 1950 e 1960, prenunciando o advento da pluralidade do pós-modernismo, artistas começaram a ampliar as possibilidades de meios e suportes. No campo das artes visuais, a produção de imagens incorporou as tecnologias da fotografia, do cinema e do vídeo. Categoricamente definidas por Lessing em seu fundamental Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia como artes do espaço, com a apropriação dessas novas tecnologias, “as artes plásticas incorporaram o tempo ao seu universo eminentemente espacial, acontecimento que pode ser visto qual raiz e sintoma de sua própria contemporaneidade.”8

Nas narrativas que buscam contar a história da vídeo-arte ou do cinema experimental no Brasil, um esforço empreendido por pesquisadores como Arlindo Machado (organizador do catálogo e curador da exposição Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, no Itaú Cultural, São Paulo, 2003), Fernando Cocchiarale (organizador do catálogo e curador da exposição Filmes de artista. Brasil 1965-80, no Oi Futuro, Rio de Janeiro, 2007), Walter Zanini, André Parente, Luiz Cláudio da Costa, e muitos outros, nota-se – ao contrário do que aconteceu na Europa e nos EUA, berço do cinema underground e da vídeo-arte – uma constrangedora ausência de poetas entre os pioneiros.9 Em 1974, no Rio de Janeiro, quando artistas como Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger, Ivens Machado e, logo depois, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Miriam Danowski, tiveram acesso a um equipamento portapack trazido de Nova York por Tob Azulay,10 surgia a poesia marginal, de cunho contracultural, anedótico e anti-intelectual, e o máximo de interação entre ambos os campos parece ter sido a presença do poeta Chacal como juiz de futebol num filme de Luiz Alphonsus (Chacal é o juiz, 1976). No entanto, como atesta André Parente, havia um grande agenciamento com a poesia concreta:

A revista Navilouca, publicada em 1974 pelos poetas Waly Salomão e Torquato Neto, com magnífico projeto gráfico dos artistas plásticos Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, mostra a grande efervescência que existia na cena da contracultura carioca, em que havia um grande agenciamento entre a poesia concreta, as artes plásticas neoconcretas, a música tropicalista e o cinema marginal.11

 

Na verdade, como corrige o próprio Parente, “em conseqüência da ruptura neoconcreta, a forma moderna e seus esquematismos racionalistas entram em declínio, sobretudo no Rio de Janeiro”.12 Se há um agenciamento entre as experiências do cinema e vídeo de vanguarda com a poesia, esse se dá em São Paulo, onde reside e trabalha o grupo Noigrandes. O foco das propostas da poesia concreta, no entanto, é fazer o caminho inverso daquele que fazem as artes visuais ao se apropriarem do vídeo: enfatizando a materialidade plástica dos vocábulos, os concretistas proclamam uma poesia verbivocovisual,13 que foi preponderantemente uma arte do espaço (e não do tempo).

Desta forma, tanto em sua vertente marginal, quanto em sua vertente concretista, e por diferentes razões, a poesia dos anos 1970 manteve-se distante das experimentações em vídeo que faziam os artistas plásticos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estando Gullar, o poeta entre os neoconcretistas, nesta época exilado, e focado em poemas politicamente engajados, não houve um desenvolvimento das propostas neoconcretas em poesia.14 Nas décadas seguintes, novos poetas de extração concretista, como Arnaldo Antunes e André Vallias, além dos próprios Campos, desenvolveram uma série de poemas visuais e vídeo poesias em computador, buscando sempre uma isomorfia entre palavra e imagem.15Philadelpho Menezes foi encontrar na poesia visiva italiana, oriunda do Futurismo e suas preocupações com o movimento e a performance, a possível ponte que não houve no Brasil entre a poesia e a vídeo-arte experimentais:

No plano estético, além da grande e evidente diferença entre ambas (a presença da imagem visual na poesia visiva, enquanto a poesia concreta se dá dentro dos limites da verbalidade) é também facilmente observável a distinção no âmbito da construção formal. Enquanto a poesia concreta se funda numa construção racional e medida que fazia interagir formalmente as palavras do poema, a poesia visiva se pauta pela caoticidade da armação, numa proposital fórmula desestrutural, que se choca frontalmente com a índole construtivista do poema concreto. Se este se põe na vertente vanguardista de reconstrução sintática da linguagem, de reelaboração de modos composicionais precisos – a ponto de daí derivar um esquematismo na fase mais ortodoxa, que, afinal, é onde se pode entrever uma poética específica do concretismo – o poema visivo exibe uma faceta desorganizada que o alinha com uma vertente oposta, a das vanguardas irracionais.16

 

Um excelente exemplo do emprego do tempo como elemento constitutivo, suporte e assunto do trabalho é o recente A carta roubada, de Helena Trindade, que reverte o vídeo para virtualmente reconstituir um exemplar rasgado do livro de Edgar Allan Poe.

Mente como meio

Em sua tese de doutoramento sobre Deleuze, Peter Pál Pelbart afirma que, para o filósofo francês, o cinema serve “para revelar determinadas condutas de tempo”, construindo com tais condutas diversos tipos de imagens, que permitem a Pelbart entrever no filósofo um interesse mais radical, “ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento.” 17 Para Deleuze, a linguagem imagética do cinema revelaria, ou pelo menos indicaria, a concepção dopensamento em sua origem. A intuição de Deleuze aproxima-o das reflexões de Eisenstein – um dos precursores e maiores realizadores do cinema –, cuja teoria de montagem é, na verdade, uma teoria sobre a cognição humana. Em seu artigo “Cinema (interativo) como um modelo de mente”, Pia Tikka parte dos pressupostos de Eisenstein e das pesquisas da neurociência contemporânea para propor, dentro do contexto do cinema interativo, um interpretação da imagem em movimento como padrão de dinamismo mental:

Minha hipótese inicial parte da premissa de que a ação de enquadrar uma imagem é condicionada por uma interação conflitante entre a percepção antecipatória do cineasta e a percepção perceptiva da imagem, surgindo em decorrência desse conflito no processo de enquadramento de uma imagem padrões artisticamente significativos.18

Intrigada pela condição especular da vídeo-arte – estudada no trabalho de alguns de seus pioneiros, como Richard Serra e Vito Acconci –, que funde sujeito e objeto, artista e técnica, Rosalind Krauss, num instigante ensaio de 1976, propõe o narcisismo como o meio (medium) do vídeo. Ela explica:

Por um motivo, essa observação tende a criar uma fissura entre a natureza do vídeo e a das outras artes visuais. Pois essa declaração descreve condição mais psicológica do que física, e, embora estejamos acostumados a pensar em estados psicológicos como assuntos possíveis das obras de arte, não pensamos na psicologia como constituinte de seu medium. Por seu lado, o medium da pintura, da escultura ou do filme tem muito mais a ver com os fatores materiais e objetivos, específicos de uma forma particular: pigmentos cobrindo superfícies, matéria estendida ao longo do espaço, luz projetada através do celulóide em movimento. Isto é, a noção demedium contém o conceito de objeto-estado, separado do próprio ser do artista, pelo qual suas intenções devem passar.
O vídeo depende – como tudo que se queira experimentar – de um conjunto de mecanismos físicos. Então, talvez seja mais simples dizer que este dispositivo – em seus níveis presentes e futuros de tecnologia – compreende o medium da televisão e nada mais acrescentar. Entretanto, no contexto do vídeo, a facilidade de defini-lo nos termos de seus mecanismos não parece coincidir com a exatidão; e minhas experiências pessoais a esse respeito continuam a me instigar ao modelo psicológico.19

Krauss foi discípula de Greenberg, e parece ter herdado dele as preocupações em relação ao meio. Com efeito, como vimos no capítulo 2 (“Alguma rotação”), é sintomático que Greenberg tenha encontrado grandes dificuldades em definir qual seria a especificidade da poesia, instaurando para ela um meio essencialmente psicológico e sub ou supralógico, e percebendo uma inversão de sentidos entre poesia e pintura (esta sim de seu interesse):

Seria conveniente por um momento considerar a poesia “pura”, antes de passar à pintura. A teoria da poesia como encantamento, hipnose ou droga – como um agente psicológico, portanto – remonta a Poe e, em última instância, a Coleridge e Edmund Burke, com seus esforços para situar o prazer da poesia na “Fantasia” ou “Imaginação”. Mallarmé, contudo, foi o primeiro a basear nessa teoria uma prática consistente de poesia. O som, ele concluiu, é apenas um auxiliar da poesia, não o próprio meio; além disso, a poesia hoje é sobretudo lida, não recitada: o som das palavras é parte de seu significado, não aquilo que o contém. Para livrar a poesia do tema e dar plenos poderes à sua verdadeira força afetiva é necessário libertar as palavras da lógica. A singularidade do meio da poesia está no poder que tem a palavra de evocar associações e conotar. A poesia já não reside nas relações das palavras entre elas enquanto significados, mas nas relações das palavras entre elas enquanto personalidades compostas de som, histórias e possibilidades de significado. […] O poeta escreve não tanto para expressar como para criar algo que vai operar sobre a consciência do leitor, não o que comunica. E a emoção do leitor derivaria do poema como um objeto único e não dos referentes externos ao poema. […] No caso das artes plásticas, é mais fácil isolar o meio e, por conseguinte, pode-se dizer que a pintura e a escultura de vanguarda atingiram uma pureza muito mais radical do que a poesia de vanguarda. […] A pintura ou a estátua se esgota na sensação visual que produz. Não há nada para identificar, associar ou pensar, mas tudo a sentir. A poesia pura luta pela sugestão infinita; as artes plásticas puras, pela mínima.20

