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Atraso do progresso | de Alckmar Luiz dos Santos

“… a civilização é a criação de estímulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reação a eles. (…) ser civilizado é inventar reações para os estímulos que excedem já a reação possível, isto é, inventar reações artificiais…”
Fernando Pessoa, A influência da engenharia nas artes nacionais

Given that our days are limited, our hours precious, we have to decide what we want to do, what we want to say, what and who we care about, and how we want to allocate our time to these things within the limits that do not and cannot change. In short, we need to slow down.”
John Freeman, Not so fast. Sending and receiving at breakneck speed can make life queasy; a manifesto for slow communication 2

O que pretendo desenvolver aqui não é, de modo algum, uma lamúria conservadora acerca de nossas relações com as tecnologias. Não haverá neste ensaio a menor sombra de saudosismo das origens, nem lamentação pela pretensa perda de uma suposta época de ouro, no que teria sido uma espécie de tragédia inaugural da civilização. Isso funciona muito bem nos mitos e, talvez, na psicanálise. Aqui, teria o grave defeito de encobrir processos e desdobramentos muito mais interessantes. D. H. Lawrence, em seu Lady Chaterley’s Lover, afirmava que sua época era trágica 3 Ora, em vários sentidos, todas as épocas são trágicas, pois, frequentemente o excesso e o excessivo travam barulhentos combates em que o campo de batalha está em todos e em cada um de nós 4 . Ou, como diz George Simmel, Pues existe lo trágico allí donde la tribulación o la anulación de una energía vital por su adversaria no se debe al choque casual o externo de ambas potencias, sino donde el destino trágico que una preparaba a la otra se encontraba prefigurado ya en ella como algo inevitable. La forma de unidad de esta contradicción es la lucha. 5
É curiosa a retomada de uma perspectiva heracliteana por um pensador, como Simmel, que foi certamente influenciado por Hegel. Contudo, me interessa justamente essa contraposição entre pensamentos de recorte heracliteano e pensamentos de filiação platônica (e, talvez, hegeliana). De certa maneira, boa parte da filosofia ocidental — que François Châtelet caracterizou como um longo diálogo direto com a filosofia de Platão — desprezou uma linhagem mais próxima de Heráclito e que consiste na capacidade de tratar os contrários sem reduzir um a outro, ou sem substituir a ambos por um terceiro. Esta linhagem, curiosa e paradoxalmente, tanto permitiu o surgimento de correntes gnósticas e iniciáticas da Idade Média, quanto influenciou, por menos que fosse, a criação da lógica paraconsistente, por Newton da Costa, em meados do século XX .6
É assim que estou buscando entender as relações entre as artes (em particular, as literaturas, que constituem o campo de onde falo) e as tecnologias, nesse nosso ambiente atual de intensa saturação tecnológica 7 , partindo do que seria próximo de uma perspectiva heracliteana… ou, talvez, paraconsistente. De toda maneira, até aqui, não há nada de substancialmente novo nesse contraste que busco apresentar entre ambas (artes e tecnologias): as primeiras estão sempre fundadas em algumas técnicas (que são, na maior parte, internas às artes) e mantiveram relações constantemente tensionadas com as tecnologias (que são, estas, na maior parte, externas às artes). E quando falo em relações tensionadas, isso quer dizer que estou buscando entender as diferenças e as aproximações das artes com as tecnologias, sem que se tenha de escolher definitivamente uma possibilidade ou outra, como quase sempre tem sido feito ao longo do tempo por artistas, estetas, críticos ou teóricos. Quero dizer com isso que, no mais das vezes, se tem optado pela aproximação com o tecnológico de forma quase sempre submissa e empobrecedora, ou se tem escolhido um distanciamento, frequentemente estéril. O que pretendo aqui é manter visões opostas, sem ser obrigado a adotar uma das posturas rivais; sem ser obrigado, muito menos, a resolver a contradição através de uma síntese dialética unificadora tão artificial quanto impossível. Ao se conservar essa oposição, chegaremos à dinâmica da tragédia como a descreve Simmel, mas também chegaremos a uma perspectiva trágica, no sentido do teatro grego, em que o sofrimento encenado e assistido era o início de um percurso de conhecimento. Em outras palavras, posso dizer que nossas relações com as tecnologias (e não apenas no âmbito das artes) são trágicas, por que elas, as tecnologias, são ao mesmo tempo nocivas e benéficas (e não, de modo simplista, nocivas ou benéficas). E não se pode ter uma perspectiva, sem manter a outra.
Com essa opção, torna-se impossível ou, ao menos, improdutiva a escolha de qualquer uma das duas possibilidades — a tecnofobia ou a tecnofilia. A partir daí, impõe-se reformar a noção de progresso, que, não por acaso, está ligado a vários racionalismos nossos velhos conhecidos. Em vez de progresso, quero propor aqui a noção de avanço, o que implicaria estar livre das camisas-de-força dos esquemas deterministas de presivibilidade. Baseada frequentemente nas mentalidades positivistas, a ideia de progresso parece necessitar desses saltos epistemológicos, em que a síntese em direção a um novo estado se dá pela supressão de um ou até dos dois membros da disjunção anterior. Em vez disso, creio ser possível optar pelo que estou entendendo como avanço, isso é, uma transição complexa e indefinida, em que as disjunções não se resolvem por uma concórdia otimista entre os opostos, nem pela imposição de um oposto sobre o outro. Contudo, ainda não é o momento de aprofundar essa distinção entre progresso e avanço. Mais adiante o faremos. Por ora, voltemos a nossas relações com as tecnologias.
De tudo que acima foi dito, pode-se resumir que não é possível adotar qualquer espécie de luddismo, que renega o acúmulo e a complexidade tecnológica; também não me deixo seduzir pelas vozes entusiastas da tecnologia, mesmo as que se enfeitam com alguma sofisticação, a exemplo de Pierre Lévy. Por outro lado, não há neutralidade possível nesse embate… E nem meio-termo… Dito de outra maneira, nosso diálogo com as tecnologias é muito mais profundo e muito mais antigo do que pode parecer à primeira vista, ou do que tem sido constantemente afirmado. Se me permitem usar uma figura, eu diria que o lado negativo e saturante das tecnologias é como um bola de ferro que, amarrada a nossos pés, pode nos fixar, imóveis, em algum ponto de nosso percurso; ou pode ser jogada à frente, com grande esforço, lançando-nos para bem mais adiante do que iríamos normalmente. Em outras palavras, esse lado negativo das tecnologias não nos abandona nunca e é constitutivo de nossa dimensão cultural.
Alguns terão notado, nos meus comentários acima, alguns ecos longínquos da psicanálise. Em outra perspectiva, trata-se de um raciocínio semelhante ao que aparece no excerto de Fernando Pessoa, transcrito acima. Sem deixar de ecoar as muitas discussões sobre o mal-estar da civilização, o poeta português, nesse trecho citado, associa à civilização um incômodo que é também estímulo, propondo uma postura que pode ser invocada como possível resposta à (correta!) observação de Freeman, também citada acima. Se não temos como deixar de lado nossas limitações 8 , é possível fazer com que elas sirvam de estímulo a nosso trato com as tecnologias.
Assim, de maneira criativa (e a arte não está aí para outra coisa!), é possível usar a saturação e os processos pretensamente deterministas e falsamente ilimitados das tecnologias, para fazer com que tal incômodo nos permita inventar reações artificiais que tomem distância de qualquer lógica de reafirmação da artificialidade tecnológica. Em outras palavras, trata-se de escapar de antigos limites para inventar novos limites para nós, o que significa que não nos conformaríamos com algum estado anterior já adquirido e pretensamente estável. Mas isso tem que ser feito agora, nesta nossa época, justamente quando os mitos contemporâneos das tecnologias nos acenam com redes de informação supostamente infinita possibilitando conhecimento pretensamente ilimitado. E não é preciso dizer que inventar novos limites para nós, implica necessariamente impor também limites às tecnologias, mas limites inesperados, situados fora das lógicas com que elas foram projetadas e das lógicas com que foram construídas 9 .
* * *
Todo esse preâmbulo serve para situar melhor um dos motivos principais deste ensaio — a situação dos estudos críticos e teóricos do texto digital, particularmente os que se desenvolvem a partir do campo literário. Contudo, em relação a este, tomo algumas premissas que ainda devo explicitar, do modo mais claro e simples que me seja possível (mesmo que não constituam absolutamente grandes novidades). Vamos a elas!
1. Quando falo de estudos que se desenvolvem a partir do campo literário, quero chamar a atenção para o fato de que os estudos de literatura, em particular as diversas teorias do texto, surgem dentro do âmbito literário, mas podem ser usados em outros campos: a crítica e a teoria das artes ligadas ao meio digital; as questões relativas aos hipertextos; os processos de construção de redes de informação e de sentidos no ciberespaço; os sistemas de construção de grandes narrativas tecnológicas (especialmente as digitais)10 e que constituem uma nova mitologia imanente em oposição às mitologias transcendentais que vêm da tradição oral… E assim por diante. Posso ainda afirmar sem hesitação que os estudos do texto literário estão em posição privilegiada no que se refere à investigação das relações tumultuadas entre arte e tecnologia. Essa capacidade não viria de nenhuma superioridade do literário com relação a outros campos do conhecimento, mas do simples fato de que é em nosso campo que as investigações sobre processos expressivos e sobre estratégias e campos de construção de sentidos se aprofundaram mais, nas últimas décadas.
2. Sem embargo, assim como é possível fazer os estudos literários saírem de seu âmbito específico e serem utilizados em outras instâncias, é também possível (como, aliás, sempre foi) trazer, para o literário, contribuições de outros campos, notadamente os das diversas artes. Com isso, processos e situações semelhantes já vividas em outras épocas, por outras artes, podem muito bem servir como modelos para se entender paradoxos, impasses e limites dos estudos literários, como os que se experimentam atualmente quando se examina a literatura do meio digital. Com isso, essa atual mudança de paradigmas, do impresso para o ciberespaço, pode ser mapeada, estudada e compreendida, a partir de mudanças de paradigmas com dinâmicas e condições algo semelhantes às que hoje se observam.
3. Uma última premissa se refere às vanguardas e aos experimentalismos, que impuseram seus ritmos e suas perspectivas às discussões sobre as artes, do início do século XX até os dias de hoje. De fato, é impressionante a frequência com que Marcel Duchamp ainda é invocado atualmente como inspiração, como santo protetor das artes contemporâneas. É como se não se tivesse passado quase um século desde suas primeiras intervenções vanguardistas; como se suas relações equivocadas com as técnicas, com as tecnologias e com os meios de produção em massa não fossem já um capítulo mais do que superado na história das artes. Aliás, a esse propósito, haveria que se destacar com mais ênfase a figura de Alfred Jarry (quase contemporâneo de Duchamp), na maneira como se coloca ao mesmo tempo dentro e fora das tecnologias e das ciências, de maneira muito mais interessante do que o fez o próprio Duchamp11 . Em suma, é inegável que todas as discussões sobre literatura e meio digital não podem ficar alheias às questões envolvendo os diferentes experimentalismos, tanto nos acertos quanto nos lapsos destes.
Dito isso, voltemos à segunda premissa para desenvolver alguns de seus elementos. Há que se reconhecer que estamos ainda passando pelas turbulências de uma evidente mudança de paradigmas nos estudos literários, a partir do advento das tecnologias digitais. No dizer de vários teóricos e críticos, praticamente todos os elementos que alicerçavam os estudos da literatura impressa se encontram em processo de contestação ou, declaradamente, de dissolução. E nem é preciso citar nomes, basta uma ligeira busca pela internete para se dar conta desse quase genocídio que vem atingindo conceitos que, até há pouco tempo, eram essenciais e incontornáveis: leitor, escritor, autor, gêneros, texto, leitura, retórica etc. A impressão que se tem é que pouca coisa fica de pé, depois desse furacão chamado internete. Às vezes, autor e escritor parecem condenados aos museus das citações e das referências arcaicas, como antiqualhas que apenas servem, atualmente, para obscurecer a extrema e exclusiva importância dos processos digitais de construção, armazenamento e disseminação de objetos (assimilados a gestos expressivos). Pierre Lévy afirma que “The distinction between author, editor, publisher, critique (assessement) and librarian (categorization) will continue to blur 12.” Philippe Bootz diz que “… bug et obsolescence sont les deux maîtres mots de la condition de l’auteur numérique” 13 . A respeito do leitor, Serge Bouchardon, por exemplo, fala de uma “mise en échec du lecteur” que “fait écho à une autre mise en échec, celle de l’auteur” 14 . Contudo, muitos teóricos passam ao largo de propostas mais bem fundamentadas como as de Bouchardon, na qual se parte da premissa de que leitor é também, mais do que nunca, uma função, uma estratégia, e não apenas uma perspectiva a ser exercida com autonomia por um terceiro 15 . Todavia, não são poucos os que se apressam em esconder essa colocação em xeque do leitor, para alçá-lo ao que seria a nobre função de criador, vaga com a morte do autor 16 . O rei está morto; viva o Rei!, parecem pensar. Quanto aos gêneros, Philippe Bootz, em “Vers de nouvelles formes en poésie numérique programmée 17 ?” , tenta construir uma nova grade para a poesia digital, a partir das primeiras tentativas mais sistemáticas de criação poética:

Le milieu des années quatre-vingts voit la reconnaissance de la spécificité de la poésie numérique à travers trois genres qui sont la génération automatique de textes développée par Jean-Pierre Balpe dès 1980, l’hypertexte, surtout développé aux USA, et la poésie animée, développée en France, principalement sous la forme de l’animation syntaxique, à partir de 1985 par les poètes qui formeront le collectif L.A.I.R.E. en 1988.

Em resumo, ainda estamos mergulhados em uma crise dos modelos oriundos da tradição impressa e, consequentemente, dos elementos a ela associados (autor, escritor, leitor, gêneros, texto etc.). Para alguns, isso parece indicar que seria aconselhável, ou até mesmo mais produtivo, que se desistisse de trabalhar com a tradição ou com a história dos estudos literários. Mais radicalmente, há mesmo quem passe rapidamente da desistência para o desconhecimento. Para chegar a isso, partem da constatação, correta, de que há um desvio epistemológico entre a tradição do escrito e do impresso, com respeito à tradição do digital, mas entendem esse desvio epistemológico de modo simplista e errôneo. Como se ele significasse uma desvinculação radical entre os paradigmas do ciberespaço e os da “galáxia de Gutenberg”; como se nenhum elemento, processo ou estratégia de um paradigma viesse se misturar àquele que lhe é posterior. Isso está expresso claramente, por exemplo, na ideia de Pierre Lévy de que a telemática possibilitaria a existência uma nova humanidade 18 .
É claro que, apressadamente, é até mesmo fácil concluir que tela digital não teria nada que ver com papel; que a linguagem verbal já não seria mais a melhor base para as construções de um pensamento que se tornaria icônico ou imagético à semelhança dos espaços de navegação 19 ; que a ergonomia pode ser melhor critério que a retórica ou a estética para medir o alcance e a profundidade de qualquer expressão, pensamento ou gesto de criação. Ora, abandonar ou ignorar o paradigma anterior, ligado ao impresso, implica muita coisa, menos um aprofundamento na maneira como se podem entender as literaturas do meio digital. De fato, só podemos ter prejuízos quando esquecemos a tradição anterior e nos fixamos na ilusão de que o desvio de paradigmas implica uma ruptura radical e impõe a elaboração de estratégias e de conceitos ab ovo. Desconhecer a tradição anterior e a história dos conceitos e dos métodos, nos obrigaria a propor perspectivas completamente novas, o que só pode ser feito a partir do circunstancial e do imediato. Nesse caso, o risco é cair rápida e facilmente nesses ceticismos ou relativismos contemporâneos, companheiros fraternos da preguiça intelectual. Diga-se, a bem da verdade, que estou muito tranquilo para propor esse diálogo entre paradigmas, na medida em que, desde 1995, para ler e analisar os textos digitais, venho defendendo a utilização de conceitos oriundos do que se convencionou chamar de teoria do texto francesa 20 . E diga-se também que tal diálogo nunca representou para mim uma continuidade de esquemas e teorias antigas, ou uma submissão cega a eles.
Contudo, o que está por trás de todo esse imbróglio poderia talvez ser resumido à antiquíssima dicotomia entre unidade e multiplicidade (que se desdobrou nas várias polêmicas entre idealistas e sofistas, entre realistas e nominalistas, entre racionalistas e empiristas etc.). De fato, o ciberespaço é uma multiplicidade(pois está sustentado por uma imensa quantidade de técnicas, tecnologias, processos, gestos, expressões e obras) híbrida (pois nenhum de seus componentes tem uma primazia evidente e concreta sobre os demais). Com isso, torna-se impossível compreendê-lo em sua totalidade através de uma leitura específica, individual. É claro que isso poderia ser dito do mundo vivido da tradição filosófica ocidental e, ainda uma vez, não teríamos aí nada de novo. Contudo, com relação ao ciberespaço, a diferença reside no fato de que essa impossibilidade está imediatamente diante de nós, disponível como se fosse a singularidade de uma função matemática que é, ao mesmo tempo, infinita em valores, mas restrita a um único ponto do plano cartesiano. De fato, o ciberespaço nos torna capazes não de manipular o infinito, mas sim a sua imagem especular, ou seja, a sua infinitude 21 .
E, nesse caso, mais uma vez batemos de frente com os limites da dedução ou da indução. Até poderíamos tentar entender a multiplicidade como resultado de derivações imperfeitas de um princípio unificador; mas, neste caso, o excesso de significantes do meio digital (que é correlato da saturação tecnológica contemporânea) não se deixa resumir a uma unidade, como quer o dedutivismo; rapidamente, o excesso parece se converter em excessivo e põe diante de nós, concretamente, essa multiplicidade imediata do ciberespaço, tornando aparentemente impossível qualquer operação dedutiva pré-concebida. Diante disso, poderíamos tentar outro caminho e aceitar a limitação de nossos atos de leitura, restringindo nosso percurso de conhecimento ao limite mais imediato dos objetos e das experiências imediatamente disponíveis; fazendo uso de um empirismo que se baseia em alguma forma de indutivismo. Mas, neste último caso, rapidamente o objeto se fecha sobre ele mesmo, a singularidade assume o lugar da generalidade, e o excesso cede lugar à lacuna. Como resultado, ficamos com as mãos vazias de qualquer certeza sobre o objeto que estávamos investigando. De fato, temos aqui um problema de método de pensamento, de leitura, de investigação 22 . É preciso sublinhar que não somos obrigados a escolher uma de duas opções: ou reduzimos tudo a um só esquema totalizante, ou nos restringimos ao horizonte da experiência imediata. Creio ser possível um exercício de pensamento e de leitura dos objetos digitais, que nos faça escapar tanto do reducionismo, representado pela empolgação tecnológica dos inúmeros tecnófilos contemporâneos, quanto do ceticismo (ou do niilismo) dos muitos tecnófobos.
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Nesta nossa época de intensa saturação tecnológica (e não é demais repetir esta expressão!), penso que uma abordagem pelo viés da estética pode nos fazer avançar no entendimento das artes digitais, especialmente das literaturas de que me ocupo. O apelo à dimensão estética da criação e da leitura digitais será capaz de nos fazer ir além dos dualismos redutores com que muitos teóricos do ciberespaço temos trabalhado: linear e não-linear, contínuo e fragmentário, limitado e ilimitado, e assim por diante. No caso da literatura, diria que essas disjunções têm servido para manter as discussões ainda presas à oposição entre impresso e digital, como se estivéssemos condenados a permanecer indefinidamente nessa transição específica. Ou como se não houvesse uma transição contínua em que nos movemos sempre. Vem daí a distinção que mencionei acima entre progresso e avanço. Nesse caso, avanço se oporia a progresso como as imagens fractais se opõem à linha (mesmo que seja uma linha descontínua como a da função tangente).
De outro lado, essa abordagem estética é fundamental para entender de modo mais aberto a criação literária digital. De fato, as dificuldades de explorar e de organizar o campo dessas literaturas estão ligadas diretamente às decorrências estéticas da leitura de obras literárias, sejam elas digitais ou não. De modo geral, isso sempre foi relegado a segundo plano, como se estética e arte não dissessem respeito à literatura. Para confirmar esse juízo, basta ver que poucos manuais de história ou de teoria literária utilizam conceitos que se fundamentam suficientemente em alguma perspectiva estética.
Em um ensaio publicado há alguns anos 23, procurei justamente desenvolver esses aspectos estéticos, com respeito aos poemas digitais, investigando-os como coisa, como objeto e como obra, a partir do que diz Heidegger em A origem da obra de arte 24 . Para retomar brevemente essa discussão, poderia dizer que, como coisa, a literatura digital é explorada como interação imediata, ou seja, como realidade palpável, direta e concretamente disponível aos sentidos do corpo e aos sentidos de algum discurso outro que tente falar de suas especificidades. Como objeto, é vista como resultado de uma criação, como resposta (conflitante ou obediente) a um conjunto de significações possíveis e de utilidades de que as coisas vão sendo dotadas para que apareçam então como objetos. É a partir daí que se torna possível sua utilização como instrumento de observação do mundo e do vivido. A passagem de coisa a objeto se faz quando se explicita que a coisa se reveste de linguagem. Desvela-se assim o objeto, que, nessa operação, se desdobra em interioridades e exterioridades. Todavia, para que cheguemos à perspectiva deobra, é necessário que o objeto deixe de ter interior, é necessário compreender que seu interior se torna imediatamente feito de mesma matéria, a saber, linguagem. Nesse caso, já não resta nenhum espaço para qualquer relação utilitária com a literatura digital.
Se essas descrições dão conta dos aspectos específicos das criações literárias digitais, ou seja, de suas singularidades, elas não exploram suficientemente sua dimensão cultural e histórica. E esta perspectiva é sempre necessária; desprezá-la significaria ser obrigado a optar por concepções redutoras das literaturas digitais, como já apontei acima. Sem isso, não se pode entender suficientemente as condições e as características das artes e das literaturas contemporâneas (digitais ou não). É justamente o que pretendo fazer aqui.
Na história das ideias estéticas, uma questão que me parece muito relevante diz respeito à autonomia das artes, processo que se instala a partir do século XVIII (nas literaturas, essa dinâmica vai surgir bem depois, no final do século XIX, mas é fundamental para se compreender tantos as literaturas impressas que desde então se vêm realizando, como as atuais literaturas digitais). De modo geral, pode-se afirmar que, a partir do século XX, passou-se para um segundo estágio desse processo de autonomia. Quero dizer com isso que ele se radicalizou de tal forma, que chegou a algo que nem mais era autonomia, mas sim desvinculação da arte de outras instâncias culturais. Isso representou na verdade uma postura narcísica ou, em alguns casos, quase um fechamento autista. As artes que levaram esse processo de autonomização às últimas consequências esgarçaram-se, diluíram-se e se tornaram, paradoxalmente, dependentes da figura do artista. Em muitos casos, o objeto artístico tornou-se mero pretexto para a publicização das pessoas envolvidas, isto é, artistas, teóricos e críticos. Em outras palavras, o objeto de arte ficou como que abandonado e perdido em algum lugar ignorado do campo cultural. Nesses casos, só o que temos concretamente diante de nós, no campo artístico, é o artista; no campo estético, o crítico ou o teórico. Resumindo, pode-se dizer que a arte se reduziu ao artista e a estética se reduziu ao crítico e ao teórico. Isso explicaria afirmações do tipo “não há sentido em discutir se um objeto ou processo é arte ou não; se o criador diz que é, aceita-se!…25” ; daí vem essa redução do processo criativo à figura do artista; da crítica à pessoa do crítico ou do curador. O que vale é o gesto que remete à persona e não o objeto em si! Mas, de fato, que autonomia é essa?! Por esse viés, nunca a arte esteve tão presa e tão sujeita a outras esferas que não a sua! Da autonomia, passou-se imperceptivelmente para sua dependência total com relação às pessoas envolvidas (artistas, curadores, compradores, público especializado). Certamente, não há autonomia possível em um processo em que o objeto não apenas se desmaterializou, mas foi abandonado, claramente afastado do horizonte de leitura, lançado fora como escolho, como estorvo; ou, o que dá mesmo, devendo ser acolhido com toda a complacência possível, sempre considerado como prova irrefutável da genialidade de algum indivíduo (artista, crítico, ou curador). Com a ilusão de se estar criando um objeto totalmente autônomo, passou-se a um objeto 26 totalmente dependente das pessoas envolvidas. Mesmo a arte que se diz engajada, que criticaria a sociedade, o consumo, o desastre ecológico, a perda de identidade dos indivíduos etc., mesmo essa arte não faz mais do que ressaltar a figura do criador, ao se tornar mera porta-voz deste. De fato, como combater a perda de identidade dos indivíduos, com manifestações artísticas que perderam sua própria identidade, ainda que seja em proveito de um criador, esse sim!, com identidade hipertrofiada?! Parece-me que temos aqui um processo muito semelhante ao que Simmel descreveu, quando comentou o Futurismo: “… las formas que la vida se ha construido como vivienda se han vuelto una vez más cárcel para la vida 27.” Cárcere para a vida, assim me parece uma boa parte das artes contemporâneas, ao optar pela facilidade do imediatismo, pelo empirismo desajeitado 28 , pelo conceito exposto grosseiramente em forma de alegoria simplista.
À guisa de resumo, poderia dizer, mais uma vez, que se trata de optar por uma visada decididamente epistemológica, no que se refere às artes: é fundamental acercar-se do objeto sem abstrair o sujeito; igualmente, deve-se pôr o sujeito em meio às coisas, sem que estas se reduzam a juízos daquele. E tudo permeado por uma visão do campo artístico como processo eminentemente histórico, maneira consistente de fazer com que nem sujeito (criador ou leitor), nem objeto (criado ou lido) sejam tomados como referência única e privilegiada. Assim, nesta nossa época de substituição do meio impresso pelo digital, é importante aprender com outros períodos em que também se viveu alguma importante mudança de paradigmas. Uma das possibilidades é investigar, mais uma vez, o que ocorreu no século XVIII, época de rebaixamento dos cânones clássicos, em prol de uma nova sensibilidade, mais apropriada ao mundo moderno que então surgia. Pode-se dizer que as intensas discussões estéticas que apareceram nesse período preparavam e anunciavam essa nova sensibilidade, um outro ambiente e uma dinâmica diferente, antes mesmo de que se consolidassem as criações artísticas já integradas a essas situações recentes. Assim, num primeiro momento, os conceitos estéticos que surgiam e tentavam se impor como padrão, deviam encarar criadores e criações artísticas que ainda tinham suas bases solidamente estabelecidas na sensibilidade clássica. É claro que isso é comum a todo câmbio de paradigma nas artes, mas o que me interessa, nesse caso, é justamente essas mudanças que se anunciam no século XVIII, em que claramente se passava por um aumento quantitativo na produção e na leitura de arte, com a incorporação de amplos setores da sociedade ao grupo dos consumidores de objetos artísticos (entenda-se aí não apenas compradores, mas sobretudo observadores). Isso representou inegavelmente um acúmulo de informações como nunca havia sido visto anteriormente, o que exigia dos críticos e do público 29 que se adaptassem a essa situação inusitada em que começavam a dispor de muito mais estímulos para processar e a que responder, do que estavam habituados. Balzac descreve muito bem essa situação na abertura do romance Pierre Grassou 30 :

