Apresentação | por Marco Schneider

Como em um bom time de futebol, o grupo de articulistas que compõem o novo número da Z Cultural combina juventude e experiência acadêmica. Porém, embora esse tenha sido um dos critérios empregados para a seleção dos autores, não foi certamente o principal, e sim a aderência, direta ou indireta, de sua produção intelectual ao eixo temático central da presente edição: interfaces digitais entre cultura, cidadania e capitalismo.

Por essa razão, iniciamos esta Z com o artigo que mais diretamente se aproxima de seu eixo, no qual Ovidio Mota Peixoto problematiza o discurso “triunfalista” da inclusão digital, com ênfase na relação entre novas TICs, cidadania e educação, trazendo de volta ao debate um pensador e ativista brasileiro outrora muito influente, mas pouco discutido ultimamente entre nós: Darcy Ribeiro.

Patrícia Saldanha, em um movimento ousado, propõe a noção de (e a implementação da) publicidade comunitária como elemento fundamental para que se atinja uma efetiva viabilidade econômica das práticas de comunicação nas “comunidades” – noção que ela discute e fundamenta com o devido rigor teórico.

Ainda no âmbito da comunicação comunitária e da problemática da cidadania, Adilson Cabral explora o conceito de “emergência”, de Steven Johnson, que diz respeito a “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, para pensar os “esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes.”

Pablo Nabarrete Bastos, por sua vez, nos brinda com uma análise teoricamente refinada, inspirada principalmente em Bakhtin, Gramsci e Hall, da palavra como uma das arenas da luta de classes, tomando como objeto empírico o tratamento dado ao movimento Hip Hop e ao MST no discurso midiático hegemônico. O artigo ainda possui o mérito de enfatizar o profundo compromisso político-revolucionário de Gramsci, contribuindo assim para a necessária desconstrução de sua imagem corrente (e reduzida) de “teórico da cultura”.

Numa linha parecida, Marco Bonetti resgata um aspecto misteriosamente obliterado em boa parte da fortuna crítica sobre a obra de Walter Benjamin: a óbvia e profunda influência de Marx. Assim, em seu Karl Marx e Walter Benjamin, Bonetti denuncia o equívoco metodológico que consiste na construção de um Walter Benjamin “descafeinado”, isto é, “depurado” da presença central de Marx em seu pensamento, como se a opinião (conservadora) de Gershom Scholem sobre o valor da obra do amigo tivesse se tornado canônica.

Cabe aqui uma breve digressão, dado que Bastos e Bonneti tocaram um ponto fulcral do debate que nos foi ofertado promover: parafraseando o que Stuart Hall certa vez disse sobre a recepção da obra de Foucault na Inglaterra, a qual teria gozado, durante um determinado período, de um “apostolado acrítico”, parece-nos que algo similar ocorre com Benjamin e Gramsci entre nós: gozam de um “apostolado acrítico”, mas em uma versão “descafeinada”, caracterizada pela minimização ou descarte da influência de Marx, que seria não mais que um aspecto menor, datado, superado, descartável de seus pensamentos.

Ora, essa eloquente ocultação – na recepção de dois autores cuja contribuição menor certamente não foi o rico desenvolvimento que promoveram de elementos apenas indicados de modo assistemático na vasta obra de Marx (em especial as complexas relações entre economia, política, tecnologia e cultura), sem com isso, ao contrário do que muitos pensam, terem efetuado nenhuma ruptura fundamental com seu arcabouço teórico – seria epistemologicamente fundamentada com rigor ou ideologicamente contaminada?

Embora não toque diretamente na questão, o artigo de Ivan Capeller aponta para a segunda alternativa, em um esforço difícil e teoricamente audaz de (re?)aproximar Deleuze da crítica da economia política, analisando os fenômenos “recentes” do facebook e do youtube à luz da teoria e da história do cinema, ou melhor, dos dispositivos audiovisuais, entendidos como aparelhos de captura e máquinas de guerra.

Numa perspectiva menos convergente que a de Capeller, Ricardo Musse apresenta uma esclarecedora explanação do tenso diálogo entre marxismo e pós-modernidade, mediante uma análise crítica dos principais argumentos de alguns dos seus protagonistas. Entre outros efeitos salutares, o artigo de Musse nos ajuda a entender tanto as causas da mencionada ausência de Marx de locais onde esta ausência é sintomática, quanto parte das dificuldades que permeiam o debate entre marxismo e pós-modernidade, em meio ao qual se situa o pós-estruturalismo.

Por fim, Douglas Kellner, um dos pioneiros dos Estudos Culturais estadunidenses no início dos anos 70, e o entrevistado da presente edição da Z Cultural, além de refletir sobre o papel das novas tecnologias de comunicação na reconfiguração da esfera pública contemporânea, sem recusar a contribuição do pós-estruturalismo, argumenta em defesa da retomada do diálogo entre Estudos Culturais e marxismo, corroborando a posição deste que ora vos fala e contribuindo igualmente para entendermos melhor as causas do esvaziamento recente deste diálogo.

Encerrando essa apresentação, quero registrar meus agradecimentos à querida Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para a curadoria deste número da Z Cultural. Agradeço, pois enxergo no gesto, além de uma demonstração de confiança, principalmente uma expressão de sua generosidade teórica, dado o fato (por ela  conhecido) de as posições que costumo defender não serem as mesmas do mainstream teórico, se assim se pode dizer, dos Estudos Culturais contemporâneos.

Agradeço também aos autores por seus artigos e a Douglas Kellner por nossa conversa.
Uma boa leitura.

 

Marco Schneider
GCO e PPGMC UFF / ESPM / Unisuam / PACC UFRJ

 

Publicidade comunitária: uma ferramenta atual de resgate e fortalecimento dos princípios comunitários | de Patrícia Gonçalves Saldanha

Introdução

O objetivo do presente texto é refletir teoricamente sobre a possibilidade que uma associação tem de resgatar o sentido de comunidade a partir da sua reconfiguração decorrente da apropriação da técnica, por seus membros, para benefício do próprio lugar.