Tal entendimento parece dialogar com as ponderações de Claude Esteban em seu Crítica da razão poética:

Chegou-se a declarar que todo empreendimento artístico constituía uma experiência de mediação entre o material bruto, esse dado do tangível, e a figura secundária que nos restitui dele. Mas a poesia, […] a poesia, por sua vez, opera não sobre o concreto – matéria, cor, sonoridade –, mas já no interior desse meio mediado constituído pela linguagem. É a essas palavras dissociadas do real, a essa estrutura abstrata de signos que o poeta deve, precisamente, restituir a virtude de imediatidade, e mais ainda, de presença real. Mas tal empreendimento de encarnação será na verdade possível dentro do sistema verbal – e o poeta não terá de considerar falacioso esse horizonte que o solicita, onde palavra e presença se equivalem num ato demiúrgico que inventaria ao mesmo tempo a coisa tangível e seu nome? 21

Se, como quer o pensador e poeta franco-espanhol, o poeta já opera com algo distanciado da realidade, ou seja, com algo já criado, a linguagem (verbal), sua arte é, desde um ponto de vista, o duplo de um duplo, sombra de uma sombra, sonho de um sonho: espelho; ora, a condição especular da vídeo-arte é justamente o que Krauss encontra como fundamento de seu narcisismo. Talvez tenha sido um insight relacionado a esta condição especular da (de toda?) linguagem que tenha levado o artista multimeios Arthur Omar (apresentado em seu site como fotógrafo, cineasta, vídeo-maker, músico, poeta) a afirmar que “o verdadeiro ambiente da arte é a mente”.22 Questões de linguagem e identidade são problematizados pelos meus vídeos Ímpar e Tango, que fazem uso da minha própria imagem.

Isomorfia e enjambement

Em seu ensaio “Extremidades do vídeo: novas circunscrições do vídeo”, Christine Mello, empregando conceitos como ‘extremidades do vídeo’ e ‘infiltrações semióticas’ (a capacidade dos signos de operar em zonas de fronteira), analisa alguns processos de compartilhamento do vídeo na arte contemporânea. Segundo a autora, tal perspectiva expandida do vídeo “implica em observar os seus trânsitos na arte como interface”, entendendo interface como ‘fronteiras compartilhadas’ que colocam o vídeo em contato com “estratégias discursivas distintas ao meio eletrônico e interconectam múltiplas ações criativas em um mesmo trabalho de arte.”23 Entre outras, tais ações incluem, por exemplo, o videoclipe, a vídeo-dança, a vídeo-instalação, a vídeo-performance, a vídeo-poesia, a vídeo-escultura e o vídeo-teatro. Diz Arlindo Machado sobre a especificidade do vídeo:

Sabemos, pelo simples exame retrospectivo da história desse meio de expressão, que o vídeo é um sistema híbrido, ele opera com códigos significantes distintos, parte importados do cinema, parte importados do teatro, da literatura, do rádio e mais modernamente da computação gráfica, aos quais acrescenta alguns recursos expressivos específicos, alguns modos de formar idéias ou sensações que lhe são exclusivos, mas que não são suficientes, por si sós, para construir a estrutura inteira de uma obra. Esse talvez seja o ponto chave da questão. O discurso videográfico é impuro por natureza, ele reprocessa formas de expressão colocadas em circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores, e sua ‘especificidade’, se houver, está sobretudo na solução peculiar que ele dá ao problema da síntese de todas essas contribuições.24

Referindo-se à hibridização entre o vídeo e a criação textual (ou seja, a literatura, a poesia), Machado observa que “uma das conquistas mais interessantes da vídeo-arte foi justamente a recuperação do texto verbal, a sua inserção no contexto da imagem e a descoberta de novas relações significantes entre códigos aparentemente distintos”.25 No Brasil, foram os concretistas e seus herdeiros que mais investigaram essas relações – especialmente Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, mas também Júlio Plaza (em parceria com Paulo Leminsky e outros poetas) e, mais recentemente Arnaldo Antunes e André Vallias – criando poemas iconizados, ou poemas dotados de qualidades cinemáticas, privilegiando sempre uma unidade rítmico-formal, uma isomorfia: palavra e imagem em comunhão íntima. É justamente contra tal isomorfia que prega o poeta e filósofo brasileiro contemporâneo Alberto Pucheu. Ao estudar os “institutos poéticos” propostos por Agamben, Pucheu afirma a fissura, a falha, inerente à origem de toda linguagem, e para a qual a poesia (assim como a filosofia e o pensamento crítico) aponta, mantendo-a aberta:

enquanto o concretismo viu no verso “a unidade rítmico-formal” e, assim, sua morte, Agamben lê no enjambement o abismo entre o sintático e o semântico, entre o sonoro e o sentido, lê na cesura, algo portanto no interior de um mesmo verso, uma interrupção provocadora do mesmo abismo entre o significante e o significado e, assim, algo onde a unidade já se mostra cindida, impossível. nele, os institutos poéticos, formais, estruturais, nos fazem retornar constantemente ao lugar de nascimento do poema, obrigando-nos a realizar novos e novos renascimentos. o poema é aquilo que não quer de modo algum se afastar de sua origem.26

A sutil e eficaz exploração do descompasso entre poesia e imagem é a força por trás dos trabalhos – dos poemas – em vídeo Quando fui carpa e quase virei dragão(2007) e Algumas perguntas (2005) da artista visual Brígida Baltar. Mais distanciado da tradição concretista, a vídeo-arte parece ser capaz de resgatar a poesia – em um campo ampliado – de uma forma mais contemporânea, eliminando preceitos e dogmas (como o isomofirsmo) que ainda encarceram a poesia intersemiótica produzida a partir do campo da poesia.

André Sheik – Eu sou mais do que aparento

 

Ricardo Domeneck – Garganta com texto (2006)

 

Laura Erber – História antiga

 

Renato Resende – Ímpar e Tango

 

Guilherme Zarvos – Muro burro

 

Domingos Guimaraens – Gema

 

Helena Trindade – A carta roubada

 

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.

NOTAS

1 DOMENECK, Ricardo. “O tal de voco do verbo visual”. http://ricardo-domeneck.blogspot.com, entrada de 24/06/2008. Ele continua: “É com alegria que podemos observar a maneira como alguns poetas brasileiros estão passando a aproveitar-se da era digital para retornarem a um trabalho pluralista com a poesia, experimentando com vídeo e poesia sonora, gravando leituras e performances, colaborando com músicos profissionais. Nada há de “vanguardismo” neste fenômeno, mas do testemunhar do nascimento de suportes tecnológicos que permitem ao poeta RETORNAR às características dormentes do fazer poético.”

2 SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 21.

3 Ver PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale.

4 Para Haroldo de Campos, “Na poesia de vanguarda, o poeta, além de exercitar aquela função poética por definição voltada para a estrutura mesma da mensagem, é ainda motivado a poetar pelo próprio ato de poetar, isto é, mais do que por uma função referencial ou outra, ele é complementarmente movido por uma função metalingüística: escreve poemas críticos, poemas sobre o próprio poema ou sobre o ofício do poeta.” CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp. 152-153.

5 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, s/d. O autor, no entanto, deixa claro que “qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora.”, pp. 127-128.

6 REES, A. L. A history of experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999, p. 34. No original: “Shklovsky’s 1927 essay ‘Poetry and Prose in the Cinema’ states that prose and poetry in film are ‘two different genres; they differ not in their rhythm – or rather, not only in their rhythm – but in the fact that in the cinema of poetry elements of form prevail over elements of meaning and it is they, rather than the meaning, which determine the composition.”

7 Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. In: Revista Azougue 10. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.

8 COCCHIARALE, Fernando. “Sobre filmes de artista”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 11.

9 Para constatar a presença determinante de poetas na história do cinema experimental e do vídeo nos EUA e na Europa, tanto como produtores quanto como inspiradores ou interlocutores, ver REES, A. L. A history of Experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999. Por exemplo, discorrendo sobre as origens da vanguarda americana no pós-guerra, Rees diz: “Other film-makers were poets and writers: Sidney Peterson, Willard Maas, Jonas Mekas, Brakhage, who broke most radically with narrative to inaugurate abstract montage, was strongly influenced by Pound and Stein on compression and repetition in language. [ ] It rehearsed the old argument between film-as-painting and as camera-eye vision, each claiming to express film’s unique property as a plastic form. By turning to the poets and writers of experimental modernism – Pound, Eliot, Joyce, Stein – the film-makers distanced themselves from the direct drama and narrative tradition in realism.”, pp. 58-59.