Toutes les fois que vous êtes sérieusement allé voir l’Exposition des ouvrages de sculpture et de peinture, comme elle a lieu depuis la Révolution de 1830, n’avez-vous pas été pris d’un sentiment d’inquiétude, d’ennui, de tristesse, à l’aspect des longues galeries encombrées ? Depuis 1830, le Salon n’existe plus. Une seconde fois, le Louvre a été pris d’assaut par le peuple des artistes qui s’y est maintenu. En offrant autrefois l’élite des œuvres d’art, le Salon emportait les plus grands honneurs pour les créations qui y étaient exposées. (…) Aujourd’hui, ni la foule ni la Critique ne se passionneront plus pour les produits de ce bazar. Obligées de faire le choix dont se chargeait autrefois le Jury d’examen, leur attention se lasse à ce travail ; et, quand il est achevé, l’Exposition se ferme. Avant 1817, les tableaux admis ne dépassaient jamais les deux premières colonnes de la longue galerie où sont les œuvres des vieux maîtres, et cette année ils remplirent tout cet espace, au grand étonnement du public. (…) Au lieu d’un tournoi, vous avez une émeute ; au lieu d’une Exposition glorieuse, vous avez un tumultueux bazar ; au lieu du choix, vous avez la totalité. (…) Maintenant que le moindre gâcheur de toile peut envoyer son œuvre, il n’est question que de gens incompris. Là où il n’y a plus jugement, il n’y a plus de chose jugée. Quoi que fassent les artistes, ils reviendront à l’examen qui recommande leurs œuvres aux admirations de la foule pour laquelle ils travaillent…

Ora, numa situação de excesso de informações, a primeira reação é adotar uma lógica de exclusão como faz Balzac, insinuando a necessidade de livrar as exposições (e, em decorrência, a própria arte) dessas criações secundárias ou inferiores. Contudo, eu diria que essa não é, definitivamente, a melhor escolha: afinal, criações secundárias ou inferiores, se não concretizam nenhum progresso artístico, são fundamentais para isso que venho chamando de avanço, desde que não sejam acompanhadas de outra exclusão, a dos juízos críticos que apontem tanto as qualidades (o que se pode fazer com facilidade) quanto os defeitos ou impropriedades das obras (o que se faz sempre com dificuldade). Explico melhor: para que tenhamos de verdade essa dinâmica que venho chamando de avanço, é fundamental que nem obras, nem juízos críticos sejam excluídos. De fato, quando me refiro a problemas e obstáculos (limites e pequenezas) das artes (atuais ou não), pode parecer que estaria lamentando uma decadência evidente das criações artísticas. Mas não é nada disso. Esses equívocos fazem parte de toda dinâmica cultural, e as artes não estariam imunes a eles. Pode-se dizer que a lógica do avanço implica que não haja mesmo esse progresso inevitável, sobretudo no campo das artes. O que se pode e se deve lamentar é que, tentando preservar, inutilmente, a noção de progresso, não se exerça a crítica com toda a profundidade desejável. É fundamental justamente apontar essas falhas, essas faltas, essas criações superficiais e inócuas. Esses defeitos, claramente, não fundamentam nenhum progresso; todavia, sem eles e, a fortiori, sem uma crítica feita a eles, não se constrói nenhum avanço.
Voltando à discussão sobre o século XVIII e à mudança de paradigmas estéticos e artísticos que veio com ele, é interessante analisar o caso da literatura. Nela, o abandono dos padrões clássicos só se efetivou com a consolidação do romance como gênero literário, na primeira metade do século XIX. Houve aí então um período de mais de cinquenta anos de defasagem com relação às artes em geral. Algo muito semelhante ocorre hoje em dia. Desde o início do século XX, várias das artes (as plásticas e as visuais, sobretudo) vêm discutindo suas relações problemáticas com as tecnologias 31 , mas a literatura mal começou essa discussão. E isso se reflete na maneira como muitas dessas questões, exploradas pela crítica e pela estética das demais artes, chegam com atraso à literatura; e, quando o fazem, muitas vezes parecem repetir o mecanismo das ideias fora de lugar, que consagrou o crítico brasileiro Roberto Schwartz 32 : são ideias e princípios que, se funcionam bem na pintura, na instalação, na performance, não apresentam o mesmo rendimento na literatura, mostrando-se aí desfocados e deformados. Haja vista a tentativa inábil (e muito frequente) de utilizar os conceitos de original e deaura, de Walter Benjamin, para uma arte, a literária, em que a noção de originalidade tem muito pouco que ver com o que ocorre com a pintura e com a fotografia.

Além do princípio da autonomia da arte, discutido acima, há outros elementos, nessa transição da sensibilidade clássica para a sensibilidade moderna, que ainda podem nos ser úteis, para entender a atualidade das literaturas digitais. Contudo, vou abordar apenas mais um, para não me estender em demasia: o conceito de unidade. Ele é fundamental para as estéticas e as artes clássicas e, a partir da decadência delas, foi colocado em xeque, especialmente no que se refere à ideia de beleza. Trazido para os dias de hoje, esse processo deperda da unidade parece corresponder ao que se convencionou chamar de fragmentação, de não-linearidade, de descontinuidade. Contudo, a despeito da infindável quantidade de discussões a esse respeito, me parece que ainda não se aprofundou suficientemente a oposição entre unidade e multiplicidade nas artes contemporâneas (aí incluída a literatura 33) .

Mas isso nem é o mais importante. O que me parece relevante é que esses debates quase sempre têm insistido em deslizar, imperceptível mas inapelavelmente, para uma outra oposição, aquela que se dá entre materialidade e objetividade. É claro que esse reino do fragmentário e do descontínuo é correlato da desmaterialização da criação artística. Contudo, muitas análises também dão um segundo passo, chegando de forma apressada, fácil e indevida a uma pretensa desobjetivização. O argumento parece ser o seguinte: por ser fragmentária e descontínua, a criação artística se desmaterializa (até aí, creio que estamos todos de acordo), o que significaria que ela também perderia sua objetividade. O problema se dá justamente nessa passagem do desmaterializado ao desobjetivizado. De fato, trata-se de uma ilusão: se se admite que há um processo de desmaterialização nas artes em geral, a partir do século XX, é preciso se dar conta de que esse processo se torna, por sua vez, um objeto. Ora, é justamente quando se faz de conta de que há tal desobjetivização, que se abre caminho para a supremacia atual da persona em detrimento do objeto artístico, como discuti acima. Ao contrário, abandonando essa solução tão fácil quanto improdutiva, pode-se descobrir onde está e como se dá a objetividade (desmaterializada, certo!) da arte contemporânea, o que vale dizer que é possível associar a ela algum tipo de unidade. Mais ou menos como o fizeram os românticos, que substituíram a unidade externa do objeto artístico clássico por uma unidade interna baseada frequentemente na imaginação.

Nesse caso, a questão importante é: como propor uma perspectiva de unidade, nesta nossa época em que circulam quantidades imensas de informações, em que a descrição coerente, de agora há pouco, de um dado objeto, de um certo processo, parece ser posta em dúvida pela informação que nos chega no instante seguinte? Diria que é a primeira vez que a humanidade enfrenta tal desafio, em que a informação não se divide apenas em útilinútil einacessível, como antes, mas em útilinútilimpossível de ser processada por nós 34 . Contudo, também o século XVIII representou um salto bem perceptível na quantidade de informação disponível. Kant possuía em sua biblioteca mais de duas centenas de volumes, o que já era uma enormidade diante das bibliotecas particulares que encontrávamos nos séculos anteriores; mas era bem menor diante das bibliotecas do século XIX. É certo que nossa época se baseia num acúmulo impressionante de informações. Diante dela, os séculos XVIII e XIX apresentavam bem menos informações circulando, com muito menos velocidade. E, nessa situação, levou cinquenta anos para que se consolidasse o abandono dos padrões da arte clássica em proveito da arte moderna. Contudo, nesta nossa época, em que há muito mais informação, circulando com muitíssima mais velocidade, isso não implica que as mudanças de paradigmas ocorram com mais rapidez e com mais facilidade. Ao contrário! Minha hipótese é que, muito provavelmente, a consolidação de novos modelos e novos gêneros vai demorar muitíssimo mais. Talvez se possa investigar até a hipótese de que não haverá mais estabilização alguma de gêneros, modelos, padrões, de que não haverá aí progresso algum! É nessa perspectiva, assim, que estou propondo utilizar a expressão atraso do progresso. Em outras palavras, se podemos eventualmente falar de progresso tecnológico, isto é, aceitar que há uma acumulação aparentemente linear de habilidades e de possibilidades técnicas, isso não significa que essa mesma progressividade linear esteja presente em todos os processos culturais 35 . Ora, a própria progressividade dos processos tecnológicos é causa de atrasos, de crises imprevistas, de retornos inesperados de situações (ou seja, semelhantes a algumas já passadas). E é a conjunção desses progressos e desses atrasos que permite acontecer o que estou chamando de avanço. Vou explicar melhor! No caso da sociedade contemporânea, o acúmulo e a circulação de informações progrediram (ou seja, aumentaram) de maneira vertiginosa, mesmo sendo movimentos conflitantes (de fato, acumular e circular se opõem de várias maneiras). Todavia, de quando em quando, aqui e ali, alguma perturbação (inesperada e limitada a alguns locais) no sistema tecnológico faz com que essa oposição se torne explícita, evidente, efetiva: é o que ocorre quando o acúmulo excessivo obstrui a circulação de informações e, ao mesmo tempo, a velocidade se torna obstáculo ao acúmulo de informações. De uma só vez, temos velocidade reduzida com grande acúmulo, e acúmulo deficiente com alta velocidade, numa situação que chega à paralisia e à indecidabilidade. Talvez esteja eu aqui falando algo próximo do que propõe Virilio, quando menciona a possibilidade de um “grande acidente”. Mas há uma diferença: Virilio o esboça como catástrofe, eu o proponho como solavanco, como percalço. No meu modo de ver, são os acidentes que podem fazer com que passemos da ilusão do progresso para a construção e a constatação do avanço. Enquanto Virilio associa ao “grande acidente” um alcance unitário global (e, claro!, catastrófico), procuro entendê-lo como um processo descentralizado, em que não se pode prever quando irá surgir e, quando surge, vem certamente perturbar a lógica progressista das tecnologias, estabelecendo uma dinâmica que, ao contrário, pode estar longe de ser catastrófica.

Em resumo, atraso do progresso é usado aqui no sentido de uma estrutura de acontecimento — à falta de melhor expressão —. Uma estrutura de acontecimento nodal, singular, que surge aqui e ali, quando percebemos um certo deslocamento, um deslizamento de sentidos 36 : algo rompe as lógicas e os sentidos 37 de percurso do progresso tecnológico, para trazer uma dinâmica que se lhe opõe (o travamento; no nosso caso, a impossibilidade de avançar na formulação de modelos, de gêneros, de paradigmas novos). Sem embargo, isso não se resolve pelo esquema hegeliano, pois não parece haver caminho para uma superação dialética em direção de uma síntese. O avanço não se faz como síntese totalizante, como instalação de um modelo a ser submetido futuramente a novo período de contestação (como disse Thomas Khun), mas como um fluxo constante de idas e vindas, mais no sentido de uma dialética heracliteana 38 . Essa dinâmica é importante para entender propostas que surgem no campo da tecnologia, como a recente, de um engenheiro da Microsoft, de um dispositivo supostamente capaz de armazenar toda informação referente à vida de um indivíduo (como se essa bobagem fosse possível). Mas não só! Ela também é fundamental para compreender como paradigmas se desenvolvem no campo da estética, onde, mais claramente, não há uma progressão linear e contínua de modelos ou de padrões, mas um avanço que se constrói também através de hesitações e de recuos. É assim que a proposta de gêneros literários e de elementos de leitura para as textualidades digitais só pode ter alguma viabilidade, se entendemos sua formulação como uma dinâmica de avanço e não de progresso. Nesse caso, os paradigmas estéticos que vamos desenvolver devem estar atentos às dobras e singularidades que podemos vislumbrar na história das artes e na história da tecnologia. São essas dobras e singularidades que nos fazem ver a impossibilidade do progresso linear e que, por isso, nos permitem dar, não uma sobrevida, mas uma nova vida a elementos aparentemente mortos e enterrados, como leitor, autor, obra e texto. Ou a formas discursivas como a narração. Ou a gêneros antigos como a poesia lírica. E não se trataria de dar-lhes uma continuidade, mas de renová-los diante da realidade tecnológica que é essa nossa contemporânea. Esse caso dos gêneros literários digitais é, assim, bastante ilustrativo. No que diz respeito a essa dificuldade de propor categorias, modelos ou tipologias, como já venho afirmando neste ensaio, não se trata apenas de obstáculos passageiros que serão superados assim que tivermos uma visão mais larga, com mais distanciamento temporal das criações digitais literárias (como parece ter acontecido até aqui, na história da literatura). De fato, o progresso tecnológico saturante causa modificações profundas na maneira como podemos (ou não) organizar as criações literárias. Por vezes, parece que surgem ou desaparecem tantos gêneros quanto surgem ou se tornam obsoletos programas de computador usados na criação. Temos diante de nós uma situação em que a sofisticação tecnológica parece ter tornado quase impossível uma categorização dos objetos literários (e artísticos em geral).

Sob outro ponto de vista, essa sofisticação tecnológica não é distinta da atual multiplicação dos instrumentos e das perspectivas de análise teórico-crítica literária. Em outras palavras, a vertiginosa multiplicação informacional também chegou (como não poderia deixar de ser) a nossos instrumentos de leitura. Ampliou-se assustadoramente o acesso a periódicos especializados da área; abriu-se a possibilidade de acesso a gigantescos bancos de dados (que não se comparam aos das ciências exatas ou biomédicas, mas, gigantescos, assim mesmo); é cada vez mais fácil a frequentação de congressos, ou a consulta a seus anais etc. etc. Com tudo isso, é evidente que fica cada vez mais penosa a dinâmica da atualização constante e do (re)conhecimento das teorias e das críticas que vão sendo feitas e publicadas. Dinâmica que é imposta como moeda-corrente no mercado da notoriedade intelectual e acadêmica. Dinâmica que tenta esconder os óbvios (e cada vez mais prementes) problemas para se manter o ritmo de sofisticação das teorias e dos aparatos críticos que se verificava até há algumas décadas atrás. Em outras palavras, temos também aqui uma situação em que o progresso das teorias e das críticas levou muitos de nós, de fato, a uma imobilização intelectual. Mas esta, muitas vezes, vem a ser disfarçada a golpes de citacionismo desenfreado, vocabulário absconso, arrogância hermética. Assim, o melhor que a maioria dos atuais críticos e teóricos consegue fazer é improvisar um ecletismo à la mode, leviano e passageiro, brandindo algumas das últimas novidades para esconder a angustiosa sensação de que elas seriam, de fato, as penúltimas, e já estariam correndo o risco de uma iminente desatualização. Assim, como propor gêneros mais estáveis que permitiriam estabelecer tipologias convincentes e produtivas? Impossível, diriam muitos leitores. Dessa maneira, parece que temos diante de nós, novamente, uma situação em que a sofisticação dos elementos de um setor cultural (a teoria e a crítica literárias) causou, ao revés, uma limitação dos processos de compreensão de seus objetos. Essa virtual impossibilidade de propor gêneros, sejam duradouros ou não, pode ser entendida como mais outro sintoma desse atraso do progresso. Ora, outras épocas passaram por essa situação de dificuldade ou mesmo de impossibilidade de propor gêneros. Foi o caso das literaturas medievais ibérico-provençais. E nem por isso os críticos e teóricos que a estudaram deixaram de sistematizar suas visões e suas leituras das obras produzidas naquele período, adaptando ou propondo outras tipologias (como a noção de registro, em lugar de gênero). Em nossa época digital, me parece perfeitamente possível aprender com esse passado em que a noção de gênero era estranha a criadores e a leitores. Pode ser um caminho interessante a seguir, encontrando aí uma maneira de chegar a um avanço na compreensão das obras literárias digitais (à semelhança do que já fiz acima, quando propus voltar ao século XVIII para deslindar impasses do nosso século XXI).

De outro lado, uma possibilidade que se apresenta a mim, como criador, pode ser a construção artificial de uma situação em que possa observar mais de perto essa dinâmica do avanço. Seria como uma singularidade artificial 39 , criada e utilizada para adquirir algum conhecimento dela e algum controle sobre esse processo. Em outras palavras, trata-se de inventar, através de um processo da criação artística, uma situação em que o progresso (a rapidez, a quantidade) das tecnologias seja contestado pelas limitações inerentes à arte; e trata-se também de acelerar os gestos artísticos pela influência inegável da velocidade dos processos tecnológicos contemporâneos. É o que estou tentando fazer atualmente, com uma criação que denomino Pequeno jornal das notícias diárias desimportantes. Trata-se de um esforço consciente para diluir um gênero tradicional (a narrativa) e uma retórica específica (a dos jornais), dentro do gênero e da retórica dos poemas em versos, propondo um deslocamento constante de gêneros, um deslizar incessante entre sistemas retóricos diferentes; trata-se de uma tentativa para experimentar ritmos arcaicos, como os do hai-kai e os da terça-rima, perturbando-os ou acelerando-os com os linques e as contínuas sobreposições dos significantes digitais. No caso, é importante sublinhar que não se trata da formulação de conceitos através da criação literária (e já conhecemos bastante bem os equívocos e as fraquezas das artes conceituais). Afinal, fazer da arte apenas uma crítica aos mitos da tecnologia ou limitar-se a uma anteposição de “arte elevada” a “tecnologias depravadas”, significaria uma simples retomada de posturas já gastas do século XIX (lembremos Marx: “a história ocorre uma vez como tragédia, depois se repete como farsa”). Esse confronto entre arte e tecnologia, feito através da criação artística, não pode ser um fim nele mesmo (novamente: cairíamos aí na mera e paupérrima arte conceitual). Essa contraposição que estou buscando não é conteúdo a expressar, nem conceito a exprimir, nem ideal a defender. Repito, não é um fim, mas um meio para atingirmos uma arte que expresse e permita expressar a experiência humana nos dias de hoje. E nos faça trabalhar com toda a complexidade da criação, campo onde todo avanço nasce justamente dos atrasos do progresso.

 

1- Este trabalho foi realizado graças a uma bolsa concedida pela CAPES.
3-“Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically.”
4-Sobre excesso e excessivo, ver o meu livro Leituras de nós. Ciberespaço e Literatura. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, pp. 113 e ss.
5- “Miguel Angel”, Sobre la aventura. Ensayos filosóficos. Barcelona: Península, 1988, p. 132.
6-A respeito dessa lógica, verwww.inf.ufsc.br/~barreto/trabaluno/TC_Nerio_Mauricio.pdf ou www.cfh.ufsc.br/~dkrause/pg/cursos/lparac.htm.
7- Por “saturação”, não quero entender nenhum processo em vias de finalização, ou que apresente uma aproximação assintótica com algum limite definitivo. Saturação, aqui, diz respeito à complexidade heterogênea dos muitos processos e objetos tecnológicos com que lidamos no dia-a-dia e aos quais somos praticamente obrigados a atribuir um sentido imediato e pragmático.
8- Em Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, o mesmo Fernando Pessoa faz seu heterônimo Alberto Caeiro dizer, pela voz de Álvaro de Campos, outro heterônimo: “Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?”.
9- E diga-se que, no campo tecnológico, lógicas de projeto e lógicas de construção não são necessariamente as mesmas, a despeito de os técnicos assim o afirmarem.
10- Como discutido em meu trabalho “La technologie: un récit”, apresentado no seminário L’internet littéraire francophone, em Cerisy-la-Salle, agosto de 2005.
11- Estou me referindo sobretudo a seu romance Le surmâle. Ibid.
12- “From Social Computing to Reflexive Collective intelligence: The IEML Research Program” – http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML-Levy.pdf.
13- “Une poétique fondée sur l’échec”, passages d’encres 33. poésie : numérique, 2008, pp. 119-122.
14- Hypertexte et art de l’ellipse. D’après l’étude de NON-roman de Lucie de Boutiny- http://www.utc.fr/~bouchard/articles/Bouchardon_article-cahiers-du-numerique.pdf.
15- E este último ponto-de-vista implica quase sempre uma visão psicologizante do leitor.
16- Que, a bem da verdade, já havia sido anunciada antes do advento da era digital, como bem se sabe.
18- Como ele afirma em Les Technologies de l’intelligence.
19- Recentemente, em palestra organizada pelo Instituto Madroño, em Madri, com a participação de profissionais da Springer-Verlag, tentava-se vender um banco de imagens da editora, e um dos argumentos favoráveis foi tirado da fala de uma usuária das imagens disponibilizadas pela Springer, que afirmava: “You can in fact skip reading the whole paper, and honestly that is a huge improvement…”
20- Especialmente abordagens teóricas de Julia Kristeva e Gérard Genette.
21- Do mesmo modo como não controlamos nem contamos os valores infinitos Y de uma função matemática, mas podemos calcular e controlar os valores de X, nos pontos em que ela é infinita. Um bom exemplo é a função tangente:
22- Problema que, de fato, não atinge apenas o modo de tratar com as criações digitais, ou seja, ao modo como se articulam concepções teóricas e explorações críticas, mas diz respeito também ao modo como estas minhas reflexões e este meu artigo estão sendo construídos.
23- “O ser e o existir do poema digital”. Gragoatá, Niterói, v. 16, p. 143-152, 2005.
24- Publicado em Arte y Poesía, tradução de Samuel Ramos, Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
25- Como ouvi em recente defesa de um trabalho acadêmico.
26- Que já nem mesmo é mais uma criação específica, mas a generalidade do campo artístico.
27- El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 134.
28- Picasso podia dizer, com toda autoridade, “je ne cherche pas, je trouve”, mas quantos picassos temos hoje em dia? Pelo que dizem de si mesmos, milhões. A julgar por suas criações, pouquíssimos.
29- E era a primeira vez que esta categoria ganhava assento no campo artístico.
30- http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k101303h.r=.langPT#. Como outras referências deste meu trabalho, devo esta à muito útil Historia de las ideas estéticas y de las teorias artísticas contemporáneas, organizada por Valeriano Bozal (Madri: A. Machado Libros, 2004).
31- O que não quer dizer que as tenham solucionado.
32- Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Ouhttp://www.culturabrasil.pro.br/schwarz.htm.