Partindo do pressuposto de que uma associação tem sua formação estrutural compatível com as exigências de mercado e a comunidade não, põe-se a seguinte questão: de que maneira uma comunidade seria capaz de constatar a presença de formas de resistência à modelização societária que tenta, a todo tempo, sem limites de custo, normatizar, homogeneizar e individualizar o sujeito social, por intermédio da produção do consenso gerado pela mídia global, sustentada, por sua vez, pelo financiamento do mercado transnacional por meio das práticas publicitárias?

É necessário, portanto, delimitar alguns pontos basilares do texto. Primeiramente, a noção de lugar e local são absolutamente compatíveis. Já a de mídia não se limita aos meios de comunicação de massa, e sim abrange as formas de produção de sentido que se descolam dos meios comunicacionais (de massa ou não) e ganham vida própria em territórios diversos, conduzindo os hábitos e costumes, bem como os comportamentos e até mesmo os gostos de povos distintos para um interesse comum: o consumismo.

Outro ponto fundamental para essa reflexão é a diferenciação conceitual entre comunidade e associação que parte da concepção tönniesiana e chega à atualidade discutindo novas versões de comunidade. Para complementar o caminho proposto pela pergunta-eixo do texto, vale considerar o papel da comunicação comunitária evidenciando a publicidade, apesar de, num primeiro momento, a conjunção publicidade comunitária parecer antagônica.

As gerações de sentido que costumam agir na ordem da cultura são legitimadas por uma série de políticas supranacionais que, por sua vez, são viabilizadas pelas estruturas econômicas das corporações de comunicação financiadoras do todo-poderoso capital.

Na outra ponta do mesmo cenário, temos a esfera local que se subdivide em três tipos: um primeiro que acaba aderindo à lógica hegemônica, ainda que se empenhe em sustentar um discurso de resistência; outro que realmente resiste radicalmente às forças do mercado, fortificando o cisma entre incluídos e excluídos do sistema que baliza a sociedade civil; e, na contrapartida dos dois primeiros modelos, o terceiro, composto por comunidades representantes da esfera local que fazem questão de se incluir na sociedade civil, sem se desvincular, todavia, de seus princípios fundadores.

É com o terceiro viés que iremos dialogar. Com comunidades cuja postura contra-hegemônica é um alicerce, que lhes permite avaliar criticamente o cenário em que estão inseridas; ao mesmo tempo que lhes impulsiona para sair do discurso e partir para a ação prática, transformando positivamente seu próprio lugar. São comunidades locais que se empenham na apropriação das tecnologias de comunicação cuja finalidade é trazer benefícios para o próprio lugar.

Quando os moradores de um local, de fato, se apropriam das ferramentas comunicativas e as utilizam em benefício próprio, além de não valorizarem o aspecto técnico, costumam colocar essas ferramentas a seu serviço para ressaltar e reforçar as características identitárias de sua localidade em vez de sucumbir ao senso comum previamente produzido. Ao contrário, unem-se e pressionam tanto o poder público quanto o de mercado para reverter qualquer proposta de isolamento ou “guetificação” econômica, política ou sociocultural. Para Manuel Castells, o terceiro modelo se refere à construção de uma “identidade de projeto”, que se concretiza

quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social […] Obviamente, identidades que começam como resistência e podem acabar resultando em projetos.[1]

Na possibilidade da existência de “identidades de resistência” e “identidades de projeto” contemporâneas, percebe-se que não nos encontramos numa situação plenamente societária e que há chances de os indivíduos voltarem às suas condições de sujeitos sociais, cuja identidade consiste “em um projeto de uma vida diferente […] expandindo-se no sentido da transformação da sociedade”.[2]

Nesse diapasão, deparamo-nos com um grande desafio: tentar constatar de que formas o desenvolvimento das práticas comunicacionais, mais especificamente publicitárias, a partir da apropriação das TICs, pode atuar como dispositivo de incremento de sociabilidade vinculativa, característica da vida comunitária, e projetar realizações locais (sem abalar seu fortalecimento identitário) para a esfera globalizada da sociedade civil.

De volta às comunidades em plena sociedade global

A formação da sociedade civil atual já é uma das consequências da Revolução Industrial. Inicialmente houve uma mudança na estrutura social, na transição do final do século XIX para o século XX, ou seja, na passagem da sociedade moderna para a sociedade de massa. Exatamente nessa época e em dois momentos distintos, o sociólogo e filósofo alemão Ferdinand Tönnies[3] se debruçou sobre a diferenciação dos conceitos de comunidade e de associação. Em 1887, sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft surgiu como um divisor de águas teórico, pois “circunscreveu os termos comunidade e sociedade (como a palavra Gesellschaft é em geral traduzida), colocando-os em contraste, atando-os pelo mútuo antagonismo de significados”.[4]

Além da atualização da obra, o contraste dos termos talvez tenha proporcionado a grande popularidade adquirida no lançamento de sua segunda edição, em 1912, pois, naquela época, já se percebia uma mudança no espírito das novas formas de organização dos agrupamentos humanos. Os grupos que se deslocavam dos centros rurais, onde a família solidificava o sentimento de comunidade, para os centros urbanos, onde as pessoas mal tinham tempo de se ver em função das longas horas dedicadas ao trabalho nas fábricas, demonstravam que as sociedades que emergiam, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, decorriam das alterações econômicas provenientes do ímpeto arrebatador das novas concepções produtivas. A aglutinação populacional nas cidades se tornou visível e, a partir daí, surgiram novas formações de grupos, cujas características já se diferenciavam do perfil da Gemeinschaft rural. Surgiram as

organizações ditas de massa: partidos, associações, sindicatos […] com suas reivindicações coletivas. Isso sem falar em outras manifestações como o espetáculo e o esporte, que vão nesse mesmo sentido, como o cinema e o futebol. Nesses novos espaços as massas populacionais deixam de ser camponesas e passam a ser caracterizadas pelo novo trabalho. Karl Marx irá assentar sua reflexão sobre essas novas maneiras de produzir riquezas, ou modos de produção, tendo no centro o proletariado urbano, os trabalhadores da cidade.[5]

Acompanhando a demanda econômica que serviu de sustentáculo para a reorganização da sociedade, o destaque às questões políticas[6] também colaborou para que a segunda edição se tornasse “um best-seller na Alemanha, naquela época arrebatada pelas ideias nacionalistas”.[7]

Todavia, mais do que o aspecto histórico-político, a observação das mudanças nas aglomerações massivas da sociedade da época e de sua própria história de vida foi decisiva para que Tönnies pudesse perceber as diferenças estruturantes entre os conceitos em debate.