10 Ver MACHADO, Arlindo. “As linhas de força do vídeo brasileiro”. In: MACHADO, Arlindo (org). Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

11 PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 30.

12 Ibid, p. 31.

13 A poesia concretista foi no fim das contas bem mais verbivisual do que voco. Diz o plano-piloto da poesia concreta, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, e publicado originalmente na revista Noigrandes 4, 1958: “dado por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente cultural. espaço qualificado: estrutura espacio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido específico (fenollosa/Pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógica-discursiva – de elementos. ‘Il faut que notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideógraphiquement au lieu de analytico-discursivement’ (Apollinaire). einsenstein: ideograma e montagem.” In: AMARAL, Aracy (org). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.

14 Regina Vater, no entanto, incluiu uma foto de Hélio Oiticica vestindo um parangolé na exposição “Brazilian Visual Poetry”, da qual foi curadora, no Mexic-Arte Museum, em Austin, Texas, 2002.

15 Para um excelente estudo sobre alguns destes trabalhos ver: ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual Vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

16 MENEZES, Philadelpho (org). A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994, pp. 204-205.

17 PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.27.

18 TIKKA, Pia. “Cinema (interativo) como um modelo de mente” Tradução de Renato Rezende. In: MACIEL, Kátia (org). Transcinema. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

19 KRAUSS, Rosalind. “Vìdeo: a estética do narcisismo”. Tradução de Rodrigo Krul e Thais Medeiros. Arte & Ensaio. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ. Ano XV, número 16, julho de 2008. pp 144-157

20 GREENBERG, Clement. “Rumo a mais um novo Laocoonte”. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. In: FERREIRA, Glória e COTRIM DE MELLO, Cecília. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 54-55.

21 ESTEBAN, Claude. Crítica da razão poética. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 187.

22 http://www.museuvirtual.com.br/arthuromar/. Seu trabalho Mola cósmica é uma escrita visual, em que frames de um vídeo se tornaram um alfabeto.

23 MELLO, Cristine. “Extremidades do vídeo: Novas circunscrições do vídeo”http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/17772/1/R0788-1.pdf

24 MACHADO, Arlindo. Apud RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1998, pp. 156=157.

25 Ibidem p. 157.

26 PUCHEU, Alberto. “Entrevista de uma pergunta só”. Entrevista a Francisco Bosco. Inédito.

Poesia 00: nota de apresentação e mini antologia | de Italo Moriconi

Cena mutante

Os anos passam e as gerações poéticas se sucedem, como as ondas no mar. Ao grupo dos “novos”, logo se acrescenta o grupo dos “novíssimos”. Esteticamente, cada nova onda de poetas pode situar-se de maneira antagônica ou em continuidade direta com a onda anterior. Tudo indica que a onda da geração 00, sem deixar de representar o resultado e a consequência da cena poética brasileira dos anos 90, traz algumas tendências ou novidades que possivelmente uma pesquisa mais extensa fixará como um perfil. Será certamente um perfil diversificado – a pluralidade de dicções e orientações é um fato. A era dos “ismos” dominantes acabou. No lugar dela, entramos numa era em que prevalecem os focos aglutinadores, os núcleos e laboratórios poéticos que acolhem e onde se gesta a poesia nova.

O estopim que motivou a seleção da presente amostra foi o lançamento em 2007 de três poetas novíssimos pela prestigiosa coleção Ás de Colete, empreendimento conjunto das editoras 7Letras e CosacNaify. Por “novíssimo”, entenda-se poeta estreado em livro a partir do ano 2000 ou pouquíssimo antes – 99, 98. Dos três novíssimos lançados naquela ocasião, Marília Garcia e Ricardo Domeneck já tinham estreado em livro anteriormente, ela com uma plaquete na coleção Moby Dick, da 7Letras, em 2001, ele na coleção de poesia da Editora Bem-Te-Vi, em 2005. No caso da poeta Angélica Freitas, trata-se de estréia tout court. Esse grupo está ligado à revista Modo de Usar, lançada em 2008 como uma espécie de costela do conglomerado 7Letras/Cosac.

Pode-se dizer que os três lançamentos nucleiam boa parte das novas tendências reconhecíveis na cena poética brasileira. Mas para efetivar a seleção solicitada, ampliei um pouco meu universo de mapeamento e pesquisa, aproveitando para atualizar-me minimamente em relação à produção dos novíssimos. Assim, com a inestimável colaboração e interlocução de Luciana di Leone (mestranda de Literatura Brasileira na UERJ), fiz uma primeira leitura – em alguns casos, releitura – de um número expressivo de livros de novíssimos, constantes dos catálogos e coleções das mencionadas editoras, a que acrescentei os lançamentos da editora Azougue e mais alguns livros avulsos espalhados pela minha caótica biblioteca, que há alguns anos não tenho tido tempo de arrumar. O objetivo foi não o de realizar uma antologia de “melhores”, nem mesmo uma antologia de “representativos”, mas apenas uma amostra de bons poemas escritos por novíssimos, marcando o momento da segunda metade dos anos 00. Bons poemas no sentido de manifestarem práticas do poético como prospecção de linguagem. Eu mesmo fiquei surpreso com o que considero ser o alto nível decantado ao fim e ao cabo da sempre precária escolha. Ao leitor, cabe o veredito final.

Em ritmo de esboço apressado, identifico como traço interessante da poesia 00, em primeiro lugar, certo desafogo em relação ao formalismo típico da poesia nova da década anterior. Formalismo esse que se traduzia pela exploração ainda minimalista da elipse poética, ou pela pura e simples volta ao soneto e às formas fixas e metrificadas da tradição mais antiga. Não se trata agora, como tinha sido no caso da geração “marginal” dos anos 70, de um desafogo na linha do “relaxamento” e do coloquialismo, embora este se faça presente de maneira mais estetizada. Trata-se, sim, dentro ainda dos moldes culturalizados que definiram o padrão de exigência próprio dos anos 90, da presença de um outro modo de tratamento da elipse poética, no que se poderia chamar de “desestruturação controlada”. Esse tipo de poesia mais desestruturada, desconstruída, associa-se à presença clara de mais discursividade, mais narratividade (fragmentária), frequentemente obtida pela incorporação do conversacional, não pela simulação de uma interlocução (como em Ana C.), mas pela interpolação de fragmentos de diálogos no corpo do poema (ao jeito de Francisco Alvim). Observamos também que cada vez mais o poeta e a poeta brasileiros lançam mão de recursos alegóricos e alusivos, denotando maior convivência com tradições poéticas estrangeiras. Narrar de maneira oblíqua. Costurar nas descosturas.

Em paralelo com o viés por assim dizer erudito e sofisticado que o grosso da geração 00 pega da anterior, observamos também, e com alívio, que volta a existir espaço para um tipo de poesia mais abusada, mais paródica, renovando-se a eterna vertente iconoclástica em relação aos também eternos ícones literários, como o leitor poderá ver nos poemas de Angélica Freitas e Douglas Diegues. O traço marcante aqui é que quando o poeta novíssimo ironiza a alta cultura, o faz menos em cima de questões propriamente estéticas e mais através da transformação dos grandes autores em personagens de um drama. Tal reação realça pelo avesso o caráter fetichista de toda e qualquer assinatura poética. Escritores consagrados viram personagens-máscaras de uma comédia mental (no caso de Angélica) ou social (no caso de Douglas).

Outro traço marcante – a meu ver instigante, embora perturbador – da novíssima poesia brasileira é a desestabilização da língua brasileira, que se mostra aqui contaminada por línguas estrangeiras. Fazem-se presentes as línguas dominantes na cultura erudita – o inglês, o francês, até o alemão (vide Domeneck). Mas o dado forte é o mix com o espanhol, chegando ao ponto de termos um autor, Douglas Diegues, que assume o portunhol como língua bandida de expressão poética, na linha experimental de um Wilson Bueno.

Se focalizamos o levantamento de tendências com base no que foi anteriormente postulado, de que a cena poética hoje se estrutura a partir de núcleos de aglutinação, constatamos que a presente amostra apóia-se em duas vertentes principais: a vertente 7Letras e a vertente Azougue. Como se sabe, em ambas temos a feliz conjunção entre revista de poesia (Inimigo Rumor e Azougue) e editora de poesia nova. As duas fazem sua captação de recursos poéticos em âmbito nacional, buscando escapar das limitações impostas pela centralização no eixo Rio-S. Paulo. Os poetas 00 surgidos no território Inimigo Rumor fazem parte de uma história originada nos anos 90 que está à espera de ser contada de maneira sistemática. Essa história poderia ser contada tendo por eixo narrativo os embates contemporâneos entre formalismo e desestruturação, formalismo e discursividade ou narratividade, alta e baixa cultura, sublimação e dessublimação. Já os poetas surgidos na área da Azougue apontam, por um lado, para uma vertente mais “cósmica” e “naturalista” (e até xamânica, na linha de Roberto Piva) da poesia brasileira, assim como acolhe-se nela o resultado da atuação do grupo carioca CEP 20000, cujas raízes remontam aos anos 80, através da presença de gurus como Chacal e Guilherme Zarvos. No caso da área Inimigo Rumor, os gurus identificáveis são Carlito Azevedo e Anibal Cristobo.