33- Rapidamente, diria que, no caso dos objetos artísticos digitais, a unidade está onde sempre esteve, isto é, na estreita e incontornável tensão entre sujeito e objeto. Quero dizer, com isso, que a unidade não se encontra numa inteireza independente do objeto, tal como pregavam as estéticas clássicas; nem numa decisão unilateral e constituinte do cogito, tal como impunham os racionalismos tradicionais. Ela está numa adesão (que é também tensão, como disse acima) que se estabelece entre leitor e obra, de maneira que o leitor (sujeito) se torne obra por meio de seu objeto, quando reconhece a adesão com seu objeto: nesse caso, ele, sujeito, se dá a ler quando lê a obra, se dá a ler por outros e por ele próprio. Mas isso é discussão para ser aprofundada em outra ocasião, não aqui!

34- Como indica John Freeman em uma das epígrafes deste ensaio. No trabalho “La technologie: un récit”, acima citado, mencionei as estratégias de esquecimento próprias à nossa cultura de saturação tecnológica e que seriam necessárias para construir o conhecimento em nossa época.
35- De fato, ela não está nem mesmo na tecnologia, mas isso é discussão que escapa dos limites deste trabalho.
36- Semanticamente falando.
37- Topologicamente falando.
38- Como já venho apontando desde o início deste ensaio.

39- Singularidade no sentido das matemáticas; artificial no sentido que lhe empresta Pessoa, na epígrafe.

 

* Alckmar Luiz dos Santos é pesquisador convidado da Universidad Complutense de Madrid, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.

 

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A cidade dividida nas charges de Mangabeira | de Marcelino Rodrigues da Silva


“No futebol, cada clube não tem uma torcida, tem um partido organizado,
e eles se aliam ou se separam conforme os azares do campeonato.”

Carlos Drummond de Andrade

Estado de Minas, 21 out. 1956.

Se o mundo do futebol pode ser visto como um grande teatro no qual se projetam os sentimentos de pertencimento, sofrimentos e aspirações de indivíduos e grupos sociais, o discurso jornalístico é certamente a principal instância em que essas significações são produzidas, compartilhadas e cristalizadas. Por isso, é no jornalismo esportivo que tenho concentrado as atenções, ao longo de minha trajetória como pesquisador, em busca de elementos que ajudem a compreender o complexo fenômeno cultural que se desenvolveu em torno do futebol no Brasil.1

 

Após dispensar alguns anos à pesquisa sobre a construção e o funcionamento da mitologia esportiva nacional, que historicamente teve o Rio de Janeiro como seu palco principal, tenho me dedicado mais recentemente ao estudo do passado e do imaginário do futebol em Belo Horizonte, cidade onde nasci e continuo vivendo. Nessa investigação, inevitavelmente dispersa em diferentes momentos do século XX, as décadas de 1940 a 1960 acabaram se impondo como as mais significativas, por marcarem a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, fato de inegável relevância na vida esportiva belo-horizontina e mineira. Para um breve panorama desse trabalho, pode servir como ponto de partida a história do surgimento dos mascotes dos clubes e a produção do artista que os concebeu.

Os símbolos dos principais clubes de futebol de Belo Horizonte (o Galo para o Atlético, a Raposa para o Cruzeiro e o Coelho para o América) foram criados pelo desenhista Fernando Pierucetti (1910-2004), em 1945, para o jornal Folha de Minas, que tinha uma das seções esportivas mais vibrantes da imprensa mineira daquela época. No ano seguinte, o artista se mudou para o Diário da Tarde e pouco depois para o Estado de Minas, onde continuou publicando por várias décadas. O surgimento dos mascotes foi motivado pelo desejo de Álvares da Silva, secretário da Folha de Minas, de lançar charges parecidas com as que, na mesma época, o Jornal dos Sports publicava no Rio de Janeiro (o Flamengo era o Popeye, o Fluminense o Pó-de-arroz, o Vasco o Almirante, o Botafogo o Pato Donald e o América o Diabo). Ao pedido de Álvares da Silva, Fernando Pierucetti, que era professor de desenho e ilustrador do suplemento literário e da página infantil do jornal, respondeu com a proposta de fazer os mascotes no espírito das fábulas de Esopo e La Fontaine, mas utilizando animais da fauna brasileira. Adotando o pseudônimo de Mangabeira, ele fez os desenhos, não só para os mascotes de Atlético, Cruzeiro e América, mas também para diversos outros clubes da capital e do interior do estado.2

 

Estado de Minas, 14 jan. 1968.

A inspiração para a escolha dos bichos vinha, em grande medida, de elementos que já faziam parte da imagem dos clubes: o Atlético, com sua fama de “bom de briga” e seu uniforme preto-e-branco, que lembrava um galo da raça carijó, seria o Galo; o Cruzeiro, que costumava ter dirigentes italianos de incomparável esperteza para os negócios (como Mário Grosso, presidente da época), seria a Raposa; o América seria o Coelho, que era o sobrenome de vários diretores do clube e combinava com a sua personalidade “fagueira”; o Villa Nova, de Nova Lima, seria o Leão, pois “fazia os adversários sentirem-se em seu estádio como leões na arena”; o Siderúrgica, criado em Sabará por funcionários da Usina Belgo-Mineira, seria uma tartaruga com a carapaça dura como aço; e assim por diante. 3

Desde o seu nascimento, portanto, os bichos de Mangabeira capturavam algumas das significações, tendências e possibilidades de desenvolvimento futuro que estavam em jogo naquele momento da história esportiva da cidade. O Atlético, forte desde as primeiras décadas do século e cada vez mais querido pelos torcedores das classes populares, e o Cruzeiro, que com astúcia e perseverança vinha se tornando cada vez mais poderoso, já começavam a cultivar a rivalidade ritual que dividiria a cidade ao meio, duas décadas depois. Enquanto isso, o América se encontrava num lento processo de decadência, que começou na década de 1930 e se completou apenas nos anos 1960. O combate fabuloso entre o Galo, que defende bravamente seu terreiro das ameaças externas, e a Raposa, bicho atilado que busca com astúcia invadir o território inimigo, foi logo assimilado pelos adeptos de ambos os clubes. Conta-se, por exemplo, que Zé do Monte, ídolo do Atlético nas décadas de 1940 e 1950, costumava entrar em campo com um galo debaixo do braço. Em resposta, a torcida cruzeirense prometia soltar uma raposa em campo, para caçar o bicho de Zé do Monte.

Mas a história da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro não pode ser contada sem um recuo às primeiras décadas do século, quando a recém-fundada nova capital do estado dava seus primeiros passos. Já nesses anos iniciais, a prática de esportes como o turfe e o ciclismo fazia parte da vida belo-horizontina, como componente de um imaginário de sofisticação e modernidade que inspirou o projeto de construção da cidade. Os primeiros clubes de futebol surgiram em 1904, com a chegada de Victor Serpa, um estudante de família abastada que vinha de uma temporada na Europa, trazendo as últimas novidades da metrópole. O Atlético, fundado em 1908, e o América, criado em 1912, foram os principais clubes desse primeiro momento da história futebolística de Belo Horizonte, e cultivaram entre si uma acirrada rivalidade, cuja significação principal estava no caráter elitista e de distinção social que o futebol emprestava a seus adeptos naquela época.4

Entretanto, não demorou muito para que a popularização do esporte provocasse uma transformação nesse panorama. Entre os indícios da mudança, está o próprio surgimento do Palestra Itália, em 1921, por iniciativa dos membros da colônia italiana da cidade, que era predominantemente formada por operários, artesãos, comerciantes, trabalhadores da construção civil etc. Outro momento de grande importância foi a criação da primeira liga profissional de futebol, em 1933, como resultado da presença cada vez maior de interesses econômicos de dirigentes e atletas, decorrentes da popularização do esporte. Enquanto Atlético e Palestra aderiram ao profissionalismo, seguindo uma tendência de crescimento e modernização que se manifestava em diversos campos da vida cultural belo-horizontina, o América permaneceu amador, capitulando ao profissionalismo apenas em 1943, fato que certamente interferiu de maneira decisiva em sua trajetória posterior.

Embora o Palestra já tivesse surgido como um clube forte, conquistando três títulos na década de 1920, o confronto entre Atlético e América continuou sendo considerado, por muito tempo, o principal clássico da cidade, recebendo da imprensa o epíteto de “clássico das multidões”. Na década de 1930, marcada institucionalmente pela profissionalização, a hegemonia esportiva esteve sintomaticamente nas mãos do Villa Nova, clube que tem suas raízes ligadas aos operários da mina do Morro Velho, em Nova Lima. Nos anos 1940 e 1950, o Atlético se manteve sempre no primeiro plano, enquanto o América continuava em lenta decadência e o Cruzeiro em progressiva ascendência. A única exceção foi o ano de 1948, quando o América conquistou o título estadual diante do Atlético, num confronto antológico que pode ser considerado como o último avatar da grande rivalidade que houve entre os dois clubes nos primeiros decênios do século. Foi apenas na década de 1960 que o Cruzeiro passou a ser amplamente considerado como o principal rival do Atlético, conquistando títulos importantes e ampliando sua torcida graças a um time sensacional, formado por craques como Tostão, Dirceu Lopes e Piazza.

A decadência do América e a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro foram fartamente registradas e comentadas por Mangabeira, em seus desenhos para o Estado de Minas. Como no início de 1968, quando uma curiosa série de charges lamenta a agonia do Coelho, contrapondo-a à supremacia que Galo e Raposa vinham exercendo na eterna luta entre os bichos do futebol mineiro. Em 20 de janeiro daquele ano, por exemplo, o desenho de um globo terrestre dominado por Galo e Raposa, enquanto o Coelho levita para o “outro mundo” onde estão os bichos “que também já morreram”, vem acompanhado de uma longa legenda que começa assim: “o Super-Coelho entra hoje, definitivamente, no esquecimento. Já foi enterrado e agora pertence ao mundo dos mortos. Enquanto na terra todos falam na eterna briga do Galo com a Raposa, o Super-Coelho caminha para o Além…”

Estado de Minas, 20 jan. 1968.

Na criação dos mascotes, como vimos, Mangabeira se inspirou em determinados elementos que já faziam parte do imaginário esportivo da cidade, trazendo para a simbologia dos bichos muitas das significações que já estavam projetadas nos clubes naquele momento. Além da referência ao uniforme do clube – listado como um galo carijó –, o Galo de Mangabeira remetia à mística do “vingador”, cultivada pelo Atlético desde os seus primeiros anos e ressignificada com a popularização do clube a partir dos anos 1930. Da história de uma sequência de jogos em 1913, contra o Granbery de Juiz de Fora, a fama de vingador se transmutou na mística da raça e da paixão desmedidas, que hoje é marca registrada do time e da torcida atleticana. Citando uma reportagem de João Vianna de Oliveira, publicada no jornal O Debate em 1956, a Enciclopédia do Atlético, de Adelchi Ziller, define assim a inspiração de Mangabeira para compor a personalidade do mascote atleticano:

O Atlético é um time que vende caro uma derrota. A vantagem do adversário no placar não lhe tira a garra. Parece um galo de rinha. Um galo na rinha? Justamente: seu símbolo será o Galo, o Galo Carijó, entrando o adjetivo na história por obra e graça de suas cores tradicionais: preto e branco. E o Atlético surgiu nas charges de Mangabeira a caráter: raça de brigão, de sujeito mal encarado, o bico adunco e sempre pronto para rasgar a carne antagonista.5

A escolha da Raposa como símbolo do Cruzeiro, por sua vez, fazia referência à trajetória de muitos dos membros da colônia italiana em Belo Horizonte, cuja astúcia para os negócios possibilitou a ascensão às camadas privilegiadas da população da cidade. Ao lado dessa astúcia, que emula uma racionalidade prática típica do capitalismo, o trabalho e a perseverança também marcaram a trajetória daqueles imigrantes e compõem o cerne da mitologia do clube. Na narrativa das tradições cruzeirenses, dispersa nas diversas publicações que falam sobre sua história, esse traço herdado da origem é constantemente lembrado, como justificativa para o crescimento paulatino e constante da agremiação ao longo do século XX. Como, por exemplo, no livro De Palestra a Cruzeiro, de Plínio Barreto e Luiz Otávio Trópia Barreto, que encerra sua narrativa da fundação do clube tocando de modo conciliador na difícil questão da assimilação dos italianos à sociedade belo-horizontina:

O Palestra nasceu como um clube do povo, diferente de seus atuais dois grandes rivais regionais (…) era a agremiação dos que arregaçavam as mangas nas indústrias da panificação, nos andaimes das construções civis, nas oficinas de calçados, nas serrarias, marcenarias e serralherias, na condução das carroças. Onde houvesse um setor cuja mão-de-obra (…) fazia-se necessária, lá estava um palestrino – italianos e brasileiros – colaborando com o seu trabalho para o progresso da nova Capital. Lado a lado, clube e cidade caminhavam rumo ao progresso.6

Metaforizada pela eterna luta dos dois bichos na disputa pelo terreiro belo-horizontino, a rivalidade ritual entre Atlético e Cruzeiro parece, então, opor dois conjuntos diferenciados de representações e valores, por meio dos quais se constroem duas imagens distintas. Se hoje ambos os clubes reivindicam para si o atributo “popular”, não há dúvidas de que se trata de duas formas diferentes de ser popular. O Atlético, com sua mitologia da raça e da paixão desmedida, parece reafirmar a diferença de um povo passional, intuitivo e sofredor, personificando a heterogeneidade e as energias incontroláveis das massas e opondo-se ao processo de modernização. O Cruzeiro, por sua vez, reforça o vetor desse processo com suas raízes na ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e seu ideário marcado por valores e atributos como trabalho (o próprio fundamento do sistema capitalista), perseverança, astúcia e sucesso. 7

Essas significações reverberam, de forma diluída e disseminada, em inúmeros discursos do imaginário esportivo belo-horizontino. A fundação do Atlético por um grupo de estudantes de boa família é contada como um momento de rebeldia inconsequente de garotos que mataram aula para se encontrar no coreto do Parque Municipal. O ambiente social elitista dos primeiros anos é amenizado pela figura acolhedora de dona Alice Neves, mãe de um dos fundadores que acolhia os primeiros encontros do grupo e é tomada como símbolo de um clube que “soube se abrir para o mundo” e “foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta”. 8 No panteão dos grandes ídolos atleticanos, destacam-se figuras como o humilde e folclórico Dario Peito de Aço e o negro Ubaldo, que fazia “gols espíritas” na década de 1950 e foi carregado pela massa do estádio Independência até o centro da cidade após um jogo em 1955, num episódio de verdadeira comunhão do clube com o povo. Mediação social e potencial de conflito fundem-se na mitologia do Galo de uma forma semelhante à que, dentro de certa tradição cultural, tem sido identificada como característica definidora da identidade nacional brasileira, baseada na hibridação étnica e cultural e na conciliação sempre tensa das diferenças.

Do outro lado da fronteira simbólica que divide a cidade ao meio, na galeria de herois cruzeirenses os craques do gramado (muitos deles de origem italiana) dividem as glórias com dirigentes quase tão celebrados quanto os próprios jogadores. Como os pioneiros Aurélio Noce e Antonio Falci, e depois Mário Grosso, Felício Brandi, Carmine Furletti etc. A trajetória histórica do Cruzeiro é vista como uma linha contínua de ascensão, “sem lances de heroísmo pungentes” e marcada pela “simplicidade de um trabalho constante e reiterado, quase anônimo, cuja somatória, ao correr do tempo, conferiu a dimensão grandiosa, internacional, universal, de um dos maiores clubes do mundo”. 2Trabalho, racionalidade e sucesso, portanto, se fundem na mitologia cruzeirense para compor uma imagem heroica do popular, evocando a ideia da multidão de trabalhadores que marcha triunfalmente em direção ao progresso.

Os ecos dessas significações ainda se fazem presentes na cena contemporânea. Se a torcida do Atlético é fiel e apaixonada, a do Cruzeiro é exigente, ranzinza, acostumada a cobrar o desempenho de seu time. À possessão da “Galoucura”, encarnando a paixão atleticana, o Cruzeiro opõe a organização e a diligência de sua “Máfia Azul”. No universo da administração dos clubes, o Atlético tem uma mentalidade quase populista, dependendo de um líder forte e carismático como Alexandre Kalil, capaz de superar a corrupção e o desmando e entrar em sintonia com a massa. Enquanto isso, o Cruzeiro vive os benefícios de uma sequência de boas administrações, encabeçadas pelos irmãos Perrella, verdadeiras raposas quando se fala em negócios. Dentro de campo, o rebaixamento do Atlético para a série B do Campeonato Brasileiro e a volta para a série A, em 2005 e 2006, foram vividos dramaticamente, como mais um episódio de superação do “vingador”. Ao passo que a “tríplice coroa” do Cruzeiro, com a conquista do Campeonato Mineiro, da Copa do Brasil e do Campeonato Brasileiro em 2003, foi mais uma “página heroica” na trajetória cruzeirense.

Estado de Minas, 26 out. 1956. Estado de Minas, 9 dez. 1958.

Curioso notar, no entanto, que a simbologia dos clubes captada pelo traço de Mangabeira elide certos elementos que, de certa forma, apontam para o caráter de artifício dessa tradição inventada.10< Na história atleticana, por exemplo, é difícil assimilar a origem elitista dos garotos que fundaram o clube em 1908. Por isso o acontecimento tem que ser deslocado e transformado pelas narrativas da tradição em um lance de rebeldia, que já prefigurava a identidade que o clube consolidaria ao longo do século. E, na trajetória do Cruzeiro, é flagrante o incômodo que se manifesta nos relatos sobre o momento traumático vivido pelo clube em 1942, quando foi forçado a mudar de nome (de Palestra para Cruzeiro) por um decreto do governo federal que proibia referências aos países do Eixo, num episódio cercado por um pesado clima de animosidade contra os membros da colônia italiana em Belo Horizonte. Com sua referência aos céus brasileiros, a escolha do novo nome do clube deixa entrever o caráter problemático do processo de integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira, projetado na necessidade imposta pela guerra de optar entre a fidelidade às origens e a assimilação por uma nova comunidade nacional.

Assumindo algum risco (pelo menos o de ser censurado por ambas as torcidas), seria possível dizer que essas duas narrativas de tradição clubística se assemelham na ambiguidade, oferecendo à sociedade duas alternativas para a solução simbólica do conflito entre o povo e as elites, necessária ao processo de modernização: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida no Atlético, e a ideologia liberal-capitalista da ascensão pelo trabalho, encarnada no Cruzeiro. Daí a necessidade de mitificar a origem, de esquecer os ressentimentos e de selecionar no passado os lugares da memória que sustentarão a tradição. Para que a popularidade se constitua, é preciso assimilar a origem social daqueles garotos que “mataram aula” para fundar o Atlético, é preciso esquecer momentos de tensão e violência que ameaçaram a integração italiana na cidade.

Desse ponto de vista, ao invés de uma simples oposição, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro pode ser vista como uma complementaridade, que naturaliza e cristaliza a dicotomia entre o tradicional e o moderno, tão disseminada no imaginário e na historiografia belo-horizontina, substituindo e dissimulando outros antagonismos, entre o povo e as elites, brasileiros e italianos etc. Tornados populares, os dois clubes mantêm uma relação especular. O Atlético inveja e busca a racionalidade cruzeirense e o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana. Os rojões preparados para uma vitória que não chegou hoje poderão sempre ser utilizados na derrota do rival amanhã. A força simbólica de um depende da presença do outro, assim como a cidade precisa conciliar modernidade e tradição, povo e elite.

De certo modo, esta opção interpretativa mais radical nos lembra que, mesmo se estiver fundamentada na experiência dos grupos sociais que se envolveram com os clubes ao longo de sua história, qualquer outra interpretação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro terá algo de abusivo e suplementar. As histórias do futebol e da vida são sempre mais complexas do que os mitos identitários e as construções historiográficas. É preciso reconhecer que tende para o esquematismo qualquer tentativa de “explicar” o universo futebolístico por meio do enquadramento, da classificação e da oposição clara e coerente dos signos esportivos. Porque o futebol, como esporte, espetáculo e universo comunicacional, extrai sua eficácia justamente da capacidade de produzir narrativas que se cruzam, diversificam e desdobram, ao sabor das circunstâncias e das posições enunciativas. É bastante oportuna, portanto, a advertência dada por José Miguel Wisnik, em seu recente livro sobre o futebol, sugestivamente intitulado Veneno remédio:

A divisão da população de uma cidade em times rivais, claramente dualizada em algumas cidades, como acontece com Grêmio e Internacional em Porto Alegre, Atlético e Cruzeiro em Belo Horizonte, e Bahia e Vitória em Salvador, obedece, para além dos perfis sociológicos, a uma necessidade antropológica: a de se dividir em “clãs totêmicos” mesmo no mundo moderno, e disputar ritualmente, num mercado de trocas agonísticas, o primado lúdico-guerreiro, como se não fosse possível ao grupo social existir sem suscitar por dentro a existência do outro – o rival cuja afirmação me nega me afirmando.11

A rivalidade especular entre Atlético e Cruzeiro tem a ver, certamente, com essa “necessidade antropológica” de afirmação e negação do outro, como condição para a realização do jogo social pelo qual se dá circulação dos poderes, sentidos e valores em uma coletividade. Presente tanto na política quanto no esporte, essa necessidade antropológica do jogo e da rivalidade pode ou não encontrar expressão contextualizada mais definida, com contornos razoavelmente legíveis. De qualquer modo, as tensões e os antagonismos sociais estarão sempre presentes, estabelecendo configurações que desafiam a interpretação.

 

* Marcelino Rodrigues da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor adjunto da Faculdade de Letras da UFMG. Realizou pesquisa de Pós-Doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), com financiamento do CNPq.

 

NOTAS

1 Cf. SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
Cf. também SILVA, Marcelino Rodrigues da. O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues. 1997. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários.), Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte.

2 Cf. GALUPPO, Ricardo. Raça e amor: a saga do Clube Atlético Mineiro vista da arquibancada. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 77-78.
Cf. também ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Belo Horizonte: Ed. Lemi, 1974, p.221-223.

3 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 78.

4 Sobre a história do futebol em Belo Horizonte nas primeiras décadas do século XX, cf. COUTO, Euclides de Freitas. Belo Horizonte e o futebol: integração social e identidades coletivas (1897-1927). 2003. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC Minas, Belo Horizonte.
Cf. também RIBEIRO, Raphael Rajão. A bola em meio a ruas alinhadas e a uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). 2007. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo Horizonte.

5 Citado por ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Op. cit, p. 223.

6 BARRETO, Plínio e BARRETO, Luiz Otávio Tropia. De Palestra a Cruzeiro; uma trajetória de glórias. Belo Horizonte: [s.ed.], 2000, p. 25.

7 Como referência para a discussão teórica sobre as relações entre a cultura popular urbana e o processo de modernização nas sociedades periféricas, cf.:
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 247-264.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

8 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 41.

9 SANTANA. Jorge. Páginas heróicas; onde a imagem do Cruzeiro resplandece. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 32.

10 Para a discussão teórica sobre o papel da memória e do esquecimento na constituição das narrativas identitárias, cf:
BHABHA, Homi K. Disseminação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.198-238.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989, p.3-15.

11 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 51.

 

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Desentranhando Luis Olavo Fontes – Entrevista, por Masé Lemos

Entrevistar o poeta Luis Olavo Fontes foi uma experiência muito agradável. O “Lui”, como ele é conhecido pelos amigos, domina a arte da boa conversa. Com o seu jeito carioca e sem nenhum pedantismo, ele foi capaz de refazer o seu “retrato de época”, ou seja, da chamada poesia marginal da qual participou ativamente. Essa entrevista foi gravada, transcrita e depois revisada e editada. Ela é uma tentativa de preencher a lacuna do livro de Carlos Alberto Messeder Pereira, pois o Lui, na época, estava literalmente viajando.