Ferdinand Tönnies nasceu em 1855 numa granja junto ao Mar do Norte, em Schlewig Holstein, e foi criado na vizinhança de Husum. A intimidade com as questões do campo, em função da sua origem e de sua experiência profissional (na fundação de duas importantes associações de sociologia), sensibilizou-o para perceber o contraponto dos dois conceitos: os laços vinculativos que fortalecem organicamente o espírito comunitário, bem como a superficialidade com que as alianças contratuais mantêm o mecanicismo das associações.

A verificação da transição das formações comunitárias às associativas se origina quando Tönnies se dá conta de que os valores instituídos nos bens são transferidos para a atividade da permuta. Fica claro que, em vez de se valorizarem os bens produzidos, o que vai adquirindo maior importância no processo é não só o intercâmbio, como também o documento que torna tal atividade legítima: o contrato. “Independentemente das esferas e dos campos de vontade separados, a garantia e a unificação são feitas pelo contrato, pelo documento que é reconhecido, legitimado e validado pela lei. E isso se encontra implícito no consenso geral das associações.”[8] Mais do que isso, o consenso referente à importância do contrato fica impregnado no próprio espírito da sociedade civil. A mudança sígnica real acontece quando “a diferença de tradição, a convenção, não se conserva como herança dos antepassados. Em consequência, as palavras, as palavras de tradição e costume se ajustam ao sentido de convenção”.[9]

Tal modificação se torna patente na sociedade civil e advém da alteração ocorrida no nexo que passou a direcionar o comportamento dos homens. Se antes ele era conduzido pela vinculação e pelo pertencimento ao grupo, quando se ligou às associações foi assumindo uma postura individualista em que cada um passou a cuidar de si e de seus interesses. Assim, o sujeito foi se metamorfoseando e passou a ser um indivíduo.

O indivíduo é, portanto, aquele que não se divide mais. Torna-se um corpúsculo com vida na medida certa para produzir e consumir, mas se conservando no estado de solidão suficiente, sem entrar em contato com o outro para que não contate outrem. Apático, por conta da falta de troca com o próximo, tem o pensamento enfraquecido no tocante a mudanças e preocupações com o coletivo. Quanto mais isolado, melhor.

Enfim, uma forma resumida de diferenciar a sociedade (Gesellschaft) da comunidade (Gemeinschaft) e de considerá-la um protótipo de comunidade, segundo o filósofo canadense Kenneth Schmitz, é entender a

Gemeinschaft como família, da qual surgiram formas comunais de associação que se estenderam, como a aldeia e a vizinhança, a fazenda familiar, o tipo antigo de paróquia e a guilda mais ou menos hereditária. A unidade de tais grupos existe anteriormente a seus membros atuais, que recebem a forma comunal e seus valores pela tradição como um modo de vida já dado. Em contraste com esses laços de parentesco e amizade, supõe-se a Gesellschaft como a construção artificial de um agregado de seres humanos […] [enquanto] na Gemeinschaft eles [os indivíduos] permanecem essencialmente unidos a despeito de todos os fatores que os separam […] [na] Gesellschaft […] é cada um por si e estão isolados, e há uma condição de tensão contra todos os outros.[10]

Dentre as diversas visões que partem do tratado de Ferdinand Tönnies para discutir o conceito de comunidade, Schmitz, em seu texto Comunidade, a unidade ilusória, nota que uma das possibilidades de reflexão sobre a comunidade é percebê-la como instituição. Isso porque a instituição é capaz de propiciar as identificações, representar as vontades coletivas e garantir a segurança para determinado grupo do tecido social, ainda que esse grupo não se refira apenas às formações camponesas tradicionais.

Há, portanto, uma inovação na leitura que o filósofo canadense faz da obra de Tönnies, pois propõe a possibilidade de manutenção do bem comum nas comunidades, mas também a considera possível nas associações. O que nos permite pensar que uma associação pode direcionar seus membros ao resgate do sentimento comunitário a partir do nexo que os vincula.

De toda forma, é absolutamente necessário atentar para as ponderações que o autor faz sem perder o senso crítico, uma vez que não se rende ao discurso das associações, ainda que denominadas de instituições. Para o autor, o ponto chave da institucionalização de uma associação é o princípio que a move e não o formato como ela se apresenta. Schmitz admite que hoje “desconfia-se muito das instituições, consideradas meros grupos de interesses privados, além de não conseguirem reter crédito social suficiente que justifique sua atuação. Nesse quadro está imerso inclusive o poder central, que não consegue possuir um mínimo de operacionalidade”.[11]

Percebe-se, que ele não se refere à associação de forma generalizante. Não se pode comparar uma associação de moradores com a Associação dos Banqueiros Suíços, por exemplo. As instituições efetivas são aquelas que podem incentivar seus membros à busca do sentido comunitário; são formas estáveis e relativamente definidas para caracterizar crenças e ideias, uma vez que exemplificam hábitos e costumes sociais estabelecidos enquanto reais, existentes e providos de um ideal em determinadas associações modernas.[12] Com efeito, os novos hábitos que começaram a se institucionalizar nas associações foram resultantes de uma mescla entre a conservação do ritmo dos costumes tradicionais e o novo compasso de vida que vinha se intensificando na sociedade.

 

Seria possível a publicidade, que ajudou a construir o processo globalizante, reconverter suas formas de atuação?

Na sociedade de massa, consolidaram-se novos propósitos nos agrupamentos humanos. A partir da entrada do Estado-nação como regulador da sociedade civil, o sujeito passou a estabelecer com o trabalho produtivo uma relação que não era mais em prol de garantir a sua subsistência, mas sim a da produção que objetivava a fortificação do Estado. Já se indiciava, portanto, um distanciamento do ideal de manutenção da continuidade de sua comunidade em prol do primeiro setor. O processo contínuo das transformações foi potencializado, na sociedade globalizada, desde a queda do muro de Berlim até os dias de hoje, com o auxílio de duas ferramentas fundamentais: os meios de transporte e os meios de comunicação. Os primeiros eram responsáveis pela distribuição de produtos, serviços e pela expansão da ideologia capitalista pelo globo, e os segundos, pela divulgação dos novos serviços/produtos e formas de comercialização, incluindo os de ordem imaterial, enfatizando, assim, a valoração das marcas pela mídia e com massificação garantida pelas práticas/negociações publicitárias. Influindo diretamente nos arranjos sociais, principalmente no que alerta ao sujeito sobre o reconhecimento dos direitos sociopolíticos.