Mas é claro que quem eu estou chamando aqui de guru não quer ser guru. Deixemos pois suas figuras momentaneamente de lado e assinalemos que, sobretudo, destaca-se nos poetas aqui selecionados o caráter autônomo, original e singular de suas vozes, numa cena que já pouco ou nada tem a ver com o antigo panteão modernista dos Drummonds e Cabrais.

Antologia

Marília Garcia (20 poemas para o seu walkman)

Aquário

tem o pânico das algas marinhas
quando acorda de frente para o estádio.
o quarto é um aquário
com setas submersas de
sol e seu corpo filtrado
pela luz do insulfilm
tem o contorno
de um magnetismo
inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não
sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com
uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana

Inferno musical

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
– é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

II.
– ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.

Laura Erber
(Insones)

arroubos

para Aruac

…ela te escreverá toda noite quando as frases do dia entre duas pálpebras brilharem no rigor de
cada sílaba é o verão desabotoando sem a gente perceber que já bem
no centro de havana comprando sorvetes derretidos e caseiros ou também por um
senhor de nariz fino asas feridas … a dónde crees que te va a llevar todo ese
aprendizaje, chica? numa viagem a céu aberto sucessivos alejamientos y
dissolvências nos llevan a ver la isla desde el mar uma notícia que envolva muita
gente el desliz que compreende su figura el vencimiento de la distancia nessa noite
teus olhos ilhas envoltas por água e sal cuando el espacio se contrae para parir la
llegada de uma fuerza sem veladura sem artifícios a pura luz da rua e o ritmo de
tropeços multitud de sombras lembranças onde caminhas cuidadoso com poder
delicado de revê-lo o sorvete se desfaz mas as respostas são perguntas retorcidas aos quarenta
graus em la habana e também no rio enquanto entre nós o copo de
aguardente espera a mão alcançar um fio de cabelo e as bocas se calarem num
encontro passageiro afinal a dónde te va a llevar todo ese
aprendizaje…………………………………………….

Sérgio Cohn
(Horizonte de eventos)

mnemo.

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.

Angélica Freitas
(Rilke Shake)

na banheira com gertrude stein

gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude
stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público

gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar
atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas

mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum
debaixo d’agua eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha

e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba
a toalha

e sai correndo pelada a bunda enorme descendo a
escada e ganhando as ruas de st.-germain-des-prés

epílogo

gertrude stein cabelo dos césares

alice olhos negros de gipsy

josephine baker djuna barnes

nós cinco na sala de espelhos

eu era alice e djuna era josephine

gertrude stein era gertrude stein era gertrude stein

na saída gertrude me puxou pelo braço

e me disse muito zangada: não achei graça

no que você publicou nos jornais

me derrubaria como um tanque da wehrmacht

não fosse por ezra que passeava ali seu bel esprit

lésbicas são um desperdício ele disse

você já ouviu falar em mussolini?

Ericson Pires
(Cinema de garganta)

Canto de abertura de caminhos

(oju-oritá e /ou conversas de Merleau-Ponty)

Quando você abre os olhos

Você pode ver tudo
Pensar que vê tudo
Tudo pode ser visto
Ver-se em nada que é visto

Quando você abre os olhos

Pode tentar pegar coisas com olhos
Pegar pensamentos nos olhos
Partir do momento onde os olhos
Param de saber que são olhos

Quando você abre os olhos

As coisas perdem os nomes
O tempo é sempre presente
E o presente são os nomes
Nomes do presente

Fluxo
Tempo

Você abre os olhos e vê

Você está

Jardins…

Ricardo Domeneck
(Carta aos Anfíbios)

De madrugada, de manhã

1.

Acordar no meio da noite
com a cabeça do outro
sobre o peito,
travesseiro,

maré e barco;

permanecer desperto, à deriva
o resto da noite, dormentes
e doloridos os membros,
a circulação cindida,

sem desejo de resgate

e sussurrar-lhe ao ouvido:
unsere knochenknospen schnurren und schnorrem,
nossos brotos d’ossos ronronam e imploram,
como em qualquer hino,

meu querido.

2.

Eu desconheço quanto

deserto custa
uma epístola
aos coríntios;

se a cegueira
no caminho
precede sempre

(e vale)

a cidade
de destino;

se na garganta
um novo cântico
dos cânticos aguarda

ou se quatorze anos
de fôlego preso
hidratariam um soneto;

eu falo baixo
porque deixá-lo

dormir meia-hora
a mais é minha forma

de acariciá-lo
logo de manhã

que, envolto em lã,
ignora o abalo

sísmico
em mim:

um bocejo
seu.

(a cadela sem Logos)

Décima Faixa – 0:55
(em “Poema começando ´Quando’”)

Algo amadurece à distância
mas aproxima-se aos
poucos para poucos
antes de todos
perceberem que
do chão à copa
o espaço é da queda.
Tudo deve ser documentado
é uma pergunta do processo
que se inicia no terror
para alcançar a beleza,
o risco do esquecimento
o primo leve da memória,
o preço breve do ato.
O trabalho árduo de convencer
a fruta
de que já se encontra madura.
Com os dentes.
Tempo movendo-se em volume
alto, duração contínua
segundo a segundo
para depois
ser sujeito
às elipses da atenção
da história.
A mão que escreve
pode querer-se à margem,
silenciosa, mas seu
tom de voz ecoa
por todos os cantos.
Camuflagem falha.
Equívoco da tentativa
de uma “epistemology
without a knowing
subject”.
Toda presença
é central mas pode
sabotar-se
melhor como ventríloquo
do que invisível.

Pedro Cesarino
(Oceanos)

Se chamo a árvore de “espelho”,
o faço não por capricho, mas por reconhecer nos galhos
certos traços meus que em algum momento
se misturaram à trama das coisas.

Se chamo o céu de “elefante absurdo”
é porque não o consigo abarcar
com nenhuma imagem melhor.

Ele escapa por todos os lados feito água arredia,
que aliás eu trato por “cristal”, o que é um paradoxo,
pois as pedras são essência irremovível,
enquanto a água, tal como o céu, escorre
inevitavelmente pelas bordas do mundo.

Mas chamo-a assim pois é na realidade
à substância do olho que me refiro:
esse prisma de carne
banhado pelo líquido de luz.

Se chamo a noite de “pássaro”
é porque não há pássaros na noite,
a não ser por alguns solitários
voando anônimos no escuro.

Os pássaros eu não trato por nenhum
outro nome, a não ser “pássaros”.
Daquilo que voa, o que falar?
Como chamar?

Douglas Diegues
(uma FLOR na solapa da MISÉRIA – poemas em portuñol)

le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio
parecia un idiota cruzando la tarde sin sentido
bebia de la imundície sin problemas
porque desde crianza estaba acostumado a beber de la imundície terrena

sabia como convivir com la imundicie que produce el hombre.
había ainda en sus ojos un resto de brilho feliz de infância perdida
escalando la planicie de los dias
com su muleta de alumínio non precisaba más nin nombre

parecia que había salido de algun libro de Manoel de Barros
un personagem de carne gosma esperma escama sangre osso misterio
escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una planície del lado paraguayo escalar una montanha del lado paraguayo era escalar una planície del lado brasileiro

em ambos los lados de la frontera que implacabelmente apodrece
ninguém consigue escalar planicies tan bién como ele

 

Por que escrebo?
Escrebo para ficar menos mesquinho
belleza de lo invisible
non tem nada a ver com berso certinho

en el culo de qualquer momento
escreber pode ser mais que apenas ir morrendo
la belleza de lo invisible
non se pudre com el tempo

la bosta dos elefantes seca verde clara dura
es altamente inflamáble – dá uma llama bem pura
nunca se termina de aprender a transformar bosta em luz y
otros desenganos –
todos fomos bellos quando teníamos 4 anos

hoje la maioria solo se preocupa com sus narizes
su esperma, su bosta, su lucro, sus missíles

 

Rodrigo Magalhães
(O legado de Beltrano)

Deus e João no mundo cão

Primeiro, a emboscada e o chão era de barro.

Não deu para ver se alvos ou mestiços.
Mas não eram machos.

Tavam numa espreita, dessas em que o sujeito mira acocorado,
da qual só restam dois: o estampido e o baleado.

Cabul,
era míssil nomeando a cidade.

Após o acontecido, comi um tanto da poeira.
Que era do chão. Que era de barro.

E só havia um sol de fazer ouro na retina,
que, entre os gumes de minha sina, alastrava o seu mormaço.

Era lá, à espreita
pelo Tomahawk em assovio
– parecia o simum no canudo,
alguém dizia.

À espera do suspiro que nos finda,
cobriu-me a certeza de alguns nomes sobre a força dos cajados.
Foi o coronel. Ele honrou o seu gado, a sua família.
Soprou a minha vida.

Alguém se persignava.

 

*

1 Texto e antologia originalmente publicados na revista Margens/Margenes, n. 9-10, Belo Horizonte, 2008, que gentilmente cedeu os direitos de publicação em Z.

