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Premissas Culturais da Criação na Pós Modernidade | de Michel Maffesoli* – traduçao de Rosza Vel Zoladz**

Dionísio redivivo

O atual só faz sentido, pelo cotidiano, enquanto provisório. É essa impermanência que faz que não se apreenda o que acontece senão tomado a partir do que lhe é fundador. Eis porque todo pensamento autêntico retoma uma especificidade da existência humana: a gente semeia o que vai ser colhido somente mais tarde.

É assim que, no fim dos anos 70, eu anunciava o retorno de Dionísio, deus da orgia, sublinhando com isso o papel, cada vez mais importante, que a paixão (orgé) iria desempenhar nas nossas sociedades.

Do mesmo modo, em referência a um outro sentido da palavra (orgos: iniciado), eu indicava o lugar primordial que a iniciação iria tomar no neotribalismo contemporâneo. O que isso queria dizer, senão que ao encontro do que era convencionado e permanentemente dito, se situava aí a energia na vida social? Mas é preciso reconhecer, mesmo se isso não deixe de irritar numerosos observadores, que esta energia se exprime ao mesmo tempo pela proximidade, no cotidiano de uma busca de um hedonismo bem convincente. Em todo caso, fora das instituições racionais, terreno predileto da sociologia moderna.

Frequentemente se ouve também falar do consumo exacerbado. Ainda um destes exageros que se empregam para mascarar, na verdade, o fato de que nós passamos para uma outra coisa.

Por menos que se esteja cego pelo conformismo do ambiente, é evidente que a avidez dos objetos, a obsolescência rápida dos amores, o frenesi das novidades, tudo isso nos deveria incitar a dar outros nomes para o vertiginoso acúmulo de incertezas característico das maneiras de ser pós-modernos. Georges Bataille, com a sua noção de gasto, profeticamente esboçou seus contornos. De nossos dias, o consumo, o fato de fazer arder a vida em todos os propósitos, tornou-se uma realidade cotidiana que se configura como antípoda da mitologia do progresso peculiar à modernidade.
Isto é bem constatado pela invenção de um mito, o do Progresso, com que Auguste Comte, bem como Saint-Simon queriam lutar contra o obscurantismo peculiar, segundo eles, aos diversos politeísmos e depois aos monoteísmos semânticos.

O que faz lembrar em Saint-Simon o que ele nomeia de “religião industrial”. Esta aí – se é bastante consciente (?) devia comportar o todo de um produtivismo moderno, sua grande ideologia do crescimento. E a sociedade da produção tal qual ela se pôs em toda a extensão do século XIX e no começo do século XX, não podia senão acabar nessa sociedade de consumo. Esse tema, tão bem analisado por Jean Baudrillard, via precisamente nele, em um de seus livros, menos conhecidos, mas particularmente explorado, O espelho da produção.

Toda mitologia precisa de termos que sejam verdadeiros oscilógrafos, que lhe servem de sinalizadores de trajeto. Esses termos constituem uma espécie de caixa de ressonância, na qual cada um pode, facilmente, se reconhecer. Isso se dá até mesmo inconscientemente. A trilogia Progresso, Produção, Consumo tem exatamente esta função. São palavras-chave que repercutem as preocupações populares e fundamentos da mitologia moderna. Mas elas se tornaram simples feitiços. A saber, os termos que se continuam repetindo continuadamente, mesmo a partir de diversos discursos oficiais. Que repetem religiosamente essa cantilena em todas as ocasiões, chegam a fazer parte da opinião comum, da retórica rotineira. Mas às quais, embora por essa mesma razão, não se dá a elas mais grande atenção. Sabe-se, desde tempos longevos: litania, liturgia, letargia.

Numerosos, com efeito, são os índices oficiais, a contrapelo dos discursos ou análises legitimados, que lhes servem de racionalizações.

É frequente que um valor que se acaba conheça in fine um retorno fulgurante. E não é preciso lembrar o legendário canto do cisne pelo qual esse último, morrendo, transforma seu grito rouco e lânguido, mas bem inútil, em melodia. É bem assim que se pode compreender as diversas pequenas canções sobre o valor trabalho e outros cantos sobre a taxa de crescimento ou do famoso poder de compra! Elas são tão mais insistentes quanto, mais e mais, ignoradas. Como se, na França, em profundidade, a vida se resumisse aos aborrecimentos de obter um Plano de economias para a compra da moradia! De fato, a alardeada Crise Econômica (PEC) não tem outras fontes. Ela é, antes de tudo, civilizacional (culturas que se chocam). Ela é o mais próximo de sua etimologia (krisis) um julgamento de algo que se está acabando. Julgamento que os valores dionisíacos fulminam contra a prevalência prometeica do todo econômico!

Há aí como que um odor de incêndio no ar do tempo. E, de diversas maneiras, trata-se de queimar sua vida, por todos os objetivos ou, o que retorna ao mesmo sentido, de não perder a própria vida que se tem a ganhar. Eis o que uma mitificação do consumo tende ao uso opaco, do binômio produção-consumo.

O paroxismo se mostra nessas dezenas de milhares de carros que ardem em chamas, cada ano, no circuito das grandes cidades francesas. É preciso ousar dizer que se trata de um símbolo elucidativo? Em todo caso, instrutivo, quando se sabe como o carro era o signo absoluto do que se considerava como sociedade de consumo. Objeto caro a adquirir. Ele é a resultante de toda vida de trabalho, e o que permite, igualmente, se dirigir a esse trabalho. Ele é, ao mesmo tempo, aquilo com o que se pode escapar realmente ou fantasiosamente, da coerção do labor. Ele significa a possibilidade do lazer e do tempo não coercitivo. Enfim, este “objeto-signo” é a soma de um investimento libidinal sobre o qual os psicanalistas, longamente, teceram comentários.

E é esse objeto que arde em chamas!

Notemos, no entanto, que não é o carro da pessoa de posses – esse está protegido na sua garagem – que se incendeia. Não é esse que se encontra na rua. Ao pé do imóvel da cidade, ao qual as mídias denominam “os quarteirões”. Ele pode pertencer a um conhecido ou a um parente.

O fato de consumir um tal objeto não é um ato político, como é frequente o analisar. Trata-se mais de uma postura lúdica. Uma estrutura antropológica ocupando a destruição pelo coração mesmo da construção. Assim, o adágio romano pars destruem, pars construens, ou seja, a construção pela destruição, de alguma forma. E não é proibido pensar que há nesses incêndios curiosas reminiscências das festividades estudantis: Berkeley nos Estados Unidos, em 1964, ou rue Gay-Lussac, em Paris, no ao de 1968! Daí essa opinião admitida onde um pitainismo inconsciente se alia a uma estupidez bem pensada para clamar que é preciso tudo ao mesmo tempo: “trabalhar mais e esquecer 68”. Os múltiplos cânticos em torno de trabalho, família, pátria sendo agora moeda corrente na intelligentsia francesa.

No Le combat avec le démon, Stefan Zweig fala, a propósito de Nietszche, ou de Hölderlin, de um demonismo, animando suas obras e suas vidas. Seria um tanto abusivo dizer que, em certas épocas, um tal demonismo está atuante na sociedade em seu conjunto? Que a sombra de Dionísio se estende sobre as megalópoles pós-modernas?

O que se faz presente em paroxismo na criação literária se exprime em menor intensidade pelo conjunto dos objetos de consumo na vida quotidiana. Com efeito, eles não são mais nem menos construídos, nem mesmo encarados para conservá-la. Eles se inscrevem em tudo o que é concebido sob a égide da precariedade. Objetos, situações, relações marcadas pela fonte de obsolescência programada.

Isso se vive, igualmente, no domínio dos afetos. Amor não rima mais com duração eterna. Usura, fadiga, hábitos, tudo isso faz que, em geral, as relações amicais ou amorosas não se inscrevam mais na longa duração. E se sabe o que é da instituição conjugal que procura empalidecer sua fragilidade propondo o casamento entre homossexuais e outras orientações sexuais existentes. Num sentido figurado, é preciso dar trabalho aos diversos párocos e outros beneficiários de todo tipo.

As teorias também não são mais o que elas eram. Eis que os conceitos fazem água por todos os lados. Os dogmas não constituem mais receitas. O universalismo não convence mais do que alguns fanáticos da Razão, da Ciência, do Progresso, ou outras “capelas” do mesmo gabarito.

O ar do tempo é constituído de verdades parciais, momentâneas ou mesmo aproximativas. Mas é um tal relativismo, enfatizando o acento sobre o instante, que favorece a criação. Certo é que a energia individual ou coletiva não é mais mobilizada sobre a longa duração. Focalizada no instante, ela é vivida com muito mais intensidade.

É isso que exprime a sociedade de consumo, i.e., uma outra metodologia não repousando mais sobre a “Religião Industrial” de uma economia de si e do mundo, mas sobre o gasto, a perda. Uma inconsciente inconsciência que sabe, desde o tempo da sabedoria imemorial, que, por vezes, quem perde ganha. Após tudo, por que não fazer a aposta que possa aí haver, no Consumo, esse luxo noturno da imaginação, as premissas de uma intensa e fecunda criação? Pois de uma verdade advinda da observação da vida social Goethe nos lembrava: “Somente o que é fecundo é verdadeiro”.

Fazer da sua vida uma obra de arte! Colocar todas as coisas e todos os seres humanos na praça pública se inscreve bem nessa estetização da existência, onde o que importa, antes de tudo, é provar paixões e emoções comuns. Desse ponto de vista, a estética serve de cimento ético. Então, o que ela foi nas sociedades tradicionais, um elemento da vida de todos os dias, a arte, progressivamente, foi mumificada, posta para fora, separada do cotidiano. A criação, a criatividade, o jogo, a imaginação contaminam novamente a existência do homem sem qualidade. Nietzsche morreu louco de ter tido essa intuição, num momento em que isso não se colocava. E eis que do intelectual esteta ao esportivo atento ao seu corpo, do nômade “rurbano” ao ecologista zeloso de seus legumes sem agrotóxicos, se faz atenção à criatividade vivida no dia-a-dia. A arte se capilariza em tudo que era, até aqui, considerado como anódino.

Cada época tem suas imagens e seus próprios mitos. Mas eles não fazem nada além de retomar e atualizar as potencialidades arcaicas que se acreditava ultrapassadas e que, de repente, reencontram uma juventude vigorosa.

Mas isso é bem difícil de admitir, tanto que é enraizada a ideia de um Progresso da humanidade, de um desenvolvimento por um tipo de História, tendo como objetivo longínquo a assegurar.

A ideologia semita, por meio de seus matizes judaicos, cristãos, muçulmanos, perdeu o seu acento sobre o desenvolvimento histórico, cujo linearismo é a marca essencial.

Todo outro é o pensamento grego ou aquele das diversas sabedorias orientais repousando sobre o retorno cíclico das coisas. A partir daí o acento era colocado sobre as eras míticas, privilegiando a experiência vivida.

Desse ponto de vista, se pode lembrar de uma passagem muito instrutiva da “Cité de Dieu” (XII, 14,1), na qual Santo Agostinho se mostra injuriado com firmeza diante dos “sábios desse mundo que acreditavam ter que introduzir uma marcha circular do tempo para renovar a natureza”. O mito, com efeito, remete ao renascimento periódico de todas as coisas. Círculo ou espiral, pois as coisas não retornam exatamente ao mesmo nível. É assim que a sociedade do trabalho está em vias de ser substituída pela sociedade da criação.

Que nós vivemos uma era de transtornos é, agora, coisa admitida. Seja de um modo larvado, seja explosivo, o afrontamento dos grandes valores que presidiram a solidez da vida social é fácil de averiguar. Mas é com muitas reticências que vão ver aceitar as suas consequências psicológicas e sociais. Tanto é verdadeiro que a (re)novação de certos mitos dá calafrios aos clérigos (aos políticos, sábios, jornalistas), tendo por função gerir os mitos dos quais eles não querem, em hipótese alguma, ver a saturação.

Nos períodos diluvianos, nada nem ninguém escapa ao choque das diversas vagas da maré cuja atualidade não é marcada pela avareza. Assim, isso faz que apareça o pedestal fundador da modernidade: o trabalho.

Para retomar uma expressão conhecida do filósofo Emannuel Kant, eis bem o imperativo categórico maior. Este presidindo a realização de si e a do mundo. Por aí mesmo se elabora a mitologia do labor, inaugurando a prevalência do trabalho, do produtivismo e da economia que lhe é a consequência. Mas o fato mesmo que esse valor seja recente não incita a pensar que ela seja eterna. De fato, numerosos são os índices que, empiricamente, sublinham sua saturação. Isso obriga a observar que podem existir outras maneiras de agir sobre o ambiente social e natural.

Mas, como eu já indiquei, cada coisa se acabando lança seu canto do cisne: o último antes de morrer. E isso não é colocado entre parênteses, é divertido enfatizar como a expressão Valor trabalho constitui o pedestal incontestável das diversas coisas sociopolíticas sempre repetidas. Valor trabalho, do que nos lembramos, era justamente o elemento chave da suma teológica de Karl Marx: O Capital!

Revanche do marxismo? Em todo caso segundo uma intelligentsia, não se deva mais menosprezar, é pela revalorização do trabalho que se vai revolucionar, conservar, mudar, reformar a sociedade. E se o problema não estava mais aí? Se essa encantação não era, no fim das contas, um verão indiano de uma modernidade em declínio?

Com efeito, de diversas maneiras, em particular para essas gerações de jovens que já são a sociedade de amanhã, se sente bem que o essencial da existência não consiste em perder sua vida para ganhá-la. O imperativo tu deves deixa progressivamente o lugar ao optativo é bem preciso. Certo, é preciso trabalhar bem. Mas esse não é apenas um elemento entre outros. Um simples aspecto, forçosamente sem ser o mais importante, dos investimentos pessoais.

A mitologia do bem-estar, essa do hedonismo latente, faz que em tudo, ao mesmo tempo, se pode ser um bom administrador e ter múltiplos centros de interesse, tendo cada um uma importância própria. Hobbies diversos, práticas amadorísticas de diferentes artes, trabalho temporário, turn over de uma repartição, atenção dedicada à estética dos escritórios, heliotropismo revalorizando a importância das regiões do Sul da França, chamando atenção para seus valores, tudo é bom para relativizar o aspecto coercitivo do trabalho.

A partir daí, as condições de vida, no tempo coercitivo do trabalho, não são mais negligenciadas. Em resumo, o qualitativo está na ordem do dia. Todas essas práticas cotidianas, pouco teorizadas, mas intensamente vividas, nos lembram que são das civilizações e não das menos importantes onde é a criação que tende a prevalecer.

Prometeu cede o lugar a Dionísio.

Nessa perspectiva, o que é a criação senão a capacidade de mobilizar todos esses parâmetros humanos que são o lúdico, o onírico, o imaginário coletivo? A Renascença foi um desses momentos onde banqueiros, empreendedores, artistas e aventureiros de todas as ordens pensavam a vida social como um todo. E agindo com essas perspectivas. É qualquer coisa desta ordem que se exprime nos mitos “holísticos” da pós-modernidade nascente.

Metrossexuais e todo o camafeu das classes médias, a emergência de novas formas de vidas, adeptos do crescimento e do pacto ecológico, se empenham, de diversas maneiras, a colocar em segundo plano a prevalência do trabalho. Globalização colaborando, o peculiar da mitologia pós-moderna é colocar o acento sobre a sinergia existente entre o prazer arcaico do bem-estar e o desenvolvimento tecnológico. E quando se sabe que mais da metade do trânsito nas redes da Internet é dada aos encontros de amigos, eróticos, filosóficos ou religiosos, se vê bem em que consiste essa relativização do valor trabalho. É essa relativização que sublinha o retorno à criatividade na vida social.

O campo aberto por uma tal transmutação dos valores é imenso. E falta explorá-lo. Em uma palavra, é isso que vai ser encontrado em todos os mitos, enfatizando o vivido, a experiência, o desabafo etc. Isto porque não há real competência senão quando se apresenta um vasto apetite. Em resumo, não se mobiliza a energia individual e coletiva, fora do caso de estar sintonizada com o inconsciente da época. De acordo com um futuro próximo, aqueles que sabem se por em dia com os valores presentes no imaginário do momento, por um racionalismo estreito são relegados à pré-história. O ego cogito, fundamento da modernidade, está progressivamente deixando lugar a um est ego affectus. Afetados pelos outros, pelo sagrado, pela natureza, pelos humores (pessoais, coletivos). É isso que convém pensar: a mutação de uma existência dominada pelo materialismo moderno, quer dizer, um pouco dotado, para uma outra maneira de estar junto, onde o imaterial reencontra força e vigor.
São esses valores imateriais que estão em pleno reviver na vida política, social e econômica. E não são carregadas de neutralidade que as gerações jovens serão as protagonistas desse olhar novo sobre a natureza e a sociedade. É por isso mesmo que, na sua atitude um pouco desenvolta, os “criativos” multiformes são homens de seu tempo, reafirmando a eterna juventude do mundo. É isso mesmo que se cristaliza na figura emblemática de Dionísio, essa de Puer aeternus!

* Membro do Institut Universitaire de France. mm@ceaq-sorbonne.org

** Professora colaboradora do PPGAV da EBA/UFRJ (Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisadora convidada do PACC-FCC UFRJ (Programa Avançado de Cultura Contemporânea do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

 

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Sobre a ideia de liberdade, a propósito da autorreferência como enciclopédia livre, pela Wikipedia, na rede mundial de computadores | de Alice Fátima Martins

O que significa a condição de liberdade? Quando se qualifica alguma pessoa, comunidade, projeto ou ação como livre, que qualidades estão sendo evocadas?

O verbete livre, no dicionário Houaiss (organizado pelo sapientíssimo Prof. Antonio Houaiss, também responsável pela edição das Enciclopédias Delta-Larousse e Mirador Internacional), traz uma relação de acepções, dentre as quais destaco as seguintes:

1. Que não está sob o jugo de outrem
2. Que goza de independência política
3. Isento de restrições, controle ou limitações
4. Que não sofre a influência de grupos de interesse
Faço, aqui, a escolha de não avançar rumo à seara filosófica do significado de liberdade, tampouco os terrenos múltiplos das abordagens sociológicas possíveis, restringindo-me, assim, às acepções listadas para o verbete, com o intuito de compartilhar algumas indagações, inevitáveis, a partir do episódio ocorrido junto à Wikipedia, no mês de julho último, que passo a relatar.

O episódio da censura na Wikipedia

Em atendimento ao solicitado pelo Programa de Pós-Doutorado do PACC, tendo publicado um artigo em revista online, tendo apresentado o relatório final de pesquisa no dia 24 de junho último, tomei as providências para fazer a inserção de verbete no portal da Wikipedia. Observando as instruções para tal empreitada – o que envolve muitos passos, advertências, recomendações, e ferramentas –, fiz o cadastro, gerei senha, e preparei o texto para publicar. Tinha decidido disponibilizar algumas informações sobre o Sr. José Luis Zagati, um dos sujeitos da minha pesquisa. Seguindo as recomendações, levei a cabo uma pesquisa no próprio portal, com vistas a evitar repetição de informação ou tema do verbete. Constatei que não havia nada referente ao Sr. José Luiz Zagati ou ao seu trabalho na enciclopédia. Então passei a redigir o texto, que resultou de uma breve compilação de minha própria produção, o que incluiu alguns artigos já publicados (dentre os quais, o artigo na nossa Revista Z, e a página de abertura do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual – FAV/UFG), e trechos do próprio relatório final. Cumpridas todas as etapas, operadas todas as ferramentas do portal, o texto foi publicado. Enviei o link para a coordenadora do PACC, a Profa Heloísa Buarque de Hollanda, nossa querida Helô, e fiquei contente com a informação de que eu teria inaugurado o atendimento a essa solicitação do Programa, bem como por ter contribuído para a consolidação e divulgação do trabalho do Sr. Zagati.