Masé Lemos: Você participou nos anos 1970 do movimento chamado “poesia marginal” e em recente minibiografia que você escreveu diz que você seria “um poeta marginal dentro dos marginais ou que teria sido marginalizado nos anos 70 e esse teria sido o seu fim”. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lui: Há dois assuntos na sua pergunta. Primeiramente, em relação a mim, ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros, fundei com o Cacaso a coleção “Vida de Artista”, participei de antologias e fiz muitos trabalhos em jornais e revistas da época. Aconteceu que a melhor e mais completa pesquisa sobre a “poesia marginal”, o livro Retrato de Época de Carlos Alberto Pereira, foi feito em 1977 quando eu não me encontrava no Brasil. Ele entrevistou todo mundo menos eu. Fiquei de fora – marginalizado dentro dos marginais
Além disso, havia contra a poesia marginal um preconceito muito grande, a começar pelo nome. Na verdade, não sei quem deu esse nome, mas não fomos nós. Marginal ali ninguém era. O que havia é que nossos livrinhos eram marginais ao circuito editorial. Com isso, nos livrávamos da censura dos militares, muito rígida na época – censuravam tudo e todo mundo – e também de todos os intermediários – livrarias, distribuidores, editores. Vendíamos diretamente do autor para o leitor. Agora, marginal é uma palavra muito vasta, dá margem a muitos significados pejorativos que a alguns agrada, a outros não.

ML: Essa marginalidade não era também uma forma de resistência a esse sistema editorial? Não só politicamente contra a censura, mas também uma maneira de furar esse, digamos assim, sistema capitalista?
L: Claro que sim. Até porque éramos muito jovens e não conseguiríamos entrar no sistema editorial, ainda mais publicando poesia, algo difícil até hoje. Qualquer jovem que queira publicar poesia vai sofrer a mesma coisa que nós sofremos naquela época. É como você disse: as editoras são empresas capitalistas, feitas com o intuito de gerar lucro. E poesia não dá lucro… Aí vem aquelas frases: poesia está fora do mercado, não dá dinheiro etc. Então era sim uma maneira de furar esse mercado editorial e tentar criar um outro circuito: vender em bares, na praia, no teatro, na rua, no mundo.

ML: A poesia de vocês tem muito do Modernismo…
L: Com certeza. Literariamente falando, nossa maior influência era o Modernismo. O Brasil mudara muito de 68 a 73. Houve a revolução sexual, a televisão a cores com satélite para todo o país. Nós queríamos descobrir esse novo Brasil que estava nascendo. Daí talvez a ligação com os modernistas. As maiores influências eram Manuel Bandeira (de Libertinagem em diante), Oswald de Andrade, Drummond de Alguma Poesia, Murilo Mendes do Poemas, enfim, aquela fase modernista inicial dos anos 1930. Quase me esqueço: Mário de Andrade a gente também lia muito. A outra grande influência vinha da música: Tropicália, samba e rock’n roll. Bob Dylan, John Lennon, Jimi Hendrix, Caetano, Chico Buarque – esses eram os nossos gurus. Eu, particularmente, adorava João Gilberto e o Jim Morrison dos Doors.

ML: E qual relação de vocês com os concretos?
L: Não havia relação… A relação com os concretos me faz lembrar o Cacaso. Cacaso era cheio de frases de efeito, um mestre das respostas rápidas. Uma vez ele disse: “o concretismo é o AI-5 na poesia.” Os paulistas ficaram furiosos. Nós vivíamos o AI-5 naquela época, era o auge dos anos de chumbo da ditadura militar, o governo do General Médici. Cacaso queria fazer não uma poesia engajada tradicional, mas uma poesia de denúncia dos crimes da ditadura, dos horrores da tortura, da violência, do autoritarismo. Mesmo porque havia censura e ninguém sabia o que estava realmente ocorrendo. Cacaso não se conformava com o fato dos concretos terem abolido o discurso literário – com a velha desculpa pernóstica de que “tudo já foi escrito.” Ele dizia, com alguma razão, que a poesia concreta só contribuía para uma maior alienação da poesia brasileira. Fatos terríveis estavam acontecendo e a poesia concreta estava fazendo “Coca-Cola”, “Luxo é Lixo” – poemas alienados que mais pareciam “slogans” publicitários. Ele propunha que a poesia voltasse a ter um discurso, que fosse mais reflexiva, que se aproximasse mais da realidade, e o concretismo realmente estava em outra onda, algo mais “clean”, mais estético – o formalismo em estado puro – que os aproximava mais das artes plásticas do que da literatura.

ML: O que é interessante é que desde os concretos era comum relacionar a poesia artesanal ao individualismo, mas na poesia dita marginal essa ideia de artesanato está muito mais ligada ao coletivo.
L: É verdade. Em termos de produção, eram sempre criações coletivas. É o caso do Almanaque Biotônico Vitalidade, cujo primeiro número foi um exemplo disso. Poetas, pintores, fotógrafos, “designers”, se reuniram e o resultado foi ótimo. O mesmo ocorreu nos primeiros livros da coleção “Vida de Artista”, que foram feitos coletivamente, um monte de gente junta, na fazenda do meu avô. Já com relação à produção poética, acho que as individualidades predominam e são bem definidas. Não concordo com pessoas que rotulam “poesia marginal” como uma coisa una, todos escrevendo parecido. Acho que individualmente éramos muito diferentes e isso se refletia em nossa poesia. A poesia da Ana Cristina é totalmente diferente da do Chacal. A poesia do Chico Alvim é muito diferente da do Cacaso. E todos são considerados poetas marginais.

ML: Como foi dito, no livro Retrato de Época: poesia marginal de Carlos Alberto Pereira, há várias entrevistas com os componentes da “Vida de Artista”, mas você não foi entrevistado. Por onde você estava viajando na época?
Lui: Estava fazendo a grande viagem da minha vida, uma viagem de volta ao mundo. Era um sonho antigo de conhecer o Oriente, a Índia, a China… Nos meus planos iniciais, era uma viagem que iria durar entre 3 e 6 meses, mas acabou durando 2 anos. A ideia era seguir a rota de Marco Polo, de Veneza a Pequim pela Estrada da Seda e voltar pela Ásia do Sul – exatamente como foi a viagem de volta de Marco Polo. Mas, o Sikiang (oeste da China) estava fechado para estrangeiros, então fui primeiro pra Índia e sudeste asiático e terminei na China. Voltei pelo Pacífico, parando em algumas ilhas, até chegar no Chile. A viagem foi bacana porque foi feita toda por terra, só peguei dois aviões: um na ida, Rio-Roma, e outro na volta (com escalas), Bali-Santiago do Chile. Foi a volta ao mundo em 700 dias.

ML: Antes da viagem, você foi aluno da Faculdade de Letras da PUC-RIo.
L: É verdade. O Cacaso e a Ana Cristina foram muito importantes nesse processo. Em 1973, eu estava terminando o curso de Economia na PUC – que cursara por pressões familiares – quando houve um evento poético na faculdade: a “Expoesia”. Puseram um monte de quadros de cortiça no pilotis da PUC, que é uma área imensa, e você podia ir lá e pregar com tachinhas um poema seu. Era uma coisa livre, aberta a todos – então, fui lá e coloquei um poema meu. Ocorreu que o Cacaso e a Heloísa Buarque escreveram em conjunto um artigo para a revista Argumento – uma revista importante na época, era do Fernando Gasparian, que também tinha o jornal Opinião – dizendo que havia um novo movimento de poesia feito pelos jovens. Para exemplificar, publicaram uns 4 poemas expostos na Expoesia, entre os quais estava o meu “Homenagem à Yoko Ono”. Eu me surpreendi porque até então não conhecia nenhum desses jovens poetas, não conhecia o Cacaso, não conhecia a Heloísa, ainda estava estudando Economia. Por outro lado, sempre fui muito ligado à literatura, porque o meu avô por parte de pai era o Amando Fontes, romancista com alguma fama nos anos 30, 40 do século passado, quando ganhou prêmios com seu romance Os Corumbas. Sempre escrevi, desde garoto, mas era algo solitário e meio secreto, não mostrava pra ninguém. Nunca havia exposto em público um poema meu até que nessa “Expoesia” tudo aconteceu. O Cacaso escreveu esse artigo com a Helô e quis me conhecer. Logo conheci a Ana Cristina e comecei a me interessar em, quem sabe, cursar Letras na PUC. Foi assim que terminei Economia em 73 e entrei para Letras em 74.

ML: E aí você foi cursar Literatura em 74. Conte como foi que surgiu a coleção “Vida de Artista”.
L: Foi um tempo muito bom. O Cacaso logo se tornou meu amigo e fez um curso sobre a poesia da gente – que ainda não se chamava marginal. A Ana Cristina, que era minha namorada, era também minha monitora num curso que eu fazia com a Cecília Londres. Houve uma espécie de simbiose entre as pessoas, todas ficaram muito amigas. O Chacal, que fazia o curso do Cacaso de ouvinte, começou a namorar minha irmã Debinha. Ele fez um poema lindo pra ela que está no América, dedicado “à Deborah”. O Cacaso começou a namorar outra irmã minha, a Kaki, que também estudava literatura na PUC. Nesse curso, ele começou a publicar os poemas da gente no mimeógrafo da PUC e a ideia de fazer livros assim já estava acontecendo – o Charles e o Chacal já haviam feito seus primeiros livros dessa maneira. Foi então que surgiu o Toledo, um amigo do Cacaso que tinha um mimeógrafo moderno na sua firma de arquitetura e deixou que nós fizéssemos nossos livros lá. Eu estava com meu primeiro livro, Prato Feito, pronto e o Cacaso convidou: “Vamos fazer no mimeógrafo do Toledo.”
Prato Feito tinha fotos da Bita Carneiro, que tinha sido namorada do poeta João Carlos Pádua e era irmã do Geraldinho Carneiro, também poeta – ambos alunos de Letras da PUC. A ideia do Cacaso, nosso professor, era fazer uma coleção em que cada livro vendido pagasse a produção do seguinte. Uma espécie de cooperativa literária. O dinheiro da venda do livro não iria para o autor, mas para a produção do próximo livro. Assim, o Prato Feito financiou a publicação do Segunda Classe, o segundo livro da “Vida de Artista”.

ML: E como eram os famosos encontros na fazenda do Lui?
L: Esses encontros foram muito citados no Retrato de Época, mas a fazenda não era o único ponto de encontro da gente. No Rio, havia a casa do Cacaso – um apartamento enorme na avenida Atlântica – e o casarão da Lagoa, onde morávamos eu e meus irmãos. Éramos sete irmãos, a casa era bem grande e vivia cheia de gente. Isso era no tempo em que havia casarões na Lagoa… Os meus dois primeiros livros, Prato Feito e Segunda Classe, foram lançados lá. O que aconteceu foi que no réveillon de 74/75, passamos uma longa temporada na fazenda e foi um tempo muito rico, vários livros foram feitos. Foi uma turma enorme pra lá: poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, um bando de artistas, mas o intuito principal era fazer livros de poesia. E foram feitos pelo menos três livros nessa temporada na fazenda: Segunda Classe, que era meu e do Cacaso, o América do Chacal e o Creme de Lua do Charles. Aliás, o América foi o terceiro livro da “Vida de Artista”, tinha o carimbo da coleção feito pelo Dick e Sérgio Liuzzi – um balãozinho muito bonitinho. Mas, o Chacal estava sendo muito pressionado por amigos da faculdade dele – ele estudava comunicação na ECO, onde também estava o Charles – para participar de outra coleção que eles estavam criando: a “Nuvem Cigana”. Assim, o América foi, nas palavras do próprio Chacal, um livro híbrido; foi tanto da “Vida de Artista” quanto da “Nuvem Cigana”. O Creme de Lua do Charles já saiu pela “Nuvem Cigana”. Aliás, tem um poema nesse livro que foi feito na fazenda: o Charles estava deitado na rede da varanda quando apareceu um bando de maritacas aos berros num vôo rasante. Charles gritou: “Olha a passarinhada!” Fomos todos correndo para a varanda: “Aonde? Aonde?” E o Charles imóvel na rede respondeu: “Passou.” Esse poeminha está no Creme de Lua e tem três linhas: “Olha a passarinhada!/Onde?/Passou…”

ML: A Ana Cristina César na entrevista que deu ao Carlos Alberto Pereira, falando sobre a fazenda do Lui, dizia que tinha toda uma roda de meninas em volta… então, talvez houvesse esse clima narcisista, clube do bolinha, o que você poderia falar sobre isso?
L: É difícil falar sobre isso… São os sentimentos da Ana Cristina… Mas, acho que ela tinha alguma razão – afinal, éramos uns garotões de vinte e poucos anos… Mas aí, acho que tem duas coisas. Primeiro, talvez ela se sentisse meio deslocada porque ela era a única mulher poeta, todos os outros eram homens. Talvez, ela se sentisse meio fora do negócio. Em segundo lugar, é preciso lembrar que no réveillon de 75 Ana Cristina ainda não havia publicado nada. Ela escrevia muito, mas não queria publicar, não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não concordava. Eu dizia a ela: “está cheio de gente muito pior que você publicando livros, por que você não publica?” Mas, ela não publicava nada. Então, devia ser uma situação meio incômoda pra ela: todo mundo fazendo livro e ela não. Mas isso são suposições…
Agora, nesse comentário que ela faz, que havia muitas luluzinhas em volta da gente, como se fossem umas tietezinhas, acho que há um certo exagero dela em dizer isso. Ainda que houvesse um certo machismo dos homens, as meninas que estavam lá eram nossas amigas e namoradas, a maioria delas também artistas. Você quer nomes? No réveillon de 75 na fazenda, em volta da mesa redonda da sala de jantar, estavam a Sandra Werneck – hoje cineasta de renome – , a Bita Carneiro que é uma grande fotógrafa, a Olívia Byington que é ótima cantora (acho que ela namorava o músico Paulo Guimarães na época), Debinha que era atriz, Massoca que é artista plástica e a Kaki que é poeta, mas que também só publicaria mais tarde. Como se vê, as meninas eram todas artistas e não tietes idiotas como ela deixa transparecer na entrevista. Havia também um pessoal da música, ouvia-se e tocava-se muita música. Muitas drogas também. As pessoas tomavam muitas drogas naquele tempo.

M: E essa viagem ao São Francisco, que deu como resultado o Segunda Classe, qual era o significado da viagem? Porque você tem uma relação especial com essa noção de viagem…
L: Tenho. E o Cacaso não. O Cacaso era mais quieto, mais sedentário. Ele nasceu em Uberaba e depois se mudou para Barretos. O pai era fazendeiro de gado, tinha terras em vários estados. As maiores fazendas ficavam no Pantanal. Com 11 ou 12 anos, Cacaso se mudou para o Rio, e aquilo foi um choque para ele, menino interiorano na cidade grande. Apesar de estar no Rio há tanto tempo, Cacaso nunca deixou de ser aquele mineirinho calado, observador, esperto.
Já o meu caso era diferente, nasci no Rio e minha família adorava viajar. Minha mãe era a maior incentivadora dessas viagens. Lembro que em 61, Brasília estava quase pronta e meus pais decidiram conhecê-la. Puseram as crianças no carro e lá fomos nós pro planalto central. Meu pai era médico, Dr. Olavo Fontes, mas sua maior paixão eram os discos-voadores. Então íamos para os Estados Unidos, onde meu pai se encontrava com astrônomos e pesquisadores de OVNIS. Passei assim a infância viajando, era uma coisa natural pra mim.
Mas, a primeira grande viagem que fiz foi com meu amigo de infância, Guy Van de Beuque. O pai dele era francês, Jacques Van de Beuque – idealizador do maravilhoso museu Casa do Pontal – e na sua lua-de-mel com a mãe do Guy, nos anos 40, atravessaram a América por terra desde os Estados Unidos à Patagônia. O Guy queria repetir essa viagem (eles tinham slides que nós assistíamos) e me convidou pra ir com ele. Minha namorada tinha terminado comigo, eu estava meio sem rumo, acabei indo. Fomos de mochila – era 1970, eu tinha 18 anos – e nossa viagem tinha duas leis de ouro. Primeira: não pagar transporte. Segunda: não pagar hotel. Isso se devia ao fato de termos pouquíssimo dinheiro – então a viagem virava uma coisa meio aventureira, só viajávamos de carona e nos hospedávamos em igrejas, escolas, universidades ou em casas de pessoas que ofereciam quartos de graça.
Eu e o Guy viajamos assim por toda a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Nessa viagem aprendi a viajar. Descobri como era fácil viajar com pouco dinheiro e comecei a viajar pelo mundo todo. Viajava também pelo Brasil: fui conhecer Sete Quedas antes que a represa de Itaipu a cobrisse para sempre. E, como todo mundo, me apaixonei pela Bahia.
O movimento poético dos anos 70, seguindo os passos do Modernismo, também tinha esse desejo de conhecer o Brasil. O Charles e o Dick (o designer Rogério Martins) foram de jipe para o Nordeste e passaram por muitas aventuras no sertão. Havia os livros do Oswald viajando com a Tarsila pelo Brasil, os livros do Blaise Cendrars, do Mário de Andrade… Manifesto Antropofágico era a leitura predileta de quase todo mundo: “Tupi or not Tupi: that is the question”. Era preciso conhecer o Brasil.

ML: Mas o Cacaso não se animava…
L: É, o Cacaso era meio parado e nós ficávamos forçando “Vamos viajar, Cacaso?” e levávamos o Cacaso para Rio das Ostras, pra Pirapora… Sim, porque essa viagem pelo rio São Francisco começava em Pirapora (MG) e terminava em Juazeiro (terra de Ivete Sangalo) no sertão da Bahia. O mais interessante eram as barcas que haviam sido importadas do Mississipi e tinham aquelas enormes rodas de madeira na popa. Apesar de lindas, as barcas era altamente antiecológicas, pois seu combustível eram toras de madeira recém-cortadas das matas ciliares do rio. Elas provocavam a maior devastação nas margens do São Francisco. Iam acabar com as barcas, mas não por esse motivo. Uma enorme represa, a de Sobradinho, estava para ser construída, o que iria afetar a navegabilidade do rio. Por isso, resolvemos ir – para conhecer as famosas barcas do São Francisco que iam se acabar.

ML: E era tranquilo viajar com o Cacaso?
L: Era ótimo. Cacaso era cômico, estava sempre fazendo alguma observação engraçada sobre tudo que via. Ele ficou maravilhado com a Bahia, que nós já conhecíamos e ele não. “Nós” éramos eu, minha irmã Massoca e a Bita Carneiro. Parecíamos dois casais, mas não éramos. Acho que foi em outubro de 1974 que fizemos a viagem e eu namorava a Ana Cristina. Já o Cacaso queria namorar a Massoca e não conseguia. Assim fomos os quatro amigos e acabamos nas praias de Salvador comendo acarajés, abarás, carurus e vatapás.

ML: E essa ideia de poesia escrita coletivamente que o Segunda Classe apresentava, sem diferenciação de autoria nos poemas?
L: Os teóricos adoraram na época.

ML: Já havia essa noção de coisa coletiva, de grupo, de “Vida de Artista”, de coleção…
L: Mais ou menos. A gente tentava, mas éramos muito desorganizados. No caso do Segunda Classe, não houve nenhum planejamento, tudo foi acontecendo naturalmente. Quando fizemos a viagem, não foi para escrever um livro. Foi para conhecer o São Francisco.

ML: E como surgiu a ideia do livro?
L: Não surgiu, foi acontecendo naturalmente.

ML: Vocês foram escrevendo lá mesmo?
L: Sim, mas separadamente. Eu escrevia meus poemas, Cacaso escrevia os dele. Às vezes mostrávamos alguma coisa que havíamos acabado de fazer um para o outro. A viagem foi indo, a gente foi escrevendo sem compromisso de estar preparando um livro. Foi só depois, quando fomos para a fazenda no fim do ano que eu mostrei pro pessoal: “olha só os poemas que fiz lá.” O Cacaso tirou uma pasta da bolsa baiana recém-adquirida no Mercado Modelo e disse: “Eu fiz esses todos lá”. A Bita chegou e mostrou: “olha, eu tirei essas fotos.” E a Massoca: “ah, eu fiz esses desenhos.” Nós estávamos no mesão redondo da fazenda onde tudo acontecia: fazia-se livros, tocava-se música, conversava-se muito e a certa altura o Cacaso se vira e diz: “Com esse material aqui dá pra se fazer um livro. Vamos fazer um livro?” E assim foi. No meio do processo é que surgiu a ideia de não dizer de quem eram os poemas, acabar com esse conceito autoral.

ML: Uma espécie de morte do autor…
L: Pois é. Mas, havia uma coisa curiosa acontecendo: os nossos poemas tinham ficado muito parecidos. Um dia dissemos, meio de brincadeira, que se tirássemos a autoria dos poemas, ninguém saberia dizer qual era de um, qual era de outro. Na verdade, um influenciava o outro, as coisas que líamos eram as mesmas, as paisagens deslumbrantes eram as mesmas para os dois.

ML: Era a mesma viagem…
L: Era a mesma viagem e realmente os poemas ficaram muito parecidos. Era difícil distinguir o que era de um, o que era do outro.

ML: Recentemente você voltou a ter problemas com a autoria dos poemas deste livro – conte o que houve.
L: Chega a ser irônico. Ficamos esse tempo todo sem dizer de quem eram os poemas e quando isso foi revelado – saiu tudo errado! Três poemas meus foram dados para o Cacaso. São eles: “Mudando o Estado”, “Constatando” e “Diário”. O pior foi ter lido num ensaio crítico recente da pesquisadora Luciana di Leone que escrevendo sobre o Segunda Classe apontou diferenças cruciais entre a minha poesia e a do Cacaso. Para demonstrar isso ela cita dois poemas do Cacaso – que são meus! Quer dizer, com isso ela conseguiu comprovar que eu sou completamente diferente de mim mesmo.

ML: Mas ela partiu de um material que estava errado.
L: É verdade, ela não teve culpa. O erro está no livro das obras completas do Cacaso, o Lero-Lero, editado pela Cosac Naify e 7Letras. Vou mandar uma carta para eles, para ver se eles corrigem isso nas próximas edições. Afinal, já existem estudos literários dizendo que os meus poemas são de outro!

ML: Seria melhor que deixassem como antes – sem autoria. Deixar os dois misturados coletivamente.
L: Realmente, teria sido melhor. Foi o Pedro, filho do Cacaso, que me pediu para que assinalasse no Segunda Classe os poemas do pai que havia morrido. Mandei para ele uma lista com os poemas do Cacaso no livro. E mesmo assim saiu errado.

ML: Ana Cristina César tem um poema, Vigília 2, “desentranhado do poema Vigília de Luis Olavo Fontes”. Como foi isso?
L: Ana fez esse poema lá em casa, na minha mesa. Fizemos uma tentativa de morar juntos que não deu certo, éramos muito jovens (22 anos) e muito dependentes de nossos pais. Aluguei um apartamento em Santa Teresa e saí de casa. Mas, comíamos na casa dos pais, falávamos no telefone (não tinha telefone no apê), enfim, era uma vida meio dividida. Mas em Santa Teresa, líamos, escrevíamos e namorávamos muito. Vários poemas da Ana foram feitos lá em casa – por exemplo, os dois que ela publicou na revista Malasartes de setembro de 1975. Um deles foi o “Vigília 2”, que eu considero um dos melhores poemas da obra dela. Aliás, foi a Luciana di Leone quem percebeu que no livro póstumo, Inéditos e Dispersos, organizado por Armando Freitas Filho, o poema foi publicado sem a epígrafe – “desentranhado do poema Vigília…”. Ou seja, o Armando cortou a epígrafe. Acho que ele não gosta muito de mim… O título do poema fica sem sentido – por que Vigília 2? Onde está o Vigília 1?

ML: Alguns poetas da geração de vocês morreram jovens… Queria perguntar sobre essas mortes que de certa maneira santificaram alguns poetas.
L: Santificaram uns e outros não, né? Lá no Nordeste, o povo gosta de dizer durante o velório de um pecador: “agora que morreu, vai virar santo.” Mas, tem também os que morrem e ninguém lembra mais. Um dos poetas fundadores da “Nuvem Cigana”, o Guilherme Mandaro, morava a três prédios da Ana Cristina na mesma rua Tonelero e também se jogou pela janela, uns dois anos antes dela, e hoje ninguém fala dele, é uma pessoa totalmente esquecida. Era ótimo poeta, mas só fez dois livros: Hotel de Deus e Trem da Noite. Tinha militância política e apareceu no livro do Gabeira “O que é isso companheiro” com o codinome de Bom Secundarista. Ele era do Pedro II no tempo da guerrilha urbana. No início dos anos 70, Guilherme era professor de História e foi dele a ideia de usar os mimeógrafos das escolas onde dava aula para publicar poesia. Foi ele quem permitiu ao Charles e ao Chacal fazerem seus primeiros livros em mimeógrafos. A ideia foi dele, do Guilherme Mandaro. E quase ninguém sabe disso. Já outros, como você disse, foram beatificados: Leminsky, até mesmo o Cacaso; e a Ana Cristina é a santa maior.

ML: Torquato…
L: Torquato, pois é, também conheci o Torquato. Foi numa filmagem em Super 8 do Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”. Torquato era o ator principal, o Nosferatu. Tinha uma cena antológica: Torquato (Nosferatu) de sunga e capa negra à sombra de um coqueiro, com os caninos pontiagudos à mostra, tomava coco gelado no canudinho enquanto fiscalizava os pescoços femininos na areia da praia.