 

União Européia e Multiculturalismo | de Eduardo Gomes

1. Introdução

O elemento cultural sempre esteve presente na história da humanidade. Com a evolução da sociedade internacional, especialmente com a construção de valores comuns, ligados ao Estado, a cultura passou a ser entendida e concebida como um elemento de agregação dos povos, das nações e do próprio Estado. Foi na Revolução Francesa, 1789, que os elementos culturais – entendidos como o conjunto de expressões, adotadas pelos indivíduos em uma determinada sociedade, como é o caso do idioma – passaram a ser considerados como elementos importantes para a consolidação do Estado-Nação, de forma a justificar a vinculação dos súditos a um determinado Estado, através do conceito de nacionalidade.

A nacionalidade é aqui entendida, como o vínculo jurídico e político que une o cidadão a um determinado Estado. Durante muito tempo a livre expressão cultural esteve subjugada aos interesses políticos e sociais dos soberanos que, através do estabelecimento de um ordenamento jurídico único, de natureza constitucional, impunham os valores culturais que deveriam ser seguidos pelos súditos do Estado. Era o período em que o conceito de soberania era entendido com base no poder supremo.

Com o decorrer da história, a eclosão das duas grandes guerras mundiais, o período do socialismo e da própria Guerra Fria, o seu término na década de 90, o advento do desenvolvimento tecnológico, o florescimento do comércio internacional e a própria formação dos blocos econômicos, o conceito de soberania é relativizado. Com a relativização do conceito de soberania surge a possibilidade de os indivíduos manifestarem os seus valores culturais, notadamente porque, nos dias de hoje, vivemos em uma sociedade pluralista. A referida sociedade pluralista é representada, neste artigo, na União Europeia, que contempla vinte e sete Estados em um espaço supranacional, com idiomas e cultura diversa.

O presente artigo, resultante de pequena parte da pesquisa de Pós-Doutoramento realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, junto ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea, e que abordou o tema da Democracia e dos Direitos Fundamentais na União Europeia: a questão do multiculturalismo, busca examinar as relações culturais dentro daquele bloco econômico.

2. O Espaço Supranacional

Definir o espaço supranacional, no qual convivem inúmeras culturas, povos e nações, com seus costumes, tradições, valores e línguas diferentes, não é tarefa fácil, principalmente quando se trata de abordar a União Europeia, bloco econômico de natureza supranacional, regido por um ordenamento jurídico próprio, que é o Direito Comunitário, e que busca harmonizar e compatibilizar os interesses existentes entre os vinte e sete Estados-membros. Vale lembrar que, tecnicamente, a União Europeia representa mais do que um bloco econômico, mas uma verdadeira comunidade política, instituída através do Tratado de Maastrich, 1992, e como tal, as respectivas instituições comunitárias atuam em áreas que, anteriormente, eram de competência exclusiva dos Estados. Disso surge o Direito Comunitário, como direito peculiar e singular, tendo a sua origem a partir do Direito Internacional Público, sendo ao mesmo tempo, autônomo e independente frente ao Direito Interno e ao Direito Internacional. A peculiaridade do Direito Comunitário deve-se aos seus princípios, advindos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. São eles:

a) Aplicabilidade direta: assevera que a normativa comunitária, uma vez publicada no Diário Oficial das Comunidades Europeias, já produz efeitos por si só e não necessita ser internalizada ou transposta para o ordenamento jurídico nacional, segundo os requisitos estabelecidos nas Constituições de cada Estado-membro;
b) Primado do Direito Comunitário: a normativa comunitária, que deve ser aplicada em todos os ordenamentos jurídicos dos Estados Membros, possui a primazia em relação ao Direito Interno o que, na prática, significa dizer que o Direito Comunitário, em caso de conflito com o Direito Interno, sempre deverá prevalecer;
c) Uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito Comunitário: como o referido Direito possui aplicabilidade direta, e é dotado, ainda, de primazia frente ao Direito Interno, certo é que o mesmo possui aplicação nas vinte e sete jurisdições dos Estados Membros. Para que haja uma certa harmonia, em relação a sua aplicabilidade, de forma a garantir uma segurança jurídica em relação a sua observância, o Direito Comunitário deverá ser interpretado e aplicado de maneira uniforme pelos juízes nacionais.1

Junto ao Direito Comunitário se deve agregar o conceito de supranacionalidade que, em termos técnicos, significa um poder acima dos interesses dos Estados e que legitima às instituições comunitárias a adoção de decisões que levem em conta os interesses da União Europeia, apesar de, muitas vezes, contrariarem os interesses dos Estados. A justificativa para a aplicação das referidas políticas comunitárias decorre do próprio sentimento de unidade, dentro do processo de integração, pois, em determinadas políticas, busca-se preservar o todo, respeitando-se, é claro, as diferenças, principalmente culturais, religiosas e linguísticas de cada nação, o que é a essência do multiculturalismo, conforme será visto adiante. As instituições comunitárias somente atuarão dentro de suas competências, estabelecidas pelos Estados através dos respectivos tratados institucionais: Tratado de Roma, 1957 2, e subsequentes alterações, estando em vigor, atualmente, o Tratado de Nice, 2001.3

Assim, ao instituto da supranacionalidade há de se agregar o conceito de delegação de competências legislativas, significando dizer que são os Estados, por um ato de soberania, delegadores de determinadas competências legislativas, em prol das instituições comunitárias, a fim de que as mesmas legislem em certas matérias, as quais antes eram de competência exclusiva dos Estados-membros da União Europeia. Ao se comentar sobre o instituto da delegação de competências soberanas, vale destacar a existência de uma divisão no âmbito de atuação legislativo: determinadas matérias, como é o caso da política monetária e do euro, são delegadas de forma a que as instituições comunitárias legislem exclusivamente sobre o tema. A referida alteração, na política dos Estados, ocorrida a partir do ano de 1998, quando se iniciou o projeto de adoção do euro4, representa uma grande mudança cultural nos valores dos cidadãos comunitários, porque perdem, de uma hora para a outra, um dos referenciais da nação, ou seja, a prerrogativa de adotar, livremente, as políticas macro-econômicas, além de ficarem adstritos às políticas comuns da União Européia.

Ao comentar o modelo de divisão de competências, as de natureza concorrente possibilitam que, tanto as instituições comunitárias, como os Estados, legislem sobre o tema, hipótese na qual prevalecerá a legislação comunitária, em caso de esta confrontar com a adotada pelo Estado. Exemplo a ser mencionado é o tema das políticas culturais, porque como se trata de um interesse de todo o bloco econômico, é um dos objetivos comunitários a preservação dos valores de cada nação, povo e minoria, assim, as políticas e normativas adotadas, tanto pelos Estados como pela União Europeia deve preservar os referidos interesses, que não são somente nacionais, mas acima de tudo, comunitários. No tocante à execução das políticas comunitárias, naquelas matérias de competência concorrente, a preferência para a adoção das mesmas será sempre do Estado-membro o qual, enquanto ente mais próximo de seus jurisdicionados, sabe com maior clareza sobre as políticas a serem adotadas para garantir a aplicação dos referidos direitos.

Somente na hipótese de o Estado não conseguir alcançar os objetivos pretendidos, que em verdade não são interesses de um Estado, mas de toda a União Europeia (e são um tema de interesse comum), é que as instituições da União Europeia atuarão, de maneira subsidiária e proporcional, com a finalidade de executar as referidas políticas e alcançar o fim comunitário. Trata-se da aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, previstos no artigo 5º do Tratado de Nice, 20015. Aliás, o princípio da subsidiaridade, verdadeira pedra de toque do ordenamento jurídico supranacional, tem como função primordial aproximar o cidadão das políticas comunitárias, de modo a inseri-lo no seio da integração, criando-se, no espaço comunitário, uma verdadeira “Europa dos cidadãos”.6

Assim, por exemplo, um dos objetivos da União Europeia é o respeito às diferenças e aos valores culturais. Trata-se de matéria de competência concorrente entre as instituições da União Europeia, e os Estados. Caberá, primordialmente, ao Estado, enquanto ente menor, executar as referidas políticas para a proteção de uma minoria linguística. Somente se o Estado não lograr êxito de atingir o fim perseguido é que as instituições comunitárias poderão adotar políticas, de maneira subsidiária e proporcional, para suprir a omissão do Estado e garantir o interesse supranacional.7

De acordo com o estágio atual da União Europeia, de Mercado Comum e da União Monetária, pode-se afirmar a existência do rompimento do dogma referente ao conceito clássico de soberania, devido às próprias políticas que o processo de integração engloba, ou seja, a livre circulação dos quatro fatores de produção, bens, pessoas serviços e capitais, agregando-se a existência de uma moeda única: o euro. Torna-se necessário que as instituições comunitárias, portanto, adotem as políticas com vistas a atingir o interesse supranacional, avançando em matérias, políticas e competências legislativas que antes eram de atribuição exclusiva dos Estados.

3. Cultura e Evolução do Estado Nacional na Europa

Com o aprofundamento cada vez maior do processo de integração europeu, parte-se para a construção de uma verdadeira arena supranacional, na qual convivem vinte e sete Estados-membros, com culturas, costumes, línguas e tradições diferentes. Uma das grandes dificuldades e dilemas da União Europeia por consequência, é o de buscar certa compatibilização e harmonia entre as culturas da arena supranacional, de forma a, na medida do possível, ser possível preservá-las.