Passados dois dias, recebi a notificação, via e-mail, de que meu verbete houvera sido retirado da Wikipedia. Um dos membros que integram o grupo de editores da enciclopédia, identificada como Béria Lima, localizou na internet trechos de meus textos que haviam servido de base para o verbete, e julgou que isso infringia uma das regras, segundo a qual não se pode copiar ou repetir texto já divulgado. Sua decisão não levava em conta o fato de que o texto, ou textos em questão eram de minha própria autoria. Embora a situação tenha me provocado alguma indignação, acatei o parecer, e retomei o projeto. Para tanto, elaborei novo texto para o verbete, tomando todos os cuidados no sentido de dar-lhe um tom estritamente enciclopédico, ao estilo dos demais verbetes da própria Wikipedia. Feita a inserção, mas já sem qualquer convicção de que teria minha contribuição aceita, fiquei na expectativa dos desdobramentos.

Desta vez sequer fui notificada: no dia seguinte, buscando pelo verbete, encontrei na própria enciclopédia a observação de que o mesmo teria sido censurado, por ser considerado impróprio por outro editor, no caso, o Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho.

A essas alturas, muito chateada, quis compreender um pouco mais as dinâmicas dessa instituição digital Wikipedia, autorreferida como a enciclopédia livre, de onde tive excluídas minhas tentativas de inserção de informação.

Além da minha própria experiência, eu já ouvira relatos outros que davam conta do circuito fechado que seus editores vinham configurando, dentro do qual exerciam o pequeno poder de decidir as informações pertinentes ou não de serem veiculadas, de acordo com critérios próprios, nem sempre muito bem esclarecidos, nem sempre objetivos, tampouco efetivamente abertos à multiplicidade de enfoques, naturezas de informações, e diversidade de pontos de vista que caracterizam a cultura contemporânea.

Levantando mais informações sobre o cenário, descobri alguns dados interessantes, que em geral ficam fora do circuito de acesso ao grande público, usuários ou não do portal. Vale a pena trazer alguns a este relato:

1. A Wikipedia é o 4º site mais visitado atualmente. A enorme demanda gera ameaças para o projeto, que resiste em contratar publicidade para bancar provedores e toda a infraestrutura técnica que garanta não só manter disponíveis todas as informações, como renová-las e atender ao grande número de acessos que se amplia em progressão geométrica.

2. Nesse contexto, manter algum controle no conteúdo disponibilizado representa um desafio a mais. E equívocos podem ser cometidos nessa direção.

3. 95% dos editores brasileiros da Wikipedia são homens. Assim, não posso deixar de considerar que me coube a honra de ter meu texto excluído, na primeira tentativa de inserção do verbete, por uma das poucas representantes femininas do fechado círculo de editores: uma mulher em pleno exercício de conhecimento e poder num território hegemonicamente masculino.

4. A versão brasileira da enciclopédia, com alguma frequência tem sido referência para as versões em outras línguas, num sentido negativo. Em outras palavras, quando isso ocorre, é como exemplo a não ser seguido, porquanto os padrões dos verbetes sejam considerados chatos, redundantes muitas vezes, cujas prioridades restringem-se a determinadas áreas temáticas em detrimento de outras. Ou seja: pecam pela falta de isenção. Por exemplo: facilmente pode ser encontrado o histórico de todos os gols de cada jogador de alguns times de futebol brasileiros, enquanto muitas informações referentes à cultura popular são consideradas desimportantes, menores, ou impróprias para serem inseridas.

5. Embora o número de consulta venha aumentando consideravelmente, na contrapartida tem-se observado uma diminuição das iniciativas de colaboração pelos usuários em geral. Como resultado, ocorre uma redução da diversidade, e a concentração da produção de verbetes num grupo menor de pessoas. O que descaracteriza a pretendida multiplicidade e liberdade de pontos de vista, que deveriam ser suas marcas.

6. Nessa direção, muitos pesquisadores de renome, respeitados e experientes tanto nos seus campos de pesquisa e estudo, quanto no trabalho em publicações das mais variadas naturezas, têm tido suas colaborações excluídas pelo fechado grupo de editores da Wikipedia brasileira. Basta que um deles considere de menor relevância a temática em questão, para que o corte seja levado a cabo.

Para fechar o relato, e dar espaço às reflexões propriamente ditas, vale a pena, também, fornecer algumas breves informações a respeito dos dois editores responsáveis pela exclusão do verbete cuja tentativa de inserção foi frustrada.

A Sra Béria Lima, apelido Beh, representante dos parcos 5% formados por mulheres no grupo de editores, teve uma postura cortês: devo lhe fazer justiça. A enciclopédia é o principal espaço ao qual dedica sua produção intelectual. No perfil que consta da sua página na enciclopédia, lista projetos voltados para questões religiosas, relativas à Bíblia, além do projeto em curso no qual desenvolve uma lista de autores de obras eróticas. Mas também é responsável por outros portais, a exemplo do Portal do Cristianismo, do Islamismo, e da Religião. No fórum de discussão, parece estabelecer diálogos cordiais com usuários em geral: há solicitações de orientação, informação, conselhos, agradecimentos etc. Ao se declarar colaboradora do site Pensares, observa, bem humorada: “Afinal, quem pensares junto, pensa mió”.

O Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho, por sua vez, tem um perfil mais autoritário e polêmico. No fórum de discussão, além das mensagens de rotina, encontram-se mensagens indignadas a ele dirigidas, algumas chegam a ser grosseiras. O resultado de pesquisas na internet também aponta para uma atuação dedicada principalmente à Wikipedia, onde assina um grande número de contribuições, em português, espanhol, francês e inglês. É membro do Rotary Club, declara-se interessado pela Marinha (navios da Marinha brasileira, porta-aviões etc.), por ciclismo, automobilismo e sistemas de metrô. Seu atual projeto, em curso, tem como assunto as Forças Armadas e sistemas de manutenção.

Foi com base nesse perfil, campo de interesses e atuação que este senhor considerou impróprio o verbete que inseri, apagando-o. Uma questão inevitável se coloca: teria sido considerado impróprio por fazer referência ao fato do Sr José Zagati ser catador de sucatas? Teria o Sr. José Zagati sido discriminado ali também, em razão da natureza do seu trabalho? Seria, o ambiente da Wikipedia, mais fechado e elitista do que a própria academia universitária, tendo-se em conta que, em 9 de junho de 2010, o Sr. José Zagati proferiu a palestra de abertura de um evento de pós-graduação, de âmbito nacional, organizado pela Universidade Federal de Goiás?

Ponderações

É preciso não se perder de vista que a rede mundial de computadores não constitui um mundo à parte, uma segunda realidade, de natureza diferenciada da realidade natural e social em que estamos inseridos. Ao contrário, a despeito do estabelecimento das redes de comunicação rizomáticas por ela propiciado, com fluxos intensos de informações, ferramentas de organização e armazenamento de dados, entre outras possibilidades, a rede mundial de computadores é parte integrante das malhas sociais, está inserida em suas dinâmicas, tensões, conflitos, disputas de poder. Fazendo uso de suas ferramentas, organizam-se comunidades solidárias e cometem-se crimes, iniciam-se guerras ou clama-se por paz.
Algumas abordagens mais entusiasmadas, marcadas pelo excesso de otimismo prematuro, defendiam a ideia de que nesse ambiente se teria assegurada a abertura de territórios efetivamente democráticos e livres, onde todos poderiam expressar-se, sem restrições ou discriminações, apresentando ou não informações que correspondessem às informações circulantes nas relações presenciais (aqui, tomo como referência o binômio virtual/presencial, ao lado do binômio virtual/atual…). Ao decurso do tempo, e com a ampliação sempre progressiva dos recursos tecnológicos, também se ampliaram os modos de regulação, além da implementação de sistemas quase imperceptíveis de controle e captação de informação, dos quais a maior parte dos usuários não tem ideia (o que os torna, portanto, ainda mais vulneráveis). Assim, são estabelecidos conjuntos normativos e hierarquias de poder ajustados aos projetos da rede de informações e comunidades ali constituídas.

Nesse sentido – e não seria diferente – faz-se uso da rede observando-se os mesmos padrões e patamares de quaisquer outros modos de comunicação e interação nos contextos mais diversos das instituições sociais.

É nesse aspecto que o relato do ocorrido com a Wikipedia aponta para o estabelecimento de um circuito de poder cuja principal matéria prima é a informação a ser disponibilizada no portal da enciclopédia. Tal poder é exercido por reduzido grupo de pessoas que evocam para si autoridade para aprovar, censurar, excluir ou incluir.

Por certo, não está em questão qualquer desqualificação de uma iniciativa como a Wikipedia, responsável por disponibilizar um leque extenso de informações ao grande público. Não por acaso o portal ocupa o 4º lugar em número de acessos, no cenário internacional. Mas há que se ressaltar: não se trata de uma enciclopédia livre. Não passa de mais uma coletânea de verbetes organizada a partir dos pontos de vista de grupos fechados de editores que, eventualmente, acolhem a colaboração de outrem, desde que esta corresponda às suas orientações, ideários e exercícios de poder…

Há vários títulos disponíveis no mercado, entre impressos e digitais. Façamos, deles, pois, bom uso. Mas não nos restrinjamos a eles. Produzamos pensamento de modo efetivamente dialogal. Busquemos aprender a partir das nossas diferenças. Sem, jamais, perder a elegância ou a civilidade. Preferencialmente, sem perder de vista a possibilidade da liberdade.

A tal liberdade, certa diferonça, e uma provocação para nos fazer pensar…
Revi, recentemente, a Trilogia das cores: azul, branco, vermelho, de Kieslowski. O ideário da Revolução Francesa é colocado em questão pelo cineasta, que duvida das utopias, e formula narrativas densas a partir do humano, do imensa e contraditoriamente humano. A versão brasileira do primeiro filme declara, já no título, que a liberdade é azul. Em inglês, a palavra blue (bleu), além de significar azul, evoca também o profundo sentimento de tristeza. Ali, estar livre é ter perdido os vínculos, e não desejar mais estabelecer relações. Liberdade é também isolamento. O cineasta pergunta: “As pessoas realmente querem liberdade, igualdade e fraternidade? Não é só uma figura de linguagem?”

Mas eu não me delongarei, aqui, sobre essa discussão. Já é suficiente pensar que a ideia de liberdade é escorregadia, e nos escapará entre os dedos toda vez que pretendamos defini-la, retê-la em nós… nada mais coerente, afinal…

Recentemente reli, também, o material que vem sendo produzido desde 1997 e disponibilizado, no formato WIKI, na rede mundial de computadores, intitulado Projeto AmaZone, ou, A onça e a diferença, daí, a diferonça. Desenvolvido no Núcleo de Transformações Indígenas, o NUTI, vinculado ao Museu Nacional da UFRJ, o projeto é coordenado e moderado pelo antropólogo e etnólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ali, uma das palavras de ordem é alteridade.

Sem entrar no mérito das ideias veiculadas (que são, no mínimo, muito instigantes), ou em quaisquer outros méritos, gostaria de chamar a atenção para o formato WIKI, e para o fato de que o projeto está em contínua construção, em relação de diálogo entre os colaboradores que tenham alguma relação com o grupo de pesquisa. Há conteúdos que foram iniciados, mas ainda carecem de formatação. Alguns permanecem ali, fermentando, por anos… seus links indicam que ainda estão em construção. Outros tomam forma rapidamente, e estruturam de modo mais articulado os conceitos e informações de que pretendam dar conta. Não se trata de um projeto aberto a qualquer colaboração, de modo indiscriminado. Não se propõe a isso. Nem poderia. Mas se trata de um projeto aberto, na medida em que vai sendo construído no decurso do tempo, dos trabalhos de campo, dos estudos em desenvolvimento. Dessa forma, vai ganhando envergadura, complexidade. Além disso, está disponível ao grande público, dissemina informação e conhecimento. Seu formato também é flexível no sentido da própria escritura: alterna as línguas portuguesa, inglesa, espanhola; acolhe artigos e relatos de pesquisa cujas temáticas são afins, apresentando uma teia de produções muito interessante.

Quem sabe, a partir da diferonça não seja possível pensar/buscar/encontrar caminhos mais efetivos de compartilhamento e disseminação de ideários, pensamento, conhecimento, saberes que fervilham, em diversidade de pontos de vista, a partir das pesquisas e encontros que têm abrigo no PACC?

http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone

E viva a diferença! Melhor: viva a diferonça, no melhor exercício de liberalteridade, se é que seja realmente possível alguma!

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

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Lenin e a Microsoft | de Marco Schneider

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é investigar alguns aspectos da articulação hegemônica entre economia, tecnologia e ideologia no universo atual das comunicações, bem como a possibilidade de articulações alternativas.
Empregamos o termo “comunicações” no plural, seguindo a distinção proposta por Lima (2004, passim), para definir um objeto de estudo que engloba as indústrias culturais, a informática e as telecomunicações, setores cada vez mais convergentes tecnológica e empresarialmente, em decorrência da revolução digital.

As comunicações são, hoje, simultaneamente agente econômico por si só destacado, base tecnológica imprescindível para a economia em geral e aparelho ideológico, não necessariamente “do Estado”, mas certamente das corporações midiáticas e do bloco de poder, mais ou menos coeso, que elas constituem com seus parceiros econômicos.

O emprego da noção “aparelho ideológico” pode sugerir que pretendemos requentar teorias supostamente obsoletas sobre o poder manipulatório da mídia. Como essa não é nossa intenção, cabe esclarecer desde já que não compartilhamos com as chamadas “teorias conspiratórias”, segundo as quais grupos de capitalistas sórdidos maquinariam, de modo consciente e organizado, a manipulação das mentes; tampouco com a crença em uma onipotência da mídia sobre as consciências. Por outro lado, é igualmente importante adiantar, acreditamos que a manipulação ideológica existe, pois é estruturalmente necessária à manutenção da sociedade de classes, ainda que seus agentes não “conspirem” de modo plenamente deliberado ou planejado, do mesmo modo como milhões de pessoas não “planejam” a cada dia, de modo coordenado, ir ao trabalho na mesma hora, lotando ônibus, trens, ruas e avenidas; não planejam, mas o fazem; e embora o efeito ideológico das ações das mídias sobre as consciências não possa rigorosamente ser identificado como absoluto ou unívoco, é suficientemente intenso e tendencialmente homogêneo a ponto de merecer alguma atenção.

2 QUADRO CONCEITUAL DE REFERÊNCIA

O quadro conceitual de referência dessa investigação é composto por algumas categorias marxianas um tanto ausentes do debate contemporâneo no campo da comunicação, mas cuja atualidade, propriedade heurística em relação ao nosso objeto e pertinência epistemológica ao campo pretendemos demonstrar.

Essas categorias são as seguintes: consciência de classe; ideologia; luta de classes; base e superestrutura; forças produtivas e relações de produção; modo de produção; trabalho. Como contribuição original ao debate, incluímos nesse rol o problema do gosto, que temos pesquisado nos últimos anos.

Iniciaremos a exposição com um esclarecimento desse quadro, que carrega em seu bojo, assim esperamos, a justificativa de sua escolha.

2.1 CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Partindo da hipótese de que a substituição do capitalismo por formas superiores de socialização é desejável e não é inviável, mas ao mesmo tempo sabendo que uma operação de tal magnitude traz consigo a exigência da ação consciente de um sujeito coletivo, cuja identidade corresponde à posição que este ocupa em meio às relações de produção, portanto em meio à luta de classes, a consciência de classe permanece uma categoria necessária para o desenvolvimento de qualquer perspectiva de superação das sociedades de classe atuais. Ora, como não faria sentido hoje desconsiderar o papel das comunicações na formação das consciências e identidades em geral, é importante reinserir o debate teórico a respeito da consciência de classe em nosso campo.

A “consciência de classe” já foi um tópico muito debatido no legado marxiano, junto à problemática da ideologia, da “falsa consciência” etc. Embora tenha sido marginalizado por um século de descentramentos e mortes do “sujeito”, o fato de a subordinação estrutural do trabalho ao capital sequer ter sido arranhada, mesmo no chamado “socialismo real”, justifica nossa posição, cuja defesa se inicia desfazendo mal entendidos.

1º mal entendido: “a consciência de classe brotará espontânea e fatalmente das contradições entre forças produtivas e relações de produção”. Não é bem assim, embora, em mais de um momento, Marx e Engels possam ter dado margem a essa leitura, como na seguinte passagem de “A sagrada família”: “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode ‘imaginar’ de quando em vez como sua meta. Trata-se ‘do que’ o proletariado ‘é’ e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’.” (Marx; Engels, 2003a, p. 49)

Uma leitura apressada desta passagem pode justificar as velhas críticas ao caráter fatalista da “missão histórica” atribuída ao proletariado pelo marxismo, que teria sido desmentida pela história. Tal leitura, porém, pode ser evitada, considerando-se, por exemplo, que aquilo que o proletariado “será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’” ainda não pôde ser feito, ou talvez não dê certo.

Diversas passagens de Marx e Engels desmentem a leitura fatalista vulgar, deixando menos margens a dúvidas sobre sua posição a respeito dessas questões, ao apresentarem uma concepção da ação revolucionária do proletariado como possibilidade real, como uma tendência histórica necessária, como uma potência concreta do seu ser, não como uma determinação absoluta, garantida, irrevogável e cuja vitória esteja assegurada de antemão. Sem entrarmos em minúcias exegéticas, basta conferir os primeiros parágrafos do “Manifesto comunista” (MARX; ENGELS, 2003 b), onde, numa bem conhecida panorâmica analítica macro-histórica da luta de classes, é apontado, como um dos seus desdobramentos possíveis, o risco do “aniquilamento das classes em confronto”.

2º mal entendido: “as diversas formas de consciência seriam mecanicamente redutíveis às determinações econômicas”. Mészáros (1993, p. 75-119), em um texto intitulado “Consciência de classe necessária e consciência de classe contingente”, nos ajuda a refutar essa crítica, com uma reflexão que parte precisamente da passagem acima citada de “A sagrada família”, confrontando-a com uma outra, de Gramsci. Para Mészáros, ambas “ilustram, melhor que qualquer outra coisa, o dilema central da teoria marxista das classes e da consciência de classe.” (idem ibidem, p. 75) Por esta razão, é pertinente conhecermos também o texto de Gramsci:

Pode-se excluir a ideia de que, por si só, as ‘crises econômicas’ produzem diretamente eventos fundamentais; elas podem apenas criar ‘circunstâncias mais favoráveis’ para a propagação de certas maneiras de pensar, de colocar e resolver questões que envolvem todo o desenvolvimento futuro da vida e do estado. O elemento decisivo em toda a situação é a força, permanentemente organizada e pré-ordenada por um longo período, que pode ser utilizada quando se julgar que a situação é favorável (e ela é ‘favorável apenas até o ponto em que esta força exista’ e seja plena de ardor combatente); portanto, a tarefa essencial é a de atentar, paciente e sistematicamente, para a formação e o desenvolvimento dessa força, tornando-a até mesmo mais homogênea, compacta, ‘consciente de si mesma’. (GRAMSCI, apud MÉSZÁROS, op. cit. p. 76)1

Na sequência, Mészáros esclarece que a contradição entre a ideia de Marx de que o proletariado será “‘forçado’ a realizar sua tarefa histórica”, (MÉSZÁROS, op. cit., p. 76) e a de Gramsci, que “insiste em que a própria situação histórica é favorável somente na medida em que o proletariado já tiver conseguido desenvolver uma força organizada completamente consciente de si mesma” (idem ibidem, p. 76), é só aparente. Porque Marx e Gramsci estão tratando de coisas diferentes: o primeiro refere-se ao ‘ser social’ do proletariado, isto é, aos “determinantes complexos de uma ontologia social” 2, não a “crises econômicas’ – termos da polêmica de Gramsci contra o ‘economicismo vulgar’.” (idem ibidem, p. 76) Ou seja, não são posições antagônicas, mas complementares, pois as crises econômicas são apenas um entre outros fatores que podem favorecer a ação revolucionária das massas, embora não um dos menos importantes. Para Gramsci, porém, ainda mais importante é a pré-existência, em relação às crises econômicas, de “uma força organizada completamente consciente de si mesma”, condição para que essas crises se tornem, efetivamente, um elemento desencadeador da ação revolucionária. Esta ação, por sua vez, também faz parte do ser social do proletariado, enquanto potência, cuja atualização depende em grande parte não só de crises econômicas em termos genéricos, mas mais especificamente do desenvolvimento das forças produtivas entrar em contradição com as relações de produção e da emergência da consciência de classe. Essa contradição, contudo, embora constitua condição necessária para a emergência da consciência de classes em escala massiva, não é uma garantia de sua emergência, nem do resultado final da luta.