ML: Em 2007 você publicou três livros – Colar de Coral, Linha de Fogo e Livro do Príncipe. Excesso de inspiração?
L: Nada disso. Excesso de preguiça para publicar. O Livro do Príncipe é antiquíssimo, foi escrito em 1975 no apê de Santa Teresa, tempo em que estudava Letras na PUC. Ficou na gaveta mais de 30 anos. O Colar de Coral é meu livro de poesias inéditas abrangendo um período de tempo que vai de 1982 a 2002. Eu não fazia um livro de poesias inéditas desde 1987, quando lancei o Tupis, Rubis e Abacaxis.

ML: Bem modernista o título, né?
L: Na verdade é um verso do Mário de Andrade, num poema em que exaltava as riquezas e maravilhas do Brasil: “Abacate, cambucá e tangerina/Tupis, rubis e abacaxis!” Algo assim, não lembro bem.

ML: Faltou falar de um livro…
L: Ah, sim… O Linha de Fogo é um livro pequenino, no formato de uma caderneta, que por isso cabe no bolso de uma calça jeans ou na bolsa das mulheres. São 150 poemas curtinhos ou poemetos – que hoje chamam poema-minuto – 50% dos quais inéditos. É outra característica da poesia dos anos 70 inspirada no Modernismo. Drummond, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e até Bandeira – todos faziam o chamado poema-minuto de quando em vez. Nossa geração seguiu essa tradição.

ML: Você não disse como terminou a Coleção Vida de Artista… Quais os livros publicados?
L: A “Vida de Artista” começou a ficar famosa em 1975. Pessoas desconhecidas nos mandavam livros de todo o Brasil para que as publicássemos. Tivemos de fazer uma triagem, uma seleção. Acredito que a ideia inicial do Cacaso era compor um conselho editorial comigo, Ana Cristina, João Carlos Pádua, Charles e Chacal – a turma que passara a temporada na fazenda. Mas, Charles e Chacal logo abandonaram o barco e foram para a Nuvem Cigana. João Carlos e Ana Cristina tiraram o corpo fora, como era de praxe, não queriam se envolver. Sobramos então eu e o Cacaso para tocar a “Vida de Artista”. Publicamos um poeta de Brasília, Eudoro Augusto, que não conhecíamos, mas que nos enviou um bom livro, A Vida Alheia. Publicamos também Carlos Felipe Saldanha, também conhecido como Zuca Sardana, um diplomata amigo do Chico Alvim que fazia livros em mimeógrafos desde os anos 1960, muito antes da nossa geração ter essa ideia. O livro dele chamava-se Aqueles Papéis. Cacaso publicou o Beijo na Boca, seu livro de poemas líricos, com capa da minha irmã Massoca. Acredito que, finalmente, depois de toda essa paquera, ele tenha conseguido namorar ela.
Em 1976, o projeto do Cacaso para a “Vida de Artista” começou a caducar. A antologia da Heloísa Buarque fizera um enorme sucesso, nossa poesia se espalhara pelo Brasil. Já havia editoras interessadas em publicar os “marginais”. A Vida de Artista foi se esvaziando naturalmente. Os namoros acabaram, outros começaram, as pessoas se distanciaram. Como dizia Murilo Mendes: “a vida separa muito mais do que a morte”. Ainda fizemos dois livros que podem ser considerados da coleção “Vida de Artista”: o meu Papéis de Viagem (1976) e o Na Corda Bamba (1977) do Cacaso. O carimbo da “Vida de Artista” – todos os livros eram carimbados manualmente na capa – ainda está lá em casa, guardado com carinho.

ML: E a poesia contemporânea, você tem acompanhado?
L: Até tenho, na medida do possível. Acho que a poesia contemporânea está muito tribalizada. Cada tribo tem sua poesia. Como no tempo dos índios, algumas tribos guerreiam entre si. Outras, sentindo-se superiores às demais, ignoram-nas. Essas últimas cultivam a fantasia de que só eles conhecem e produzem a verdadeira poesia. Parecem não se aperceber que a poesia é como o vento – sopra onde quer. Há inúmeras maneiras de se fazer boa poesia – basta ler poetas como Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, e ver como são maravilhosos, ainda que suas poesias sejam construídas de modo bastante distinto.

ML: Algum poeta lhe agradou ultimamente?
L: Sim, gostei muito do livro Rilke Shake da Angélica Freitas. É uma poesia bem-humorada, a começar pelo título. Está faltando um pouco de humor na poesia: tá todo mundo muito sério… Também gostei dos poemas daquele menino que morreu, Leonardo Martinelli; entrei no site dele e ele era um bom poeta. Fiquei com pena, um poeta tão jovem e tão talentoso…

ML: Você lançou um livro de prosa em 2009?
L: Lancei Novelas de Guerra. Livros de contos e novelas. Sou um contista bissexto, mas fazia 16 anos que não publicava nada desde Ócio do Oficio de 1993. Já estava na hora de publicar outro. Estou até espantado com a boa repercussão do livro, tenho recebido inúmeros e-mails com elogios, algo que não ocorre quando publico poesia…
Novelas de Guerra era na verdade dois livros: um de novelas e outro de contos. Pensei a principio em editá-los separadamente, mas a Heloisa Buarque de Holanda, que é a minha editora, me convenceu a uni-los num só volume. Três contos são de 1973 [eu tinha 21 anos] e não entraram no Ócio do Oficio nem me lembro mais por quê. Mas, a maioria é recente, do século XXI, ainda que haja dois ou três dos anos 1990. Apenas um deles, “Separação”, não é inédito, pois já havia sido publicado numa coletânea de contos editada pela Francisco Alves. A maioria das histórias é de aventuras em vários lugares do mundo – minhas viagens tiveram alguma influência nisto. São fáceis de ler e têm boa dose de humor, acho que é por isso que têm agradado tanto às pessoas.

ML: E os planos para 2010?
L: Estou terminando uma biografia do meu avô, o dono da fazenda onde fazíamos os livros de poesia, Severino Pereira da Silva. É um livro feito por encomenda da família. Mas, a história dele é tão incrível que pode até dar samba. A ideia seria lançá-lo em dezembro de 2010.

Masé Lemos é professora de Teoria da Literatura na UERJ. Em 2007, publicou Redor pela 7Letras. maselemos@me.com

 

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A Literatura Brasileira num mundo de fluxos | de Beatriz Resende

Parto, neste texto de uma afirmação de Arjun Appadurai, professor da New School University na cidade de Nova York, nascido e educado em Bombain (Bombay), na Índia.

Em sua introdução ao volume por ele organizado Globalization 1 , Appadurai começa afirmando que a globalização é uma “fonte de ansiedade” no mundo acadêmico americano. Isso em 2003, ou seja, antes da grande crise. O que interessa a Appadurai, neste ensaio, e a nós, ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea, é perguntar-se sobre a possibilidade da globalização criar ou não um mundo sem fronteiras (“world without borders”), eliminar ou afirmar formas de diferenciação que a academia tanto afirma como recusa e, finalmente, investigar como a pesquisa e os estudos de área se situam diante da questão. Tais ansiedades são encontradas em muitas esferas públicas nacionais (inclusive as dos EUA) mas também estão presentes nos debates de scholars dos países mais pobres.

O pensador identifica uma forte separação, um “apartheid”, entre os debates envolvendo questões econômicas, formas de organizações multinacionais, práticas políticas internacionais e o que chama de “discursos vernaculares” envolvendo autonomia cultural, sobrevivência econômica e acordos sobre mercado, trabalho, meio ambiente, doenças e guerras, quando são discursos de países pobres e seus defensores.

O que torna o debate inevitável e a necessidade de pesquisas conjuntas evidente é sua constatação de que vivemos num mundo caracterizado por objetos em movimento. E esses objetos incluem ideologias, povos, mercadorias, imagens e mensagens, tecnologias e técnicas. É o que chama de um mundo de fluxos: “This is a world of flows”.

Mesmo aquele que pode parecer o mais estável desses objetos – o estado-nação – é frequentemente caracterizado por populações em movimento, fronteiras questionadas, configurações, habilidades e tecnologias móveis.
A inevitável mobilidade em tempos de fluxos globais inclui, evidentemente, a imaginação. E aqui já nos aproximamos da produção literária de forma mais evidente. Para Appadurai, a imaginação não é mais produto do gênio individual, forma de escape da vida cotidiana ou uma dimensão da estética. É a faculdade que dá forma à vida do homem comum de maneiras as mais diversas. É o que faz com que as pessoas pensem em emigrar ou viajar, as fazem resistir à violência, procurem redesenhar suas vidas, buscar novas formas de associação e colaboração, muitas vezes para além das fronteiras nacionais.

Diz o antropólogo:

I have proposed that globalization is not simply the name for a new epoch in the history of capital or in the biography of the nation-state. It is marked by a new role for the imagination in social life 2.

É, portanto, a partir da constatação de vivermos num tempo em que a imaginação, a arte, a cultura, contaminam-se – positivamente ou não – com os efeitos globais, que gostaria de tratar, ainda que muito brevemente, as possibilidades da vida literária e da produção da ficção no Brasil em tempos absolutamente atuais (tentarei falar dos dois ou três últimos anos). A principal questão que aparecerá no debate será a dos limites da literatura nacional.

Evidentemente, esta não é uma questão exclusiva de países ainda periféricos, mesmo que, como é o caso do Brasil, sua interlocução a nível global, tenha crescido expressivamente. O recente reconhecimento internacional da impotência do G8 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) na conferência de Áquila e a proposta de criação do G14 (o G8 mais Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), assim como a importância que vem sendo dada pelo presidente Obama a grupos como o G5 (países emergentes na conjuntura internacional junto com China, Índia, México e África do Sul) ou os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), faz com que possamos, talvez, falar, mesmo em conferências onde os estudos de área são determinantes, de um lugar um pouco menos distante do que aquela última porta no final do corredor, que costumamos dividir com estudos latino-americanos.

Como dizia, a produção literária mundial, hoje, tem apontando para a força do debate que estamos propondo. Tomemos alguns exemplos recentes. O genial vencedor do Prêmio Nobel de 2003, J. M. Coetzee, nasceu na África do Sul, de uma família africâner. Profundo critico do passado de apartheid, escreve em inglês, o que lhe permitiu receber dois (caso único) Booker Prize. Em seu mais importante romance, Desonra (Disgrace), deixa de lado certa escrita alegórica que exercera no também magnífico À espera dos bárbaros (de algum modo marcado por seus estudos sobre Beckett) e parte de uma questão própria de tempos do politicamente correto, uma acusação de assédio sexual por parte da família de um alunado protagonista, condenação que marca o fim da carreira acadêmica do personagem, para penetrar numa África do Sul violenta onde brancos e negros continuam a se odiar. Coetzee é hoje cidadão australiano e não poupa a academia nas falas de sua famosa personagem Elizabeth Costello.

No ano passado, o prestigioso Prêmio Goncourt, o mais francês dos prêmios franceses, foi atribuído ao afegão Atiq Rahimi, por seu romance Singuê Sabour – A pedra da paciência. Terceiro romance de Atiq, foi o primeiro a não ser escrito em persa, mas na língua do país que lhe concedeu asilo político. Mais do que ser escrito na língua do país onde vive, Singuê Sabour é uma narrativa fortemente tributária da escrita de outra premiada com o Goncourt, Marguerite Duras. Mesmo ritmo, mesmas frases curtas, mesmo apelo visual, perfeitamente de acordo com um autor que é também cineasta.Mas é das mulheres de seu país, da covardia masculina, do ímpeto bélico que fala através da voz monocórdia da mulher que habita uma casa desmoronada, acossada pela guerra fratricida, ainda que o Afeganistão não seja mencionado.

São apenas exemplos, dentre vários outros possíveis, mas significativos porque o trânsito, o fluxo, de uma língua para outra, de uma influência ou dialogo para outros, não são determinados por condições obrigatoriamente políticas, ou por opção estética como a feita por Beckett. Perguntado sobre a razão de optar por escrever em francês, Samuel Beckett afirmou, certa vez, que o fazia porque“o francês é uma língua pobre”, provocativo e evocando uma menor variedade vocabular identificada nesta língua do que no inglês. Em francês, seu texto ficaria mais seco.

Voltemos aqui às condições vividas pela literatura brasileira contemporânea. No que diz respeito ao trânsito internacional e a possíveis ampliações do público leitor, o acordo ortográfico firmado com Portugal em janeiro deste ano é um esforço para que “oficialmente” tenhamos uma só língua e para facilitar iniciativas editoriais. Mas não são as novas regras que farão com que nossas pronúncias se tornem mais compreensíveis mutuamente, ou que a linguagem literária, sobretudo a coloquial, se torne mais ou menos próxima.

Como produzir, então uma literatura que se imponha entre leitores brasileiros, seja reconhecida, primeiro pelo universo editorial e depois pela crítica, e, se possível venda? O escritor funcionário público, melhor ainda se diplomata como Guimarães Rosa e João Cabral e Melo Neto, que tinha sua fonte de renda garantida pelo Estado, é figura do passado, ainda que continuem existindo honrosos representantes como o embaixador do Brasil na Tailândia, o premiado escritor Edgar Telles Ribeiro, ou o em Washington, o interessante romancista João Almino.

O jornalismo talvez seja a opção profissional paralela mais frequente, mas alguns conflitos acabam se estabelecendo entre as duas funções.

Dados recentes divulgados pelo Ministério da Cultura não são nada animadores. O brasileiro lê em média 1,8 livros per capita ao ano (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França, por exemplo). 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da nossa imensa população de um pouco mais de 190 milhões de habitantes. O preço médio do livro de leitura corrente é de R$ 25,00, (U$ 12, 40) elevadíssimo quando comparado à renda média da classe média (das classes C,D e E).

Curiosamente, no entanto, apesar desse quadro, novas editoras vêm se instalando no país, especialmente espanholas e portuguesas; pequenas editoras surgem a todo momento; os prêmios literários se multiplicam e aumentam de valor a cada ano. As festas, feiras e bienais literárias crescem e um evento como a Festa Internacional Literária de Paraty traz, todo ano, para a pequena cidade histórica os mais importantes escritores do mundo, já chegando a ter num mesmo evento dois prêmios Nobel de literatura. Paul Auster, Toni Morisson, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer, Orhan Pamuk, Ian MacEwan e outros já passaram por lá. Tudo isso nos leva a crer que o potencial criativo desta nossa forma de arte é alto e capaz de disputar espaços mundo afora.

O que quero analisar brevemente são tendências, recursos, opções que se colocam para nossos escritores contemporâneos. Vou me ocupar unicamente da prosa de ficção, já que o universo da produção poética tem peculiaridades próprias e é atingida, de forma ainda mais grave pelas dificuldades de tradução.

Em 2008/2009 três de nossos importantes escritores contemporâneos encontraram-se em situação de incrível coincidência ao lançarem romances que se utilizavam basicamente da mesma estratégia narrativa. Silviano Santiago, autor do romance experimental marca do surgimento da paródia pós-moderna entre nós, o Em liberdade, autor de Stella Manhattan, publicado em 1985, no final do regime autoritário, romance que fala, com ênfase política das performances de um travesti brasileiro e passado em Nova York, autor do contos gays de Keith Jarett no Blue Note e do provocativo O falso mentiroso, afirmação inconteste da peculiaridade do ficcional, lança em 2008 o “romanção”: Heranças, onde um homem velho escreve suas memórias e repassa história, costumes, usos e cultura no Brasil a partir dos anos 30, em Minas Gerais, até os dias de hoje, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Junto com a história do homem de poucos escrúpulos vem a história do Brasil moderno. O modelo declarado é Machado de Assis, especialmente em sua vertente irônica, além de imagens e figuras de linguagem que dele são explicitamente tomadas emprestado.

Neste ano de 2009, Chico Buarque em sua versão romancista publica sua quarta obra: Leite derramado. O anterior fora o arrojado Budapeste, verdadeiro debate entre as possibilidades da escrita, da sinceridade, do plágio, possibilidade ou não do traduzível, numa narrativa que se passa em grande parte justamente em Budapeste, cidade que o autor nunca tinha sequer visitado. No romance de 2009, Eulálio d’Assumpção, com cem anos, numa cama de hospital, entre delírios e rememorações narra a trajetória do decadente membro de uma perversa elite brasileira, racista e arrogante, que vê sua descendência amulatar-se e se perder nas inabilidades de lidar com o real no país que se moderniza. Com a história do homem e da mulher que o abandonara, novamente, vem a história do país, dos costumes, dos preconceitos, dos sonhos delirantes da família que sonhava com uma Europa que, também ela, desaparecia.

O modelo, sem dúvida, é novamente o Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou do excepcional Memorial de Aires.

Em recente encontro literário, Chico Buarque e o terceiro autor que cito nessa parte, Milton Hatoum, brincavam, divertidos, de acusarem-se mutuamente de plágio, diante do lançamento do autor amazonense neste ano. Em Órfão do Eldorado, o premiado Milton Hatoum mantém seu capital regionalista que vem dando particularidade a suas narrativas de gosto mais clássico desde o festejado primeiro livro Relato de um certo Oriente. No último romance, um velho um tanto enlouquecido conta sua história e da mulher que perdera enquanto narra parte da história de fausto e tragédia de Manaus, no Amazonas, no momento em que a cidade fora considerada uma espécie de Eldorado.

Nos três autores – os dois primeiros tendo realizado uma forte guinada em suas trajetórias – fala-se do Brasil. As narrativas são reflexões sobre a formação do Brasil moderno, recuperam a tarefa que a crítica de base sociológica, em especial a de Roberto Schwarz, atribui à literatura de Machado de Assis. Para Schwarz, simplificando pifiamente seu pensamento, o grande valor do nosso “Mestre na periferia do capitalismo”, como se refere a Machado, seria ter sido, na criação ficcional um “intérprete do Brasil”.

O modelo machadiano aparece – apesar das diferenças existentes em cada um desses autores de dicção própria – como um mesmo recurso que lhes atribui o mérito que o Schwarz vê em nosso romancista do século XIX: ser um mestre a partir das próprias condições adversas do país ou da sociedade.

A verdade é que a tradição crítica marxista, a partir sobretudo dos trabalhos de Antonio Candido, tem sido a mais forte legitimadora, de forma inevitavelmente canônica, da literatura brasileira.

Não posso evitar a volta ao ensaio de Appadurai quando diz:

The many existing forms of Marxist critique are a valuable starting point, but they too must be willing to suspend their inner certainty about understanding world histories in advance 3 .

Na contramão dos três romances “clássicos”, um dos mais interessantes escritores contemporâneos, Bernardo Carvalho, lançou em 2009 seu 9o romance Filho da mãe.

Neste romance, o título, segundo o próprio autor perde completamente as possibilidades de entendimento plural se traduzido para qualquer outra língua, já que filho da mãe além do sentido linear que tem tudo a ver com a história do romance que fala de mães lutando pela vida de seus filhos, é um xingamento um pouco mais aceito socialmente do que filho da puta. No entanto, todo o enredo entrecruzado, desdobrando-se em múltiplas narrativas, como costuma fazer, passa-se na Rússia, especialmente em São Petersburgo e fala de um país destroçado por guerras fratricidas, especialmente a guerra da Tchetchênia, pela corrupção, pelo desalento, pela vivência de fracassos pessoais e nacionais. Bernardo Carvalho segue uma trajetória de absoluto desenraizamento em suas narrativas, já consagrada em romances como Teatro (1998) e As iniciais (1999) e radicalizado em Mongólia (2003), romance realizado a partir de prêmio ganho em Portugal que o levou a viajar por este país e depois narrar histórias de nômades que se movem sem deixar rastros.

Em todas as suas obras trava-se um combate ente real e ficcional. A arma da ficção é o discurso, a da realidade, o estranhamento. A luta entre adversários poderosos é instigada pelo autor que, de um lado, fornece suprimentos à curiosidade do leitor interessado em relatos de viagem através de culturas tão diversas e geografias peculiares. De outro, porém, cria um enredo tão simples quando emocionante. Ao final, o que garante a vitória da ficção, é a própria construção discursiva desenvolvida em manobras precisas do escritor hábil e competente. E é, sobretudo, na afirmação dos poderes do ficcional que está a importância de suas obras originais e instigantes.

Além de premiado no Brasil, Bernardo Carvalho tem sido publicado regularmente em Portugal e na França e traduzido em várias línguas. O escritor/jornalista garante, porém, que não dá para viver de literatura.

Uma terceira tendência tem se multiplicado com força em nossa ficção nos últimos anos. É a escritura realista das grandes cidades contemporâneas, especialmente narrativas da violência e da desigualdade. O romance Cidade de Deus, (de 1997) de Paulo Lins, transformado em filme que circulou mundo afora, firmou as possibilidades de romances, contos e novelas que falam desta faceta da vida brasileira, mas que em muito se assemelha à vida de quase todas as grandes cidades mundo afora.

Escritores da periferia, como Ferrez, também autor de raps, vindo de área pobre do entorno de São Paulo, utilizam-se desses recursos ao realismo cru. O foco na realidade nacional transforma-se rapidamente numa espécie de passe-partout abrindo caminho para viagens globais e com um olho ambicioso no cinema. Apesar da dificuldade em ser original ao optar por esta proposta, os resultados em termos de público leitor e vendas de direitos a outras mídias têm sido satisfatórios.

Apontadas estas três tendências dominantes, todas de alguma forma exitosas, resta olharmos rapidamente para o trajeto e as possibilidades que se oferecem aos jovens autores que têm surgido com surpreendente frequência.

Em relação à literatura de autores emergentes, cabe, de saída, observar a multiplicidade de possibilidades que vem se revelando como característica principal. Ainda que com leve predomínio de um tom levemente autocentrado, preferindo frequentemente a si mesmo como tema, o que os faz com que sejam frequentemente acusados de praticar uma literatura egótica, estilos, dicções, temas os mais variados convivem na produção literária do século XXI.

Ao falar desses jovens escritores, ou outros menos jovens mas ainda firmando suas carreiras, vale conferir as novas estratégias de divulgação, circulação e consolidação de sua participação na vida literária brasileira. Para tal, o uso das novas tecnologias disponíveis na web mostra-se uma possibilidade nova, capaz de mudar toda a relação entre autor, editor e público leitor. Os blogs de escritores e de críticos, as revistas virtuais, os sites especializados além de novas ferramentas como o twitter ou espaços virtuais como o facebook, vêm se mostrando instrumental indispensável. No cyberspace surge uma nova vida literária – com amizades, brigas, compadrismo ou perseguições – que configuram, hoje, novas formas de escrita, de leitura, de crítica e, sobretudo de produção e circulação literárias. A maior vantagem que os recursos da internet têm apresentado para os autores que sabem usá-los positivamente, tem sido a independência em relação aos mediadores tradicionais não só no que diz respeito ao processo editorial como ao de legitimação, detido por editores e pela crítica acadêmica. Este processo revela um desejo de ultrapassar as instâncias mediadoras indispensáveis até o final do século XX. Ultrapassar, no entanto, não significa recusar. Toda legitimação é bem vinda, mas os novos autores estão determinados a não esperar por ela. A diferença entre o que aponto como ultrapassar e a recusa marca uma grande diferença entre a atitude contemporânea e aquela vivida por alguns autores dos anos 70, especialmente os da chamada “Literatura marginal” dos anos de regime autoritário.

Hoje, editores pescam na web. Os autores, mesmo inéditos, submetem-se, imediatamente, à crítica – às vezes impiedosa de seus pares.

A produção literária contemporânea não tem como proposta ideológica circular fora do sistema mercadológico ou midiático, mas está determinada a não esperar pela autorização dos representantes deste sistema. O melhor exemplo dessa possibilidade é Ana Paula Maia que lançou o terceiro romance que escreveu, Entre rinhas de cães e porcos abatidos, em seu site, como um “Folhetim Pulp”. Com a recepção e os comentários recebidos, a autora foi convidada a publicar o segundo romance, até então sem editora, pelo selo Língua Geral e, logo depois, o terceiro romance que citamos, acrescido de uma excelente novela: “O trabalho sujo dos outros” pela editora major Record, firmando-se como uma das mais originais escritoras contemporâneas.

Essas novas formas de circulação vêm impondo à produção literária e artística novos formatos, tributários, várias vezes da linguagem própria à internet. Assim como os quadrinhos (HQ), os espaços virtuais deixam marcas na própria estética literária até mesmo quando os escritos migram da internet para o papel.

Mesmo o sistema de premiação vem encontrando no espaço da internet versões originais, como a “Copa de Literatura”, já em sua segunda edição, com participação de escritores e críticos funcionando como jurados da produção literária do ano. Organizado à maneira das copas de futebol a Copa de Literatura tem como grande prêmio, circular no cybersapace e simplesmente: ganhar a copa.