Quanto mais aprofundado for o processo de integração, maiores serão os conflitos de ordem cultural a ser enfrentados pelos povos, colocando-se em cheque o próprio conceito de Estado-Nação, ante à relativização do conceito de soberania, ficando os Estados fragilizados frente à adoção das políticas comunitárias. Como forma de buscar a proteção dos próprios valores locais, dentre eles os culturais, os Estados passam a voltar suas políticas para seus interesses soberanos, deixando de lado os interesses supranacionais e fazendo com que, equivocadamente, prevaleçam os seus próprios interesses.8

Verifica-se a clara dicotomia entre os interesses supranacionais e os soberanos, e a própria dificuldade em compatibilizá-los, pois quanto maior for o processo de globalização, na sociedade internacional, maior será o receio de os Estados perderem a sua soberania, o que justifica, ao menos, a volta aos conceitos clássicos de soberania. Como forma de melhor entender a dicotomia, importante examinar, embora com brevidade, a formação do Estado, a fim de se entender como o ordenamento jurídico do Estado-Nação, antes impositor da existência de valores culturais quase que únicos, transmutou-se para um embrião, quem sabe, de um futuro Estado supranacional, resultado do processo globalizante e do ressurgimento, com maior força, dos valores culturais que, agora, passam a conviver juntos na arena supranacional.

Para se compreender a construção da arena supranacional é preciso entender o momento histórico da construção do Estado moderno, cujo processo surgiu bem antes da Paz de Westfália, 1648, conforme assevera Luís Alexandre Carta Winter:9

A noção de um governo centralizado que satisfizesse, além das questões temporais, também as espirituais, e que representasse, simultaneamente, a idéia de uma unidade, com a queda do império romano, passou a ser a busca de uma constante. O próprio Corpus Iuris Civilis não deixa de ser fruto de uma idealização da unidade que havia na Roma Imperial. De fato, se for desdobrado o poder da pessoa do imperador, na época do Dominato, nota-se que ele era oprimo inter pares (primeiro entre iguais), princips senatus (líder do senado), pontifex maximux (supremo sacerdote) título, que depois, passa ao Papa, quando o cristianismo se torna a religão oficial do império, tribunicia potestas (poder de tribunoi da plebe), imperatur(governante, comandante, no serviço militar). (…) Com a invasão dos povos bárbaros, quebra-se a unidade do império, mas não a idealização dessa unidade, nem tão pouco desapareceu o poder espiritual e este se assentava na idéia de universalidade da religião católica, já que há só um Deus e, por isso, deve haver unidade em todas as coisas.

O conceito de soberania, por conseguinte, entendido como o poder supremo que, futuramente, garantiria a unidade do Estado, surgiu no Império Romano, e a Igreja católica, com a idéia da existência de um único Deus, contribuiu para a manutenção de determinados valores universais que, posteriormente, foram adotados quando da criação do Estado moderno. O catolicismo, neste aspecto, contribuiu para a manutenção da unidade dos povos e, conseqüentemente, de valores culturais, religiosos e linguísticos em determinado território, como foram os casos, por exemplo, da Espanha e de Portugal. A verdadeira “construção de uma identidade”10do conceito de Estado surgiu com a Paz de Westfália e, na concepção do Estado, encontram-se os seus elementos constitutivos: povo, território e capacidade de autogoverno.

Dentro de uma concepção multicultural importa examinar o conceito de povo, uma vez que, durante muito tempo, precisamente até o início do século XXI, o tema não foi muito debatido no âmbito da sociedade internacional. Somente com o ressurgimento de outros Estados, como Sérvia, Montenegro, Kosovo, dentre outros, e que resultaram da extinção de Estados antigos, mantidos pela força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, é que se começou a debater os valores culturais de cada povo, convivendo em um mesmo espaço territorial, isto é, sob o manto de uma mesma jurisdição estatal. Assim esclarecem Luis Alexandre Winter e Marcos Wachowicz (2007):

Na idéia de povo há uma idéia seletiva, vez que exclui dentro de uma população, parcelas desta. Daí a identificação com nação, mas não a nação longínqua dos indo-europeus, ou mais tardiamente dos povos germânicos, eslavos etc. A nação que se identifica com o Estado, origina-se como fenômeno secundário das invasões bárbaras. Estas invasões violentas, em um segundo momento, buscaram também o saque às cidades romanas, provocando uma retirada de boa parte da nobreza para suas propriedades rurais, onde, a princípio, estariam salvos. Neste deslocar, os patrícios romanos levavam consigo, além de seus pertences, toda uma infra-estrutura, para, se possível, ausentar-se o menos possível da região em que passaram a viver.

O período anterior à formação do conceito do Estado moderno foi o feudalismo, iniciado após a queda do Império Romano, mais precisamente com o advento da Revolução Francesa, 1789, quando surge a concepção do conceito de Estado-Nação, trazendo em seu bojo a idéia de uma unidade política, na qual os cidadãos deveriam estar vinculados ao território e sob um mesmo ordenamento jurídico: a Constituição. Com a finalidade de manter a referida unidade houve a fusão das populações, e elementos e valores, como a religião e a língua, passaram a ser essenciais para manter a unidade do Estado.

A idéia de soberania ressurge, portanto, com mais força, quando da criação do Estado-Nação, e traz dentro de si a concepção de manutenção da unidade, do todo e do único. Aliás, a própria exaltação dos atributos da soberania do Estado foram essenciais para a construção do Estado-Nação e a manutenção dos seus súditos dentro de uma mesma jurisdição, pois se fosse reconhecido o múltiplo, em detrimento do único, a própria estrutura estatal seria ameaçada. Voltando à análise para a construção da Europa, como menciona Pierre Gourou:11

O espaço, o ser da Europa escapam, ao longo dos séculos, a quem os queira captar ou definir, quer ao geógrafo quer aos especialistas das ciências humanas, uma vez que a Europa nunca foi a mesma no decurso de sua história. No começo da era cristã (…) ela estava de algum modo incluída, mergulhada no Império Romano e apresentava uma superfície que rondava os 3 milhões de km². Passam séculos e séculos, para trás fica um certo número de metamorfoses: a Europa do século XVIII, estende-se para leste até os Urales e cobre 10 milhões de km². Entretanto, a partir de 1492 e durante os séculos XVI, XVII e XVIII, depois durante os primeiros anos do século XX, terá conquistado para a sua civilização e para a sua autoridade a totalidade do continente americano, da Austrália, da Nova Zelândia e uma parte da África Austral – em 1914, todos estes territórios representavam uma superfície de 50 milhões de km².

No referente ao espaço europeu, Massimo Pallottino (1996) ressalta o aspecto multicultural do continente, ao esclarecer que:

Nenhum lugar do mundo proporciona o que a Europa deu: um lugar concentrado num espaço tão restrito, povos com tradições nacionais tão vincadas, tão ricas, que exercem tanto peso sobre a história do mundo. Mas o que são os povos da Europa? A pergunta pode ser ingênua ou fútil – mas não, dada a confusão freqüente, na linguagem comum, entre nações, Estados, comunidades, etnias, línguas, culturas.12 (…)

Esclarece o autor que a Europa se constitui em um

processo orgânico (…) oriundo de culturas oriundas dos latinos, germanos, eslavos, gregos, albaneses, bálticos e celtas os quais, não obstante a grande diversidade presente, falam línguas que derivam de um único tronco: o indo-europeu. Esclarece o autor que o referido tronco está ligado a outras línguas na Ásia, como o indiano, o iraniano, o armênio e o tócaro.13

 

Em termos linguísticos, consequentemente, e, segundo o nosso ponto de vista, torna-se possível aventar-se sobre a possibilidade de certa identidade europeia, a partir da origem lingüística. Certo é que, no continente europeu, existem outras raízes lingüísticas, como a germânica ou a saxônica, por exemplo. De acordo com Massimo PALLOTTINO (1996), ao se referir às antigas tribos que falavam antigos idiomas, de origem não indo-europeias, como a dos etruscos e a falada por alguns habitantes na Sardenha, na Córsega e na Sicília, até que viessem a ser suplantadas pelo latim, grego, celta e o germânico. Destaca o mesmo autor, a existência de idiomas antigos e ainda sobreviventes, como o euskera14 e que conserva “os caracteres do antigo substrato ibérico ou ´ibero-causcásico’, que se estenderia por uma área mais vasta no Ocidente. (…) Este fragmento pré indo-europeu isolado, silencioso, pouco conhecido, desperta nos nossos dias a atenção mundial, reivindicando a sua própria identidade”.15

Ao se comentar, aliás, sobre a formação da cultura europeia, como visto acima, o Império Romano, ao manter a unidade política, foi essencial para a formação, construção e manutenção dos valores europeus, sendo posteriormente, sucedido pelo período da alta Idade Média.16 Não obstante a tradição europeia, advinda do Império Romano, no sentido de manter certa unidade, em relação aos valores dos povos do continente, sempre houve a questão relativa às minorias culturais, como é o caso do euskera. Desde o Império Romano até meados do século XX, a Europa conviveu sob o estigma e os valores do Estado-Nação, sendo que a própria nacionalidade legitimava o agrupamento de pessoas sob a mesma jurisdição e, como forma de manutenção da própria unidade, a língua passou a ser utilizada como valor essencial.