3º mal entendido: “a ‘consciência de classe’ verdadeira se oporia à ‘falsa consciência’ assim como a verdade se opõe à falsidade, ou a ciência à ideologia.” Na verdade, a noção marxista de consciência de classe “verdadeira” ou “falsa” é bem mais simples. Nos termos de Mészáros: “a consciência de classe, de acordo com Marx, é inseparável do reconhecimento – sob forma de consciência ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ – do interesse de classe, baseado na posição social objetiva das diferentes classes na estrutura vigente da sociedade.” (MÉSZÁROS, op. cit., p. 88-9)
O que há de efetivamente decisivo na relação entre “posição social objetiva” e consciência de classe “verdadeira” ou “falsa”? A “subordinação estrutural necessária do trabalho ao capital na sociedade de mercadorias. […] O interesse de classe do proletariado é definido em termos de mudança dessa subordinação estrutural.” (idem ibidem, p. 92) Mas, afinal, por que o proletariado não se dá logo conta de seus “verdadeiros” interesses? A responsabilidade não cabe integralmente à indústria cultural, como queriam Adorno e Horkheimer, antes deriva do fato de que

os interesses a ‘curto prazo’ dos indivíduos particulares, e mesmo da classe como um todo, em um momento dado, podem estar em oposição radical ao interesse de mudança estrutural ‘a longo prazo’. (É por isso que Marx pode e tem que apontar a diferença fundamental entre a consciência de classe contingente ou “psicológica” e a consciência de classe necessária). (idem ibidem, p. 94)

Marx denominou esta “contradição entre a contingência sociológica da classe […] em um momento determinado […] e de seu ser como constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo […] de contradição entre o ‘ser’ e a ‘existência’ do trabalho”, considerando que “o fator crucial na resolução dessa contradição é […] o desenvolvimento de uma consciência de classe adequada ao ser social do trabalho.” (idem ibidem, p. 95) 3

4º mal entendido: “o intelectual marxista se julgaria possuidor dA ciência e dA verdade sobre passado, presente e futuro da humanidade, cabendo-lhe ‘conscientizar’ o proletariado, isto é, iluminá-lo e doutriná-lo nas complexas sutilezas do materialismo dialético.” A posição marxista é bem menos pretensiosa. Diante do problema de como a consciência “falsa” pode ser superada pela “verdadeira”, ou como a “consciência contingente”, imediata, pode elevar-se à “consciência necessária”, que parte da posição econômica de classe do proletariado, mas é mediada pelo conhecimento acerca da subordinação estrutural do trabalho ao capital e do interesse (ainda predominantemente inconsciente) do trabalho de suprasumir essa subordinação estrutural, a contribuição do intelectual, embora necessária, é ao mesmo tempo mais modesta e mais abrangente, envolvendo, além da educação (conscientizar é simplesmente educar, não “iluminar”), análise, crítica e planejamento econômico, político e cultural, conjunto que abrange a questão da tecnologia. Se o intelectual não serve para isso, serve para quê?
Esperamos ter demonstrado que a consciência de classe “necessária” não brota espontaneamente do solo econômico, ao mesmo tempo em que certas condições econômicas são indispensáveis para o seu florescimento. Contudo, diante da hipótese bastante verossímil de essas condições já terem sido ao menos em parte atingidas, o desafio presente é descobrir (ou inventar) o que pode ser feito para estimular a emergência da consciência de classe necessária, articulada com um ‘pathos’ que lhe corresponda, em uma escala que torne efetivamente viável a perspectiva de superação das sociedades de classe subordinadas ao capital, em um horizonte de tempo calculável em algumas décadas – dizemos “em algumas décadas” porque “não temos um cronograma tão folgado para a necessária transformação da potencialidade em realidade. Isto deve acontecer com a agravante de uma enorme urgência.” (MÉSZÁROS, 2002, p. 267)

Enfrentar este desafio requer pensar o papel das comunicações no sentido de bloquear ou contribuir para a emergência da consciência de classe necessária. É um papel parcial, mas nem por isso negligenciável. Requer também, metodologicamente, o exame atento de certos conceitos que nos permitam pensar adequadamente a questão, bem como uma revisão dos esforços anteriores empreendidos no mesmo sentido, ao menos de alguns dos mais relevantes, de modo a podermos identificar sua eventual atualidade. Assim, após nos debruçarmos sobre a consciência de classe, tratemos agora de uma categoria vizinha, que traz consigo o complicador de ser um dos termos mais polissêmicos das ciências sociais: ideologia.

2.2 IDEOLOGIA

O termo “ideologia” foi cunhado na passagem do século XVIII para o XIX, por Cabnis e Destutt de Tracy, para denominar seu projeto de uma teoria das ideias4. Algumas décadas depois, adquiriu, com Marx e Engels, um novo sentido, claramente negativo. Ideologia, então, passou a designar especificamente as ideias que, de um modo ou de outro, legitimam a dominação de classe, estejam essas ideias situadas no discurso religioso, filosófico, jurídico ou econômico. A noção marxiana de ideologia, porém, não deve ser grosseiramente confundida com a de superestrutura, pois esta última envolve também a ciência e as artes, as quais, para Marx e Engels, não eram necessariamente ideologias.

Um sentido mais genérico do termo ideologia, popularizado por Engels, é expresso na noção de “falsa consciência”5. Aqui, é importante fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, “falsa consciência” não é necessariamente o mesmo que “consciência contingente”, dado que esta última pode, em um determinado momento, corresponder à “consciência necessária” – no momento em que “ser” e “existência” do proletariado consigam suprasumir seu estado de contradição. Assim, a “falsa consciência” é a “consciência contingente” somente quando esta não corresponde à “consciência necessária”. Em segundo lugar, a noção de “falsa consciência” pressupõe, de fato, uma consciência verdadeira, mas esta, como vimos, não está na ciência, em termos genéricos, como pensa o positivismo, mas especificamente na compreensão científica da subordinação estrutural do trabalho ao capital. Assim, “falsa consciência” não é sinônimo de uma ilusão qualquer, mas de uma forma específica de ilusão, necessária a perpetuação do sistema e por ele mesmo possibilitada.
A seguinte passagem de Marx nos ajuda a entender melhor como a “falsa consciência” não consiste propriamente em uma irracionalidade qualquer, mas numa irracionalidade aparentemente racional, que é funcional ao sistema e que deriva da própria irracionalidade deste último:
A relação entre uma porção de mais-valia, de renda monetária […] com a terra é em si ‘absurda e irracional’; pois as magnitudes que aqui são aferidas, uma em relação à outra, são ‘incomensuráveis’ – por um lado, um ‘valor de uso particular’, um pedaço de terra de tantos metros quadrados, e, por outro, o ‘valor’, especialmente a mais-valia. Isso na verdade expressa apenas que, sob determinadas condições, a propriedade de tantos metros quadrados de terra permite ao proprietário conseguir à força uma certa quantidade de trabalho não-remunerado, que o capital conseguiu chafurdando nestes metros quadrados, como um porco em batatas. Mas, ao que parece, a expressão é a mesma se alguém desejasse falar da relação entre uma nota de cinco libras e o diâmetro da Terra.
Entretanto, a ‘reconciliação das formas irracionais’ sob as quais certas relações econômicas aparecem e se ‘afirmam na prática’ não diz respeito aos agentes ativos destas relações em sua ‘vida cotidiana’. E, como estão ‘acostumados’ a se movimentar em meio a tais relações, não acham nada estranho ali. Uma ‘absoluta contradição’ não lhes parece ‘nem um pouco misteriosa’. Sentem-se tão à vontade quanto um peixe dentro d´água, entre manifestações que estão separadas de suas conexões internas e são ‘absurdas’ quando isoladas. O que Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáticas se aplica aqui: o que ‘parece irracional’ ao senso comum é racional, e o que lhe ‘parece racional’ é irracional.
(MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 478)

Isto ocorre porque, com o advento do capitalismo, radicaliza-se o processo mediante o qual a consciência imediata, contingente, dos sujeitos objetificados, passa a constituir-se em função da posição que ocupam enquanto forças produtivas (ou improdutivas) no circuito de produção e troca de mercadorias, ou seja, a partir de sua posição de classe6. Para o marxismo, esta consciência é “consciência necessária” quando compreende o caráter fetichista do processo e orienta a ação dos sujeitos objetificados no sentido de sua superação; é “falsa consciência” quando se rende à realidade “invertida”, quando não compreende este caráter e não se empenha em superá-lo na prática. Contudo, essa inversão não é uma espécie de “falha” fortuita do pensamento, mas uma forma coerente de pensamento derivada de uma realidade invertida: “A inversão não está no pensamento acerca dos ‘objetos’ (mercadorias), mas nos próprios ‘objetos’ (mercadorias), de modo que as representações ideológicas são reflexos corretos de uma realidade por assim dizer ‘falsa’, e não espelhamentos falsos ou invertidos da realidade.” (MAAR, 1996, p. 45)

Nessa mesma linha de raciocínio, Mészáros pensa a “falsa consciência” como um momento subordinado da ideologia, esta última entendida em um sentido mais amplo, enquanto consciência prática (de classe) necessária em uma sociedade dividida em classes antagônicas:

O reconhecimento das necessárias limitações da ideologia – originadas do papel que ela foi instada a desempenhar na preservação de sociedades profundamente divididas – significava que a questão da emancipação humana radical não poderia ser vislumbrada sem se considerar também a supressão final das formas distorcidas de consciência social. (MÉSZÁROS, 2004, p. 469)

Além disto, e isso é muito importante, “[…] a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialistamente ancorada e sustentada.” (idem ibidem, p. 75) É por isso que:

[…] se as causas identificáveis de mistificação ideológica fossem primariamente ideológicas, elas poderiam ser contrapostas e revertidas na esfera da própria ideologia. […] o impacto maciço da ideologia dominante na vida social como um todo só pode ser apreendido em termos da profunda afinidade estrutural existente entre as mistificações e inversões práticas, por um lado, e suas conceituações intelectuais ideológicas, por outro. (idem ibidem, p. 479)

Nesse sentido, o pensamento de Mészáros aproxima-se e complementa o do “velho” Lukács, de “Ontologia do ser social”:

[…] a correção ou falsidade [de uma ideação] não bastam para fazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião individual correta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoria etc., científica, correta ou errônea são em si e por si uma ideologia: podem apenas […] tornar-se [uma ideologia]. Somente após se tornar veículo teórico ou prático para combater os conflitos sociais, quaisquer que sejam eles, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos para o destino da humanidade, elas são ideologia. (LUKÁCS, apud LESSA, 2002, p. 108) 7

Essa compreensão do conceito, para Mészáros, é decisiva, pois “sem se reconhecer a determinação das ideologias pela época como a consciência social prática das sociedades de classe, a estrutura interna permanece completamente ininteligível.” (2004, p. 67)

Mészáros, assim, emprega o conceito em um sentido mais neutro, na linha de Lênin, Gramsci e Lukács, diferente – mas não oposto – do sentido negativo popularizado por Marx e Engels8. Nesta acepção neutra, ideologia corresponde àquelas ideias, falsas ou verdadeiras, capazes de mobilizar amplos contingentes da população. Neste registro, podemos tranquilamente falar em uma ideologia socialista – o que para Marx e Engels não faria sentido – e em uma ideologia burguesa – o que para Marx e Engels seria uma redundância. Em todos os casos, a ideologia não é uma mera ilusão, correspondendo sempre, ainda que de forma altamente mediada, a um determinado estágio da articulação dialética entre forças produtivas e relações de produção, ou, em outras palavras, da luta de classes.

3 O PROBLEMA DA “PASSAGEM”, AS COMUNICAÇÕES E O GOSTO

Podemos agora retomar a questão da passagem da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, à consciência de classe “necessária”. Talvez tenha sido o “jovem” Lukács, em “História e consciência de classe”, quem avançou mais nesse sentido, em seu esforço de teorizar a ideologia a partir da forma concreta como aquilo que ele denominava consciência “psicológica” poderia elevar-se, na prática, à consciência “atribuída”. 9
As noções de consciência de classe “psicológica” e “atribuída”, em Lukács, correspondem, respectivamente, às noções de consciência contingente e necessária, em Marx. Nos termos de Mészáros:

[…] a famosa distinção de Lukács entre a consciência de classe ‘atribuída’ ou ‘imputada’ e a consciência ‘psicológica’ tem sua origem na ideia marxiana que opõe consciência de classe verdadeira ou necessária – ‘atribuída ao proletariado’ em virtude de ele ser ‘consciente de sua tarefa histórica’[…] – à contingência do ‘que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, no momento, considera como sua meta’. (MÉSZÁROS, 1993, p. 86)

Tratando das diferenças ideológicas entre, de um lado, os operários empíricos, e de outro o proletariado enquanto “classe universal”, Lukács diferenciou a “consciência psicológica” dos primeiros da “consciência atribuída” da última, enxergando no partido comunista bolchevique a mediação entre contingência e necessidade, por ser a incorporação atuante, a mediação ativa, o portador da verdadeira consciência de classes do proletariado, à qual as massas operárias empíricas fatalmente teriam que ascender.

A ideia engenhosa do Partido como encarnação da consciência de classe “atribuída” do proletariado, contudo, se pode ter feito algum sentido conjuntural, em termos teóricos e práticos, por ocasião da Revolução de Outubro e até meados da década de 20, revelou-se, a longo prazo, irrealista e mesmo trágica, dado que o Partido, enquanto mediação singular entre o particular – o proletariado empírico – e o universal – o proletariado enquanto “classe universal”, ao invés de superar dialeticamente sua contradição, efetuando sua conciliação em um nível superior – a extinção de todas as classes e a superação da sociedade de classes –, por assim dizer estagnou a contradição em um estágio a longo prazo insustentável, mediante a subordinação do particular e do universal concretos ao “universal abstrato” encarnado na hipostasia do singular. Em termos menos abstratos, o Partido converteu-se, de unidade organizacional revolucionária, em unidade gerencial de extração de trabalho excedente sob uma forma estatizada, ainda que em nome de uma quimérica “acumulação primitiva socialista”. Como bem questionou Kurz (1993), acumulação de quê? De capital! Acumulação de recursos ou de riquezas a serem distribuídos, ainda que de modo menos desigual do que nos estados capitalistas, como legitimação de uma “relação social” (RUBIN, 1980) ainda calcada na extração de trabalho excedente como fim em si mesmo, apesar dos discursos apologéticos.

Enfim, os rumos tomados pelo stalinismo e pelos PCs por ele orientados desacreditaram, até segunda ordem, a elegante mas problemática articulação entre método dialético e estratégia revolucionária de Lukács, em “História e consciência de classe”10. A esperança de Rosa Luxemburgo de que essa consciência emergiria quase que espontaneamente das massas, no decorrer da própria luta, mostrou-se igualmente irrealista.

Permanecemos, assim, com nosso dilema: como efetuar, na práxis, a passagem da consciência de classe “contingente/psicológica” à consciência de classe “necessária/atribuída”? Não se pretende aqui resolver de uma vez por todas as complicadas implicações dessa problemática. Mas talvez o projeto gramsciano de composição gradual de um bloco histórico não “putchista”, que aproxime intelectuais e trabalhadores, visando a conquista da hegemonia ideológica na sociedade civil mais do que a conquista do Estado, siga sendo a mais fértil para se pensar a questão nos dias de hoje.
Para atualizar esse projeto é absolutamente necessário incorporar ao debate a centralidade econômica, tecnológica e ideológica que as comunicações exercem na sociedade civil – e, em certa medida, no Estado.

Aqui chegamos ao ponto onde talvez possamos oferecer uma contribuição original ao problema da “passagem”. Para isso, retomaremos uma hipótese que desenvolvemos em outra ocasião11, segundo a qual o gosto é a inconsciência sensível da ideologia e na ideologia; dela provém e ao mesmo tempo a sustenta; é sua inscrição no corpo. E a assimilação reificante dos gostos ao modo de vida capitalista foi a única forma, além da violência, de minimizar as contradições de seu desenvolvimento, e é a única forma de assegurar sua sobrevida insana e destrutiva. As ideologias só “colam” se seduzirem os gostos. E aí o papel das comunicações se mostra sob uma nova luz.

O gosto, usualmente identificado à esfera do consumo12, só se torna restrito a essa esfera a partir do momento em que é subordinado aos imperativos do capital na esfera da produção, isto é, na medida em que quem trabalha não controla no que trabalha, nem como trabalha, nem os frutos do trabalho. O fim dessa subordinação constitui talvez o objetivo principal do projeto socialista. Nos termos de Marx, “em uma sociedade futura, na qual o antagonismo de classe tenha deixado de existir, na qual não haverá mais classes, o uso não mais será determinado pelo ‘tempo mínimo de produção’; mas o ‘tempo’ de produção será determinado pelo grau de sua ‘utilidade social’.” (MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 176)

Assim, para além dos limites do fetiche do valor (em um nível mais alto de abstração) ou da solvência monetária (em um nível mais imediato), se é o gosto que efetivamente orienta o consumo, ele passaria a constituir não somente a única meta da produção, mas carregaria a própria produção de inspiração, no sentido empregado por Abraham Kook13 e seus comentadores, conforme podemos conferir nas belas alegorias que seguem, referentes ao tema bíblico da “queda”:

“As árvores que dão o fruto […] se tornaram matéria inferior e perderam seu gosto. Esta é a queda da ‘Terra’, em função da qual esta foi amaldiçoada, quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo defeito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será o mesmo que o do fruto. A ‘Terra’ se arrependerá de seu pecado e os caminhos da vida prática não mais obstruirão o deleite do ideal, que é sustentado pelos degraus intermediários apropriados em seu caminho rumo à realização, e irá estimular sua emergência de potência em ato”14.

Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso ‘midrash’15 concernente ao ‘pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação’. No terceiro dia, Deus ordenou à Terra que ‘produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêem frutos’. A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir ‘árvores que dão frutos’. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por não produzir ‘árvores frutíferas’, isto é, árvores cujos troncos e galhos tenham o gosto do fruto. Ao invés disso, temos somente o exterior marrom usado para fogueiras, enquanto somente o fruto possui um gosto bom. […] Rav Kook explica este ‘midrash’ como uma parábola: fruto = os fins; gosto ‘[ta’am]’16 = a inspiração; árvore = os meios para que se atinja os fins. […] Originalmente os meios para se atingir os fins deveriam estar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração que resulta dos fins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém, o pecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios sem gosto.[…] 17

A Terra, então, “pecou” (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das árvores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizam os meios para se atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordem de inspiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terra falhou. É aqui, pois, um problema da matéria (da imanência). Por outro lado, a missão transcendente do homem, isto é, o sentido de sua vida, seria redimir o “pecado” / falha da Terra, restaurando / realizando a ordem “divina”, ao tornar os meios de se atingir um fim tão inspiradores (saborosos e plenos de significado) quanto o próprio fim.

Depurado o tom religioso do texto, está dito aí que, através de sua práxis, a princípio penosa, o homem deve transcender o “pecado original da Terra”, redimindo-a,18 e estabelecer aquela ordenada por “Deus”, segundo a qual os meios têm que ser inspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado, de gosto. Essa passagem adquire um significado materialista extraordinário se lida à luz do seguinte trecho de “A sagrada família”:

[…] o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma ‘penúria’ absolutamente imperiosa – a expressão prática da ‘necessidade’ –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem supra-sumir suas próprias condições de vida. Ele não pode supra-sumir suas próprias condições de vida sem supra-sumir ‘todas’ as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola ‘do trabalho’, que é dura mas forja resistência. (MARX; ENGELS, 2003 a, p. 49)

Sob esse prisma, a “ordem divina” pode ser pensada como um ideal radicalmente humano, na medida em que cabe ao homem a responsabilidade por sua realização. Esta responsabilidade, todavia, não precisa ser pensada como uma obrigação exterior, mas como um poder de autorrealização, já que se trata de uma parceria com “Deus”, e o homem traria em si o elemento “divino”, isto é, a potência de transcender historicamente as limitações naturais imediatas – consequentemente, as limitações sociais subsequentes – no devir histórico. Como ensina Paulo Blank, quando se refere ao “encontro fundador de Deus e Moisés”:

Quando o último pergunta em nome de quem ordenará ao faraó que liberte os hebreus, a voz que lhe fala de dentro do fogo diz: ‘Ehiê Asher Ehiê – Serei O Que Serei’. A versão grega do texto bíblico traduzirá a mesma frase como ‘Sou O Que Sou’. São palavras diferentes (…) O hebraico, que não possui o presente do verbo ser, permite pensar um mundo criado à imagem da mutabilidade e da transformação (…) Diríamos, então, junto com Guikatilla, cabalista espanhol do século 11, que aquele que realiza os preceitos e os atos justos ‘é como se construísse Hashém – o nome de Deus’. Construir o Nome é, sem dúvida, intrigante. Transforma-nos em possíveis parceiros na construção de um futuro que, chamado de Deus, traz em si um princípio que aponta para o futuro como o lugar da revelação. Como sabemos, o sentido judaico da revelação é também o cenário de um mundo de justiça e paz e não a salvação individual da alma. (BLANK, 2002, p. 3)

O que isto significa? Tendo a necessidade do trabalho sem inspiração, sem significado, sem sabor, isto é, sem gosto, se imposto desde os primórdios, seguiu-se o desejo de um paraíso que nos libertasse da condenação ao trabalho, “realizado” na religião, mediante a construção discursiva de um projeto divino que promete o paraíso e explica as razões de seu adiamento temporal, e nas mais diversas utopias políticas19, com sua elaboração de um projeto humano de teor aproximado.

Mais de um autor já apontou essa familiaridade entre a “escatologia” marxista e o messianismo: trazer à Terra o reino dos céus pela ação humana. De fato, ambas têm em comum a insatisfação com uma realidade – em todo caso social, ainda que isto não esteja sempre evidente no discurso religioso – passível de transformação, insatisfação a partir da qual ocorre a elaboração ideal dos meios e fins necessários à tarefa, que irão variar conforme as condições históricas favorecerem ou não o desenvolvimento de projetos menos ou mais realistas.

Ocorre, porém, que a despeito do que possa haver em comum entre messianismo e marxismo, é óbvio que os fundamentos teóricos e a forma específica de ambas as perspectivas variam imensamente, sobretudo no que tange ao fato de que, e agora iremos desfazer mais um mal entendido corrente, o marxismo não concebe nenhum “fim da história”, nenhuma “idade de ouro” definitiva, instaurada de uma vez por todas, mas o fim da pré-história, o início da história humana, isto é, consciente de si, livre de fetiches, não alienada:

O que dá sentido à opção humana pelo socialismo não é a promessa enganadora de um absoluto fictício (um mundo do qual todas as possíveis contradições estejam eliminadas para sempre), mas a possibilidade real de transformar uma tendência ameaçadoramente crescente de alienação numa tranquilizadora tendência decrescente. Isso, em si, já seria uma conquista qualitativa no sentido de uma superação prática, efetiva, da alienação e reificação. Mas outras conquistas importantes são possíveis, não só no plano da inversão da tendência geral, mas também em relação ao caráter substancialmente diferente – autorrealizador – das formas específicas da atividade humana, livres da sujeição a meios alienados a serviço da perpetuação das relações sociais de produção reificadas.
A substituição das “mediações de segunda ordem” capitalistas, alienadas e reificadas, por instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados é o programa socio-historicamente concreto desta transcendência.
(MÉSZÁROS, 2006, p. 228)

Nesse sentido, as comunicações seriam talvez os mais importantes dentre esses “instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados”. Por outro lado, considerando seus principais usos atuais, as comunicações, em especial as indústrias culturais, têm contribuído antes para a manutenção da separação dos fins, dos meios e da inspiração, isto é, para a perpetuação da divisão da sociedade em classes: 1) privilegiando o sabor sem saber na esfera do consumo e o saber sem sabor, meramente instrumental, na esfera da reprodução social, calcada na ideologia da divisão trabalho (alienado) / lazer (consumista); 2) subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganho de escala; 3) retroalimentando de modo reificante gostos e padrões de comportamento; 4) martelando a defesa da sociedade de mercado, direta ou indiretamente, na quase totalidade de seus produtos (jornalismo, publicidade, entretenimento); 5) forjando um imaginário coletivo que é em grande parte comum, apesar de desprovido de grande parte dos lastros das experiências concretas comuns, e é altamente diferenciado, sem lastro em boa parte das experiências concretas diferenciadas, borrando tendenciosamente as fronteiras entre vivência e representação, estimulando assim os mais alucinados “bovarismos” integrados; 6) homogeneizando gostos, práticas e mundivisões através de um processo de recalcamento de produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extramidiáticas – não-comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. –, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais. Mascarando-a, porém, sem eliminá-la; pois se as comunicações contemporâneas praticamente conquistaram para si alguns dos tradicionais atributos divinos, isto é, a onipresença e a onisciência, não dispõe de onipotência. E é precisamente na potência das práticas concretas extramidiáticas ou intramidiáticas alternativas, nos movimentos de luta, cooperação e resistência à coisificação e obsolescência biológica, cultural e política, que reside o detonador da transcendência histórica, da conversão da quantidade em qualidade, de necessidade em liberdade, do sabor e do saber em gosto, em inspiração.

Juntemos algumas pontas soltas. Em termos materialistas, o “pecado da Terra”, causa da “queda” e do “Mal”, consiste na ausência de gosto (sabor, significado e inspiração) nos meios de se obter satisfação, devido à escassez, à brutalidade dos elementos e das feras, à resistência, com frequência extrema, da natureza face ao homem, fatores com os quais ele tem de lidar em busca de satisfação, mesmo das necessidades mais elementares, o que gera, além de desgosto, medo, dor e trabalho pesado. Este último, no entanto, é a condição de sua própria superação: se todos os meios para que se atinja qualquer fim poderiam ser simplesmente chamados de trabalho, a “condenação divina” que pesa sobre o homem – “ganharás teu pão com o suor de tua face” – reproduz, de modo invertido, uma condenação real, mas historicamente superável a partir de sua própria contradição interna: a ausência de gosto – de sabor, de significado e de inspiração – no trabalho não-livre, em todas as suas formas históricas.

4 LENIN E A MICROSOFT

É por essas razões que um dos principais objetivos do projeto socialista é a extinção do trabalho não-livre em sua forma atual, ou seja, o fim da escravidão assalariada, carente de sabor e de significado, isto é, de gosto. Nos termos de Mészáros:

É evidente que quando a atividade vital do homem é apenas um meio para um fim, não se pode falar de liberdade, porque as potências humanas que se manifestam nesse tipo de atividade são ‘dominadas’ por uma necessidade exterior a elas. Essa contradição não pode ser resolvida a menos que o trabalho – que é um simples ‘meio’ na presente relação – se torne ‘um fim em si mesmo’. Em outras palavras: apenas se o trabalho chega a ser uma ‘necessidade interior’ do homem é que será possível referir-se a ele como “atividade livre”.
É o que diz Marx quando fala do “homem rico” cuja “efetivação própria existe ‘como necessidade interior, como falta20’”. Sua definição de “liberdade como uma ‘necessidade interior’ não exige um ‘reconhecimento da necessidade’” abstrato e conceitual, mas sim uma ‘necessidade positiva’. Somente se existir essa necessidade positiva como uma necessidade ‘interior’ de trabalhar é que o trabalho poderá perder seu caráter de necessidade ‘exterior’ ao homem.
Uma vez que apenas enquanto necessidade positiva, como necessidade interior, o trabalho é ‘gozo’, então a autorrealização, a plenitude humana, é inseparável do aparecimento dessa necessidade positiva. A ‘liberdade’ é, assim, a realização da finalidade própria do homem: ‘a autorrealização no exercício autodeterminado e externamente não-impedido dos poderes humanos’. Como autodeterminação, a base desse exercício livre dos poderes humanos não é um “imperativo categórico” abstrato, que permanece ‘exterior’ ao ser humano real, mas uma necessidade positiva efetivamente existente de trabalho ‘humano’ autorrealizador. Assim, os meios (trabalho) e fins (necessidades) nesse ‘processo’ de humanização transformam-se mutuamente em atividade verdadeiramente humana, feita de gozo e autorrealização, por intermédio da qual poder e finalidade, meios e fins, surgem numa unidade natural (humana). (MÉSZÁROS, 2006, p. 170) 21

É disso que se trata quando falamos de resgatar o gosto cooptado pelo capital da esfera do consumo e inseri-lo na esfera da produção, como inspiração, na execução, da forma menos penosa que se puder, de tarefas coletivamente determinadas por pessoas livres e conscientes.

As comunicações podem e devem ser instrumentalizadas no sentido de solucionar este problema. Zizek, partindo de Lênin, nos dá uma boa pista de como isso pode ser efetivamente posto em prática:

As ideias de Lênin sobre como a estrada para o socialismo corre através do terreno do capitalismo monopolista podem parecer perigosamente ingênuas hoje: “O capitalismo criou um aparato contábil na forma de bancos, sindicatos, correios, associações de consumidores e organizações de empregados de escritório. Sem grandes bancos o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo. […] seria […] algo como o esqueleto da sociedade socialista.” […] E se alguém substituísse o (obviamente datado) exemplo do banco central pela “World Wide Web” […]? Dorothy Sayers sustentou que a Poética de Aristóteles é efetivamente a teoria das histórias de detetive “avant la lettre¬” – como o pobre Aristóteles ainda não conhecia as histórias de detetive, ele teve que fazer menção aos únicos exemplos que lhe estavam disponíveis, as tragédias… Nessa mesma linha de raciocínio, Lênin estaria efetivamente desenvolvendo a teoria do papel da World Wide Web, porém, dado que ele não conhecia a WWW, ele teve que fazer menção aos desafortunados bancos centrais. Consequentemente, alguém pode também dizer que “sem a World Wide Web o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo” […] Não haveria na World Wide Web um potencial explosivo também para o próprio capitalismo? A lição do monopólio da Microsoft não seria precisamente a de Lênin: ao invés de combater o seu monopólio através do aparato do estado (recorde-se a divisão da Micrsoft Corporation por decisão judicial), não seria mais “lógico” simplesmente SOCIALIZÁ-LA, tornando-a gratuitamente acessível?22

Isto é, as comunicações, em meio às quais a Microsoft Corporation ocupa um dos papéis mais ilustres, podem e devem ser instrumentalizadas em termos não só ideológicos, mas administrativos e logísticos, considerando-se a sua centralidade no conjunto da economia. Esta operação é absolutamente fundamental, pois como bem lembra Mészáros:

Não basta […] argumentar a favor de uma nova orientação ideológico-política caso se mantenham tal como hoje as formas institucionais e organizacionais relevantes. Se, em sua resposta por inércia às circunstâncias históricas que já não são as mesmas, a desorientação corrente é a manifestação combinada dos fatores prático-institucional e ideológico, seria ingênuo esperar uma solução no que muitos gostam de descrever como “clarificação ideológica”. De fato, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialética, o “ubergreifendes Moment” (momento predominante) na conjuntura atual é a estrutura prático/institucional da estratégia socialista, que precisa reestruturar-se de acordo com as novas condições. (MÉSZÁROS, 2002, p. 787-8)

Se isto é verdadeiro, e julgamos que sim, é pertinente repensarmos a dialética base / superestrutura à luz do enorme desenvolvimento tecnológico recente das comunicações. Nessa linha de raciocínio, identificamos nas comunicações atuais um momento no qual a produção simbólica é absorvida por sua base mercantil, não o contrário, como apregoam os defensores da “sociedade da informação”. A disputa ideológica contra a ideologia hegemônica, portanto, para ter alguma chance de sucesso, deve ser articulada com uma disputa político-jurídica pela socialização da propriedade das comunicações.

 

5 O CAVALO DE TROIA x O CAVALO DE TROIA DO CAVALO DE TROIA OU O GRÃO UTÓPICO NA CULTURA MASSA

Caso permaneça produtivo o emprego dos conceitos consciência de classe, ideologia e luta de classes, junto ao par base e superestrutura, tanto para os estudos sociais em sentido mais geral, quanto para aqueles mais específicos, como os do campo da Comunicação Social, essa verdade traz consigo a exigência de uma espécie de bifurcação metodológica: ou se dedica atenção especial às inúmeras mediações de ordem extraeconômica que atuam no âmbito das comunicações, assumindo-se a posição de que os interesses políticos e econômicos envolvidos são somente dois fatores a mais entre tantos outros, de peso equivalente; ou se admite que, embora as mediações extraeconômicas, envolvidas nos processos de produção, circulação e consumo das comunicações, não devam ser deixadas de lado, publicidade, entretenimento e informação vêm se convertendo, de forma cada vez mais abrangente, no “cavalo de troia” de determinados interesses políticos e econômicos, cujo peso é decisivo para uma compreensão adequada desses mesmos processos e de seu papel predominantemente conservador.
Nos termos de Ramonet:

Antes podíamos dizer que uma empresa jornalística vendia informação aos cidadãos, enquanto hoje uma empresa midiática vende consumidores a seus anunciantes. Quer dizer, a AOL-Time Warner, por exemplo, vende a seus anunciantes – Nike, Ford, General Motors – o número de consumidores que possui. Essa é a relação dominante. (RAMONET, 2003, p. 248)

Desdobrando esse raciocínio, logo percebemos que as comunicações exercem um triplo papel nas sociedades contemporâneas: 1) enquanto dispositivo de produção, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, constituem um setor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de sedução, participam ativamente na geração da demanda pelos bens materiais e simbólicos existentes, sejam aqueles diretamente produzidos por elas (produtos da indústria cultural e equipamentos necessários ao seu consumo), aqueles nos quais elas participam na produção (tudo que envolva informática e telecomunicações) e aqueles que elas simplesmente anunciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivo de (in)formação, socializa, em diversas escalas, um determinado repertório de representações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto a sistemas classificatórios, ou códigos valorativos, que dispõem esses bens e representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entrecruzadas, menos ou mais complexas.

Este é um dos lados da moeda, o lado mais forte atualmente, o lado da hegemonia. Por outro lado, o fato de os interesses hegemônicos serem em grande parte contraditórios, entre si e, sobretudo, com os interesses da maioria das pessoas – que vivem do trabalho e compõem a massa consumidora –, mesmo que estas últimas não tenham clara consciência desses interesses, esse simples fato representa uma espécie de “cavalo de troia” do “cavalo de troia”.

Um exemplo dessa contradição está no jornalismo, principalmente no telejornalismo. Seu objetivo último é cativar imensas audiências para os anunciantes dos intervalos comerciais. Mas para fazê-lo, é necessário que os programas possuam e conservem credibilidade junto à população, o que requer que estejam minimamente comprometidos com a verdade factual, ainda que a divulgação desta verdade eventualmente entre em choque com os interesses particulares da empresa de comunicação que produz o telejornal ou de setores mais amplos do capital dos quais ela é aliada. Além disso, há, entre os jornalistas, muitos que não pensam “como o patrão”, que possuem, em graus variados, consciência de classe, além de uma relativa autonomia produtiva.

No campo da música, do cinema e até da teledramaturgia, é inegável que, apesar de todas as tendências dominantes, canções, filmes e programas efetivamente inventivos conseguem, aqui ou ali, aparecer no universo das comunicações. No campo do ciberespaço, seu potencial democratizante e pluralista tem sido exaustivamente estudado e demonstrado, embora com frequência com uma carga excessiva de otimismo. Mesmo assim, esse potencial, enquanto potencial, parece inquestionável.

Quanto à publicidade, a mais “integrada” das esferas das comunicações, há que se considerar que, dado que para ser convincente, deve agradar, na busca pela atenção da audiência, a despeito dos apelos grosseiros mais óbvios e de seu conteúdo ideológico tendencialmente conservador, ela não deixa também de explorar e socializar experiências formais que, de outro modo, talvez permanecessem restritas aos nichos de vanguarda, ou a culturas distantes, contribuindo assim para uma maior abertura no repertório de referências culturais e na sensibilidade estética das audiências.23

Nesse ponto, entramos em rota de colisão com Adorno, já que, para ele, “os padrões estéticos inconscientes das ‘massas’ são precisamente aqueles de que a ‘sociedade necessita’ para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre as massas.” (ADORNO, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 157, nota 35)
É uma sentença intrigante, mas com a qual se pode concordar integralmente. Porque se Adorno acerta na definição de um dos aspectos constitutivos do controle social, talvez mesmo do aspecto predominante nos últimos tempos, por outro lado não se dá conta que o momento revolucionário, que existe em estado latente como potência concreta, igualmente pressupõe “padrões estéticos inconscientes”, mas de uma natureza não integrada, não mimética, que podem ser identificados no gosto das massas por alguns produtos das comunicações, ou por alguns elementos de todos eles, para não falar de formas estéticas de resistência ou híbridas / experimentais, no campo da produção simbólica extramidiática.

Há um importante artigo de Fredric Jameson que aponta nessa direção, cujo norte é, sem perder o gume crítico em relação às mercadorias culturais da indústria cultural e de sua importância política e econômica, distinguir o “Cavalo de Troia” no “Cavalo de Troia”, ou o que ele denomina “grão utópico” na cultura de massa, mesmo em produtos cujo caráter ideologicamente reacionário é mais ou menos óbvio. Nas palavras de Jameson:

[…] as obras de cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ou explicitamente utópicas: não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser tão manipulado. Mesmo a “falsa consciência” de um fenômeno monstruoso como o nazismo nutriu-se de imaginários coletivos de tipo utópico, sob roupagem tanto socialista como nacionalista. […] as obras de cultura de massa, mesmo que sua função se encontre na legitimação da ordem existente – ou de outra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa sem desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade, não importa se de forma distorcida. (JAMESON, 1995, p. 30)24

Mais adiante, o autor desenvolve este ponto da seguinte maneira:

Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicos dos grandes negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade, que pode ser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa, tão certo como nos clássicos do modernismo. Eis a indispensável precondição de qualquer intervenção marxista significativa na cultura contemporânea. (idem ibidem, p. 34-5)

Essa hipótese de Jameson é muito importante no sentido de não se perder de vista o caráter contraditório interno da cultura de massa, reflexo das contradições sociais mais amplas, e para que não se caia no pessimismo imobilizante de Adorno.