Mais especificamente no cenário brasileiro contemporâneo, os arranjos sociais têm se apresentado de forma tão disparatada e com consequências tão desumanas, que a “simples” existência de um discurso do que vem a ser cidadão já se torna suficiente para suprir a falta momentânea ou mesmo a inexistência da prática do exercício civil e político do sujeito atual. O esvaziamento do sentido de cidadania dissipado pela proliferação da ordem de discursos, reverberado pela mídia, tem como consequência a expressão do perfil do que poderia vir a configurar um cidadão no gozo dos seus direitos perante a lei. Entretanto, a realidade dos discursos proferidos é incompatível com o que acontece na prática cotidiana do sujeito social. Fato que, consequentemente, afasta o cidadão da possibilidade de pensar em “conquistar definitivamente os seus direitos sociais”.[13]

A busca pela conquista do direito social tem sido desviada por algumas ideias que se autodivulgam democráticas e que, em geral, outorgam um novo sentido para este ser-cidadão, nivelando-o, habilmente, a um ser-consumidor. Conduzindo o indivíduo a lutar pelo direito de consumir.  Resultando, por conseguinte, na redução da questão da conquista pela igualdade e pela justiça social no contexto político à questão da possibilidade e do direito ao consumo, somados à disponibilidade do acesso à informação. Como se a inclusão via consumo fosse o fator principal ou, segundo alguns, o único caminho para a inserção dos excluídos na sociedade globalizada.

Nesse caso, o consumo passa a assumir contornos até então impensáveis, desvinculando-se de sua ordem originária: a necessidade. O consumo passa de consequência à causa, assumindo, inclusive, o estatuto de procedimento libertário por alguns teóricos (como o mexicano Néstor Canclini), que conseguem mesmo atrelá-lo ao exercício da cidadania.[14]

Logo, o discurso de democratização e de possibilidade de acesso tem caracterizado e viabilizado a agilização do fluxo de expansão capitalista da sociedade atual, dominando ideologicamente o mundo em suas ordens de organização: política, econômica e sociocultural.

Todavia, é necessário considerar que é possível localizar movimentos de resistência em algumas comunidades. Tanto comunidades do interior quanto favelas, entre outras, têm saído do estágio de letargia profunda que as tornava apáticas e vêm investindo na tentativa de dar visibilidade positiva a seu éthos. Além disso, pretendem também se projetar para níveis nacionais e internacionais, ocupando seu lugar no mundo de forma legítima, sem abalos identitários.

Para o economista Ladislau Dawbor, é na organização comunitária, como “espaço local” ou “espaço de vida”, que se torna possível a recuperação do “controle por parte do cidadão no seu bairro e na sua comunidade”.[15] Assim, a estrutura comunitária teria o propósito de resgate da cidadania com contornos políticos na esfera de Unidade de Gerência e Pressão, onde pensar em comunidade significa pensar o coletivo, politicamente, e lutar, de forma organizada, por melhorias concretas para o lugar em questão. E é nessa esfera que alguns moradores têm investido na prática da produção da comunicação comunitária, mais especificamente, nas etapas de criação, produção e veiculação da publicidade comunitária, a fim de movimentar e aquecer a economia local com a autonomia de produção.

No cenário da resistência, o papel da comunicação comunitária é imprescindível, pois, além de quebrar a homogeneização resultante da propagação do ideal midiático, pode alterar a lógica societal, incluindo o diálogo entre os membros das diversas comunidades, além de colaborar com a construção da produção de uma comunicação vinculada ao real histórico de seu espaço. Ao conectar o conceito de comunicação com o de comunidade, que tem se diluído no estado líquido das relações, pode-se perceber a existência de uma alternativa de reinserção no mundo ou mesmo de uma proposta precisa de recuperação da vivência comunitária. Então, para que a comunicação comunitária haja de fato, é imprescindível que seus veículos tenham adequação a um projeto mais amplo.

Esse entendimento é importante para a compreensão da mídia a ser escolhida, bem como a utilização de mais de um veículo, a linguagem a ser adotada e a programação. Além do assentimento por parte dos integrantes do grupo, já que o poder decisório […] abstrai o determinante técnico, que selecionava dentre os membros apenas aqueles com conhecimento para opinar.[16]

A comunitária é diferente da comunicação massiva divulgada pela mídia, que prioriza o capital, pois dentro

de um esquema de comunicação comunitária – aquela orientada não por uma lógica puramente empresarial, mas principalmente por determinações grupais e comunais – importam muito mais os objetivos e o comprometimento entre as partes, para se alcançar metas programadas, do que o uso de x ou y sistema de comunicação.[17]

A comunicação comunitária se concentra no resgate e na valorização do território e, por isso mesmo, precisa ser entendida “no contexto da sociedade de massa” globalizada. Se a comunicação acontece no momento em que a partilha de sentido se torna comum tanto para quem emite como para quem recebe – e um dos espaços para a concretização do ato comunicacional é a comunidade –, é possível reconhecer a ligação da comunidade no campo da comunicação social. Da mesma forma, a publicidade pode ser pensada no ambiente comunitário, mesmo que aparentemente tenham princípios contraditórios.

Geralmente, a primeira afirmação que se faz sobre “publicidade comunitária” é que ambos os termos estão em oposição. Talvez, se esse esforço estivesse direcionado para a propaganda, fosse mais fácil, principalmente porque a publicidade difere da propaganda exatamente por suas fundamentações. Apesar de ambas terem capacidade informativa e se fundarem na persuasão como estratégia de divulgação, a propaganda tem caráter ideológico e a publicidade, caráter comercial. Então, a propaganda de que a publicidade descaracteriza um meio comunitário foi executada com tanta eficiência, que os próprios meios comunitários e as pessoas que o fazem funcionar se impregnaram de tal ideia.