Num país de dimensões continentais como o Brasil e onde a jovem democracia ainda não diminuiu de forma expressiva a desigualdade social, a circulação através da web, capaz de neutralizar as grandes distâncias e o afastamento dos tradicionais centros produtores de cultura (São Paulo e Rio de Janeiro, em especial, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, em seguida, cada um com seu perfil) impõe uma nova cartografia literária ao mesmo tempo em que estabelece novos fluxos de circulação artística na relação entre a produção artística local e global. E para viajar até a Europa não é preciso pagar passagem.

 

* Beatriz Resende é pesquisadora do CNPq e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea -PACC/UFRJ e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da UNIRIO. Atualmente é Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.


1 APPADURAI, Arjun. “Grassroots Globalization and the Research Imagination”. In: APPADURAI, A. (ed.) Globalization. Duke Univ. Press, 2 2001. Pág.5.
2 IDEM, Ibidem, pág. 14.
3 IDEM, Ibidem, pág. 19.

 

Tempo de leitura estimado: 32 minutos

A dialética do entusiasmo | de Paulo Roberto Pires

Duas almas moram
no teu peito humano,
nas entranhas tuas.
Evita o insano
esforço da escolha:
precisas das duas.
Pra ser um, amigo,
deves ter contigo
conflito incessante:
um lado elevado,
bonito, elegante;
o outro, enfezado
e sujo, aos molambos.
Precisas de ambos.
Bertolt Brecht, epílogo de Santa Joana dos Matadouros 2

Este ensaio pode ser melhor entendido como parte de minha pesquisa de doutorado, Vida literária no Brasil 2.0. Em explícito diálogo com Brito Broca, pretendo fazer na tese um retrato de época, partindo do pressuposto de que a internet tem papel central na reconstrução da vida literária brasileira na virada dos 1990 para os 2000.

Se, no momento imediatamente pós-ditadura, as artes plásticas, a música e o cinema reconstituíram com vigor suas respectivas “cenas”, na literatura a produção contemporânea só se delineia mais tarde. E é em torno de blogs e comunidades que escritores começam a aparecer, para a sociedade, a universidade, o mercado e até mesmo para eles próprios, como integrantes de um conjunto de publicações, iniciativas, eventos e até atitudes que já foi chamado “nova literatura”.

No texto que se segue, aproximo Machado de Assis e Walter Benjamin para tentar demonstrar, historicamente, como a sedução da tecnologia teve grande importância para eles. E, oswaldianamente, buscar em ambos “a contribuição milionária de todos os erros” – que ilumina o presente.

Prólogo

“Seventeen copies sold, of which eleven at trade price
to free circulating libraries beyond the seas.
Getting known”
S. Beckett, Krapp’s last tape

O jovem escritor atravessa a madrugada teclando. Entre um comentário no Twitter e uma passeada por sites, constrói sua narrativa. “Escritor”, aliás, é como ele se vê, como ele quer que o vejam. E assim o veem os leitores de seu blog, um blog literário porque assim ele o batizou e onde, naquela mesma madrugada, ele postou o que acabou de escrever. Sim, pois o ato contínuo de sua escrita não é a reescrita ou a ponderação, mas a publicação. Na mesma máquina, ele escreve e publica. E ainda entra em contato com as primeiras reações de seus leitores, que comentam seu texto. Alguns só veem defeitos. E o escritor, que assim se chama por conta própria, não o esqueçamos, descobre a crítica – não a ponderação ou o “diálogo entre homens inteligentes”, mas osnark 3 , o ataque selvagem e predador. Intenso e pouco meditado como o texto com que acaba de se expor ao mundo.

O jovem escritor, aliás, acabou de postar um diagnóstico da morte definitiva da literatura. Ou melhor, destacando a superioridade dos novos meios, da web, do computador e até do celular sobre os livros. Seus argumentos são temerários e não há uma frase em que ele, utopicamente, não defenda que a literatura se espalhe pelo mundo. É o fim do copyright, a liberdade radical de acesso à informação, a literatura para quem quer e precisa – literatura que, a princípio, assim se autodenomina.

Assim, o jovem escritor ganha um público. E, lançado na rede como as velhas mensagens em garrafas, seu pensamento selvagem cai nos olhos de um editor, destes que publicam livros de papel mas não tiram o olho da internet, das revistas literárias, das publicações independentes, enfim, de todos os lugares onde possa encontrar novos talentos e frescor. Afinal, pelo menos em tese, ele vive disso. E o jovem escritor, chamado por e-mail a uma conversa, acaba assinando um contrato, destes que preveem pagamentos de royalties, resultam em livros vendidos em livrarias e resenhados nos jornais – e, é claro, também nos sites e nos blogs.

Depois de algumas críticas positivas de gente importante, algumas entrevistas e até palestras sobre seu “processo criativo”, o jovem escritor ganha um prêmio. Agora não é só mais ele, os leitores de seu blog e seu editor: praticamente todo mundo se refere a ele como “escritor”. E ele mesmo acaba tomando um susto quando, ao viajar para uma feira literária, escreve na ficha do hotel “escritor” onde deveria preencher “advogado”, já que foi essa a faculdade que acabara de terminar a duras penas.

Em uma destas feiras literárias, o jovem escritor é perguntado sobre a importância da web em seu trabalho. “Nenhuma”, afirma, categórico. Sua vida não deve ter mais nada a ver com o mundo dos blogs. Aliás, no blog ele só posta notícias sobre seus próprios escritos, aos quais se refere como “seu trabalho”: críticas de jornais (as amargas, não), participações em feiras, cursos livres de escrita criativa, palestras etc. A máquina de escrever, que também já funcionava como máquina de se comunicar e publicar, virou máquina de promover. Afinal, quem vai levar a sério um escritor que não tem livros e só publica nas nuvens virtuais? Já viu alguém ganhar concurso literário só com blog e clouds? Fala sério.

***

A história do jovem escritor é uma colagem das trajetórias de diversos autores da recente literatura brasileira. Dramatiza a ambivalência dos novos meios e sua importância na reconstrução da vida literária dos últimos dez anos. É marcada pela precipitação, pelos juízos mal formados, pela incompreensão dos tempos mais lentos e tradicionalmente associados ao processo de construção de um livro e, a longo prazo, de um autor.
Melhor assim, pois, ainda que precário, seu começo de carreira é uma realidade imediatamente viável, tem receptividade, não é o poço de “incomunicabilidade” e tédio que marcou os escritores que eram jovens nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990.

Pior assim, pois sua carreira começa quase sempre meio torta, precariamente meditada, inflada pela velocidade do reconhecimento e dos brilharecos literários, os mesmos que enchiam de ambição e vaidade os jovens escritores na virada do século XIX para o XX. É o beletrista 2.0, a versão digital do fanqueiro literário retratado por Machado numa de suas Aquarelas.

O mundo tecnológico da escrita e da publicação é hoje um mundo de superposições: coexistem nele lógicas completamente distintas e muitas vezes conflitantes. Pois se a literatura pode hoje chegar por diversos caminhos e de diversas formas, sua legitimação ainda se dá nos circuitos tradicionais: publicação em revistas literárias, reconhecimento entre os pares, publicação para o público mais amplo, reconhecimento da crítica, construção de um “nome”, premiações, trânsito acadêmico etc…

Se o jovem escritor, nosso dileto personagem, começa prescindindo disso tudo, dificilmente abrirá mão de, mesmo por um atalho, trilhar a estrada principal. E assim o é, diga-se de passagem, em todo o mundo. Então, o que mudou? O tal do atalho, apenas? Eu diria que muito mais. Pois este mundo tecnológico da escrita e da publicação é marcado por uma impetuosidade histórica, que moveu escritores e intelectuais seduzidos por novas mídias ou pelo novo apelo de mídias consagradas.

Assim é com nosso jovem escritor, como assim foi com Machado de Assis e Walter Benjamin, dois autores que dramatizaram de forma exemplar esta ambiguidade do entusiasmo, força que anima arquitetos e demolidores e que perde importância e acuidade se lida apenas pelo lado triunfalista da construção ou pelo desencanto desvitalizado das ruínas. É na tensão, pois, que se faz o argumento.

1. O erro de Machado

O jornal e o livro é, justificadamente, considerado um texto “menor” de Machado de Assis. Posto em perspectiva da obra que viria, o ensaio publicado no Correio Mercantil em janeiro de 1859 tem mais valor histórico do que literário. Dá testemunho de um escritor em formação, um jovem de 19 para 20 anos tateando caminhos mais orientado por certezas do que pela suspensão delas – o que, finalmente, seria a marca de sua obra sob diversos aspectos 4 .

A aposta de Machado traz o desassombro próprio da pouca idade, como o nosso jovem escritor-blogueiro: eivado por hipérboles e grandiloquência, Machado afirma a superioridade do jornal sobre o livro, do posicionamento imediato sobre o mais longamente meditado. Este “equívoco” é, no entanto, o que mais me interessa, pois expressa o fascínio de um jovem intelectual pela técnica de reprodução mais em voga em sua época.

Não foi por capricho ou acaso que Machado escolheu para epígrafe de O jornal e o livro uma citação de Eugène Pelletan (1813-1884). O pensador francês, escritor, polemista e republicano ardente, exerceu considerável influência no Brasil com um discurso altissonante que fazia do progresso um Deus no qual deveria espelhar-se o homem em busca de uma comunhão com seu tempo. Ao apontar sua influência sobre Machado, Jean-Michel Massa não esconde a fragilidade das ideias que o fascinavam, indigestamente misturadas com “a eloqüência de Hugo”:
Homem de vastas sínteses, Pelletan abarcava de um só relance o passado, o presente o futuro. Outros dirão sobre o valor de sua visão de mundo, mas seu sincretismo generoso de idéias, em que misturava tumultuosamente todos os domínios do conhecimento, seduzira então numerosos espíritos eminentes. Machado de Assis, sensível ainda a todas as correntes, encontrou nele uma fé ardente e talvez uma resposta a algumas das questões que a si mesmo colocava. 5

A descrição de Massa corresponde ao peculiar “método” de exposição de Machado neste texto. Originalmente publicado em duas partes, o artigo evolui num galope, às vezes atabalhoado, para mostrar como a humanidade vem, através dos séculos, “em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia”. Das inscrições em pedra ao primeiro livro, estes meios de reprodução técnica se sucedem vertiginosamente na narrativa do atilado polemista. Trata-se quase de um épico em que escrita, arquitetura e arte convergem como patrimônio comum da humanidade.

Para que se tenha uma idéia do quanto este percurso é pontuado por saltos e conclusões precipitadas, Machado considera a arquitetura o resultado de uma progressão da comunicação primeira, nascida para “transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos”. Aperfeiçoando-se, a arte de construir e dar sentido a uma comunidade encontrará no livro um sucedâneo como forma de transmissão das ideias e das representações dos povos.

“O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita”, escreve Machado, lembrando um mundo em que os referenciais eram bem definidos, estáticos e locais. “O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada” . 6

Ocorre aí, argumenta ele, uma revolução sem precedentes. Já não é mais preciso ir ao monumento para dar conta da História, pois o livro é a forma portátil para a difusão do “pensamento da raça aniquilada”. Esta passagem é o início da democratização que Machado vê se materializar plenamente no impulso que toma a imprensa. Trata-se, no seu entender, de um processo de radical democratização do conhecimento, com consequências imediatamente políticas – que, no caso de Machado, é a celebração dos ideais republicanos 7 , diretamente importados da França :
O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. 8

Há aí uma aguda consciência de que a técnica promove uma ampla redefinição de referenciais na cultura. E, mais ainda, a certeza de que esta revolução tem consequências políticas imediatas – Machado vê nas transformações a potência democratizante da república como força legítima de aniquilamento da monarquia.

Indo ainda mais além, O jornal e o livro aponta ainda para a redefinição do papel social do escritor. Até então ligada às alturas da criação artística, a criação literária entra no circuito da mercadoria e o escritor é instado por Machado a se alinhar à nova ordem, deixando de lado inclusive qualquer nostalgia das musas vaporosas:
O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!” Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Reconhecendo, lucidamente, o exagero de seus argumentos, Machado assume uma posição tática – “se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia” – e termina com o ponto que, talvez, seja o mais radical do texto. Vale a transcrição do argumento que desafia frontalmente a distinção que faz a identidade do escritor em sua época:
O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva- se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas. 9

Foi este mesmo Machado, ou melhor, um outro Machado que deste nasceu para se consagrar como o grande autor de seu tempo, que respondeu com eloquente silêncio à enquete que João do Rio empreendeu em O momento literário. Publicado em 1904 o livro reuniu entrevistas com escritores sobre a importância do jornalismo para a literatura e a influência daquele sobre esta. Depois de receber o autor de Cinematógrafo “com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação” 10 , Machado calou-se. “O fogo, a confiança, o futuro, o progresso” do jovem polemista deram lugar ao “tédio à controvérsia” do Conselheiro Aires.

1.1. Machado reloaded

Machado olha a tradição do ponto de vista da novidade. Ainda que respeitoso, crê pouco que os grandes edifícios e monumentos sejam suficientes para transmitir o patrimônio da civilização. A cultura das catedrais, da pedra, só vive plenamente porque tornada portátil no livro e, de forma ainda mais leve e fluida, na imprensa, o que ele entende como o mais democrático dos meios.

Não é forçado relacionar esta linha de argumentação com os discursos que hoje vemos sobre as possibilidades de democratização do patrimônio cultural a partir dos novos meios de informação. E o que vacina tal paralelo do anacronismo puro e simples é uma lógica que entendo como a “dialética do entusiasmo” e que, a meu ver, está permanentemente relacionada aos embates e intercessões entre os bens culturais da tradição, qualquer tradição, e as inovações tecnológicas, sobretudo as novas tecnologias da informação.

Se nosso jovem escritor-blogueiro estivesse plenamente engajado em causas de seu tempo – e a ausência de uma ideologia de fundo é o que o distingue talvez mais decisivamente do jovem Machado, que apesar do fervor liberal quase religioso age de acordo com um conjunto de ideias – poderia defender tranquilamente que o livro e o jornal são praticamente letra morta diante do universo da web e, por exemplo, da polêmica digitalização global dos conteúdos impressos promovida pelo Google .11

Não se trata, diferentemente do que pensava Machado, embebido da ideologia do progresso, de uma sucessão de vitórias rumo ao aperfeiçoamento da humanidade. Mas, antes, de cortes profundos e descontinuidades que refazem o jogo de forças entre um conjunto de práticas e obras e tecnologias que as desorganizam e reorganizam constantemente.

A visada de Machado sobre a tecnologia de informação de seu tempo contempla, portanto, pelo menos três rupturas fundadoras da história da cultura tal como ela se configuraria a partir do século XIX: a portabilidade dos conteúdos (com o livro atuando como um primeiro difusor da cultura até então monumentalizada, tornando-a um patrimônio comum), a criação dos veículos de massa (e a consequente profissionalização e remuneração da escrita) e, num raciocínio abertamente controverso, a possibilidade de que o receptor torne-se emissor (“o talento sobe à tribuna comum”, escreve ele).

Se quisermos, boa parte da polêmica e da indefinição provocada pela multiplicação de vozes da web passa exatamente por este tripé – devidamente turbinado pelas reinvenções de parâmetros das décadas mais recentes. A leveza da tecnologia (na multiplicação de devices, do celular ao e-reader, passando pelos computadores cada vez mais portáteis) permite uma expansão ilimitada dos veículos de difusão (dos jornais aos blogs, Twitter e toda a chamada “mídia social”) e põe em curto-circuito o tradicional vetor dos meios de comunicação (pondo em questão as noções de autoria, de legitimação da escrita e, até mesmo, de literatura).

Está precariamente delimitado um território pantanoso que, pouco mais de 60 anos mais tarde, também será trilhado de forma errante por Walter Benjamin, a quem seguiremos agora como ele fez com o homem das multidões de Poe.

2. A aposta de Benjamin

Em 1928, podia-se ler o nome de Walter Benjamin na capa de dois livros singulares lançados na Alemanha: A origem do drama barroco alemão e Rua de mão única. O primeiro, rejeitado como prova de livre-docência pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, é uma intricada meditação teórica que vai ao fundo da cultura alemã clássica usando bússolas jamais imaginadas para aqueles caminhos; o segundo, de gênero indefinível, usa a montagem de corte surrealista para dar conta do geral e do particular, do episódico e do filosófico, da complexidade de um mundo já coalhado de informação e movido por máquinas.

Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qualquer forma dessa imediaticidade, nem se abandona ao pensamento abstrato dominante. O seu material próprio é o que passou: pra ele, o conhecimento nasce das ruínas,
escreveu Siegfried Kracauer numa certeira resenha dos dois livros publicada em cima do lance, em julho daquele ano. Benjamin era um desconhecido e seus textos, ainda no dizer de Kracauer, “são conjuntamente a expressão de um tipo de pensamento estranho ao desta época e que, em sua origem, é semelhante aos escritos talmúdicos e aos tratados da Idade Média” .12

O jovem autor era desde então chegado a uma síntese inusitada. Processava com desenvoltura e originalidade o idealismo e o romantismo alemães, cinema, literatura de entretenimento, traduções de Proust para o alemão, marxismo e judaísmo. Amava Kafka e o camundongo Mickey, Brecht e romance policial. Mais do que um simples gosto pelo ecletismo, Benjamin via na superposição temporalidades e referências um retrato indireto e mediado – e por isso fiel – do tempo que vivia.

Para garantir a precária sobrevivência em meio a um casamento instável, filho para criar e amores impossíveis para a administrar, trabalhou compulsivamente como jornalista e, entre 1929 e 1932, produziu, escreveu e atuou como locutor em mais de 80 programas de rádio em Berlim e Frankfurt. Numa carta a Gerschom Scholem, datada de 26 de junho de 1932, Benjamin procura explicar sua situação:
As formas literárias de expressão que meu pensamento forjou para si mesmo ao longo da última década têm sido totalmente condicionadas pelas medidas preventivas e antídotos a que tenho que recorrer para conter a desintegração que ameaça constantemente meu pensamento como resultado de tais contingências. E ainda que muitos – ou um numero considerável – de meus trabalhos tenham sido vitórias em pequena escala, eles foram ofuscados por derrotas de grandes proporções. 13

Graças a estes fracassos exemplares, Benjamin lambuzou-se das precárias vivências de seu tempo. E, impregnado por elas, produziu algumas das mais contundentes reflexões sobre as relações entre cultura e técnica, principalmente, a meu ver, por combinar sua extraordinária inteligência e originalidade com uma critica feita de dentro, na qual idealismo e pragmatismo mantêm tesa a corda dos argumentos, o perde-ganha constitutivo de uma cultura tecnológica em que construções e ruínas, arquitetos e demolidores são mais vizinhos do que pode parecer em termos ideais.

Experiência e pobreza (1933), O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (três versões entre 1935-1939, a última delas póstuma), são os textos em que Benjamin expõe, tão didaticamente quanto possível em sua obra, o resultado destas reflexões 14. Michel Löwy refere-se a esta produção, não sem desconfiança, como “parêntese progressista” e “período experimental”. Preocupa-se em destacar que a influência soviética pode ter causado distorções no pensamento de Benjamin, sobretudo pelo tom programático de O autor como produtor, mas acerta ao calibrar a visão do filósofo: “o que ele (Benjamin) recusa apaixonada e obstinadamente é o mito mortalmente perigoso de que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhora da condição social e da liberdade dos homens” .15

Nestes ensaios, bem como em fragmentos e textos dispersos relacionados a eles, Benjamin desenvolve alguns dos conceitos-chave de sua obra, que podem ser mapeados pelos seguintes pares dialéticos, sempre representativos de um perde-ganha impossível de ser rompido e que procuro resumir a seguir:

Civilização/Barbárie
Esta é uma das tensões fundamentais para compreender a obra de Benjamin. “Não há um documento de cultura que não, seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”, afirma a sétima tese de Sobre o conceito de História, referindo-se ao mundo submetido à ideologia do progresso e à tirania da técnica. Mas este mundo é também o que possibilita uma “nova barbárie” da qual dão testemunho Brecht, Le Corbusier e Klee. Perde e ganha.

Experiência/Vivência
O mundo moderno destitui o homem de sua experiência, da tradição passada de geração em geração, entregando-o à vacuidade das vivências. Mas a vida pobre em experiência é, também, a tábula rasa para a eclosão do novo.

Autor/Produtor
Para ser transformador, subverter a ordem que o oprime em particular e ao homem em geral, o autor deve ter consciência plena dos meios de produção e trabalhar para assumir o seu controle em bases totalmente distintas da estrutura “reacionária” da lógica capitalista.

Público/Produtor
Ao formar um público, os meios de reprodução técnica criam uma massa amorfa e sem opinião, que simplesmente consome mensagens e bens. O autor que se assume como produtor vai incluir o público neste processo, eliminando a distância entre eles.

Aura/Reprodução
A aura é o acontecimento único da obra de arte, que se perde para sempre com a reprodução. Mas a reprodução engendra por sua vez uma nova magia (as condicionantes de magia e técnica são históricas, escreve ele em Pequena história da fotografia) e a fotografia, sobretudo em seu início, dá testemunho deste potencial aurático.

2.1. O progresso dos desconfiados

Se o jovem Machado de Assis via no republicanismo o horizonte de libertação do meio de comunicação privilegiado de seu tempo, o jornal, Walter Benjamin apostava no marxismo como o antídoto revolucionário para as estruturas de dominação que já enxergava no jornal, no rádio e, com espantosa lucidez, no cinema. E como o dado e insubmissão fundamental para a prática artística transformadora.

O marxismo está para O autor como produtor assim como o liberalismo para O jornal e o livro. São, cada qual a seu tempo e princípio, o horizonte político destes intelectuais. E, também, turvam os argumentos com acessos doutrinários e jargões que, na perspectiva histórica que temos hoje, podem ganhar uma escala mais justa. Machado e Benjamin acertam menos pela argumentação do que pela formulação dos problemas.

Em notas tomadas entre julho e outubro de 1934, numa temporada passada com Brecht na casa do dramaturgo em Svendborg, na Dinamarca, Benjamin assim sintetiza a tese central de O autor como produtor, que discutiu à exaustão com o amigo:
Em meu ensaio, desenvolvo a teoria de que um critério decisivo para a função revolucionária da literatura reside na medida em que os avanços técnicos levam a uma transformação das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção intelectual.16

No jargão brechtiano a que recorre, Benjamin aponta, no geral, para a necessidade de uma “refuncionalização” do papel do escritor. E aqui o que menos interessa, a meu ver, é o inegável fantasma da doutrina soviética, sendo mais importante, hoje, lembrar que a “refuncionalização” é proposta por um intelectual que, como vimos, experimentou as principais formas de expressão e comunicação mobilizadas pelo capitalismo.

O texto constrói-se a partir de uma oposição do escritor rotineiro ao escritor progressista. O primeiro é escravo da diversão pura e simples e não reconhece a liberdade; o segundo é dominado pela “tendência”, a doutrina política, e pode confundi-la com a liberdade. O importante, observa Benjamin, é que “uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”. E este debate da “qualidade” não deve residir na oposição forma/conteúdo. Benjamin prefere situar a obra literária dentro das relações de produção de um época e não em relação a elas:
É vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias de nosso tempo. Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre.17

O texto dá conta de um “processo de fusão de formas literárias” diretamente relacionado com os avanços técnicos, a ponto de provocar a dissolução dos gêneros literários e, levando o raciocínio ao limite, à extinção de toda uma ideia de literatura. Um raciocínio que se ouve com nitidez neste início de século XXI nas palavras dos evangelistas de uma cultura da convergência 18 e, num nível menos analítico, nas discussões 19 sobre os novos formatos para os livros, desde o e-book até as experiências integrando texto, som e imagem nos vooks(vídeo+book).

No ponto crucial do texto, Benjamin aponta propriamente para a transformação do leitor em autor e do autor em produtor. Vale aqui a citação um pouco mais longa, em que, sem se identificar, cita um texto de sua autoria, O jornal , publicado no periódico Der Öffentliche Dienst, de Zurique, em março de 1934.

Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada de leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela […] o leitor tem acesso à condição de autor […} O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica”. 20

Ainda neste texto, Benjamin afirmava que “diante do fato de que a escrita ganha em fôlego o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público mantida pela imprensa […] está desaparecendo de uma forma socialmente desejável”. 21

Tal constatação é perfeitamente consonante com o raciocínio colaborativo que passou a caracterizar os meios de comunicação a partir do que o editor e guru da internet Tim O’Reilly passou a chamar, em 2005, de web 2.0., a redeparticipativa 22. Esta dimensão colaborativa desperta reações sempre apaixonadas, podendo ser balizadas pelo otimismo de um Pierre Lévy e seu conceito de “inteligência coletiva” (que afirma o poder democrático inerente ao modo de funcionamento da rede, minimizando em larga escala as implicações propriamente políticas) até o apocalipse de Andrew Keen no panfleto A cultura do amador (que prevê nada menos do que a derrocada do patrimônio cultural, do jornalismo às artes, a partir da possibilidade de acesso indiscriminado à produção de mensagens).