Cabe então desvendar o que pode haver no gosto das massas de substrato sensível da ideologia, não só enquanto “falsa consciência”, mas também enquanto consciência de classe “necessária” ou “atribuída”, isto é, revolucionária. Esse desvendamento é necessário para que se possa pensar em deslocar o gosto da esfera mais passiva do consumo à esfera mais ativa da produção, reorientando a produção social – material e simbólica – no sentido da satisfação de gostos não cooptados pelas formas integradoras do capital. O mundo digital, embora por si só não resolva a questão, sem dúvida abre novas possibilidades de pensamento e ação nesse sentido.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O gosto, este saber dos sabores e vice-versa, é o substrato sensível de ideologias e práxis hegemônicas somente em sua positividade atual, passiva e imediata. Sua negatividade dialética, ativa e mediata, consiste em sua potência concreta de despertar práxis contra-hegemônicas. Ou seja, o gosto, em um primeiro momento, não diz respeito diretamente, imediatamente, à consciência de classe necessária, mas mediatamente, isto é, enquanto momento de uma mediação possível da consciência de classe “contingente” à “necessária”. Diz, assim, respeito ao momento da passagem possível da consciência em si à consciência para si. Porque o gosto traz em si um “pathos” revolucionário recalcado sob as mil manifestações do “ethos” conformista da ideologia hegemônica. Em um segundo momento, porém, diante de circunstâncias objetivas mais favoráveis, a tensão entre esse “pathos” e o “ethos” dominante pode resultar em sutura, em uma unidade superior de sensibilidade e consciência, a qual deverá servir imediatamente como sustentação psicológica e motivacional da consciência de classe necessária.

Uma ideia parecida com essa está implícita nas esperançosas palavras de Muniz Sodré: “[…] no bojo das novas condições de existência geradas pela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver poderia impedir que a integração harmônica da máquina seja equivalente à assimilação do capital como ‘natureza’ à consciência do homem”.25

Trata-se, em suma, de pensar a noção de gosto cindido em prazer / desprazer e conhecimento / ignorância, a qual, por sua vez, remete à negatividade dialética da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, dado que, se esta é positivamente, imediatamente, atualmente, fator constituinte da classe-em-si, negativamente, mediatamente ou potencialmente o é da classe-para-si, capaz de extinguir a si mesma e a todas as classes, portanto a sociedade de classes, promovendo a sutura no gosto em prazer, conhecimento e inspiração, articulados em um nível superior. Ou seja, a noção de consciência de classe “contingente” enquanto “falsa consciência” deve ser entendida, ao mesmo tempo, 1) como tensão entre sua positividade de não-reflexão atual e sua negatividade de reflexão potencial, e 2) como identidade de classe inconsciente, pulsional, passível de simbolização, de exteriorização, de objetivação na práxis, de incorporação à consciência portanto, convertendo nesse momento a consciência em si em consciência para si, através dessa práxis transformadora.

A ideologia, no recorte proposto, é sempre uma formulação dos gostos. Estes, por sua vez, são estruturações historicamente variáveis das subjetividades e das práticas intersubjetivas, ambas determinadas positiva e negativamente, em última instância, pelos vetores econômicos contraditórios de cada formação social; em outras palavras, limitadas em suas possibilidades de objetivação pelas contradições entre o modo de produção hegemônico, os resquícios de sua pré-história e de seus estágios passados, e as possibilidades de superação de si que em si carregam. “Modo de produção” é a forma como as pessoas produzem e reproduzem em sociedade suas condições de vida, nada mais que isso. Se essas formas não são determinadas pela vontade dos sujeitos, mas por imperativos cegos, os gostos como todo o resto permanecem limitados por estes imperativos. É necessário libertá-los. Isso não pode ser feito sem a socialização das comunicações.
REFERÊNCIAS

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* Marco Schneider é doutor em Ciências da Comunicação (USP). Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense – UFF – e professor assistente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (RJ). Desenvolve a pesquisa de pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, intitulada “Culturas da Periferia, Culturas Digitais e Cidadania: Por uma Articulação dos Estudos Culturais com a Crítica da Economia Política”.
NOTAS

1 A passagem de Gramsci citada por Mészáros pertence a uma edição intitulada “The modern prince and other writings”.

2 Sobre as noções de “ontologia social”, de “ser” e “existência” do proletariado, e de “ontologia do ser social”, ver, além do texto acima citado de Mészáros, LUKÁCS (1979).

3 É aí que entram as comunicações, como veremos mais detidamente adiante.

4 Sobre essa origem do termo, cf. ALTHUSSER (1985, p. 81). Ver também HALL (1980) e LÖWY (1985).

5 Ver LARRAIN (1996).

6 Não que as consciências dos sujeitos sejam redutíveis a sua posição de classe. O que se quer dizer é que esta posição é o fator em última instância determinante do complexo de mediações que formam as consciências.

7 A esta citação de Lukács segue o comentário de Lessa: “Não é, portanto, o conteúdo gnosiológico de uma ideação que a torna ideologia, mas sim sua função social específica: ser veículo dos conflitos sociais […]”.

8 Cf. LARRAIN (op. Cit., passim) e WILLIAMS (1985, p. 154-5).

9 Cf. Mészáros, 1993.

10 Não obstante, o esgotamento do papel histórico do partido comunista de inspiração bolchevique (“marxista-leninista”) é um tema controverso. Sobre este tema, ver ZIZEK (2005) e “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em abr. 2010. Ver também MAZZEO (1999).

11 Cf. SCHNEIDER, 2008.

12 Raymond Williams nota, a propósito, “que a ideia do gosto não pode hoje ser separada da ideia do CONSUMIDOR.” (WILLIAM, 1985, p. 314-15). Tradução nossa.

13 Segundo SCHOLEM (1995), Abraham KOOK (1865-1935) foi o último grande cabalista.

14 Tradução nossa.

15 Tópico narrativo da tradição oral talmúdica judaica, que inclui também suas interpretações.

16 O termo hebraico “ta’am”, gosto, também relaciona as noções de “sabor” e “significado”.

17 A passagem em itálico consiste nos comentários de Rav Hillel Rachmani sobre a citação anterior, conseguidos na Internet junto à Yeshivat Har Etzion – Virtual Beit Midrash – e-mail: yhe@jer1.co.il ou office@etzion.org.il, por intermédio de Ezra Bick – ebick@etzion.org.il, em 2002. Tradução nossa.

18 A propósito, e lembrando que a escrita hebraica não possui vogais, a palavra hebraica que designa o primeiro homem, “Adam” / Adão, é a mesma de “Adamá”, a Terra.

19 “Utopia” não significa necessariamente um projeto irrealizável, conforme o uso consagrado, inclusive, por Marx e Engels. O termo igualmente pode sugerir um projeto de melhoria social ainda não realizado em parte alguma (u-topos). Nesse último sentido, o socialismo pode ser considerado uma utopia.

20 A citação de Marx pertence aos Manuscritos econômico-filosóficos.

21 MÉSZÁROS, Istvan. A teoria da alienação em Marx, p 170.

22 ZIZEK, Slavoj. “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: abr. 2010.

23 Além disso, é possível supor que o aspecto atraente dos produtos oferecidos, bem como sua quantidade, podem sem querer contribuir para a emergência da consciência de classe, se as pessoas puderem sentir que há algo errado no fato de tudo aquilo existir e estar disponível, mas não para elas.

24 O trecho refere-se a uma análise empreendida pelo autor do filme “Tubarão”. Jameson também coteja o livro e o filme “Tubarão”, ambos de enorme sucesso comercial.

25 SODRÉ, Muniz. Estratégias sensíveis, p. 71.

 

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Apagamento e visibilidade autorrepresentada: comunicação autóctone na periferia da periferia | de Ricardo Oliveira Freitas

Introdução

Considerando o fenômeno de emergência e visibilização de produções que retratam múltiplas realidades das periferias brasileiras, baseadas em discursos unívocos, o texto ora apresentado aborda os processos de comunicação e as interações sociais destes resultantes, a partir do lugar ocupado por iniciativas de comunicação popular e comunitária para o desempenho das identidades minoritárias e suas expressões no Brasil e para a elaboração de uma contrainformação do que é produzido sobre si. Por comunicação comunitária e popular entendo todo tipo de iniciativa que, ao utilizar-se de recursos de mídia, promove a participação ativa do indivíduo em processos de desenvolvimento local, quando seus grupos e suas comunidades encontram-se distanciadas das esferas de poder, privilégio e prestígio.

Apesar de presenciarmos a emergência de grandes produções sobre o periférico, tanto no cinema como na TV brasileira (o que coloca o debate como um caso não necessariamente específico da comunicação autóctone), centrei-me na investigação de iniciativas autóctones produzidas por comunidades rurais, no almejo de alcançarem reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública e, por extensão, à esfera pública política, a partir da análise e da elaboração de uma pequena cartografia das iniciativas de comunicação popular e comunitária elaboradas na região Sul da Bahia.

Meu interesse por tais modos e formas de comunicação deveu-se ao entendimento, com base nos produtos (finalizados), de que estas invertem a clássica lógica atribuída às populações periféricas e minoritárias, ao contemplarem modos de vida que não são necessariamente urbanos ou suburbanos, aos moldes das recorrentes representações em mídia que, constantemente, lhes atribuem representações baseadas em modos e estilos de vida circunscritos às periferias das grandes metrópoles brasileiras: populações de favela, de modo geral, cerceadas por toda a sorte de violência urbana. Nesse sentido, ao privilegiar periferias rurais nordestinas, me comprometi, pois, com o estudo de modos e formas de comunicação como tido e visto na “periferia da periferia”.

Interessou-me pensar com base em recortes referenciais bibliográficos, que privilegiam análises que desmantelam o clássico esquema da comunicação unilateral onipotente, tão recorrente na corrente funcionalista de estudos da comunicação, representada pelo clássico esquema “emissores dominantes versus espectadores passivos” (cf. MARTÍN-BARBERO, 2003), ao atribuírem tanto um papel de atividade como um lugar de poder ao “canônico” agente da recepção passiva, no que reconhecem a importância de produtos autóctones – tanto em termos de produção como de distribuição e recepção. É, pois, tal fato que atribuirá à comunicação autóctone as categorizações de alternativa, popular e/ou comunitária, em concordância com o que John Downing concebeu como mídias radicais alternativas (DOWNING, 2002).

Ao reconhecer a virtude da categoria “autóctone”, deixo claro que o interesse do projeto sustentou-se sobre as questões da representação; sejam estas “de fora sobre dentro para dentro”, “de fora sobre dentro para fora” e, sobretudo, “de dentro sobre dentro para dentro e fora”. O caso do Sul da Bahia encaixa-se nesta última proposta. Além de comunicação autóctone, pode mesmo ser classificada como comunicação étnica, já que integra-se ao rol de preocupações debruçadas sobre as questões da identidade (étnico-racial) frente não somente às forças homogeneizantes da comunicação hegemônica, mas, sobretudo, às forças homogeneizantes da globalização – o que proporciona importante debate sobre a comunicação como instrumento de análise das questões da identidade e da cultura no mundo globalizado. Sua importância deve-se ao fato de que o tema, além de revelar o caso da não-representação, revela, também, situações em que representações negativadas são acionadas, através de projetos, velados ou não, de [in]visibilidade (que se concretiza pela ausência) e apagamento (que se concretiza pela presença pejorativa e desqualificadora).

A periferia da periferia

A importância de se pensar o conceito de periferia da periferia deve-se ao fato de que, ao assumi-la, incorporam-se tanto as noções de pertencimento, dentro de uma perspectiva global, como as noções de pertencimento a partir de uma lógica local; tanto do Brasil em relação às grandes potências mundiais, como do Nordeste em relação ao eixo centro-sul do país. Ao reconhecer que a quase totalidade das produções sobre periferias (paisagens e cenários) e populações periféricas (panoramas e personagens) estrutura-se a partir de representações do periférico como tido e visto nos grandes centros urbanos brasileiros, opto por classificar meu campo de trabalho como uma “periferia da periferia”, considerando tanto o distanciamento desta região em relação à capital do estado e a outras metrópoles, como o fato de serem cidades com populações abaixo de 25.000 habitantes, que concentram expressivos traços de ruralidade como base das suas economias. Além disso, ao reconhecer as nações em desenvolvimento como territórios periféricos, baseado numa lógica de territorialidade global, que se debruça sobre a noção de centro versus periferia, na qual o centro refere-se aos países desenvolvidos e a periferia ao restante do mundo, e ao comparar o Nordeste rural brasileiro às metrópoles do eixo centro-sul do país, e, até mesmo, aos grandes centros urbanos nordestinos, a partir de uma lógica nacional, percebo a existência de uma meta periferia, que teima em separar o litoral do sertão, o campo da cidade, o interior da capital.

Nos termos da comunidade imaginada, pensada por Benedict Anderson (2009), ou da invenção do Nordeste, como proposta por Albuquerque (2001), não tenho como desconsiderar que tais tipos de categorizações, baseadas em termos relacionais e, com isso, excludentes, são determinadas por processos e contexto históricos que refletem as transformações “inventadas” tanto na esfera sociocultural, como política e econômica. Tais transformações constroem representações autóctones, inaugurando a aparição de termos nativos, mas também externas, que inauguram a aparição de termos no mais das vezes tomados como unívocos e canônicos sobre o Outro, transformando, como lembra Nestor Garcia Canclini (2005), maiorias demográficas em minorias culturais.

A cultura da mídia, ao passo que torna modos de vida e visões de mundo homogêneas, através de incisivas representações ideológicas aliadas aos interesses das classes dominantes, oferece os recursos para que grupos invisibilizados e populações minoritárias reelaborem seus textos a partir de leituras reconstituídas com base em experiências próprias (cf. KELLNER, 2001). É o que Jesus Martín-Barbero percebe como a importante presença dos conflitos, contradições e lutas que descaracterizam a clássica lógica atribuída ao processo comunicacional “como estruturado entre emissores-dominantes e receptores-dominados, sem o menor indício de sedução nem resistência” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 15).

Não à toa, é o paradoxo entre o local e o global que tem regido o debate em torno da comunicação comunitária e popular como comunicação alternativa à grande mídia. Para alguns autores, a mídia é alternativa ao quebrar a homogeneização centralizadora da grande mídia. O debate entre o global e o local também é importante, pelo fato de chamar a atenção para os paradoxos da globalização. Afinal, em um mundo que parecia estar às raias da singularização universal, falar em comunicação comunitária faz parecer um passo bastante retrógrado. Entretanto, tal como o mundo da cultura globalizada, eis que presenciamos a expressiva emergência do tema da comunicação de aspectos locais, popular e comunitária, no bojo da globalização de mensagens e representações em âmbito global.

Ao enfocar a esfera pública de visibilidade midiática e sua relação com o desenvolvimento da ação política por parte de grupos minoritários, baseio-me na hipótese de que tal tipo de prática coletiva contribui não apenas para deslocar lugares e vozes no espaço público, mas, também, para o surgimento de formas alternativas de visibilidade pública midiática, ao reconhecer que a construção e a consagração dessas formas de aparecimento e visibilidade (midiáticas) dependem da ação política compartilhada entre sociedade civil, movimentos sociais e setores do governo.

Por esfera pública, entendo, aqui, a dimensão na qual se constitui um processo de formação de opinião pública, através da participação de atores públicos e privados, regulamentada para o estabelecimento de leis gerais para aplicação no âmbito do privado, mas, objetivamente, relevante para o âmbito do público. Um tipo de esfera que media a relação entre público e privado, entre sociedade civil e Estado, como sugere Habermas (2003). Outra concepção nos remete à ideia de esfera pública como espaço de aparência (mesmo em contextos de aparência derivada da exposição midiática). Nesse caso, a esfera pública aparece como condição sine qua non para que o ato de aparecer no espaço público promova a condição da existência real, a objetividade de ser e estar no mundo, de se fazer ver e ouvir por todos, a concretude da cidadania através da visibilidade.

É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros (Arendt, 2000, p. 68).

Nesse sentido, tais iniciativas são importantes pelo fato de contraporem modos e formas de exclusão e de invisibilidade, que, não necessariamente, estruturam-se na ausência; mas sobremaneira, na presença negativada, que por sua vez, proporciona uma visibilidade que invisibiliza, que excluiu. Um apagamento constituído pela presença, pela presença apagada. A recorrente presença afro-descendente na produção jornalística policial encenada pelo choro e pelo sofrimento é exemplar 2. Em termos cognitivos, a presença negativada, no que é repetidamente representada, naturaliza a ideia de uma existência firmada em um sublugar, em uma subexistência.

A apropriação de meios e veículos de comunicação por grupos e comunidades subalternizadas é forte aliada da emancipação social, através da constituição de ações políticas pelos movimentos sociais, sobretudo em sociedades constituídas com base na desigualdade social – esse, o caso do Brasil. Por isso, a emergência dos movimentos sociais aliados aos recursos de comunicação e suas tecnologias, assim como às expressões em arte, contribui para o enfraquecimento de projetos (velados ou não) de dominação que se sustentam na exclusão, invisibilidade ou apagamento de determinados segmentos sociais.

Agora, nós vamos invadir a sua praia

Muitos são os autores que defendem a ideia de que, ao deixar de constituírem-se em instrumentos de mediação social para configurarem-se em instrumentos de midiatização, os meios de comunicação de massa transformaram fenômenos sociais em espetáculos. A tônica da espetacularização não proporcionou anseio por visibilidade enquanto fenômeno estético, de grandiosidade e beleza, pura e simplesmente. Espetacularização, aqui, traduz-se pela lógica do ineditismo e da representação embutida na ideia de espetáculo. Nesse sentido, grupos e comunidades, até então invisibilizadas dos projetos midiáticos, ao almejarem inclusão e reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública, que podemos mesmo traduzir como a esfera de visibilidade midiática, almejam mais que a exposição infundada de suas iniciativas. Anseiam, pois, pela aquisição de reconhecimento de seus problemas, prioridades e, sobretudo, de seus anseios, modos de vida e visões de mundo, junto às esferas de poder e aos seus pares. Por isso, as iniciativas de comunicação comunitária tentam encontrar formas de interação (de comunicar) entre comunidades – quer seja entre grupos e comunidades afins, quer seja entre grupos e comunidades desinteressadas, quer seja junto à sociedade abrangente e hegemônica. Também por isso, comunicação comunitária passa a traduzir a ideia de pertencimento de grupos e comunidades ideologicamente minoritárias junto à esfera hegemônica, relacionando, pois, comunicação comunitária, cultura de minorias, mídias alternativas, midiativismo e ações de resistência.