Assim, convencionou-se que um meio comunitário não pode ser regido nem por atividades comerciais nem por sua propagação, ainda que as atividades comerciais pertençam ao território em questão. Esse pensamento foi assimilado como verdade indiscutível tanto por quem trabalhou para seu alastramento quanto pelos próprios moradores dos lugares onde os meios comunitários foram iniciados, que, por conseguinte, passaram a ser os mais prejudicados com a absorção dessa verdade fabricada.  Em vista disso, aceitar uma publicidade, mesmo que local (desde a produção à veiculação), passou a ser o mesmo que trair um ideal, além de configurar crime, uma vez que inserção publicitária nas veiculações comunitárias viola a lei penal.

Contudo, é urgente que se pense que a questão da comunicação comunitária não se encerra na existência ou não de publicidade em seus meios (a não ser por questões legislativas, que podem ser alteradas), mas se inicia pela utilização da linguagem que viabiliza, de forma clara, o entendimento dos ouvintes locais em função de suas necessidades diárias, pela participação dos moradores locais, pelo desenvolvimento do conteúdo informativo de utilidade para a comunidade, que é desenvolvido a partir da leitura crítica da grande mídia, pela perspectiva educativa e, enfim, pela força de trabalho voluntário que deve acontecer para manter o veículo funcionando, uma vez que TV, rádio ou jornal não podem sequer constituir renda. Essa realidade resulta na dispersão de pessoas que poderiam dedicar seu tempo para consubstanciar os meios de comunicação tão importantes para avigorar vínculos da comunicação com as questões cotidianas do território, que mantêm os meios comunitários vivos.

Por exemplo, uma TV ou uma rádio comunitária só se configuram como meios comunitários se forem pensados, elaborados e tiverem seus conteúdos distribuídos pelos membros da comunidade na qual se inserem. No entanto, é preponderante que os meios sobrevivam diariamente às pressões econômicas. É habitual presenciar o fechamento de veículos comunitários,  após poucas semanas de existência, por  motivos como a falta de dinheiro, de autonomia sustentável, ou mesmo por força coercitiva da polícia, por desrespeitarem a lei e funcionarem sem licença ou, ainda, por veicularem publicidade.

Para robustecer o quadro de dificuldades para o funcionamento, as pessoas que se dedicam ao trabalho em veículos comunitários só podem fazê-lo parcialmente e por algum tempo, pois precisam manter seus empregos paralelos, por conta de sua subsistência e a de seus familiares. E, como a publicidade é proibida por lei, ativistas comunitários e pessoas de bem que poderiam se dedicar à manutenção desses meios tão importantes para suas comunidades não podem se arriscar e, por isso, não permitem a entrada da publicidade. Porém mais grave do que isso é não colocarem em discussão a lei que impõe essa proibição, porque sequer pararam para pensar nisso. Em consequência, por falta de fôlego econômico, os meios, na maioria das vezes, encerram suas atividades.

Então, como sustentar os meios? Outra questão é: qual é o limite ético para haver publicidade em meios comunitários? Por que não divulgar a “empadinha” fabricada na vizinhança, ou o mecânico, ou a costureira, já que são reconhecidos pelo nome? Talvez  os responsáveis pela elaboração e implementação dessas leis que têm, até então, segurado, pelo medo de punição legal, a vontade de exceder seus limites possam responder a essas questões. Os limites legislativos são firmados por membros do Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, que, por sua vez, fazem  as regras que proíbem a publicidade em meios comunitários, pois não querem concorrentes que atuem diretamente, com os seus próprios meios de comunicação, nas pequenas localidades. No interior das grandes metrópoles ou em cidades cuja atividade econômica é basicamente agrícola, por exemplo, os meios de comunicação comunitários muitas vezes têm o mesmo tamanho de um meio de comunicação puramente comercial.  Mas essa discussão ficará para outro momento.

Considerações finais

É possível pensar, com algumas ressalvas, que a publicidade poder vir a resgatar laços e utilizar as ferramentas tecnológicas como dispositivos de incremento de sociabilidade vinculativa, quando é analisada na perspectiva da ordem técnica e trata de movimentar o sustento da comunidade que também depende do comércio tanto quanto as associações.  Para Tönnies,

existe a comunidade de idioma, de costumes, de  crenças; mas também, para que sirva de contraste, a sociedade financeira, científica […] As sociedades (Gesellschaft) comerciais têm especial importância, já que pode existir certa familiaridade entre os membros. Por isso, até poderá ser chamada, a duras penas, de comunidade (entre os membros). Propor a frase “Gemeinschaft de acionistas” será abominável. Por outra parte, existe a Gemeinschaft de propriedade de cultivos, bosques e pastos. A Gemeinschaft (comunidade) de bens que mantém marido e mulher não pode ser denominada Gesellschaft de bens. Desse modo se esclarecem muitas diferenças.[18]

Então, quando uma comunidade cuida de sua sobrevivência, não está corrompendo seus ideais, mas uma vez que ela entra no cenário da comunicação sob novas configurações paradigmáticas, em função dos movimentos populares e das novas formas de reconhecimento do que uma comunidade pode vir a ser, a discussão que começa a vir à tona com muita força se refere ao sustento dos projetos de comunicação comunitária, como as rádios. Dessa forma, reconhecer que há uma nova leitura para a publicidade que, auxiliada diretamente pelas NTIC, tem atuado no microâmbito comunitário como alternativa de sustentabilidade para projetos de várias ordens, inclusive os publicitários, que são pensados, organizados e conduzidos pela própria comunidade, não desconfigura os projetos comunitários e ainda pode servir como ferramenta de resgate do sentimento comunitário em determinadas associações, desde que sejam enraizadas no local.

 

Notas


[1] CASTELLS, 1999, p. 24.

[2] Ibid., p. 26.