Certo é que alguns Estados, principalmente no século XX, surgiram à força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, composta por cinco nações: (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Montenegro) vindo, posteriormente, a desaparecer, readquirindo as antigas nações a sua independência.17 O ressurgimento de valores culturais, portanto, a partir da língua, como é o caso doeuskera e do catalão, são essenciais para a manutenção da própria cultura desses povos, neste caso, específicos o País Basco e a Catalunha, quando, após a queda do regime de Franco, foi concedida autonomia regional para essas regiões, a fim de que pudessem legislar a respeito do idioma, de forma a compatibilizar os interesses locais com os interesses da Espanha, evitando qualquer tentativa mais radical de se buscar a independência dessas regiões autônomas.18

Falar sobre o espaço europeu neste século XXI, é comentar sobre a existência de comunidades minoritárias, que convivem no espaço supranacional e devem ter os seus direitos culturais respeitados. Porém, antes de avançar no ponto central do estudo, uma vez definido o espaço supranacional e suas implicações, torna-se importante conceituar o multiculturalismo, principalmente no espaço da arena supranacional, argumentações que estarão reproduzidas no próximo capítulo desta pesquisa.

4. Considerações Finais

Perto do limiar da primeira década deste século o conceito de soberania é relativizado, em face da inserção do indivíduo no centro das relações jurídicas, econômicas, sociais, políticas e, especialmente culturais, no seio da sociedade internacional. Com a relativização do conceito de soberania o Estado não pode mais atuar, de forma isolada, com a finalidade de adotar as suas políticas em seu espaço jurisdicional, porque passam a surgir as associações dos países, com a finalidade de, através da ação conjunta, buscar adotar políticas comuns que surtirão efeito para todos os países associados. A União Europeia é exemplo vivo da nova realidade mundial, em que vinte e sete Estados e vinte e três idiomas oficiais convivem em um espaço, denominado de arena supranacional. Dentro da arena supranacional surge um direito singular e peculiar, como visto anteriormente, com a finalidade de buscar um maior equilíbrio entre os Estados, que é o Direito Comunitário.

O Direito Comunitário, ordenamento peculiar da União Europeia, busca garantir maior eficácia para as políticas, adotadas pelas próprias instituições do bloco econômico. Na Europa o idioma, enquanto valor cultural, é extremamente importante, porque os nacionais europeus valorizam extremamente a língua, enquanto um importante elemento cultural. Tamanha é a importância do idioma, no seio da União Europeia, que inúmeros instrumentos internacionais, foram celebrados na Organização das Nações Unidas, como é o caso do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, 1966, e a própria Carta Europeia de Línguas Regionais ou Minoritárias, 1992, celebrado dentro do Conselho da Europa.

O idioma, portanto, é um elemento importante nas relações humanas e que traz consigo os valores culturais do próprio indivíduo. Na União Europeia, a busca de uma compatibilização entre os direitos da maioria frente aos direitos da minoria, quando os segundos não podem expressar, de forma livre os seus valores culturais, de natureza linguística, somente é possível através de uma forte atuação dos Estados, e por parte das próprias instituições do bloco econômico, mediante a adoção de ações afirmativas, com a finalidade de proteger os direitos das minorias. A existência de um ordenamento jurídico supranacional, pautado em valores pluralistas, em uma ordem que respeite a Democracia e os Direitos Fundamentais é essencial para o respeito ao direito das minorias na Europa, de forma a construir uma cidadania multicultural, que refletirá a universalização do respeito aos direitos culturais da minoria.

 

* Eduardo Biacchi Gomes é pós-doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos realizados na Universidade de Barcelona, Espanha, doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Internacional da FACINTER, UNIBRASIL e PUCPR, além de pesquisador vinculado ao grupo de estudos PÁTRIAS, registrado no CNPQ. E-mail: eduardobiacchigomes@gmail.com

 

 

Referências Bibliográficas

BRAUDEL, Fernando (Org). A Europa. Lisboa: Terramar, 1996.

 

DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.

 

PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996.

 

WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.

 

WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007.

 

 

NOTAS

1 A observância do referido principio é garantida através do Reenvio Prejudicial, ação típica de Direito Comunitário, na qual o juiz nacional, ao ter dúvidas sobre a correta interpretação e aplicação da normativa comunitária, suspende o processo e remete a dúvida para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. A jurisdição supranacional, sem resolver o caso em concreto, irá pronunciar-se, através de um Acórdão, esclarecendo ao juiz nacional, sobre a melhor forma de interpretar e aplicar o Direito Comunitário. Vale destacar que o Acórdão possui natureza obrigatória. O reenvio é facultativo nas instâncias ordinárias e obrigatório nas extraordinárias, isto é, nas quais não cabem mais o recurso.

2 Que instituiu a Comunidade Econômica Européia.

3 No ano de 2007 foi concluído o Tratado de Lisboa, o qual, a partir do momento que for ratificado por todos os Estados-Membros da União Europeia, substituirá o Tratado de Nice.

4 Que passou a circular fisicamente no ano de 2002.

5 O Preâmbulo do Tratado que institui a União Europeia assim estabelece: “Resolvidos a continuar o processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos, de acordo com o princípio da subsidiarfiedade”….

6 DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.

7 O tratado que institui a União Europeia, em seu preâmbulo, assim define as bases fundamentais para a construção do espaço comum europeu: “Recordando a importância histórica do fim da divisão do Continente Europeu e a necessidade da criação de bases sólidas para a construção da futura Europa, confirmando o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos Direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de Direito, confirmando o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, desejando aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua História, cultura e tradições, desejando reforçar o caráter democrático e a eficácia do funcionamento de suas instituições, a fim de lhes permitir melhor desempenhar, num quadro institucional único, as tarefas que lhes são confiadas”….

8 Exemplo claro da referida política foi o caso da Constituição Europeia, tratado que foi elaborado com a finalidade de alterar o Tratado de Nice, 2001 e que iria promover grandes alterações na União Europeia. Referido tratado deveria entrar em vigor no ano de 2005, o que não foi possível, tendo em vista o resultado negativo do referendo na França e na Holanda.

9 WINTER, Luís Alexandre Carta: A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007, p. 431-444.

10 WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.

11 BRAUDEL, Fernando (Org). A Europa. Lisboa:Terramar, 1996. p. 5.

12 Ibid., p. 51.

13 Ibid., p. 53-56.

14 Língua falada no País Basco, Espanha.

15 PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996. p. 56.

16 Ibid., p. 58.

17 Importante destacar que, mesmo dentro das referidas repúblicas, não existe unidade nacional, posto que Kosovo é composta por 90% de origem albanesa. As culturas dos referidos Estados estão representados por uma minoria muçulmana, albanesa (à exceção de Kosovo), húngaros, turcos, romenos, italianos, checos, eslovacos e búlgaros.

18 O reconhecimento inevitável do multiculturalismo, na sociedade internacional atual, leva à necessidade de Estados adotarem políticas descentralizadoras, de forma a conceder maior autonomia para os entes menores, a fim de que possam preservar as suas culturas locais, como é o caso da língua, na Catalunha e no País Basco.

 

Ramon Mello entrevista Clara Averbuck

“Nós que não somos como as outras”. Clarah Averbuck tem o título do livro da escritora espanhola, Lucía Etxebarria, tatuado no corpo. E definitivamente ela é diferente: é uma mulher de personalidade forte.Talvez por isso uns a adorem e outros a detestem.

Se todos somos personagens de nós mesmos, eu diria que Clarah se diferencia por assumir esse papel. Com tudo isso, misturado com sua literatura, ela também atraiu a atenção do diretor de cinema Murilo Salles, que adaptou sua obra para o cinema. Em “Nome Próprio” sua história é vivida pela atriz Leandra Leal.

Máquina de pinball (Editora Conrad ); Das coisas esquecidas atrás da estante(Editora 7 Letras) e Vida de gato (Editora Planeta) são seus livros publicados. Ela prefere o último! E já está com outros três no prelo: Toreando o diaboDelírio de ruína (em parceria com a estilista Rita Wainer); Eu quero ser eu (contemplada pelo Programa Petrobrás Cultural).

Quando não está escrevendo, ela está “cuidando da filha, fuçando pela Internet ou bebendo pelas ruas…” Li sua obra recentemente, depois de assistir à pré-estreia do filme, no Odeon BR, no Rio de Janeiro, local onde aconteceu essa conversa. Realizei a entrevista em companhia da poeta Maria Rezende e do músico, escritor e cineasta Rodrigo Bittencourt – que está produzindo um documentário sobre a Clarah para o Canal Brasil. Espero que aproveitem!

Click(IN)VERSOS – O que achou do filme “Nome Próprio”, de Murilo Sales?

Clara Averbuck: Gostei, mas fiquei chateada com a modificação que fizeram no meu texto que aparece na tela. Eu escrevi o texto, reescreveram no meu lugar, eu escrevi novamente e acabou ficando uma coisa diluída. As pessoas sabem que é baseado na minha obra e o que aparece escrito no filme não é meu. Isso incomoda.