Jesus Martín-Barbero (2004) entende que as alternativas de comunicação popular não devem, necessariamente, ser marginais às grandes mídias. Podem mesmo apoderar-se de traços de cultura massiva. O que não é problema. Entretanto, devem atentar para o fato de que as culturas populares não são homogêneas – tal qual o discurso construído pelas grandes mídias. O problema reside no fato de que no que é produzida para massificação e controle das massas, a cultura massiva tende a negar as diferenças, fazendo com que desapareçam por assimilação e, com isso, homogeneizando-as. Considerando que mesmo o gosto popular está moldado pela cultura de massa, reconhecemos que a comunicação será alternativa ao assumir a complexidade dos processos de massificação da cultura (e formação da comunicação massiva) que são estruturados na quase negação do popular. Digo, quase, já que entendo que numa análise aguçada dos complexos processos de formação da cultura massiva, podemos perceber traços de popularidade, “de códigos e dispositivos em que se imbricam a memória popular e o imaginário das massas” (Martín-Barbero, 2004, p. 213).

Boaventura de Sousa Santos (2009) confirma a tese de que a apropriação de recursos de comunicação por comunidades desprestigiadas é importante elemento para a aquisição de autonomia e da emancipação de tais comunidades, proporcionando maior atuação e, por extensão, visibilidade junto à esfera pública política.

É evidente que essas tecnologias têm possibilitado um uso contra-hegemônico. Meu trabalho teórico é, sempre, mostrar que os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico. Nós não estamos em um mundo onde haja instrumentos hegemônicos, de um lado, e, do outro lado, instrumentos contra-hegemônicos puros. Temos que usar contra-hegemonicamente instrumentos hegemônicos – entre eles, obviamente, os meios de comunicação e a revolução da informação. (SOUSA SANTOS, 2009).

O Movimento Cultural Arte Manha é boa ilustração. Exemplo típico das articulações entre arte, comunicação e mobilização social, congrega a lógica de que expressões e manifestações em arte permitem trazer à tona problemas e prioridades que afligem, de modo específico, grupos ideologicamente minoritários e, por extensão, juridicamente vulneráveis, tornando-os visíveis para o mundo. Se, num primeiro momento, o grupo priorizava apenas a arte e suas expressões como elemento central em suas atividades, após bom tempo utilizando recursos de mídia como ferramentas para registro, divulgação e documentação (fotografia e vídeo, mais especificamente), seus componentes perceberam que produtos audiovisuais poderiam transformar-se em fortes aliados para o fortalecimento das propostas do grupo: formulação de políticas inclusivas e democratização da arte como favorecimento de ações cidadãs, de atitudes autoestimadas e reconhecimento. A expressiva produção de audiovisuais e a importância creditada a esse tipo de produção resultou na criação de um polo de produção de vídeos e de um cineclube de rua e comunitário, o Cineclube Caravelas.

A lógica do reconhecimento deu às formas de representação lugar de destaque nas produções realizadas pelo Cineclube e seu grupo de autores. Na articulação entre arte como forma de expressão e mídia como instrumento de informação, o Cineclube produziu nos últimos dois anos mais que uma dezena de filmes, com toda a sorte de recursos para produção audiovisual – de equipamentos profissionais a celulares, passando por uma ilha de edição provida de excelentes recursos – mesmo sem o apoio de uma secretaria de cultura, até então, inexistente no município.

Mostramos que existem formas de confrontarmos os grupos que estão no poder em Caravelas! São forças políticas que buscam nos esvaziar como pessoas com o abandono da cidade, do nosso patrimônio… neutralizar nossa riqueza cultural. Mostramos que é possível nos organizarmos, que a partir da própria população podemos criar, construir outras possibilidades para a cidade. Quando um filme de Caravelas ganha um prêmio na capital cultural do país chegamos para essas pessoas e perguntamos: E aí? (sic, Jaco Galdino 3).

Instâncias de intencionalidade na produção audiovisual caravelense e, por extensão, articulações e negociações entre processos de produção e recepção, representação e reconhecimento, fazem do Cineclube Caravelas uma espécie de base para um Estado ampliado, como proposto por Gramsci (2004), que elabora consensos e mediações entre a cidade, seu governo e seus moradores, além de trazer à tona toda a sorte de questões identitárias e de pertencimento (gênero, sexualidade, raça e etnia, geração, classe e regionalismos). Ou seja, a partir das suas especificidades, transformam “arte desinteressada” em “comunicação engajada”.

[…] a comunicação da cultura depende menos da quantidade de informação circulante do que da capacidade de apropriação que ela mobiliza, isto é, da ativação da competência cultural das comunidades. […] O comunicador deixa, portanto, de figurar como intermediário – aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício: uma comunicação na qual os emissores-criadores continuem sendo uma pequena elite e as minorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados – para assumir o papel de mediador: aquele que torna explícita a relação entre diferença cultural e desigualdade social, entre diferença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões ao aumentar mais o número de emissores e criadores do que o dos meros consumidores. (MARTÍN- BARBERO, 2003, p. 145).

Ao reconhecer a necessidade de se produzir vídeos que sejam representacionais e que contemplem traços de reconhecimento pelo público, Jaco (e tantos outros produtores das periferias brasileiras) faz saltar aos olhos a importância da intencionalidade e especialização tanto da produção como da recepção, revelando assim o importante papel creditado ao público e às audiências como codificadoras e decodificadoras daquilo que o produtor inseriu na mensagem. Afinal, a própria ideia de cinema comunitário indica o importante papel do público e audiência naquilo que, afinal, reconhecemos como recepção ativa. Nesse sentido, o cinema que se faz sobre Si, autóctone, quer seja exibido para o Outro ou para o Mesmo, terá o importante papel de suscitar a afirmativa, elaborada por Hall, de que a distinção entre denotação e conotação é apenas analítica – indicativa dos diferentes níveis em que as ideologias e os discursos se cruzam, e não da presença ou ausência da ideologia na mensagem. (cf. HALL, 2003).
Domínios discursivos, hierarquicamente organizados, dão sentido à vida social. A isso, Hall intitula “sentidos dominantes ou preferenciais” instalados dentro de “mapas de sentido” – lugar em que uma cultura é classificada através de uma série de significados. (HALL, 2003, p.397). Entretanto, tal crença dá margem a considerar o resultante da produção um fato e a interpretação uma instância particular e individual, aos moldes de uma “percepção seletiva”.

Mas, “a ‘percepção seletiva’ quase nunca é tão seletiva, aleatória ou privatizada quanto o conceito sugere. Os padrões exibem agrupamentos significativos ao lado das variantes individuais” (HALL, idem). Entretanto, mesmo que consideremos o lugar de destaque dado às teorias que creditam valor supremo ao sentido conotativo do signo, pelo fato de aí instalarem-se, mais eficazmente, as ideologias que transformam e alteram a significação, “isto não quer dizer que a denotação esteja fora da ideologia” (HALL, 2003. p.398). O que significa que a codificação não pode determinar ou garantir os códigos de decodificação que serão utilizados. Portanto, Hall sugere três posições hipotéticas para entendimento do modo com que a denotação de um discurso pode ser construída. Centro-me na hipótese que reconhece que o espectador pode perceber e diferenciar o sentido conotativo e denotativo embutido na mensagem-discurso. Mas, pode, também, decodificá-la de modo contrário, afinado com definições de situações e eventos que estão em dominância global, realocando-lhe dentro de algum referencial alternativo, operando, portanto, um “código de oposição”, numa leitura contestatória da posição hegemônica-dominante – momento em que se trava “a ‘política da significação’, a luta no discurso” (HALL, idem), ou, como prefiro, a aparição do lugar do produtor na figura do receptor.

Se a produção de vídeo sobre a periferia quebra a universalidade de códigos, que no caso brasileiro, parecem estar erigidos sobre uma produção que representa a periferia a partir de um modelo de caos metropolitano como tido e visto no eixo centro-sul do país, os vídeos autóctones, produzidos na, pela e para a periferia, parecem significar uma “nova estética de periferia”, que, se não fogem tão radicalmente dos moldes pré-definidos pela produção hegemônica, contribuem para a destituição da carga de dominação presente na produção hegemônica, reelaborando novas esferas de dominância e preferência. Afinal, seus produtores, até então tidos como receptores passivos, elaboram a codificação a partir de uma longa experiência com a decodificação da mensagem. Ao conotar e denotar tais mensagens, seja no processo de produção seja no processo de recepção, transformam-nas em práticas sociais, permitindo que o circuito comunicacional se complete e produza efeitos. Do contrário, como sugere Hall, “não poderíamos falar de uma efetiva troca de comunicativa”. (HALL, 2003, p. 398).

Tais trocas são importantes, pois promovem a inclusão de novos atores no cenário midiático, com a inclusão de novas mídias e produtos no cenário mundial, além de encontrarem nos recursos midiáticos importantes suportes para desenvolvimento de novas expressões e alianças político-sociais entre Estado, governo, democracia, terceiro setor, sociedade civil e grupos ideologicamente minoritários. Elaboram, assim, novos modos de representação contra-hegemônicos, acenando para a promoção de políticas públicas para inclusão social e redução da desigualdade social, através de recursos de comunicação popular. A expressividade de redes de solidariedade, organizadas entre sociedade civil e terceiro setor, faz emergir, através dos recursos de mídia, vozes subalternizadas e invisibilizadas, excluídas dos projetos de cidadanização, através de “atores coletivos cívicos – associações voluntárias, movimentos sociais, porta-vozes de causas” (MAIA, 2006), criando novas formas de produção artística e cultural como ações inclusivas e novas utilizações de tecnologias na [off] indústria cultural [periférica] – elaborando algo em torno do conceito de redenção pela arte e pela tecnologia.

Se as características no plano das produções culturais não são universais, para o caso das questões sociais acontece o mesmo. Baseadas em prioridades estritamente locais, as “causas” determinarão o ponto de distinção entre um modelo universal e uma tônica local de reivindicações e prioridades. São privilegiadas as causas sociais; entre estas, toda sorte de desigualdades e de ações discriminatórias, assim como a necessidade de inserção destes tidos como Outros no âmbito da hegemonia. O fato é que aquilo que a princípio caracterizava-se como contra-hegemônico acaba constituindo uma nova hegemonia, não outra e não menos hegemônica, formando uma espécie de mainstream do periférico e do minoritário, que faz da contra-hegemonia uma nova hegemonia. Com isso, passam a criar produtos próprios, autorais, responsabilizando-se não somente pela produção como também pela emissão e distribuição. De coadjuvantes a protagonistas, de receptores passivos a emissores ativos.

Galo cantou, eu vou mimbora

O universo de interesse do projeto versou sobre modos e formas de utilização da mídia (mais especificamente, audiovisual) e a contribuição de tais formas de utilização para a consolidação de um [novo] mercado midiático, que, a partir de uma tendência mundial, tenta referenciar identidades pessoais, locais, regionais e étnicas em oposição à premissa da singularização unificada e ímpar trazida no bojo do debate sobre globalização. Dessa forma, o presente projeto se encaixou no rol da produção preocupada com o paradoxo entre o global e o local, tradição e modernidade, que tem constituído, nos últimos tempos, as discussões nas ciências sociais e em estudos de cultura e mídia.

Como objetivos específicos, o projeto apresentou questões a fim de contribuir para as discussões em torno das políticas de identificação e cidadanização (e, por extensão, da nacionalidade) como temas emergentes dos veículos e discursos comunicativos, culturais e mediadores, a partir do debate sobre identidade e diferença que tem, tão incisivamente, tomado tônica nos últimos tempos com o advento da globalização, além de fornecer elementos para uma análise crítica da produção comunicacional brasileira, em seus aspectos comercial e social. Reconhecer a importância da comunicação popular para a construção de redes de solidariedade, acenando para a sua paradoxal configuração, que cria formas de socialização que se estabelecem no âmbito do público (as audiências de TVs e cinemas de rua estabelecem relação com o outro em espaços que são públicos, a céu aberto), na contramão da ideia onipresente de que as novas tecnologias de comunicação contribuem para consolidar a privatização das relações sociais contemporâneas ao serem acessíveis em âmbito privados, foi outro ponto importante no desenvolvimento deste projeto.

Acreditei, pois, que seria necessário tecer uma visão aguçada sobre a totalidade das estruturas de produção da informação. Para Martín-Barbero, é nos interstícios das “estruturas transnacionais da informação e estruturas nacionais do poder” que são revelados domínios ideológicos em modos de ver, que não dizem respeito apenas aos espectadores, mas também aos produtores. Estes últimos, também videntes, espectadores. Os modos de ver são produzidos socialmente, pelo imaginário coletivo. O que confirma a lógica de que a análise do produto não deve centrar-se exclusivamente no produto em si e na sua condição de reproduzir a verdade, mas nos dispositivos de enunciação-produção, de percepção e reconhecimento. Ou seja, os estudos das tecnologias ou dos meios devem ceder lugar aos estudos debruçados sobre a produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegie a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores-receptores) na esfera da cultura e sociedade contra uma ideologia tecnocrática, que permeia e esteriliza os esforços da comunicação alternativa, da informação contra-hegemônica, já que não chega a questionar verdadeiramente as estruturas ideológicas e políticas da produção de informação. (cf. Martín-Barbero, 2004).

Portanto, o reconhecimento da comunicação como fenômeno social e sistema cultural exige que sua abordagem e análise não se restrinjam às estruturas formais da comunicação, aos moldes de uma análise das técnicas, como rebatido por Geertz (2003), mas, que englobe os processos socioculturais que moldam a sua produção, isto é, seu uso e significado, aos moldes de uma análise das mediações, mais que dos meios, como proposta por Martín-Barbero (1997).

Nesse sentido, o referido projeto tentou contribuir para os estudos da comunicação que se preocupam com o papel da comunicação popular e comunitária como recurso para preservação e fomentação do panorama cultural de microrregiões e comunidades destituídas de poder, caracterizando-se não somente como importante recurso para registro e preservação da memória tradicional local, como também, possibilitando acesso a novas tecnologias e a novas formas de produção cultural e inaugurando novos modos de organização social, compromissada em divulgar novos modos de comportamento presentes em microrregiões e na realidade de microgrupos (ou em qualquer prática cotidiana sob a égide da globalização), não se restringindo, apenas, à preservação de traços tradicionais isolados, mas de traços tradicionais articulados com formas, modos e estilo-de-vida propostos pela modernidade, a partir do lugar em que a comunicação popular funciona como prática social contemporânea.

Ao avaliar a importância da comunicação popular e comunitária para a formação técnica e para o aperfeiçoamento profissional de integrantes de microrregiões nordestinas, criando novas linhas de emprego e renda e analisar os mecanismos que cooperam para o apaziguamento de ações excludentes, redução da desigualdade social e fomento da inclusão social, visando elevar os índices de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento humano junto a populações destituídas de reconhecimento, fomentando a participação inclusiva e cidadã (inserção junto à esfera pública política e à esfera de visibilidade pública) através de recursos de mídia, o projeto revelou, pois, a participação de grupos e comunidades minoritárias para a elaboração de uma contra informação que reelabora o que é produzido sobre si.

A utilização de recursos de comunicação por sociedades tradicionais acena para a configuração de novos panoramas, que promovem a descontextualização das funções canônicas dos veículos de comunicação e, por extensão, a sua refuncionalização e a sua ressignificação, contribuindo objetivamente para mudanças no consumo e uso dos veículos e produtos comunicacionais, a partir de uma estratégia de desconstrução, cumprida, no mais das vezes, pela cultura hegemônica diante das culturas subalternas. (cf. CANCLINI, 2005). A apropriação de recursos de mídia por sociedades tradicionais é prova de que recursos tecnológicos, e, por isso, modernos, podem servir como importantes aliados de projetos voltados para a preservação do patrimônio memorialístico e tradicional, mesmo quando tal uso resulta em formas de hibridação cultural, de sincretizações, negociações e articulações, contrárias à ideia de uma essência de pureza em termos identitários. Desse modo, a importância da apropriação da mídia por comunidades tradicionais é que estas descontextualizam não somente a função dos objetos e os recursos das tecnologias criadas a serviço das sociedades industriais e urbanas; mas, sobretudo, recontextualizam a relação de subordinação das culturas subalternas frente à cultura hegemônica.

Concluo que, mesmo quando classificadas como produções artísticas, o teor discursivo das produções sobre minoritário e periférico, no que contempla certa lógica de visibilidade, faz com que tais produções configurem-se como um circuito comunicacional.

Ressalvo, ainda, que o recorte sobre os produtos analisados levou em consideração a variedade de gêneros e formatos e, paradoxalmente, a homogeneidade de repertórios entre tais produtos, com base nas questões da cidadania e da inclusão social; a fim de avaliar a importância da produção de comunicação autóctone para a construção de um modelo de identidade, num primeiro momento, segmentada, depois, regional e, por fim, nacional, atentando para a importância de tais produtos para a elaboração de modelos identificatórios entre grupos minoritários no Brasil e para o debate sobre cidadanização, que extrapola, pois, a esfera da teoria da comunicação e engrossa os estudos sobre sociedade e cultura.

Interessei-me em tecer um estudo não das tecnologias ou dos meios, mas da produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegiasse a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores/receptores) na esfera da cultura e sociedade. Essa a ideia de mídia-ação, mediação, que considera a mídia como prática social. Além de considerar a contribuição que tais produtos e suas representações deram para o desmonoramento de práticas excludentes (xenófobas, discriminatórias, racistas etc.) e para a idealização de práticas inclusivas.

 

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TAVARES, Julio C. de S. “Paisagem midiática, etnicidade e pedagogia cívica”.In.: FREITAS, Ricardo Oliveira de (org.). Mídia alter{n}ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica. Ilhéus: EDITUS/FAPESB, 2009.

 

 

*Ricardo Oliveira de Freitas realizou o Pós-Doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, do Fórum de Ciência e Cultura – FCC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É Docente e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Midiativismo e Mídias Alternativas – GUPEMA, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, na Bahia. Foi bolsista CNPq e FAPESB. Autor da coletânea de artigos Comunicação Alter[n]ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica, publicado pela FAPESB/EDITUS, 2009.

 

1 O presente texto é parte resultante do Estágio de Pós-Doutoramento por mim realizado no Programa Avançado em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ, sob a supervisão da Profª Drª Heloísa Buarque de Hollanda, entre maio de 2009 e abril de 2010. Não teria sido possível sem o apoio da minha instituição de origem, UESC; do CNPq, que me concedeu uma bolsa PDS; e da FAPESB, através da bolsa de Apoio à Pesquisa. Devido ao espaço determinado pelas normas da Revista, privilegiei o desenvolvimento teórico em detrimento da etnografia e da análise de dados obtidos durante a pesquisa de campo. Para dados e etnografia, ver FREITAS, 2009.

2 Sobre a ideia de “visibilidade sofrida”, ver SILVA, 2009.

3 Jaco Galdino é integrante do Grupo Arte Manha, em Caravelas, e idealizador do Cineclube Caravelas. É o diretor/videomaker que mais vídeos produziu no Cineclube. Entrevista publicada no jornal comunitário O Timoneiro, edição n. 4, jun./jul. 2007 (este, outro projeto do Grupo).

 

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O Natal da transformação | de Mana Bernardes


 

 

 

 

 

 

 

* Mana Bernardes é uma jovem designer de jóias, poetisa e artista plástica. Tão múltipla que consegue circular entre o Chelsea Art Museum em Nova York e as ruas populares do Rio de Janeiro. Seus colares estão à venda em conceituadas lojas de design – como a Colette, em Paris e a Zona D em São Paulo. Já sua invenção o Magnomento, um fecho magnético de imã que não pesa, é comercializado em larga escala para os fabricantes de bijuteria do Saara, no Rio. Com o irmão Pedro Bernardes, escreve um livro de poemas musicados. Ela ainda viaja pelo Brasil multiplicando em oficinas o seu trabalho.