[3] Ferdinand Tönnies fundou a Associação Alemã de Sociologia e, mais tarde, associações internacionais de outros países que o elegeram membro honorário. Foi também parte ativa e influente do círculo de intelectuais impulsionado por Weber. Em 1877 doutorou-se em filosofia clássica e ensinou na Universidade de Kiel por quatro anos. Porém, como não gostava muito de lecionar, dedicou-se a atividades políticas, principalmente apoiando o movimento proletário. De 1921 a 1933 voltou a lecionar, mas foi expulso pelos nazistas, já que tinha aderido ao Partido Social-Democrata alemão em 1932. Assumindo sua paixão pela teoria social e pelas ideias políticas e filosóficas, prosseguiu com os estudos sobre o campo, desfrutando de um grande prestígio científico até sua morte em 1936.

[4] SCHMITZ, 1995, p. 177-178.

[5] FERREIRA, 2001 ,p.101.

[6] “Com o advento do regime hitlerista, por motivos aparentemente óbvios, as ideias comunitaristas passaram a ser estigmatizadas pelo campo acadêmico, sendo deixadas de lado por um longo período.” (PAIVA, 2003, p. 9).

[7] PAIVA, 2003, p. 9.

[8] TÖNNIES, 1979, p. 79.

[9] Ibid., p. 80.

SCHMITZ, 1995, p. 177.

[11] PAIVA, 1998, p. 133.

[12] Aquelas que não se deslocaram de sua razão fundadora e não perderam a noção de que deveriam servir ao bem comum.

[13] Ibid., p.287.

[14] PAIVA,  1998, p. 31-32.

[15] DOWBOR, 1998, p. 370.

[16] Ibid., p.48.

[17] Ibid., p. 48.

[18] TÖNNIES, 1979.

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Comunidades: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

______. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

DEMARTINI, Neusa. Publicidade ou propaganda? É isso aí! Revista Famecos. Porto Alegre, n. 16, p. 111-121, dez. 2001.

DOWBOR, Ladislau. A reprodução social. Petrópolis: Vozes, 1998.

DREIFUSS, René A. Tendências da globalização. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 139, p. 97-172, 1999.

GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Thomaz Tadeu da Silva e Guaciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

HOBBES, Thomas.  Leviatã  ou  matéria,  forma  e  poder  de  um  Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

PAIVA, Raquel. O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo. Petrópolis: Vozes, 1998.

SCHMITZ, Kenneth. Comunidade: a unidade ilusória. In: MIRANDA, Orlando                                                                                                                   (org.). Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: Edusp, 1995. p. 176-193.

SODRÉ. Muniz. A televisão é uma forma de vida. Revista Famecos. Porto Alegre. n. 16, p. 18-34, dez. 2001.

______. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1996.

TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y asociacion: el comunismo y el socialismo como formas de vida social. Trad. José Francisco Ivars. Barcelona: Peninsula, 1979.

 

WEBGRAFIA

http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?com_content&task=view&id=3440

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=460IPB005

 

 

 

 


[R1]Nome do autor? Incluir também sua qualificação

[M2]retiramos a nota, ok?

[R3]Falta a página na referência.

 

A emergência nos processos comunicacionais: um paradigma entre a política e a expressão popular | Prof. Dr. Adilson Vaz Cabral Filho

Resumo: A proposta deste artigo é compreender as contribuições da emergência como paradigma aos processos comunicacionais, entendendo a emergência, nos dizeres de Steven Johnson, como “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, que assumem características compatíveis com as demandas comunicacionais no cenário contemporâneo. A emergência será compreendida aqui à luz dos esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes. Com base numa pesquisa descritiva, a partir de levantamento bibliográfico e documental, este trabalho evidencia iniciativas e experiências relevantes, demonstrando a sua atualidade e a necessidade de incorporar outras temáticas sociais.

Palavras-chave: emergência; políticas de comunicação; apropriação social das TICs; comunicação comunitária.

 

Até o momento os filósofos da emergência
lutaram para interpretar o mundo,
mas agora estão começando a modificá-lo.

Steven Johnson, 2003, p. 16

 

A ideia de emergência como paradigma foi trazida recentemente ao Brasil, por intermédio do livro homônimo de Steven Johnson, que estudou o fenômeno em organizações sociais aparentemente díspares, tratando de compreender e verificar um evento que se caracteriza por “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”,[1] relacionado à compreensão de mecanismos de complexidade observados em estruturas diferenciadas, mas que atuam de modo semelhante em relação ao aprendizado de experiências próximas e à escolha de melhores caminhos e alternativas para a execução de funções nos mais diferentes setores, transmitidas a seus pares de modo mais imediato.

Cabe analisar, diante do entendimento desse modelo organizativo, suas possibilidades de funcionamento em relação à comunicação, compreendendo-a em seus aspectos tecnológicos e políticos, bem como em seus aspectos socioculturais, no contexto da apropriação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) por parte da sociedade. São consideradas nesse contexto as devidas imbricações que caracterizam a comunicação como atividade produtiva, constituída em escala global por mercados estruturados a partir de monopólios e oligopólios fundados na propriedade cruzada, e também como um bem público universal que vem recentemente sendo tratada à condição de direito humano fundamental.

1. Para compreender a emergência

Steven Johnson compreende as organizações baseadas no paradigma da emergência como um contraponto àquelas historicamente associadas a um modelo baseado em hierarquias de cima para baixo, nos quais o processo decisório se dá de modo centralizado e se desmembra para uma coletividade mais ampla a partir da assimilação dos comandos. Ele vai encontrar, a partir de pesquisadores que seguem trilhas comuns em ciências díspares como a biologia, a informática, a arquitetura e demais ciências, pistas para a compreensão do que o autor chama de mito da formiga-rainha, em torno do qual se acredita que trabalhariam as formigas operárias, constituindo uma forma de observação da realidade naturalmente compreendida e assimilada, mas dotada de uma ideologia inerente e cômoda para a explicação do funcionamento desses processos.

Alguns fatores apresentados por Johnson permitem a melhor identificação desses processos: somente pela observação de todo o sistema em ação é que o comportamento global se manifesta, não pelo estudo de elementos isolados de um grupo; “é melhor construir um sistema com elementos simples densamente interconectados e deixar que comportamentos mais sofisticados ocorram aos poucos”;[2] sistemas descentralizados se baseiam fortemente nas interações aleatórias de indivíduos explorando determinado espaço sem qualquer ordem predefinida; identificar padrões nos sinais fornece informação significativa sobre o estado global de determinado conjunto e, por fim, informação local pode levar à sabedoria global, gerando maior interação entre vizinhos e permitindo a resolução de problemas e o ajuste com mais eficiência.