Permeia tal raciocínio um otimismo que não se encontra em outra parte da obra de Benjamin, sempre detalhista ao matizar argumentos e conclusões. Um otimismo propriamente revolucionário, que ganha o benefício da dúvida de ser nada mais do que uma posição tática, necessária para que se ganhe posições na discussão.

O que intriga e, finalmente, leva à reflexão que dá título a este texto é a constante, no Brasil de meados do século XIX e na Alemanha das primeiras décadas do XX, de um fascínio dos intelectuais pela tecnologia. Fascínio que, diga-se já, é consonante a momentos de importantes rupturas. Mas que apontam, desde sempre, para uma avaliação crítica ambígua.

3. A dialética do entusiasmo

Um dos princípios básicos das tecnologias da informação contemporâneas é a sua “useabilidade” ou seu estatuto “amigável”, ou seja, a possibilidade de uso imediato, sem a necessidade de conhecimento específico aprofundado. Trata-se, como se pode supor, de um considerável catalisador para que se passe da ideia à ação, do planejamento ao ato. Não é difícil prever, portanto, o impacto deste tipo de mecanismo sobre aqueles que têm na escrita seu horizonte profissional ou de criação estética.

Se, de alguma forma, realizou-se a portabilidade democratizante de Machado e a refuncionalização entre autores e produtores almejada por Benjamin, esta não foi certamente a concretização dos ideários republicano e socialista. Com seu potencial de demolição/reconstrução, a técnica não acomoda pacificamente a reflexão e, muitas vezes, a exclui do processo. Mas, ao convidar à criação, estabelece uma tensão permanente que prefiro chamar “dialética do entusiasmo”.

A idéia do bem acompanhado do afeto se chama entusiasmo”, afirma Kant sobre um conceito que nasce embebido em ambiguidade. Alia o imponderável (“o entusiasmo não é de forma alguma digno da satisfação da razão”) a um valor moral prezado pela humanidade: “este estado da alma parece sublime a tal ponto que, geralmente, pretende-se ter certeza de que sem ele nada de importante possa se obtido” 23 . Ainda segundo o filósofo, o entusiasmo seria um afeto “do tipo corajoso”, isto é, “que nos faz tomar consciência de nossas forças nos permitindo vencer toda resistência”.

Pois é precisamente este gênero de afeto que viceja quando o homem tecnológico se vê privado de suas referências constitutivas tendo à mão a possibilidade de, a partir desta “terra arrasada”, erguer outro tipo de parâmetro. Machado comemora, com o aumento de importância da imprensa, “a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social”. O “novo bárbaro” de Benjamin comemora o empobrecimento da experiência, “que o impele para ir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” 24 .

Assim se anima a escrita concebida nos meios de informação e/ou veiculada através deles. A aceleração das etapas que vão da escrita à publicação e distribuição é produto direto deste “afeto corajoso”: o entusiasmo de nosso jovem escritor ignora a temporalidade da criação literária, suas relações com o passado e a possibilidade de traçar caminhos futuros. Ele “simplesmente escreve” (aspas necessárias e fundamentais).

A pluralidade de vozes que advém daí é também, e de um certo ponto de vista, cacofonia. Desigualdade brutal no resultado dos textos, pretensão e mesmo ignorância são alguns dos diagnósticos para a vida literária em circulação acelerada. Mas, como lembra Kant, há em torno destes movimentos impetuosos um halo de grandeza, a certeza subliminar de que o entusiasmo é a marca fundamental de todo empreendimento que se pretenda importante. A certeza, em suma, de que um de suas principais fraquezas é, finalmente, sua força fundamental.

Quando se perde de vista um dos pontos de vista da questão, a discussão do que chamo “vida literária 2.0” perde completamente o sentido. Se assumirmos que o entusiasmo é o pai absoluto e suficiente de toda criação, qualquer análise da literatura contemporânea se transforma em nada mais do que a crônica, triunfalista, de um momento de puro e improvável renascimento da escrita literária no Brasil dos anos 2000. Se, ao contrário, assumirmos que o entusiasmo “não é de forma alguma digno da satisfação da razão” e que, portanto, propicia o mero espontaneísmo, transformamos nossa narrativa crítica num check-list viciado do cânone e da vida literária. Um filme reprisado no qual sabemos muito bem o que acontece no fim: morremos todos, de inanição, pela falta de apetite em enfrentar a produção contemporânea em suas oscilações.

 

Bibliografia


ASSIS, Machado de. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – volume 1. São Paulo: Brasiliense, 1985.

_____.Obras escolhidas – volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1985ª.

_____. Selected writings – Volume 1, 1913-1926. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

_____. Selected writings – Volume 2, 1927-1934. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

_____. Selected writings – Volume 3, 1933-1938. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

_____. Selected writings – Volume 4, 1938-1940. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

_____. Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1984. Col. Grandes Cientistas Sociais: 50.

BROCA, Brito. Vida literária no Brasil 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

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KANT, Emmanuel. Critique de la faculté de juger. Paris: Gallimard, 1985.

KEEN, Andrew. O culto do amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 200X.

LÖWY, Michael. Aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

_____. Redenção e utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_____.Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. São Paulo: UNESP, 2009.

PRADO, Antonio Arnoni. “Brito Broca ou injustiças de um revoltado”, in: Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

RICHTER, G., Thought-images – Frankfurt School Writer’s reflections from damadged life, Stanford University Press, 2007.

RIO, João do. O momento literário. Consultado em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2144


* Paulo Roberto Pires é aluno do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura (Programa de Literatura Comparada) da Faculdade de Letras da UFRJ.

 

1 Trabalho apresentado ao professor André Bueno no curso Historiografia e Crítica Literária, Faculdade de Letras da UFRJ no 2º semestre de 2009.

2Tradução de Leandro Konder.

3 Snark é o termo que David Denby, articulista da New Yorker, usa para designar a crítica virulenta, pessoal e precariamente fundamentada que marca o mundo dos blogs e dos comentários na internet. Sem significado preciso, “snark” faz referência a um dos seres non-sense criados por Lewis Carrol.

4 Aqui é importante lembrar o estudo de Kátia Muricy, A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo.

5 MASSA, p.190.

6 ASSIS, p.1008.

7 Nas palavras do próprio escritor: “O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica”.

8 Idem, p. 1009.

9 Idem, p.1012.

10 RIO, p. 98.

11 Para uma discussão completa ver o texto de Robert Darnton, “O Google o futuro dos livros” in: Serrote no 1, p.23.

12 KRACAUER, p. 279.

13 BENJAMIN, 1999, p. 844.

14 Aqui os três textos serão citados na tradução de Sergio Paulo Rouanet em Obras Escolhidas – Volume 1.

15 LÖWY, Redenção e utopia, p.97.

16 BENJAMIN, 1999 p.783.

17 Idem, 1985, p. 123.

18 JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide.

19 Neste caso é exemplar o Revisiting a publishing Manifesto – What does the future look like for publishers? (disponível em http://thedigitalist.net/?p=714) apresentado pela editora Sarah Lloyd na conferência Tools of Change in Publishing realizada em Frankfurt em outubro de 2009.

20 Idem, p. 125

21 BENJAMIN, 1999, p. 741.

22 O artigo What Is Web 2.0 – Design patterns and business models for the next generation of software está disponível emhttp://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html

23 KANT, p. 216.

24 BENJAMIN, 1985, p. 116.

 

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Ponto de Vista: Escrever com as frases que ficam no ar | de Liv Sovik

“My words echo
Thus, in your mind”
T.S. Eliot. “Burnt Norton” The Four Quartets (1944)

Estas palavras, traduzidas por Ivan Junqueira como “Assim ecoam minhas palavras / em tua lembrança” (infelizmente debilitando o acento na palavra Thus e a pausa que vem depois), evocam em mim a ação de uma bola de bilhar que é uma frase ecoando na minha cabeça. Tem frases que permanecem até ficarem estranhas e outras que são tão estranhas que ficam. Foi o caso de “Aqui ninguém é branco”, que uma pós-graduanda me deu como resposta à pergunta, “Mas” (o “mas” se devia à recorrente discussão da cultura e herança afrobaiana) “o que significa ser branco na Bahia?” Aquela frase comunicava pela incomunicação. Sabia que havia brancos na Bahia porque não estava sozinha na minha branquitude, mas de alguma forma a frase soou tão verdadeira, sincera e natural, que não houve resposta possível na hora. Tive que pensar enquanto as palavras ecoavam na minha lembrança.

Ecoaram tanto que viraram o título de meu livro, que já tive dificuldade em explicar: às vezes dizia que era paradoxal, uma negação no título do próprio assunto de uma obra sobre a branquitude; em outras dizia que era uma ironia ou uma expressão essencial do discurso identitário nacional. Certa vez, expliquei que o tom era mais para “Você é gordo!” do que “Todos vão à praia”, pois sentia que usar a frase como título tinha algo de confronto. Quando Silviano Santiago escreveu no prefácio que o título foi “inspirado na certa em leitura de Ionesco”, foi um alívio. Quando ele apontou para o absurdo da frase, tudo ficou claro e não estava mais sozinha, ninguém podia dizer que só eu era branca.

Minha cabeça deve funcionar assim, como câmara de eco, pois os versos de Eliot volta e meia estão presentes quando preciso refletir sobre como eu penso. Fragmentos me chamam a atenção, refrãos como “A carne mais barata / É a carne negra” ou “Não vivendo pra dançar / Mas dançando pra viver”. Por mais que a frase de Eliot chegue para mim como resumo de minha pequena ópera em forma de colagem, me imagino pensando e não escrevendo. Para mim é uma grande e agradável surpresa que o meu jeito de escrever dê prazer, pois é tão difícil me imaginar escritora que demorei anos para poder pronunciar, sequer para mim, as palavras “meu livro”, parecia tudo em maiúsculas e eu, me levando a sério demais. A hesitação, fantasiada de cuidado, me aflige.

+++

O vai e vem entre escrever e não escrever vem de longe. Quando cursava a oitava série e ela tinha 40 anos, minha mãe começou a fazer seu mestrado em Letras. Conversava comigo sobre as coisas que lia e aprendia, na cozinha depois da escola. No mesmo ano, como dever de casa, descrevi uma profissão que me atraísse, em texto que redescobri no meio às coisas guardadas na casa de meus pais 30 anos mais tarde. Estava interessada em ser professora universitária, disse, mas a desvantagem seria ter a obrigação de escrever, publish or perish. Minha resistência não aguentou a passagem dos anos, mas o que cedeu primeiro foram as ressalvas à escrita. Só assumi a carreira universitária um pouco antes da descoberta do texto sobre “o que quero ser quando crescer”.

Escrever adquiriu diversos sentidos através do tempo. Quando tinha 26 anos, era patinar na superfície. A superfície tem má fama, mas neste ano de jogos olímpicos de inverno, lembra-se como patinar é tecer passo a passo, com graça quase involuntária, um caminho que encontre um chão onde nem sempre há terra firme. Significava não cair – de bunda ou, pior, no buraco da tristeza – e isso era minha preocupação principal quando tinha essa idade. Escrever parecia uma forma de criar meu próprio chão.

Não caí no buraco, mas tampouco deslanchei a escrever. Quando a popularização do computador permitiu essa façanha contemporânea, titubear e corrigir quase na mesma hora, virei uma escritora de cartas relativamente longas, cujas qualidades dependiam da relação com os amigos e parentes que as recebiam: só podia escrever coisas engraçadas ou tocantes para aquela pessoa. O destinatário de algumas dessas cartas me respondeu (certamente querendo dar ênfase à parte “poesia”), que eu escrevia “poetry without yet its wings”. Escrevo poesia sem asas, que não decola do chão. Por outro lado, quem sabe patinei bem, fiz curvas bem fechadas, trançando as pernas com corpo na diagonal para não desperdiçar energia, dei talvez até uma pirueta, mas sem adornos, como ensinaram meus professores em Yale, que exigiam humildade diante da tarefa de dizer.

Hoje, escrever a primeira versão de trabalhos acadêmicos muitas vezes causa algo que é quase dor, pela angústia do não dito, o medo de não encontrar a forma de abrir uma picada na mata fechada de um assunto, o tédio da vasta escolha de palavras e noções. Gosto mais é de revisar, revisar, reinventar, embora tenha que conter, quando estou me sentindo criativa, minha tendência a rir sozinha, às private jokes. Em gostar de frases prontas, estou muito bem acompanhada. Eliot demonstrou ter ecos de palavras na sua lembrança e citava desde a eremita medieval Julian de Norwich (“Tudo estará bem / toda sorte de coisa estará bem”, em “Little Gidding”) ao barman do pub chamando o público para sair (“Hurry up please it’s time”, em The Waste Land. Mas talvez a frase que mais frequentemente resvala na minha mente nem seja de Eliot, mas dos irmãos Gershwin, cantada por Aretha Franklin, claríssima na sua percepção da contingência da vida: “It ain’t necessarily so” – Não é necessariamente certo.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco, recém lançado pela Aeroplano. Escreveu este texto sobre os “bastidores” do livro para a revista Pernambuco (Nº 50, abril 2010, p.3.http://www.suplementopernambuco.com.br/), onde saiu sob o título “Ninguém podia dizer que só eu era branca”.<

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Surgimento e difusão da marca Daspu: o nome como palavra de ordem | de Washington Dias Lessa e Jeanine Geammal

Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC

Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.

1. O surgimento da marca Daspu

A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.

Desfile de 16 de dez., na Rua Imperatriz Leopoldina. Matéria publicada na capa do jornal O Globo, em 17 nov. 2005. Foto de André Teixeira.

Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.

O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.

Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva

Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).

Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.

Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.

Capa do caderno Ela do jornal O Globo, publicada em 14 jan. 2006.

Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.

Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).

A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker.

Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.

2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método

A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.

O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.

Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.

Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.

Segundo desfile da marca, na Praça Tiradentes, no Rio de janeiro, em 13 jan. 2006. Foto de Paulo Jabur

O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.

Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.

Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.


Daspu na GNT

Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.

 

Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.

 

Foi tomado como corpus da investigação o clipping referente à Daspu arquivado pela Davida. Sucedem-se nesse espaço configurado pela mídia: versões e fatos fortuitos ou planejados, personas e personagens diretos e indiretos – tais como jornalistas, a direção da Davida, profissionais de moda e de imagem pública etc –, iniciativas da Davida perseguindo profissionalismo e visando adquirir estrutura e ritmo minimamente empresariais etc. A partir da compreensão da enunciação Daspu como palavra de ordem, buscou-se a caracterização dos agentes, das circunstâncias da enunciação e dos desdobramentos do processo de nascimento e crescimento da marca.

3. A palavra de ordem, conceituada por Deleuze e Guattari, e a enunciação Daspu

Para chegar ao conceito palavra de ordem, Deleuze e Guattari partem da crítica ao caráter formal e fechado da língua, tal como esta categoria é proposta por Saussure, e trabalham: a) com o conceito ato de fala ou ato ilocutório proposto por J. L. Austin e desenvolvido por John Searle no âmbito da filosofia da linguagem ordinária; c) com a compreensão, segundo a filosofia estoica, de que num campo social existem os corpos e as modificações corpóreas 4 , e por outro lado os atos incorpóreos levando a transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos – caracterizando-se neste processo “uma independência entre as ações e paixões dos corpos, e os atos incorpóreos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26). Vejamos como esses conceitos se constroem.

A conceituação de ato ilocutório pressupõe que tanto a função representativa quanto a função comunicativa da linguagem são apenas condições para a realização de sua pragmática, pois quando faço uma enunciação eu atuo sobre a realidade. Dizer “prometo” não é descrever uma promessa ou apenas comunicá-la, mas fazer uma promessa; assim como ao dizer “eu juro” eu estou jurando, ou estou ordenando quando emprego o imperativo. Mas as atuações sobre a realidade não se resumiriam a esses atos performativos explícitos. Por exemplo, em última instância todas as enunciações envolvem um modo ou um tom de voz, e ao enunciar em tom peremptório que “a terra é redonda”, um sujeito pode estar se posicionando e influindo pragmaticamente no curso de algum acontecimento.

O ato ilocutório impõe uma compreensão da linguagem que se diferencia do modelo linguístico saussureano, pois ultrapassa a compreensão do enunciado com base em sua dimensão significante (que define a esfera da significância/informação, remetendo ao caráter representativo da linguagem), assim como a compreensão da enunciação com base na sua relação com um sujeito (que define a esfera da subjetivação/comunicação, remetendo ao caráter comunicativo da linguagem).

Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas, morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, (…) remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. (…) Como diz Bakhtine, enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece incessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas” (Deleuze, Guattari, 1995: 21)

Na caracterização da palavra de ordem, este efeito próprio do ato ilocutório é complementado pela concepção estoica de que há uma independência entre corpos de uma sociedade – associados por Deleuze e Guattari, com base no universo linguístico, a um plano de conteúdos – e os enunciados a respeito desses corpos – associados a um plano de expressos. Os enunciados promovem transformações incorpóreas nos corpos, sendo essas transformações distintas das ações e paixões que afetam os corpos (Deleuze, Guattari, 1995: 18). As palavras de ordem são

não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) [E diferentemente da concepção lingüística tradicional] a linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze, Guattari, 1995: 16)

Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelho” (…), é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado das coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

Buscando esclarecer este regime de independência entre corpos e enunciados, entre o âmbito da “lição das coisas” e o âmbito da “lição dos signos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26), os autores referem-se à introdução que Oswald Ducrot fez para a edição francesa de Speech Acts, de Searle:

Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega, precisamente, ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade o que se passa antes – o crime pelo qual se acusa alguém – e o que se passa depois – a execução da pena do condenado – são ações-paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vitima, corpo do condenado, corpo da prisão). (Deleuze, Guattari, 1995: 18)

A palavra de ordem coloca-se como condição necessariamente social da linguagem, e por isso, diferentemente das sistematizações fonológica, semântica, sintática da língua, possui um caráter não necessário e não pré-determinado, e ao mesmo tempo interventivo/transformador:

Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança…”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis porque as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. (Deleuze, Guattari, 1995: 19)

Porém é importante salientar que a palavra de ordem não funciona com base apenas no exercício da vontade, desvinculado das circunstâncias em que a enunciação se dá. O que possibilita, ou não, a efetividade da palavra de ordem são essas circunstâncias.

[Benveniste] mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto de mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido, nem sujeito nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (Deleuze, Guattari, 1995: 20-21)

A enunciação Daspu como palavra de ordem articula-se conjugando dois momentos. A data-referência principal é o dia 20 de novembro de 2005, quando Elio Gaspari publica a nota n’ O Globo. É a partir desse momento que a Davida assume a exposição pública e a repercussão positiva, que vai transformar um projeto de confecção em um processo de construção de uma empresa de moda, assim como vai potencializar a imagem da própria Davida. Mas também se coloca a data de 15 de julho de 2005, quando o nome é criado, pois é a especificidade do nome que dá a sua consistência como palavra de ordem, apesar dessa só se efetivar em 20 de novembro depois de ter seu potencial transformador reconhecido/assumido pela Davida. Se não fosse a referência à Daslu, talvez a nota não tivesse sido publicada; mas se não fosse a ironia e o bom humor, uma “brincadeira carioca” nas palavras de seu criador, Sylvio de Oliveira, talvez a repercussão não tivesse sido tão grande.

Fotos do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pelo jornal O Estado de São Paulo, 12 abr. 2006.

De qualquer modo o nome Daspu é coerente com a visão positiva e não moralista que caracteriza a ONG. A chave de leitura do nome Davida, por exemplo, refere-se a um eufemismo para puta – mulher da vida –, mas também à positividade da afirmação Da Vida. E o nome Daspu, ao se apresentar como uma marca Das Putas – homologamente ao nome Daslu, motivado pelos prenomes Lúcia e Lourdes de suas duas fundadoras –, brinca com o estereótipo da mulher obrigada a se prostituir para sobreviver em contraposição ao consumo de luxo da cliente Daslu. Assim como alude ao fato de que o mundo Daslu é eventualmente também atravessado pela relação entre sexo e dinheiro.

 

Foto do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pela Folha de São Paulo, 12 abr. 2006. Foto de João Sal



A menção satírica à Daslu, associada à autoironia de relacionar prostitutas da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, à boutique mais luxuosa do país, dão ao humor Daspu um certo tom de ”escracho”. Grande parte do sucesso pode ser tributado a esta irreverência, que também se faz presente nas frases das camisetas. Sua carioquice conquistou cariocas e não cariocas, pois a proposta tinha potencial para apresentar-se culturalmente como fetiche. Assim como aconteceu com as camisetas: tornaram-se, imediatamente, objetos de desejo.

No entanto devem ser assinaladas as circunstâncias que tornam possível a palavra de ordem, assim como as transformações na ONG e no empreendimento Daspu que se seguem às suas reverberações.

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Ela Fashion, em 10 jun

 

4. As circunstâncias da enunciação Daspu

Devem ser assinaladas quais as circunstâncias que efetivam a Daspu como palavra de ordem, vale dizer os modos como essas circunstâncias vão sendo dispostas, no momento inaugural e ao longo do processo daí decorrente, por corpos (lição das coisas) e enunciados (lição dos signos) conectados ou conectáveis ao evento. E de como as pressuposições recíprocas entre as ações e paixões desses corpos e as transformações incorpóreas expressas por esses enunciados dialogam com as circunstâncias que sustentam a palavra de ordem. Conforme já indicado, os expressos podem “se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo.” (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

No cenário da enunciação Daspu destacam-se entre a heterogeneidade dos corpos e agentes dos enunciados: prostituição, moda, jornalismo, público leitor, comunicação, marketing, design, empreendedorismo, sociedade brasileira, arte, sociedade do espetáculo, movimentos sociais, política, bom humor e crítica, discurso antropológico, moralismo, ética, “consistência cidadã”, criação, transgressão etc. Neste sentido delineiam-se agenciamentos fragmentadamente coletivos e processuais.

Daspu nos bastidores de “Caminho das Índias”

A partir da análise do clipping pesquisado, e tendo em vista os corpos e os enunciados em jogo, pode-se compreender as circunstâncias que fundamentam a enunciação Daspu na particularidade de quatro confluências: a) a confluência entre a lógica da imprensa, o escândalo Daslu, e o surgimento da Daspu; b) a confluência entre a Davida como proposta e organização, e sua experiência com a mídia; c) a confluência entre a lógica da moda, a cobertura jornalística da moda, e o caráter transgressivo associado à Davida/Daspu; d) a confluência entre o apoio de artistas e intelectuais, e o trabalho voluntário de profissionais de moda e de imagem pública.

4.1. A lógica da imprensa; o escândalo Daslu; o surgimento da Daspu

Independentemente dos aspectos técnicos e éticos que caracterizam as diretrizes explícitas de produção/edição de um meio de comunicação – tais como a fidedignidade, a abrangência e a isenção da informação veiculada –, coloca-se a diretriz pragmática de motivar o leitor. Isto envolve a articulação das várias possibilidades de formatação da informação jornalística, assim como o tratamento cativante dos fatos que a reportagem e a edição constroem. A eficácia dessa estratégia fortalece o prestígio e o cacife empresarial do veículo, e é isto o que se busca expressar na a fórmula-síntese “notícia vende jornal”.

No caso Daspu colocam-se como pano de fundo desta articulação pragmática: a) a diretriz ética de defesa da sociedade, pois a motivação da publicação da nota vem da existência de um processo contra a Daslu, e evoca tanto a necessidade de cumprimento das leis, quanto a impunidade das elites; b) a existência de um público leitor afetado pelas condições da economia e, por isso, receptivo à critica de desmandos legais; c) o caráter inusitado da associação entre uma confecção de prostitutas e a loja multimarcas de luxo, que se dá pela referência paródica e satírica do nome Daspu ao nome Daslu. O fato é imediatamente percebido em seu potencial de repercussão jornalística. E a sua publicação como nota numa coluna de opinião acentua ainda mais sua dimensão irônica.

No desdobramento da cobertura das ações da Davida, o tema da defesa da sociedade é alimentado pela notificação judicial da Daslu, e potencializado por comparações de fundo ético entre a Daslu e a Davida. Em alguns momentos, em colunas de opinião essa cobertura ganha um tom carregado de denúncia. Entretanto na quase absoluta maioria das vezes o assunto Daspu é reproduzido/caracterizado com o mesmo bom-humor presente na criação do nome. Pois apesar do caráter político e de critica social, a novidade apresentada pela Daspu é alegre e divertida, assim como o bloco carnavalesco dos Prazeres Davida, uma das iniciativas culturais da ONG.