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O museu em três dimensões | de Viktor Chagas

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é ir além do aprisionamento formal dos meios impressos, digitais e de radiodifusão. E, nesse sentido, ir além do aprisionamento formal do museu como ambiente físico predial, sujeito a limitações de espaço e dinâmicas. O museu é um instrumento de comunicação por excelência, capaz de integrar a comunidade em torno de si e dar vazão a um processo de participação cidadã , através de sua reconstrução engajada do passado .

Dessa forma, tanto quanto com a televisão e o cinema, inserir o museu em uma categoria que permita a sua identificação como meio de comunicação, é trabalhá-lo nos moldes de uma orientação multimídia, dada a intensidade de representações sinestésicas memoriais. No espaço museal, a experiência sensorial de vivenciação e “decodificação” – uma evidente aproximação no sentido de que se opera um deslocamento no tempo e no espaço (meios também de transporte, portanto) – se fundamentam no contato entre o visitante e o acervo. Critério evidente para a construção da associação do museu como ferramenta de comunicação, a proximidade entre a conceituação de tecnologias da informação e da comunicação – trabalhadas especialmente pela chamada Escola de Toronto em meados do século passado – e a de tecnologias da memória – cuja maior inspiração, poderia-se dizer, está alicerçada na sólida Escola dos Anais – permite que compreendamos o museu como híbrido de ambas as categorias.

Myrian Sepúlveda dos Santos, em tese fundamental para os estudos contemporâneos acerca da museologia , descreve dois gêneros de museus, o museu-objeto e o museu-texto, demonstrando especialmente a complexidade deste último no cumprimento da transmissão de uma narrativa museal. O museu-texto, ela indica, conta uma história (jamais uma História). Esta passagem se coaduna com o raciocínio de Richard Wurman, arquiteto da informação americano, que define em belas palavras o processo comunicacional. Para Wurman, “comunicar é lembrar como era quando não se sabia” .

Num museu, durante o percurso da exposição, o visitante é não “instruído”, mas “informado”. Como no rádio – pela condição privilegiada de caráter popular e abrangente –, sua reação imediata é buscar pelo seu lugar na representação do teatro da memória. Assim, seja pelo caráter cívico ou pelo seu foco nos aspectos comunitários, o laço que o museu, sobretudo o museu histórico – que discute ao extremo a patrimonialização do objeto e do discurso museal –, estabelece é o mesmo vínculo através de valores comuns que inspiram os meios de comunicação. Tal vínculo, de acordo com a conhecida descrição de Benedict Anderson , é sem dúvida capaz de conformar uma “comunidade imaginada”, claramente afeita ao trabalho de memória executado pelos técnicos museais.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é, para além de imaginá-lo como mídia tradicional, aliar sua dinâmica à discussão recente que se tem travado no âmbito estrito do jornalismo, no que tange ao debate político em torno da imagem conceitual do jornalismo público . O museu, assim, coloca a comunidade – seja em que sentido for que estivermos tratando de uma comunidade – no centro do movimento de construção do conhecimento, numa perspectiva que desmitifica seu papel como “lugar de guardar coisas velhas” ao mesmo tempo em que o deselitiza. O museu é feito pela própria comunidade e para a própria comunidade. Não à toa, a experiência emblemática de museus comunitários – a saber, o Museu da Maré –, numa favela que congrega dezesseis localidades do Rio de Janeiro, possui um índice espantoso de público se comparado com o de outros museus de grande porte. Capitaneado por uma organização não-governamental formada por moradores e ex-moradores da favela, o Museu da Maré recebe anualmente uma média de 10 mil visitantes, dos quais mais de 60% se descrevem como moradores da área. Levando-se em conta os visitantes de outras favelas e regiões vizinhas, e o importante fato de que o preconceito e a autocensura, muitas vezes, leva o visitante a se declarar como procedente de outro bairro, são aproximadamente 65% a 70% os visitantes que mantém alguma relação direta com a região . Diferentemente de outros gêneros de museu, portanto, o museu comunitário não é um mero atrativo turístico, capaz apenas de potencializar as atividades do setor de serviços. A frequência e o interesse que desperta na própria comunidade em que se instala sugerem que, em muitos casos, o museu é capaz de dinamizar a cultura local, favorecendo a afirmação de práticas e saberes antes marginalizados pelos meios de comunicação de espectro menos intimista.

O museólogo, nesta concepção, é o agente responsável pela expertise local. Ele atua no espaço da intermediação, isto é, é ele próprio o mediador, capaz de formular com precisão a mensagem a ser transmitida. Para isso, precisa estar próximo à comunidade, de alguma maneira pertencer a ela, equivalendo-se, por assim dizer, ao editor do noticiário.

No modelo clássico do processo comunicativo tradicional, concebido em forma de circuito (emissor—mensagem—receptor), e que muito tem sido criticado por diversos autores , pela sua linearidade e a ênfase no nível da troca de mensagens, o visitante do museu seria mero destinatário da mensagem, e a ele caberia processar a concepção museográfica como discurso . Só isto já seria o suficiente para o argumento que tenta trazer o museu para a categoria de ferramenta de comunicação. No entanto, nos parece que o visitante ele próprio negocia a realidade, tornando-se sujeito histórico, a partir da busca e realização de seu papel no cenário político e cultural que o contexto do museu lhe oferece. Sem muita surpresa, nesse sentido, na mesma pesquisa acerca dos livros de visitas e de depoimentos do Museu da Maré , são algo comoventes as manifestações de moradores que reconhecem seus parentes nas fotos ou que reivindicam a doação de um objeto particular à coleção do museu. Experiências deste gênero permitem compreender o objetivo do espaço museal não apenas como de um estático lugar de memória, mas como de uma ferramenta dinâmica de apropriação cultural e ressignificação de valores. O museu comunica, porque inscreve, escreve e transmite uma mensagem, que é lida, reescrita e reinterpretada. Mutatis mutandis. Sua apresentação não é jamais meramente pedagógica, no sentido de uma instrução verticalizada sobre um determinado tema, mas trabalhada colaborativamente, segundo um esquema de participação cidadã, que envolve mobilização em três etapas distintas no âmbito da comunidade, isto é, produção, planejamento e gestão do conhecimento. Por constituir-se como vetor de memória, o museu é e deve seguir sendo território de negociações, conversações e debate nas esferas política, social e cultural.

Ao trabalhar em conjunto com outros meios de comunicação, como jornaizinhos de bairro, rádios comunitárias, blogs, o museu incorpora a linguagem comunicativa tradicionalmente legada a estas ferramentas e amplia seu alcance. Sobre esse aspecto, é exemplar citarmos mais uma vez o caso do Museu da Maré pelo que ele nos concebe de paradigmático. Em seu bom trânsito com outros projetos paralelos e na constituição particular da ação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (o Ceasm), valorizando as tecnologias da informação, o Museu da Maré ocupa ainda uma das páginas mais lidas do principal jornal local, talvez o exemplo mais bem sucedido de comunicação comunitária do país, com mais de dez anos de existência ininterrupta, o jornal O Cidadão. A coluna produzida e editada pela Rede Memória, a mesma que coordena as atividades do museu, e que é, em si, um dos braços de atuação do Ceasm, traz a cada edição um texto que valoriza a cultura e a memória da região, desnaturalizando o museu e traduzindo-o como “obra aberta”. A mesma obra aberta que permite que crianças levem e tragam objetos da exposição: são carrinhos que somem e reaparecem nas maquetes, são utensílios de cozinha que ocupam e desocupam o cenário estilizado de uma palafita no centro do galpão em que se localiza o museu. O objeto museal, por este ponto de vista, não é sacralizado, senão fetichizado, transformado autenticamente em suvenir. Da mesma forma que os moradores trazem, eles levam, completando um ciclo que, de certo modo, está representado na própria expografia.

Mas é preciso esclarecer que, ao me referir ao museu, em nada tenho solidificada a imagem do edifício-museu. Em princípio, é importante trabalharmos com a ideia de uma instituição museal, que, portanto, extrapola o sentido de um prédio. Basta lembrar que a noção de “comunidade” evoca ainda, no imaginário contemporâneo, os agrupamentos sociais nos diversos ambientes da chamada web 2.0 e suas redes colaborativas.

Não de outra maneira, tenho recebido com entusiasmo as experimentações de natureza cibernética no campo dos assim chamados webmuseus. Sem maiores resistências, a instituição museal é plenamente apta a oferecer dinâmicas de interação e participação online aos mais diferentes grupos. O contato com o objeto patrimonial virtualizado, a visita emulada em ambiente tridimensional, a visita guiada por aplicações de mensagens de texto através de celular, a rede social que congrega personagens históricos e os coloca em contato direto com o avatar do visitante; todas estas são extensões possíveis sobre as quais se pode intervir. Todas estas são extensões da instituição museu, ou, se preferirem, extensões de nós mesmos, a partir da consagrada ótica mcluhaniana.

Parece-me que o museu é capaz de cumprir ao menos duas funções sociais: a primeira, internamente, num esforço por convergir, ou seja, tornar-se uma instância de identificação da comunidade, através das lembranças e relembranças de um passado comum; e a segunda, exercida externamente, como um bem-entendido divergir polemizador, em que o questionamento e a polêmica gerados em torno de si – como é o caso, por exemplo, da experiência do Museu da Maré como “primeiro museu em favela” – repercutem nos meios de comunicação tradicionais e se aliam à proposta natural de um trabalho de memória na compreensão ressignificada do lugar que ocupa a comunidade no imaginário noticioso da mídia impressa, digital e radiodifundida. O museu, portanto, ainda que feito por e para a comunidade, extravasa as suas fronteiras geográficas e se constitui como referência local para a cultura da região. Se hoje há placas que indicam o caminho para o Museu da Maré a partir da Linha Vermelha, uma das vias mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, é sinal de que o museu informa e referencia, inclusive geograficamente, a favela. É sinal de que ele comunica e aponta caminhos. E, sobretudo, é uma indicação clara de que o museu adiciona nuances e valores à realidade combalida das comunidades.

Com estes pressupostos em mente, quero crer que há outras hipóteses a considerar no panorama estratégico da contemporaneidade. Hipóteses que atribuem um sentido lato à ideia de comunicação, mas que perpassam os meios tradicionais, ampliando seu alcance e otimizando a comunicação em esfera hiperlocal, justamente aquela que não é contemplada pelas complexas estruturas midiáticas de cobertura globalizada e globalizante.

De alguma maneira, o museu é capaz de penetrar na comunidade – seja a comunidade uma representação da “favela” ou de “nichos de consumidores eletrônicos” –, atravessando a barreira dos estereótipos e atingindo sobremaneira o cotidiano íntimo daqueles que se constituirão em seus visitantes. Mas é preciso ter consciência de que o museu é visitado, mas é também revisitado. Ele não exerce sobre os visitantes a mesma influência dita avassaladora pelos clássicos frankfurtianos, senão oferece novos horizontes a serem descortinados. Está longe, portanto, de ser mídia de massa e, justamente por isso, meu apelo para a categoria social dos museus comunitários e experiências hiperlocais de comunicação.

Olhar para o passado através de um museu não é o mesmo que olhar um museu como lugar de velharias e cacarecos. Os estudiosos do campo da Comunicação – mas não apenas eles, também, eu poderia dizer, os estudiosos do campo da Memória – têm trabalhado pouco as interfaces de contato entre seus objetos e tecnologias sacralizados. A introdução de um universo novo e vasto como o das novas TICs termina por ofuscar o potencial de mudança social de outras tecnologias muito mais presentes e afirmadas em nosso cotidiano. É um erro correspondente ao etnocentrismo para o etnógrafo ou ao anacronismo para o historiador a circunscrição dos objetos da Comunicação àqueles que se relacionam apenas com a imprensa. Da mesma maneira, é infantilizada e infantilizadora a tentativa de traduzir, por exemplo, um webmuseu em um espaço tridimensionalizado, disposto em galerias e objetos vetorializados e virtualizados. Nesse sentido, ainda que belíssima, a experiência do Museo Virtual de Artes do Uruguai <http://muva.elpais.com.uy/> é, sem dúvida, conservadora. Por outro lado, ainda que careça de um aprofundamento conceitual mais denso em sua estrutura de navegação, o Museu da Pessoa <http://www.museudapessoa.net/> segue pelo extremo oposto, caracterizando-se por uma iniciativa digna de análise cuidadosa. O museu não é prédio, o museu é texto. Esta compreensão pode ser inovadora, se proporciona o desapego de categorias tradicionais de nosso pensamento.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação é lembrar da escrita como primeira revolução tecnológica da memória , revolução, em todas as medidas, engendrada por uma tecnologia da comunicação. Desde Michael Pollak , não há dúvida de que a memória, mesmo silenciada, comunica. A provocação que lanço aqui, contudo, quer ultrapassar a inércia do silêncio, e transformar um ambiente propício para a contemplação do discurso histórico em espaço de deliberação e debate sobre as práticas culturais locais. Sobre a revolução das mídias digitais, esta que é uma das mais antigas formas de comunicação – o museu – talvez seja a grande novidade.

*Viktor Chagas é escritor, jornalista, e professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. Mestre e doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc/FGV, desde 2006 integra a equipe de moderação do projeto Overmundo <http://www.overmundo.com.br>, ocupando atualmente a Coordenação Editorial e de Projetos de Comunicação do Instituto Overmundo.

 

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O Texto fora do Papel – A Literatura na Mostra SESC de Artes 08 | de Antonio C. Martinelli Jr.


18h30: Instalação do escritor Samir Mesquita na unidade SESC Ipiranga

“Escritas presentes em toda parte, pintadas, gravadas, incisas (…)
ora publicitárias, ora políticas, ora funerárias, ora comemorativas,
ora públicas, ora mais que privadas, de anotações
ou de insultos ou de jocosa lembrança. (…)
Por alguns lugares específicos, praças, foros, edifícios públicos, (…)
num pedaço de parede livre, a altura do homem”
(Armando Petrucci)

O que norteia a produção literária contemporânea? Ainda é interessante preservarmos a literatura ao confinamento de uma única linguagem artística? Quando os gêneros artísticos se tornam híbridos? O objeto livro está ameaçado? O que podemos chamar por literatura contemporânea brasileira hoje? Como se comporta essa literatura? De que forma essa produção toma partido de outras mídias, suportes e tecnologias para se concretizar ao leitor?
Em seu mais recente livro Contemporâneos: Expressões da Literatura no Século XXI, a crítica literária Beatriz Resende aponta que uma das características mais observadas atualmente no fazer literário é a de que este tem se dado “fora do papel”. Para além do modelo clássico livro, os textos ficcionais se apóiam cada vez mais na virtualidade poética, em folhetins eletrônicos (blogs, sites, redes sociais), em intervenções visuais nos espaços públicos, por meio de instalações, cartazes, entre outros.

Segundo Resende:
Dentre as peculiaridades da literatura contemporânea brasileira, venho apontando o fenômeno que podemos chamar, partindo de outras percepções estéticas e produções artísticas, de ruptura com o suporte. Nas artes plásticas, a ruptura já se deu há muito com o suporte tela, papel e outros materiais, para dar lugar as experiências que lidam com o efêmero. Nas artes cênicas também não é novidade, primeiro a ruptura com o palco, em seguida com o próprio edifício teatro, depois com a noção de texto dramatúrgico e, finalmente, com a idéia fundamental de conflito como base da ação. Na literatura, a ruptura teria que ser com aquele que parecia ser sua condição de existir, de tomar forma: o suporte papel”.

Entre 8 e 19 de outubro de 2008, o SESC São Paulo realizou a Mostra SESC de Artes 08, que contemplou todas as linguagens artísticas, entre elas, a literatura. Com uma programação voltada tanto à prosa quanto à poesia (13 projetos ao todo) -, a curadoria da programação literária se lançou a ações que pretendiam atingir diretamente o público em locais e situações não usuais e “assaltar” o cotidiano das pessoas com textos inéditos de importantes escritores e poetas brasileiros. Dessa maneira, a pesquisa da literatura baseou-se no abandono do suporte convencional livro e investiu na busca de outros meios de comunicação que gerassem essas outras formas de leitura (breves ou não).

Foram 80 os convidados à produção de um breve conto, poesia, bilhete, texto curto, mensagem, ou qualquer outra forma literária que tomasse lugar fora do suporte livro, ocupando lugares e meios não usuais, como elevadores, escadas de prédios, celulares, guardanapos, chão, táxi, parede, concreto.

Tudo começa com um torpedo

“ Palavra ou mágica?
Só uma opção. Escolheu. Errado: não era “palavra”.
Mas escritor sempre opta pela palavra”.
(Moacyr Scliar,
SMS enviado dia 15/10, às 20h30)

SESC Pompeia, 8 de outubro – vários celulares apitam nos bolsos e nas bolsas do público convidado e participante da programação da noite de abertura da Mostra SESC de Artes 08. Era o primeiro dos SMS, enviado às 20h30, para os celulares cadastrados das pessoas que ali estavam. A mensagem – um texto duro, grotesco e truncado – do escritor e dramaturgo Alberto Guzik, com título o “Torpor” dava início a um dos projetos literários do evento: o Literatura Celular.

Nos dez dias seguintes, dois mil celulares tocaram em três diferentes horários – 11h30, 16h e 20h30 – com trinta diferentes microcontos de Alessandro Buzo, Ana Rüsche, André de Leones, Evandro Affonso Ferreira, Fernanda Siqueira, Ferréz, Flávio Viegas Amoreira, Ivana Arruda Leite, João Silvério Trevisan, Lirinha, Luciana Penna, Livia Garcia-Roza, Lourenço Mutarelli, Marcelo Ariel, Marcelo Rubens Paiva, Maria José Silveira, Mário Bortolotto, Maurício de Almeida, Menalton Braff, Moacyr Scliar, Modesto Carone, Paulo Lins, Pedro Biondi, Raimundo Carrero, Reinaldo Martins, Ronaldo Cagiano, Sacolinha, Sérgio Roveri e Verônica Stigger.

Idealizado pela equipe da Mostra, e com curadoria de Marcelino Freire -, os torpedos tinham apenas 120 caracteres: um desafio para os autores. O cadastramento dos celulares foi realizado no site do evento, limitado a dois mil números inscritos e válidos apenas a uma determinada operadora no Estado de São Paulo. Porém essa ação programática, como previsto, tornou-se viral, uma vez que os participantes, muitas vezes, repassaram as mensagens para outros amigos ou conhecidos, e esses para outros e outros.

Hoje já difundida e praticada no Brasil, essa forma de escrita teve início em 2000, em Tóquio, Japão 1 , e foi realizada pela primeira vez no país nesta programação do SESC São Paulo. Ela sintetiza muito do norte curatorial da Mostra, uma vez que esta pretendia fazer um mapeamento da produção literária hoje, fosse por meio de ações e práticas já adotadas pelos escritores contemporâneos, fosse pela proposta e convite para que outros viessem experimentar novas formas e suportes para seus textos.

(Logotipo da Literatura Celular, criado para a Mostra SESC de Artes 08, primeira ação programática dessa natureza no Brasil)

Qu’est-ce que c’est?

“Escrever sobre o escrever
é o futuro do escrever”
(Haroldo de Campos, in Galáxias)

Ao escolher apresentar a literatura no meio virtual, com o uso de aparelhos de comunicação de ponta, a Mostra SESC de Artes 08 preocupou-se em abordar a já clássica e polêmica especulação que alguns teóricos da cultura fizeram, ou fazem, sobre o fim do livro. É evidente que, ao criar uma programação que foge, escapa, liberta a literatura da estante, da biblioteca, da poeira e das traças, essa polêmica sobre o fim do livro reacende.