Ao longo de seu trabalho, esses processos foram observados em formigas, cérebros, cidades e softwares, possibilitando a compreensão desse comportamento em diferentes situações e contextos: nas colônias de formigas, seus integrantes se desenvolviam não a partir da orientação de formigas-rainha, mas da constante observação e seleção de padrões eficientes por parte de membros de determinado coletivo, organizado de baixo para cima e de forma adaptativa. Neurônios assimilam funções corporais visando certas tarefas dentro do organismo, cidadãos definem lugares nas cidades a partir de padrões socioculturais que facilitam sua ambientação numa localidade. Softwares que se alimentam do reconhecimento de inputs por parte de seus usuários qualificam a informação que fornecem e, em comum, todos os “agentes que residem em uma escala começam a produzir comportamento que reside em uma escala acima deles”. É o que Johnson chama de emergência, definindo-a como o “movimento das regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto”.[3]

O autor não afirma categoricamente que esse é o modelo ideal de organização, mas busca reconfigurar o modo de observar esses fenômenos, contribuindo com a síntese de uma nova perspectiva e uma aposta numa maneira mais eficiente de alcançar resultados. Dessa forma, oscila entre a observação dos fenômenos que estuda e a própria confiança no comportamento que observa. Sua intenção é identificar comportamentos emergentes em organizações que vinham sendo identificadas como hierarquizadas, tentando evidenciar a emergência como um modo mais eficiente de organização, já que baseada na descentralização, na horizontalidade e em outras características aqui abordadas. Em certos momentos, sua postura se carrega de cores fortes, limitando a compreensão dos fatos e a capacidade de identificar quando sistemas centralizam seu funcionamento.

Se se trata de reconhecer a importância de uma reflexão que parte de uma perspectiva ideológica, tendo como base a crença na emergência como conduta coletiva, cabe também analisar a complexidade inerente a um organismo, no contexto de determinado setor, para identificar em quais contextos a emergência se aplica e para quais situações ela contribuiria de modo contundente. Ou, ainda, trata-se, portanto, de buscar saber como politizar a emergência, compreendendo estratégias de baixo para cima como a construção política capaz de colocar em evidência a expressão popular nas coletividades.

Cabe diferenciar a complexidade tal como historicamente compreendida – um tecido de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas, no qual o conhecimento atua para rechaçar a desordem e afastar o incerto, selecionando os elementos da ordem e da certeza[4] – da prática da emergência propriamente dita, que pode ser assimilada como forma de gerar organicidade para o fenômeno capaz de ser observado e replicável em diferentes situações. Além disso, é importante compreender se o caminho da emergência é inevitavelmente mais funcional em qualquer situação, já que resulta numa característica aleatória em relação à complexidade da comunicação, seja como atividade produtiva, seja como direito humano fundamental.

Ao assumir a emergência como estratégia organizativa a ser afirmada e observada, não se faz necessariamente a apologia da ideia tradicional de que o pequeno é bonito, numa linhagem schumacheriana. No que se refere a meios, processos e sistemas comunicacionais, seria equivalente a afirmar as experiências populares e comunitárias de comunicação em detrimento da abrangência e da penetração dos meios e sistemas de comunicação de massa.

Uma das premissas que fundamenta a emergência se baseia na capacidade de gerar comportamentos complexos em escalas maiores a partir da integração de escalas menores. Trata-se, portanto, de um modelo que consolidaria meios e processos massivos de comunicação a partir de estruturas comunitárias e populares alternativas às práticas de concentração da propriedade atualmente observadas no setor de comunicação.

O fortalecimento de organizações a partir do local, bem como a aprendizagem com boas experiências e a capacidade de replicá-las em ambientes próximos e em maior escala fazem da emergência uma referência em termos de metodologia e estratégia, com características assimiláveis aos processos democráticos de comunicação, que a reivindicam como direito humano em diversos aspectos que abrangem desde o envolvimento da sociedade em sua pluralidade e diversidade de culturas, como a apropriação das tecnologias de informação e comunicação, até a necessidade de marcos regulatórios e legislações que estimulem não só o acesso e a produção, mas também a posse e o controle, gerando, inclusive, alternativas de renda para comunidades e produtores de pequeno porte.

Para Johnson,[5] vivemos atualmente um terceiro momento da história da emergência: a princípio buscou-se compreender o fenômeno como um todo, distinto da compreensão tradicional dos sistemas de cima para baixo, em seguida a emergência passou a ser vista como um problema a ser investigado em áreas distintas de conhecimento e hoje ela é criada, seja através de softwares baseados em sistemas de auto-organização com várias aplicações (como a recomendação de livros ou o encontro de parceiros), seja por meio de jogos como o SimCity, baseados em algoritmos de inteligência artificial, a partir dos quais se organizam suas próprias estruturas.

Mais recentemente, a Web 2.0 vem concebendo – e transformando – a internet não mais como uma rede de redes, mas como uma plataforma de plataformas,[6] a partir das quais diversos programas são gerados, disponibilizados e podem ser utilizados em tempo real. Seus usuários se apropriam de seus recursos, gerando informações que podem ou não ser compartilhadas pela coletividade – no caso, usuários da internet em geral ou de programas em particular –, possibilitando caminhos para novas criações e, consequentemente, aprendizado coletivo em estruturas horizontalizadas de rede.

Partindo de comunidades e tecnologias que se redefinem e se reorganizam diante de novas demandas e tendências, a comunicação torna-se uma atividade passível de ser retrabalhada diante de uma estrutura que se organiza, do ponto de vista econômico, de modo extremamente centralizado, apesar de contar com aberturas, brechas e contrafluxos dos mais diversos, no tocante às relações que se estabelecem entre produtores e receptores, estudadas há algumas décadas, em torno do binômio recepção-mediação.