Click(IN)VERSOS – Seu livro Máquina de Pinball (Editora Conrad) ganhou adaptação para o teatro, roteirizado por Antônio Abujamra e Alan Castelo, em 2003…

CA: Eu odiei muito. Eu estava grávida e quase pari de desgosto. Juro por Deus! Acabou que o Abujamra não teve muita participação na montagem, foi montado por outra pessoa. E atriz também não era boa, ficava dando piruetas no monólogo. Tudo com a entonação errada: quando era pra ser blasé ela gritava, e quando era pra gritar ela era blasé. Eles não mexeram no texto, nada, tudo estava lá. É o inverso do que aconteceu no cinema, que tem a Leandra (Leal) com uma interpretação maravilhosa.

Click(IN)VERSOS – Como a escrita chegou até você? A família influenciou?

CA: Eu lembro que sempre escrevi. Eu me divertia escrevendo, assim como me divirto hoje. É um grande prazer. Não teve um dia em que decidi me tornar escritora. Só me dei conta que estava indo para esse caminho. A minha mãe sempre leu muito, ela escrevia também. Sou filha de artista, meu pai é músico e ator. Tive isso tudo muito forte em casa.

Click(IN)VERSOS – Quando você percebeu que queria apenas escrever?

CA: Quando me mudei para São Paulo. Antes eu trabalhava numa agência de publicidade em Porto Alegre, mas não queria ser redatora publicitária. Meu chefe dizia que eu tinha grande potencial, mas eu não queria. Teve a ver muito com o (John) Fante isso. Tenho um ciúme do Fante! Todo mundo chega falando dele como se conhecesse. Teve a ver com o (Arturo) Bandini, na verdade. Achei que estava saindo do Colorado para ser uma escritora em Los Angeles… (risos) Cheguei a cursar letras e jornalismo. Mas, sou vagabunda, não gosto de estudar, de trabalhar…

Click(IN)VERSOS – Foi assim que surgiu o pseudônimo Camila?

CA: Camila já meio que existia. Eu publicava com outro nome quando eu namorava. Usava o nome da Camila. Já era um alter ego meu, depois eu assumi. As pessoas que estiverem perto de mim vão entrar na minha literatura…

Click(IN)VERSOS – Dá para traçar um paralelo com o pseudônimo do Bukowski?

CA: Acho que dá para traçar um paralelo com várias pessoas que escrevem usando um alter ego. Ou que escrevem usando a vida como matéria prima. Não necessariamente o (Henry) Chinasky.

Click(IN)VERSOS – Esse alter ego da literatura se infiltra na sua vida?

CA: Sou eu. Não tem o que se infiltrar. Sou eu e é uma ficção. A partir do momento que está escrito não interessa se é verdade ou não. As pessoas se preocupam muito com isso. Aconteceu ou não? As pessoas sabem o que eu deixo elas saberem. Eu só quero escrever e que não me incomodem muito. Elas deviam ler e não se importar tanto. Mas também tenho essa curiosidade: fui pra Los Angeles para ver onde o Fante morava. Há três anos, também fui visitar o túmulo do Bukowski e deixei uma garrafa de Ipioca lá.

Click(IN)VERSOS – Como é a relação da música e da literatura?

CA: Sou 50% música e 50% literatura. Fiz outra banda agora, não tem nome ainda. Quero um nome em português. Gosto muito de ouvir Vanguart, uma banda de Cuiabá ótima! Porcas Borboletas, uma banda de Uberlândia excelente! Ainda pouco eu estava ouvindo Rolling Stones. Gosto de Velvet Undergound, Fiona Apple, Bob Dylan…

Click(IN)VERSOS – E música brasileira? Você quase não tem referência brasileira.

CA: Eu quase não ouço. Não me identifico com as coisas daqui. Não bate. Mas gosto muito da Márcia Denser, é minha irmã mais velha. Gosto muito do Leminski. Gosto muito da Cecília Giannetti, que é uma grande amiga. Gosto do (Daniel) Galera. E o cara que mais me identifico que é o Mário Bortolotto. Não li a Mayra (Dias Gomes), mas gosto bastante dela. Ela falou que leu meu livro aos 14 anos. Me sinto uma tia perto dela. Atualmente estou lendo o Guimarães Rosa.

Click(IN)VERSOS – Atualmente você escreve o blog Adiós Lounge. Por que você acabou com o seu primeiro blog, o Brazileira Preta?

CA: Enchi o saco, cansei e não tava mais a fim de escrever lá. Depois fiz um blog escondido. Eu casei e o casamento me consumiu, a gente se consumia muito. E para escrever se precisa de solidão. O que escrevo é muito visceral. Não posso esconder ou fugir. Eu fujo é das pessoas! De uma maneira geral as pessoas são muito chatas. Elas não têm muita coisa a dizer e isso me irrita bastante. Elas falam, falam e não falam nada. Antes eu até discutia com elas, mas agora não tenho mais paciência. Eu me retiro.

Click(IN)VERSOS – E existe literatura de blog? Você acha que você se encaixa em que lugar na literatura?

CA: Quem tem que saber disso são vocês…(risos) Não existe literatura de blog! Não existe! É apenas um meio de publicação com uma data em baixo. Por isso tem blog de receita de bolo, de resenha de discos, de política… É apenas um rótulo idiota. Eu quero escrever, não quero me inserir em nada. Literatura pop é outro termo que não gosto.

Click(IN)VERSOS – Como é seu processo criativo?

CA: Eu ando com um caderninho na bolsa, quando tenho vontade vou lá e escrevo. Não tenho regra pra nada! Nem pra comer, dormir ou escrever. Sou completamente desregrada.

Click(IN)VERSOS – A metrópole está muito presente na sua literatura. Tem vontade de sair de São Paulo? Voltar para Porto Alegre?

CA: Voltar para Porto Alegre nunca mais! Eu fugi de lá, pra que eu vou voltar? Eu gosto de lá para visitar as pessoas, mas nunca mais vou morar lá. Nem quando ficar velha e herdar a casa dos meus pais. Minha filha que vai cuidar disso! Eu gosto de cidade grande e de barulho. Só saio de São Paulo para ir embora do Brasil. Tenho uma relação de amor e ódio com São Paulo. Moro num lugar muito feio, na Praça Roosevelt. Feio, cheio de concreto, mas tem uma certa beleza naquilo tudo.

Click(IN)VERSOS – E o Rio de Janeiro te atrai?

CA: Ah, vou ser um pouco hippie: o Rio tem uma mágica, uma coisa no ar… Gosto muito da arquitetura, dos prédios antigos e do mar – sempre! Esses prédios brotando em meio das pedras, essas pedras brotando em meio aos prédios.

 

Click(IN)VERSOS – Você teve sua filha num parto normal, em casa. Depois que ela nasceu o que mudou na sua vida e na sua literatura?

CA:Na minha literatura não mudou nada. E as pessoas fazem muito alarde dizendo que filho muda tudo. Tem aquelas pessoas que deixam de ser elas mesmas: param de sair, engordam, não se penteiam mais. Eu sou a única mãe que posso ser. O que ela vai achar das coisas que escrevo? Espero que ela goste! Não tem muita putaria. Mas outro dia me chamaram de literatura erótica…

Click(IN)VERSOS – O que te atrai na vida?

CA: A paixão. O que me atrai é a paixão: por um homem, por livro, pelo Rio de Janeiro, por um filme, pela arte em geral. Coisas que fazem o coração bater mais rápido. Click(IN)VERSOS – Quantas tatuagens você tem?

CA: Não sei. Quer contar? Eu já tentei contar algumas vezes, mas me perco. Tenho umas vinte e poucas. Faço tatuagens com minhas amigas, tenho essa mania. É melhor do que fazer aliança com homem, né? Amizade, quando é de verdade, não acaba. Me interesso por moda, tenho muitos amigos do mundo da moda. Eu gosto de me ornar. A roupa também é uma maneira de se comunicar, se colocar. Sou muito vaidosa.Click(IN)VERSOS – Há leitores que acreditam que seus gatos são alter egos. Como é sua relação com os felinos?

CA: (risos) Eu convivo com gatos há muito tempo. Eu tenho três gatos e minha mãe tem uns cinquenta. Sem exageros! Claro que eles existem. Tem o Joo, a Gatinha e um outro que se chama Jimi Hendrix – mas minha filha mudou para Marcelo, nome do pai dela. Click(IN)VERSOS – O que diria para os jovens que querem escrever?

CA: Escrever não é brincadeira. Tem que levar a sério!Tem que colocar uma alma, porque senão fica apenas uma palavra depois da outra. A pessoa tem que dar um pouco do sangue dela para acreditar no que escreve. Não é para qualquer um.

 

* Ramon Mello (Araruama – RJ, 1984) é poeta, escritor, jornalista e ator. Formado em Comunicação Social (Jornalismo) pela UniverCidade e em Artes Cênicas pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena. Mantém os blogs Sorriso do Gato de AliceClickInversos e Letras-Saraiva Conteúdo. É colaborador do Portal Literal e da revista O Grito! além de organizador da FL@P! RJ, junto ao coletivo riosemdiscurso. Finaliza, atualmente, o romance All star bom é All star sujo. Autor do livro de poemas Vinis mofados (Editora Língua Geral).