Em sua obra A questão dos livros – Passado, presente e futuro, o historiador norte-americano e criador do projeto Gutenberg-e Robert Darnton, relembra que“o futuro de Marshall McLuhan não aconteceu. A web, sim; a imersão global na televisão, certamente; mídias e mensagens onipresentes, sem dúvida. Mas a era eletrônica não levou à extinção da palavra escrita, como foi profetizado por McLuhan em 1962”.

Recentemente, os críticos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière deixaram por encerrada essa tolice na definitiva obra Não Contem com o Fim do Livro 2 . Tivemos e temos o partido de que, o meio virtual, as novas tecnologias e a utilização de diferentes suportes não vieram, ou virão, condenar ou deixar obsoleta a era gutenbergiana. Porém, essa questão nunca foi pauta para essa curadoria.

Ao selecionar ações que expunham o texto literário para fora do objeto cânone da arte literária expunha-se o questionamento recorrente: – Isso é Literatura, com L maiúsculo? Porém, essa Mostra também não preocupou-se em saber se esses fenômenos literários podem ou não ser classificados como Literatura. Assim, escolhemos nomeá-las de “Práticas Narrativas”, valendo-se desse termo sugerido e empregado pela crítica Heloísa Buarque de Hollanda.

Se por um lado os conservadores criticam a literatura de celular e questionam a qualidade das obras, de outro, o escritor e agitador cultural Marcelino Freire rebate, sem hesitar: “Eu sempre falo que um idiota será sempre um idiota na frente do computador ou não. E é a mesma coisa com a literatura. Eu não vou ser da geração naftalina de jeito nenhum! Todo mundo está usando a internet, o celular e, como um profissional da palavra, por que não devo ficar curioso com essas novas mídias?”. É desse lado que estávamos!

Literatura ao alcance de todos


“São Paulo ocupada. São Paulo dominada.
Por um tempo, a cidade viu-se centro de articulações radicais entre
a experiência da palavra, a vida cotidiana e
a densidade da textura urbana contemporânea.
Arte, cidade e vida. Arte ao alcance da mão, da paixão de ler.
O ofício do escritor afinal apostando no que provavelmente
será a maior conquista deste século:
o acesso ao livro, à cultura e à criação compartilhada”.
(Heloísa Buarque de Hollanda. In: Cidade é Texto.
Catálogo da Mostra SESC de Artes 2008 )

De um lado, o desejo do escritor em praticar novos formatos para seu texto, novos suportes para a palavra, novos lugares para outras sentenças; do outro, nossa aposta de que a literatura (as práticas literárias) deve e necessita se reafirmar, se mostrar, se evidenciar. Partindo de constatações e de problemáticas (algumas já “lugares comuns”) do comportamento dessa arte e de seu público, a Mostra SESC de Artes 08 buscou se apoderar dos espaços e aproximar-se mais da vida cotidiana das pessoas. Assim como Marcelino Freire, o criador da Balada Literária, acreditamos que “a literatura é a prima pobre das artes, tão pouco divulgada. Então, quanto mais estiver espalhada no juízo e na memória das pessoas, melhor. Melhor para ela, para os leitores e para os autores”.

As questões que realmente nos tomaram foram essas: Que sutilezas podemos criar para que as palavras possam efetivamente tocar as pessoas de diferentes maneiras? Como pensar essa literatura (essas práticas literárias) em outros meios que não o livro? Qual é a natureza da escrita em nosso tempo? Como pode a literatura desafiar o leitor? Encontrar poesia e prosa em lugares inusitados talvez faça com que prováveis leitores se surpreendam? A palavra ainda causa emoção?

Acreditamos no fato de que apresentando a literatura para diferentes lugares, promovendo encontros, o público/leitor seria convidado a refletir, dialogar e ter momentos de pausas literalmente poéticas no seu dia-a-dia. Acreditamos que essa programação se propunha a criar um fato para o ato da leitura. E essa aposta deu certo, pois perturbamos as categorias mais ordinárias e obsoletas da arte narrativa e poética e proporcionamos o deslocamento e a transfiguração do texto. Isso causou estranhamento e/ou identificação; isso fez com que o texto se mostrasse próximo, presente, vivo.
Não se trata de novidade, e sim de mapeamento

“Apreender e entender o tempo presente são aspirações máximas partilhadas pela literatura séria, entre outras artes, e pelo leitor crítico”.
(Ana Paula Pacheco, in Grafias Urbanas)

Alguém de vocês já pegou uma nota R$ 50, R$ 20, R$ 10, R$ 5, ou R$ 2, com o seguinte poema carimbado: “agora que esta nota contém/ uma poesia,/ fica valendo dois terços/ do que valiam ontem”. Alguém de vocês, ao cruzar o semáforo, foi surpreendido com uma etiqueta colada no poste: “Olhe/ para os dois lados/ antes de atravessar/ um diálogo”. Alguém de vocês, provavelmente, já esbarrou com poemas e aforismos de Rix Silveira, espalhados e fixados em lixeiras, ônibus. Alguém de vocês já foi surpreendido por um livrinho em formato de caixinha de fósforo, plagiando o rótulo de uma marca conhecida, intitulado Dois Palitos, com micro textos do jovem prosador Samir Mesquita 3 . Algum de vocês já participou, ou ouviu falar, de uma balada literária, organizada pelo poeta marginal Chacal, no Rio de Janeiro, e conhecida por CEP 20.000. Algum de vocês possivelmente já esteve em um dos eventos performáticos do escritor Paulo Scott. Algum de vocês talvez tenha recebido um poema gif por e-mail, possivelmente assinado por Marcelo Shae 4 . Essas são práticas literárias recorrentes no cenário nacional.

O poema clip, a performatividade da leitura de um conto, de um sarau, o poema holográfico, a vídeo-poesia tridimensional, o conto curto animado e jogado na rede, nada disso é novo, sabemos disso. Mas, mesmo não sendo novo, ainda é uma prática literária inventiva, diferente da literatura residente nos livros.

Sabemos que uma das características da literatura contemporânea é a de se experimentar em diferentes possibilidades combinatórias com outras linguagens. Escrita e som. Escrita e performance. Escrita e imagem. Escrita e movimento. Escrita e arquitetura. Em Esses poetas, Heloísa ressalta que “a poesia articula-se, em várias realizações e performances, com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho corporal”.

Por meio de seus 13 projetos, a Literatura na Mostra SESC de Artes lançou-se na investigação estética sobre a diluição das linguagens artísticas. O limiar entre palavra e imagem, entre o texto e a plástica, entre literatura e artes visuais pautou os seguintes projetos da Mostra: Poesia Visual, uma individual de Marcelo Sahea, e Poesia Concreto, com poemas de Arnaldo Antunes, Antonio Cícero, entre outros. Ainda dialogando com elementos visuais, foram apresentadas as inéditas instalações 18h30, de Samir Mesquita e a Poça de Poemas, com haikais de Alice Ruiz. No que concerne às ações mais performáticas, projetos como o Literatura em Trânsito (Ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush) e Concerto Literário para Voz e Base Eletrônica foram exemplos de ações em que a frágil linha entre o que é literatura, o que é cênico ou musical caem por terra.

Comece pelo primeiro degrau…

Os projetos Histórias de Elevador e Prosa na Escada convidaram diversos escritores para um site specific literário, uma vez que convidava escritores e ilustradores para a criação de textos e imagens que figurassem nas paredes dos elevadores de algumas unidades do SESC SP. Breves contos de Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Chico Mattoso, Cíntia Moscovich, Clara Averbuck, Índigo, João Paulo Cuenca, Michel Laub, Santiago Nazarian dialogaram em uma dobradinha com as imagens criadas pelos ilustradores André Neves, Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Laura Teixeira, Milena Galli, Sylvia Jorge e Alexandre Matos. O escritor Bernardo Carvalho apresentou sua criativa e contundente narrativa “Leia de baixo para cima”, num movimento solo, abrindo mão de um ilustrador. Enquanto o escritor e desenhista Lourenço Mutarelli assumiu a mão dupla, do texto e das ilustrações que compuseram o seu elevador infernal.

Com tema livre, essas diferentes intervenções/ocupações provocaram uma experiência diferente ao público visitante ou habitué do SESC SP. Ao subir de um andar para o outro, de escada ou elevador, os frequentadores e passantes se depararam com textos que despertaram curiosidade, espanto ou surpresa. Se mudassem de elevador, eles seriam novamente surpreendidos por outras prosas. Se optassem pela escada, seriam ainda convidados a participarem de narrativas com estrutura labiríntica e circular, assinadas pelos escritores Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian, com arte de Valéria Marchezoni e Andres Sandoval.

Trecho da narrativa de Joca Reiners Terron, criado para o projeto Prosa de Escada. Arte: Valéria Marchesoni

Poesia ao alcance das mãos
“(…) Guarda na poesia mora na filosofia, por que rimar futuro e muro
e, isso é duro, por cortesia – falar, só de boca vazia”.
(Poema de Paula Glenadel, para o projeto Boca Suja)

 

 

Os projetos Boca Suja e Poema para Viagem nasceram do desejo de desmistificar a palavra, provocando o público a refletir sobre a potência de um texto mesmo que num pequeno pedaço de papel. No primeiro, um simples guardanapo proporcionava uma série de oito breves poemas inéditos, delicadamente escritos à mão e impressos em diferentes cores. De forma direta, um pedacinho da nossa poesia contemporânea foi apresentada ao público de restaurantes, lanchonetes e comedorias do SESC São Paulo. Na série, poemas do “marginal” Chacal, dos gaúchos Fabrício Carpinejar, Angélica Freitas e Verônica Stigger, além dos jovens poetas Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Paula Glenadel e Tarso de Melo. Durante a Mostra, virou mania colecioná-los!

Já em Poema para viagem, o poeta e artista plástico Ricardo Silveira reeditou seu projeto homônimo. Trata-se de uma referência direta aos cartazes de divulgação usualmente fixados em painéis de avisos nos campi universitários, nas ruas, nos postes, e que divulgam, por exemplo, anúncios de compra e venda, de prestação de serviços – o famoso “Aluga-se”- e que o passante destaca um pedacinho com o contato e leva-o para casa.

Nesse caso, as folhas de sulfite A3 traziam, no maior campo da folha, o seguinte poema/ anúncio (de autoria do próprio Rix): “Poemas destacáveis. Poemas de gente nova e muito talentosa. Um tipo de antologia das ruas, feita arbitrariamente, sem o consentimento dos autores. Poemas de Ademir Assunção, Alice Sant´Anna, Ana Guadalupe, Carlito Azevedo, Fabrício Corsaletti e Ricardo Silveira. E o maior (em dimensão, óbvio), meu”.

Outros projetos evidenciaram a produção da poesia contemporânea, como foi o caso do Poça de Poemas, uma instalação de arte-eletrônica, que apresentava haikais de Alice Ruiz numa falsa poça d’ água que, ao ser pisada ou tocada pelo público, mudava, apresentando um novo texto poético. Com o Poema Passageiro, a Mostra SESC de Artes 08 apresentou uma programação de poemas em vídeo, exibidos nas TVs dos ônibus da cidade de São Paulo 5.

Pessoas que circularam pela cidade no período da Mostra, em especial no itinerário que passava pelas conhecidas Rua Augusta e Avenida Europa, puderam contemplar e ler poemas de Chacal, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Domeneck, Marcelo Montenegro, Ricardo Silveira, Angelica Freitas, Bruna Beber, Marcelo Sahea, Ana Rusche e Leo Gonçalvez.

Detalhe de um dos guardanapos da Mostra, assinado pelo poeta carioca Chacal, no projeto Boca Suja

Outras Histórias para Ouvir ou Ler na Hora do Rush

Um táxi estacionado e seu motorista convida os passageiros para uma corrida literária. Só podem entrar quatro pessoas por vez. Dispostos – um na frente, três passageiros no banco de trás – todos estiveram a bordo de uma leitura dramática de textos da literatura nacional a preço de Bandeira 0 (Zero!). De tanto a tanto, quem foi ao SESC Consolação enfrentou fila para ver o projeto Literatura em Trânsito (ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush).

Na primeira noite, 14 de Outubro, o ator Eric Nowinski fez a performance/leitura de trechos do livro Eles Eram Muitos Cavalos, de 2001, do escritor e jornalista Luiz Ruffato. No dia seguinte, o público pôde acompanhar José Eduardo Rennó, a bordo de um táxi, interpretando o conto Só uma Corrida, ficção inédita de João Anzanello Carrascoza, criado especialmente para a Mostra. Por fim, na noite seguinte, sempre começando às 18h, Luís Mármora narrou e vivenciou a personagem do conto Rush, do escritor e músico mineiro André Sant’Anna. O mais interessante era que, embora o táxi não saísse do lugar, a impressão de circulação pela cidade se dava de forma vertiginosa, ou fuik. O que garantia isso era um aparato de projetores instalados no vidro dianteiro do carro e em tripés que exibiam vídeos com diferentes trajetos. Assim, tínhamos a impressão de deslocamento pela pólis, com direito a curvas e brecadas (ressaltadas pela movimentação corporal dos atores/motoristas).

Mas esse não foi o único projeto que se propunha a uma reflexão sobre o frenesi do nosso dia a dia na metrópole. A Mostra apresentou ainda o 18h30, uma instalação de Samir Mesquita, com cinquenta microcontos colados em carrinhos e alinhados como num congestionamento que convidava o leitor a conhecer um pouco do universo particular de cada pessoa presa no trânsito, nestes muitos mundinhos confusos e caóticos da metrópole.

Mais Poesia Visual

e se um poema opaco feito um muro
te fizer sonhar noites em claro?
e se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?”
(poema de Antonio Cícero,
projeto Poesia Concreto)

A investigação da poesia verbivocovisual contemporânea não parou por aí. Na Mostra SESC de Artes 08, a obra de Marcelo Sahea ocupou algumas paredes, corredores e vidros das unidades do SESC SP, apresentando poemas visuais que investigavam os limites da diluição entre texto e imagem.

Segundo a jornalista da revista Bravo!, Laila Abou Mahmoud: “Outros objetos do cotidiano também viraram suporte para a Literatura e a Poesia na Mostra. Os bebedouros do SESC Pompeia, por exemplo, foram marcados com poemas do paulista Ricardo Silveira. Já as paredes das unidades Interlagos, Itaquera e Vila Mariana receberam poesias contemporâneas de autores como Arnaldo Antunes, Age de Carvalho, Ana Rüsche, Antonio Cícero e Ricardo Aleixo. Os versos brincam com o trocadilho entre o conceito de poesia concreta e o concreto das paredes nas quais estão expostos. Já nas unidades Ipiranga e São Caetano, o brasiliense Marcelo Sahea expõe seus versos sobre o cotidiano”.

Instalação do poeta visual e artista plástico Marcelo Sahea, nas unidades do SESC Ipiranga e São Caetano

Literatura Performática

 

“Na ressonância ouvimos o poema,
na repercussão, nós o falamos, pois é nosso”
(Gaston Bachelard)

Para quem quis ver os próprios autores declamando, uma oportunidade foi a apresentação do Concerto Literário para Voz & Base Eletrônica. Neste sarau, happening, show, ou que mais se tenda a chamar, o escritor Paulo Scott foi um MC, o ator Rodrigo Penna um DJ-intérprete, a atriz Fernanda D’Umbra uma atriz mesmo e Simone Carvalho cantou. Com eles, escritores leram trechos curtos de sua produção literária, enquanto cenas de vídeos caseiros tomaram os telões do espaço. Esses materiais mostraram fotos, cenas de cotidiano, poesias, blas-blás-blás de muitos escritores e poetas. Em paralelo, ao vivo, os escritores convidados – como Índigo, Michael Laub, Tony Monti, Verônica Stigger e João Gilberto Noll – participaram com leituras e improvisações.

O Texto na Cidade

“A cidade ideal é aquela sobre a qual paira um pulvísculo de escrita
que não se sedimenta nem calcifica”.
(Ítalo Calvino, in A Cidade Escrita: Epígrafes e Grafites)

 

Considerando que no establishment da literatura a maioria das atividades é restrita a encontros, lançamentos de livros, saraus e mesas de debates, e considerando ainda que grande parte da população brasileira não tem o hábito de ler, essas ações literárias geraram novas propostas aos escritores, evidenciaram práticas literárias já existentes e apresentaram ao público novas formas de leituras, em lugares públicos ou de passagem. Textos breves e convidativos, curtos e atraentes, estenderam-se para fora das salas fechadas e tomaram espaço na cidade.

Segundo a jornalista Laila Abou Mahmoud ressaltou na página da Bravo!, com essa iniciativa a Mostra SESC de Artes 08 possibilitou ao público a percepção de que “a literatura não tem ou teve um espaço exclusivo, mas diversos e, muitas vezes, inusitados”. Para Heloísa Buarque de Hollanda, numa perspectiva curatorial “a Mostra SESC de Artes foi realmente ao ponto e conseguiu o que muitas pesquisas na área das Letras ainda não deram conta. Focada na busca de novas definições do lugar da arte contemporânea hoje, esta edição 2008 dramatizou a atual expansão da literatura no espaço da cidade e colocou em debate a urgência em democratizar a fruição literária em grande escala. São treze os projetos e treze os espaços onde a palavra literária se desdobra e se revela (…)e sugerem o designer de uma cidade ocupada pela palavra”6.

A questão era exatamente esta. Com todos os riscos implicados, tocamos nosso ponto de fuga a que se pretendia o conjunto do projeto: relembrar as pessoas, leitores ou não, que a literatura, como a arte, pode e deve ser percebida e evidenciada por e para todos. A literatura que se coloca ao público para que esse a decifre, que cria e estabelece diálogo, participação e contemplação livre. Era isso em que acreditávamos. Era neste ponto que queríamos chegar. Nos damos por felizes!

 

NOTAS

 

1 Essa ação batizada de Keitai Shosetsu (Romances de Celular) foi criada pelo jovem escritor japonês Yoshi, que lançou seu primeiro romance adolescente “Deep Love” (“Amor Profundo”). A novidade saiu do mundo virtual, ganhou as páginas impressas e virou febre no Japão e no mundo.

2 Para Umberto Eco, com a Internet e as novas tecnologias nos reintroduzimos na galáxia de Gutenberg, “e, doravante, todo mundo vê-se obrigado a ler. Para ler é preciso um suporte”. E essa ferramenta mais flexível é o livro, e ressalta: “O culto da página escrita, e mais tarde do livro, é tão antigo como a escrita”.

3 Lançado em 2007, este livro apresenta uma coletânea de 50 microcontos, de até 50 caracteres cada, que vem dentro de uma caixinha de fósforos. Esse livro foi distribuído ao público na abertura da Mostra SESC de Artes, bem como a formadores de opinião, como um exemplo claro do que pretendíamos chamar de práticas literárias.

4 O projeto PoeGifs foi criado, a princípio, com o propósito de partilhá-lo apenas com amigos e uns poucos eleitos durante o ano de 2007. Marcelo Sahea criou, produziu e enviou por oito meses via e-mail, todos os domingos, a uma lista de mais ou menos 150 pessoas, Gifs (Graphics Interchange Format) animados com poemas de seus livros e outros textos inéditos.

5 O projeto Poema Passageiro contou com o apoio da Bus Mídia Televisão; puderam ser vistos também na Linha Verde do Metrô e nas livrarias Cultura, Nobel e Siciliano.

6 HOLLANDA, Heloísa Buarque, in Cidade é Texto.

 

* Antonio C. Martinelli Jr. É Coordenador de Programação do SESC Belenzinho. Foi curador da área de Literatura na Mostra SESC de Artes 08.