4.2. A Davida como proposta e organização; sua experiência com a mídia

O desdobramento da enunciação Daspu através da ação da imprensa coloca a Davida em evidência. E a consistência política e cultural da Davida dão substância à palavra de ordem, pois as referências éticas são reais. No momento de seu aparecimento público a Daspu podia ser só uma ideia, mas consegue tornar-se realidade, pois existe por trás da marca um grupo de prostitutas organizadas com um discurso e posição critica coerentes em relação à realidade da prostituição. Sylvio de Oliveira, referindo-se ao ineditismo da proposta da ONG, lembra que no primeiro desfile, por ocasião do Fashion Rio, havia, aproximadamente, trezentos jornalistas do mundo inteiro “naquela ruazinha estreita”, o que seria um acontecimento inédito no mundo. Nunca antes houvera tantos holofotes focalizando positivamente a prostituição. Sylvio conta que na Europa, onde há um trabalho consistente com prostituição,

existe uma mulher, que […] é como se fosse a Gabriela lá. Fazem coisas incríveis, mas nunca com essa preocupação que a Davida teve de fazer a população virar cúmplice das prostitutas.[…] O trabalho lá na Europa é muito interno, o político, o de prevenção a AIDS sim, mas é muito para o bem estar das putas apenas, não contando com a cumplicidade da população. (Oliveira, 2008: 58)

Mas além dessa retaguarda ética e política, as ações e posições da Davida subsequentes à publicação da nota de Gaspari estabeleceram um diálogo ativo com a cobertura jornalística, evidenciando a habilidade de Gabriela Leite e Flávio Lenz em capitalizar a imagem da marca. Eles souberam fomentar por um longo período o interesse da mídia na Daspu. Fala-se tanto da marca que esta chega integrar uma lista publicada n’ O Globo por Ancelmo Gois, em 26 de novembro de 2006, dos assuntos que “ninguém aguenta mais ouvir”, e isto um ano depois de ter sido anunciada por Gaspari! (Gois, 2006: 27). Ou seja, a partir do momento inesperado em que a marca foi divulgada pela primeira vez, todos os outros espaços na mídia foram bem aproveitados pela Davida. E muitos, de certo modo, articulados pelos seus dirigentes.

Famosas apóiam projeto social em “Caminho das Índias”
Elke Maravilha, Susana Vieira, Betty Lago, Preta Gil e Priscila, vice-campeã do BBB9 falam sobre o trabalho da Daspu para o documentário da personagem Leinha.

Neste sentido foi fundamental a experiência jornalística de Flávio Lenz, adquirida na atuação em jornais de grande circulação, no trabalho como assessor de imprensa da Davida desde 1992, e na publicação do jornal da ONG Beijo da Rua, em suas versões impressa e on line.

4.3. A lógica da moda / o caráter transgressivo da Davida/Daspu

A recepção da Daspu pela moda desenha-se com base em algumas características valorizadas pelo meio. Destaca-se, inicialmente, o imperativo do novo. A moda, com sua natureza inquieta e desassossegada, é movida pela novidade. A esta deve-se a busca pelo diferente, do que não integra ainda o repertório do campo. O tédio associado ao que já foi seguidamente vivenciado abre espaço para o exógeno. E segundo um referencial antropológico destacam-se as tribos e as periferias, que oferecem um “viés diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada” (Villaça, 2007: 59), proporcionando novas identidades possíveis. Através do ato de vestir uma camiseta, ou desfilar, ou se projetar em uma imagem fantasia, promove-se uma brincadeira de prostituta, ou de apoio às prostitutas. Relativamente ao seu processo de comunicação, a Daspu foi surpreendente nesse aspecto: foi criada uma marca viva, uma marca sujeito (Lipovetsky, 1989: 187) com a qual é fácil de se identificar.

Por outro lado, como a empatia do provável consumidor com a marca tende a se estabelecer segundo uma dimensão política, isto aponta para uma critica de relações e enquadramentos autoritários e moralistas. E essa condição também vem fortalecer a busca do novo, só que num outro registro. Caracteriza-se aí um outro aspecto valorizado pela moda, que é o rompimento com o passado, o gosto por desobedecer regras. E isto destaca a valorização, pela moda, do transgressivo, e de como a Daspu corresponde duplamente a esta expectativa.

Primeiramente coloca-se o discurso da prostituta autodeterminada, que é capaz de falar por si, defender seus direitos e atuar politicamente, rompendo com o silenciamento, com o não-discurso, da prostituta comum. Num outro nível coloca-se a crítica, no âmbito da defesa dos direitos civis, às posições assistencialistas que têm como objetivo “recuperar” as prostitutas, tirando-as “da vida”. Diferentemente a Davida defende a opção consciente de atuar na profissão, assim como o orgulho profissional. Essas posições têm um papel importante na recepção da marca pelos artistas, jornalistas e criadores, graças à valorização do transgressivo como veículo tanto do novo quanto da renovação social. Assim como o transgressivo também se associa à categoria de atitude, igualmente valorizada pela moda.

“Da farofa ao caviar” desfile da Daspu em BH 2009

E existe, finalmente, a consciência quanto aos recursos de exposição e aparecimento, presentes na prática da moda. A Daspu, desde seu lançamento, utiliza sobretudo um determinado modo de operação da moda: a valorização do sensacional (Carli, 2002: 114). Com a ajuda de artistas e cenógrafos tira proveito do show. Seus desfiles se referenciam na arte e transformam-se em instalações e performances. Embora não se abra mão de obter recursos através das vendas, a marca não se descuida da premissa e protocolos do desfile espetáculo. E isto até porque a produção não está bem equacionada. De qualquer maneira há plena consciência de que o aparecimento em si mesmo trabalha pela causa, e de que estar na mídia significa, ainda que de modo relativo, o direito a ter voz.

4.4. O apoio de artistas e intelectuais / o trabalho voluntário de profissionais de moda e imagem pública.

A imagem da marca projetada pela imprensa é fortalecida pela adesão e apoio de artistas, intelectuais, profissionais de cultura e de moda.

As formas de apoio podem envolver efetivações estratégicas, como o convite de Gringo Cardia para a Daspu participar do estande do SEBRAE na edição outono-inverno do Fashion Business de 2006, assim como o oferecimento de trabalho voluntário, como faz o próprio Cardia com a cenografia para o desfile da coleção Daspu na Pista – BR 69, no Circo Voador, e toda uma legião profissional que se envolve com a marca: estilistas, cenógrafos, designers, modelos, cineastas. Como também há o apoio dado através da cessão de espaço em programas de entrevista, como fazem Betty Lago e Jô Soares, ou em outros espaços televisivos, como na participação na novela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão, em 2009.

 

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Fashion Rio, em 10 jun. 2006. Foto de Fábio Guimarães.

A motivação desse apoio se origina na identificação tanto com o caráter ético que a imagem da marca projeta, quanto com o caráter transgressivo. Por outro lado, pode-se falar de um retorno desse apoio, dado pela exposição que se ganha com o destaque que o assunto tem na mídia. Porém simpatizantes como Gringo Cardia ou Betty Lago, só para citar dois exemplos, não podem ser considerados principiantes em busca de exposição pública. Mas, sem juízo negativo de valor – pois é legítima a expectativa de exposição por parte de quem contribui com a ONG –, este talvez seja o caso, por exemplo, da estilista Rafaela Monteiro (segundo desfile), ou do grupo Coletivo Puta Life Style (quinto e sexto desfiles). E da parte desses profissionais também pode estar presente uma expectativa, também legítima, quanto a uma liberdade do exercício criativo.

Desfile de lançamento da coleção Daspu na Pista BR 69, no Circo Voador, Rio de Janeiro. 9 jun. 2006. Fotos Marcos Silva.

Resulta deste apoio: a) o reforço temático da imagem da marca, na medida em que citações de “famosos” na imprensa enfatizam aspectos éticos ou transgressivos; b) o reforço da visibilidade da marca, pois as declarações de apoio colhidas em eventos específicos transcendem tanto esses eventos quanto o caráter referencial dado pelo espaço na mídia, incorporando-se a um espaço maior e menos material de aparecimento; c) consistências parciais na visualidade ligada à marca, dadas pelos parâmetros profissionais do trabalho voluntário (que elas sejam mais ou menos articuladas entre si é uma outra questão).

5. Inserção da palavra de ordem Daspu no corpo Davida

Conforme indicado por Deleuze e Guattari, um enunciado diz respeito “a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões” (Deleuze, Guattari, 1995: 19). Ou seja, independentemente da distinção entre corpos e transformações incorpóreas, estas tornam-se presentes e podem marcar os processos de mistura dos corpos.

Com base nesta orientação, destacamos dois aspectos das transformações na ONG Davida e no empreendimento Daspu que se seguem às reverberações da palavra de ordem: o primeiro ligado à autoimagem das prostitutas que participam, ou se conectam à ONG, assim como à própria imagem da ONG; e o segundo ligado à estruturação da Daspu como negócio.

5.1. A moda sem vergonha

A enunciação pública do nome Daspu recoloca o jogo exibe-esconde com o qual as prostitutas lidam em seu dia-a-dia – exibe para o cliente, esconde da sociedade, polícia, família. É obviamente salutar para a causa política da Davida, mas exige das prostitutas que abram mão de sua habitual repulsa pela exibição/exposição pública, que na moda é parte inseparável do jogo.

E isto traz uma mudança quanto ao ato de mostrar-se. As prostitutas passam a ter status distinto do que tinham antes, pois incorporam a persona da modelo, que mostra o que veste mostrando-se. E, momentaneamente, ganham voz na mídia. Com a sua entrada no meio da moda, a marca inaugura um novo padrão para a autoimagem das associadas à Davida: mostrar-se e dizer-se puta.

Este processo ganha uma compreensão mais nítida a partir da categoria discurso reverso, proposta por Michel Foucault em História da sexualidade 1: A vontade de saber: Desenvolvendo a questão da “polivalência tática dos discursos” nesta área (Foucault, 1988: 111), o autor postula que deve-se imaginar uma “multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes”. Refere-se, entre outras coisas, ao fato das enunciações ligadas a controles sociais comportarem deslocamentos e utilizações para fins opostos. Segundo ele o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico”, permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso “de reação” [discurso “reverso” 5 ]: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988: 112).

Esta estratégia já estava presente no discurso de Gabriela Leite antes da Daspu. No entanto a marca fornece o megafone/amplificador que a propaga e faz reverberar, conforme o subtítulo do livro de Lenz: Daspu – a moda sem vergonha. O que a Daspu promove com sua moda sem vergonha é a transformação da puta sem-vergonha ou desavergonhada, na puta sem vergonha de dizer-se puta, o que, entre outras coisas, significa, por exemplo, deixar-se fotografar para jornal.

Por outro lado, este imenso potencial transformador que a marca representa, na medida em que se apresenta como “uma forma inusitada de ativismo político”

6, perde seu poder se a Daspu desaparece como marca. O valor da marca pode ser tão importante quanto a venda de produtos, mas também é verdade que se as vendas não acontecem e a empresa não se fortalece, este valor tende a se esvaziar. Esta avaliação aponta para a importância da Daspu manter-se ativa no mercado da moda.

5.2. O negócio Daspu

A recepção favorável que a enunciação Daspu teve no meio moda não significa que ela tenha sido sempre avaliada positivamente. Muitas vezes a moda se apropria das práticas e dos produtos de periferia como demonstração de correção política, por exemplo, mas exige em troca a adaptação. Ao se associar à moda, a Daspu fica sujeita à sua lógica mutante: estar na moda pode significar, no minuto seguinte, não estar mais. Ao mesmo tempo que o fascínio pela novidade favorece o surgimento de marcas e estéticas fora de um mainstream, o imperativo do novo dificulta sua permanência. A partir do momento em que uma experiência específica ganha visibilidade, deixa aos poucos de ser uma novidade. Para se manter como sujeito nesse espaço social é necessário não só produzir outras novidades, mas também enquadrar-se segundo seus parâmetros produtivos. Movimento que a Daspu vem se empenhando em fazer desde seu lançamento.

Sobre a estreita relação entre a imprensa especializada em moda e o sistema da moda, que dá aos jornalistas especializados e veículos um certo poder na homologação dos gostos e inclusão das marcas neste sistema, deve-se lembrar que, observando-se o desempenho do Brasil na moda mundial dos últimos tempos, observa-se uma elevação significativa nesse padrão para a homologação. O investimento das empresas nacionais para obter reconhecimento internacional da moda brasileira, requer, com toda certeza, mais rigor no critério de seleção das marcas que receberão essa homologação, seja da imprensa especializada ou dos demais setores do sistema da moda. A edição de 2009 do Fashion Rio pareceu caminhar ainda mais na direção da elevação desse padrão. Reduziu drasticamente o espaço oferecido às marcas em processo de profissionalização e manteve no evento oficial apenas as que haviam alcançado um estágio profissional mais avançado. Profissionalismo, design, qualidade de produto, permanência e constância são critérios importantes para a manutenção do status alcançado em solos internacionais e, consequentemente, concorrem para a eleição do grupo de marcas que ingressará nesse círculo cada vez mais restrito. E este é um movimento natural da perspectiva da indústria da moda.

Desfile da coleção Daspu na Pista BR 69, no Club Glória, São Paulo, 15 jun. 2006.
Fotos de Marcos Silva.

Nas raras avaliações dos jornalistas de moda, são encontrados indícios da não homologação da marca Daspu. Mas, sobretudo, a raridade dessas críticas é a principal evidência de que ela não chegou a ser exatamente considerada como parte do meio.

Nas escassas avaliações e críticas que a marca Daspu recebe da imprensa especializada, é possível perceber inadequações do produto oferecido, ou da empresa Daspu, ao negócio moda. Como quando Iesa Rodrigues, ao elogiar a camiseta Beijo da Rua, sublinha a ausência de produtos apresentados pela marca naquele momento. Ou quando Glória Kalil, comentando um padrão de vulgaridade presente hoje na moda, e comparando as roupas da Daspu e da Daslu, refere-se às diferenças de tecido e acabamento. Ou ainda na crítica encontrada no site de Erika Palomino, que afirma que o público aplaudiu mais as prostitutas e menos as modelos de verdade, ainda que pouco antes tivessem reproduzido a afirmação de Rafaela Monteiro – “prostituta não tem cara”.

 

Fotos do desfile da coleção Puta Arte, na Praça Tiradentes. Rio de Janeiro. 19 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

 

É interessante, para o caso Daspu, pensar nos binômios socialização/individualização, distinção/imitação, presentes na teoria de Simmel (Simmel, 1957). Quando Gabriela Leite afirma que faz uma moda para todas as mulheres parece ciente da importância dessa relação. Entretanto, na maioria das vezes, a roupa da Daspu é nomeada pela imprensa como roupa de prostituta para prostituta. Segmentação que nada ajuda ao discurso da Davida. Uma confusão que talvez seja estimulada pelos conceitos autorreferentes presentes em todas as coleções. Essa segmentação advém, normalmente, da mídia não especializada. Glória Kalil, como visto, afirma justamente o contrário. Mas nesse caso o discurso de indistinção também tem, subjacente, a distinção. Nos comentários de Glória Kalil sobre a similaridade entre as modas Daspu e Daslu, está claro que ela não ignora que são “as pequenas diferenças que fazem toda a moda”. Quando destaca a importância de um bom tecido ou acabamento, não desconhece que “a torrente de pequenos nadas” (Lipovetsky, 1989, p.32) à qual o tecido e o acabamento pertencem pode, imediatamente, desclassificar ou classificar a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada. Se inserem em “uma parte da moda que se tornou como a alma da economia geral do vestuário: o detalhe” (Barthes, 2005: 341). Assim, nem tudo é paródia e deboche na apropriação que Daspu faz do nome Daslu: deve haver também imitação. Ou pelo menos ela é esperada. Quando as análises, elogiando o desempenho Daspu, equiparam suas criações com as demais, anunciam que é isso que esperam da marca.

Desfile da coleção Puta Arte, no Club Glória, em São Paulo. SP, 27 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

Mas a habilidade de articulação do grupo gestor da Davida em função dos objetivos da ONG fica evidenciada também no trato administrativo com a marca. Desde as ações para o pronto atendimento das urgentes demandas para a constituição real da marca – não somente produtivas, como a realização de uma primeira camiseta em transfer para simular uma produção inexistente, mas também empresarias, como o registro da marca no INPI, feito por Lenz quinze dias depois da publicação da nota de Gaspari –, passando pela busca de qualificação empresarial, e chegando às associações com a FUMEC e seus alunos para o desenvolvimento das novas produções

 

 

Relativamente a essa parceria é preciso destacar o fato das estampas para as camisetas da última coleção acentuarem com humor o caráter de naturalidade e sensualidade do tema prostituição, caracterizando com mais justeza as referências que conferem a ligação ao trabalho da Davida, dando o tratamento merecido às camisetas, produto que mais se identifica com a marca Daspu.

 

 

Desfile da coleção As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada. Belo Horizonte. Jun. 2008. Fotos de Nana Moraes.
ARQUIVOS


6. Considerações finais

O design se define como uma disciplina prática, como por exemplo o marketing e a administração, e projetual, como a arquitetura e o urbanismo. Isto leva a que, diferentemente da história, da filosofia ou da matemática, por exemplo, em paralelo à esfera acadêmica também se estabeleçam cânones e instâncias de sua validação profissional no mercado.

Em termos da esfera acadêmica, temos que ela cumpre o papel de elaboração, sistematização e transmissão do conhecimento humano produzido/acumulado, tendendo a encarar este conhecimento com base no paradigma consolidado pelas ciências da natureza a partir do Renascimento 7. Frente ao fato de que, segundo esta concepção, todas as áreas acadêmicas devem se compreendidas como ciências 8 – mesmo que extraoficialmente o paradigma dominante leve a uma grande seletividade no reconhecimento desta atribuição –, caracterizam-se duas posições no âmbito do design:

a) uma envolvendo iniciativas visando conferir uma cientificidade à profissão, normalmente através de uma super valorização da metodologia 9 – embora elas tendam a não funcionar para grande parte da prática profissional;

b) outra envolvendo um consenso de que, mesmo que esta cientificidade metodológica possa ser adequada a alguns tipos de projeto, e não deixando de considerar a possibilidade da utilização do conhecimento científico, o design em geral, como outras atividades práticas e projetuais, não se caracteriza conforme o modelo da ciência moderna que se desenvolve a partir do século 16.10

De qualquer modo o espaço acadêmico marca mesmo as disciplinas práticas com alguns dos atributos da cientificidade, como a busca de isenção técnica e uma supervalorização dos limites das áreas de conhecimento, com base na pressuposição de uma divisão social do trabalho que tende à idealização, pois possui um caráter formalmente descritivo e ignora a dinâmica concreta da relação entre áreas de conhecimento no mercado e no espaço acadêmico.

Considerando, por outro lado, os parâmetros de validação profissional pelo mercado, temos que, a partir de uma racionalidade e de um pragmatismo de mercado, são valorizados protocolos de relacionamento profissional, a competência e a neutralidade técnica e uma “política de resultados”, ou seja, o retorno do investimento. Embora esses parâmetros coloquem-se com independência em relação à esfera acadêmica, esta, por sua própria razão de ser, precisa incorporá-los enquanto referência necessária para o ensino da profissão, sendo que nessa operação eles passam a ser enquadrados segundo os modos de funcionamento e parâmetros do espaço acadêmico. E neste fechamento do campo os critérios se cruzam – a neutralidade técnica se conjuga à isenção de caráter científico, por exemplo – criando “enrijecimentos” de ação e percepção, dificultando a compreensão de novas dinâmicas da sociedade e novos modos de conhecer.

Conforme fica sugerido no item 2 deste trabalho, os parâmetros do mercado sinalizam o caminho mais evidente para uma análise, com base na competência profissional, do peso relativo que a criação e gestão de uma marca pode adquirir no possível sucesso um empreendimento.

Desfile na Unidos da Tijuca. Rio de Janeiro. 6 jun. 2008. Foto de Celso Pereira.

No entanto o recorte estritamente profissional – neutro e isento segundo os protocolos do mercado e sua replicação acadêmica –, não elimina o fato de que existe a atividade, correspondendo ao trabalho e suas especificidades e potencialidades técnicas e sociais, como algo distinto da profissão. Mesmo considerando que atividade e profissão se apresentam como um mesmo “corpo”, esta distinção analítica se justifica. Pois embora a efetivação da atividade dependa dos balizamentos profissionais que dispõem as condições de sua existência, isto pode se dar tanto como confirmação dessas condições, quanto relativamente, por meio da investigação/experimentação de alteridades, e celebração de um compromisso com um “objeto ampliado” e com uma abertura do conhecimento. Neste sentido a caracterização de uma autonomia da atividade se aproxima de iniciativas de revisão dos parâmetros igualmente técnicos e isentos das ciências sociais. Como indica Boaventura dos Santos “A experiência social […] é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica concebe e considera importante” (Santos, 2006: 778).

A opção por uma referência analítica adequada à recuperação da experiência social presente na criação e difusão da marca Daspu – envolvendo aceitação da diferença e construção de cidadania –, assume a possibilidade de conexões e aberturas que enriqueçam o escopo do design e de disciplinas afins. E isto abrangendo caracterização técnica e posicionamentos sociais e culturais, tanto em termos da atividade quanto da profissão.

E finalizando, cabe registrar o paralelo, em termos do trabalho prático, a esta busca de abertura do campo em termos do conhecimento, destacando o desprendimento e generosidade dos profissionais que se engajaram no processo Daspu.

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O GLOBO. “Fetiche”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 14.01.2006. Caderno Ela Fashion, p.1.

OLIVEIRA, Sylvio de. Entrevista concedida a Fábio de Araújo Keidel. In: KEIDEL, Fábio de Araújo. Criação de marcas em movimentos sociais: uma análise do caso Daspu. Rio de Janeiro, 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Comunicação. p.54-62.

SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente – um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. [2003]

SIMMEL, Georg. “Fashion”. In: American Journal of Sociology. vol. LXII, Nº 6 , Chicago, may 1957. p. 541-558.

VILLAÇA, Nízia e Góes, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

VILLAS-BOAS, André. Prefácio. In: LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 10-17.

 

*Washington Dias Lessa é designer graduado pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial, onde leciona desde 1977, quando ela passa a integrar a UERJ. Tem doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e seu trabalho de pesquisa está voltado para questões ligadas à linguagem visual (contextualizadas historicamente ou não), às relações entre design e significação/comunicação, e à teoria e epistemologia do design. Além de artigos e capítulos de livros publicou “Dois estudos de comunicação visual”, onde analisa a participação de Amílcar de Castro na reforma do Jornal do Brasil nos anos 1950-1960. Como designer destacam-se seus projetos de design editorial e design de exposições.

* Jeanine Geammal é designer e professora do curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará. Atua no campo do design de jóias, principalmente com a produção de joalheria-arte e no desenvolvimento de coleções. Organizou a coletânea “Joia em estudo” (Editora SENAI, 2009).

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1- Divulgação da “Carta de Princípios” da Rede Nacional de Prostitutas, divulgada pelo sítio “Beijo da Rua”, mantido pela Davida.

2- Visando, num primeiro momento, divulgar as questões relativas às lutas da ONG Davida.

3- Marcada pela figura de Flávio Lenz, assessor de imprensa da Davida
“dando à palavra ‘corpo’ a maior extensão, isto é, todo conteúdo formado” (Deleuze, Guattari, 1995: 26).

4- No texto original em francês o termo usado por Foucault é discours “en retour” (Histoire de La sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. p.134). Em vez de discurso “de reação”, utilizado na tradução brasileira, consideramos mais fiel às intenções do autor a tradução discurso “reverso”.

5- Em inglês o termo também é traduzido por “reverse” discourse.

6- André Villas-Boas, prefaciando o Livro de Flávio Lenz, afirma que a novidade não reside “na realização de espetáculos ou atividades artísticas e de lazer […], mas na sua transformação em estratégia. A conformação estética não é mais um ‘braço cultural’ do movimento, mas tornou-se o próprio movimento”. (Villas-Boas, 2008: 13-14)

7- Apesar do encaminhamento desta investigação colocar-se como um questionamento desse paradigma, não cabe aqui indicar nem o seu processo de consolidação, nem a “geopolítica” acadêmica que dele decorre, nem as vertentes e natureza da crítica a que tem sido submetido.

8- Segundo uma das categorizações oficiais de ensino e pesquisa no Brasil, o design é uma ciência social aplicada.

9- A este respeito ver Cross, 2007: 41-46

10- A este respeito ver Lessa, 2001: 81-82.