No entanto, para compreender a comunicação numa perspectiva de radicalização de sua democracia e de efetivação de seu entendimento como direito humano fundamental, cabe compreender outras estruturas capazes de descentralizar processos de produção ou de se apropriar deles, em escalas mais restritas, e crescer a partir de suas redes. A emergência oferece pistas para a efetivação de tais estruturas de modo mais seguro e consolidado, bem como a identificação de processos de apropriação das tecnologias para o fortalecimento de comunidades e a consolidação de indicadores de efetivação de outros direitos humanos, como educação e saúde, entre outros.

2. Comunicação em processos de emergência

Para pensar a comunicação a partir da emergência, é preciso compreender como se dá o envolvimento de pessoas, grupos e organizações em seus processos constitutivos, como as diversas vertentes de reivindicação dos direitos humanos à comunicação, de apropriação social das TICs e da consolidação de comunidades de compartilhamento social.

A ideia de lutar pelo direito humano à comunicação está diretamente relacionada à mobilização tanto daqueles que buscam exercê-la mais diretamente na prática – ativistas e jornalistas, por exemplo – como daqueles que têm competência para tanto, ou seja, a sociedade como um todo.

Nos debates internacionais, mesmo no campo da sociedade civil, a conceituação do direito humano à comunicação provoca entendimentos diversos: pode se referir à reivindicação dos meios de comunicação não disponíveis – como se se restringisse apenas a ampliar sua dimensão – ou, ainda, como a amplitude do direito à comunicação tal como é atualmente disponibilizada, com foco na dimensão do consumo de produtos e veículos por parte da população em geral. Entretanto, esse conceito diz respeito ao direito à comunicação em sua essência, tal como ela nunca deveria ter deixado de se afirmar e disseminar.

Sua origem se dá a partir do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”[7]

Comentando a afirmação de Jean d’Arcy, para quem o direito do homem a comunicar deveria ser contemplado na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, Cees Hamelink mostra que, desde sua introdução pela Unesco, em 1994, “o direito a comunicar é percebido por seus protagonistas como mais fundamental do que o direito à informação, como atualmente disposto pelas leis internacionais”.[8] O redimensionamento do artigo 19, a partir dos diversos debates que se seguiram, proporcionou o surgimento da Plataforma para os Direitos da Comunicação, um agrupamento de ONGs formado em 1996, em Londres, que, por sua vez, em 2001 fundou a Campanha Cris, sigla que significa, em português, Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação.

O amadurecimento das articulações promovidas levou à necessidade de entender o próprio direito à comunicação como um direito humano, atualmente reivindicado por organizações como a Amarc e que se manifesta na Carta de Princípios da Campanha Cris como suporte aos direitos humanos: “Nossa visão de Sociedade da Informação se fundamenta no Direito a Comunicar como um meio de enfatizar os direitos humanos e fortalecer a vida social, econômica e cultural das pessoas e das comunidades.”[9] Também o texto de apresentação da Plataforma busca assegurar a concordância em

trabalhar para que o direito à comunicação seja reconhecido e garantido como fundamental para assegurar os direitos humanos, com base nos princípios de participação genuína, justiça social, pluralidade e diversidade e que reflita perspectivas de gênero, culturais e regionais.[10]

Já na Carta de las Radios Comunitarias y Ciudadanas, deliberada pela Amarc em 1998, durante a VII Assembleia Regional da Amarc 7 – europeia –, seus signatários afirmam que a “comunicação é um direito humano universal e fundamental” em todas as suas implicações, que são mais bem explicitadas em outros documentos disponibilizados pela seção latino-americana da Amarc, em especial a Carta de Comunicação dos Povos.

De modo geral, o desenvolvimento da percepção da importância da comunicação para a transformação social contribuiu para o resgate do direito à comunicação de todos, para todos e por todos, nas dimensões de conceber, produzir, veicular, disseminar e incrementar a participação de mais atores. Tal sentido é traduzido de maneira mais forte nesse contexto do que simplesmente na ideia de democratizar a atividade, englobando outras noções como a liberdade de expressão e de imprensa, o direito à informação, o direito de se comunicar, bem como também a própria democratização da comunicação, a diversidade cultural e as questões relacionadas à propriedade do conhecimento.

A formulação atual do direito à comunicação está, portanto, relacionada à definição de políticas públicas e marcos regulatórios, na forma de princípios a serem estabelecidos e reivindicados pelas diversas organizações participantes da Campanha Cris, bem como de outras iniciativas mais recentes, mais do que de leis democratizantes a serem efetivadas nos diversos países. Ou seja, a mobilização pela democratização da comunicação, que se processava de outras formas em outros países, agora se torna globalizada, buscando uma agenda comum a partir de realidades que cada vez mais se entendem como semelhantes.

No entanto, não é por ser globalizada que ela se torna consensual. A proximidade com aspectos relacionados à emergência diz respeito, nesse contexto, à constante troca de informações entre os participantes desses processos, que atuam em conjunto nas situações em que há acordo comum, mas guardam suas particularidades no desenvolvimento de ações específicas. Dessa forma, movimentos de rádios comunitárias e rádios livres estão juntos em questões gerais, embora tenham fóruns específicos em relação a seus projetos de rádio.

Do mesmo modo, não é por ser globalizada que a mobilização desses atores não se deixa determinar, também, por aspectos locais. Ao contrário, é o local que reconfigura o global, por meio das articulações de diversas redes que buscam soluções a partir de seus países e regiões, para se encontrar em fóruns mais amplos e compartilhar melhores práticas. A solidez da organização das estruturas locais é que determina um melhor envolvimento em escalas superiores. Assim é que a participação da sociedade civil em processos como o das cúpulas e conferências multilaterais da ONU se consolida e gera frutos na formulação de propostas, reivindicações e protestos, bem como no monitoramento de políticas públicas.

Se a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento do movimento ambientalista, seus militantes começaram a tecer a ideia de pensar globalmente e agir localmente, ao final dos anos 1990, com o fortalecimento das organizações da sociedade civil em redes globais, essa perspectiva veio se construindo com base no ideário do pensamento e da ação globais. No entanto, o crescimento das articulações nos mais diferentes níveis e a necessidade de contar com pessoas das mais diversas comunidades, dos níveis mais simples aos mais complexos, a partir de consensos em torno de melhores práticas e estratégias, reforçou demandas relacionadas ao pensar e agir globais, mas com os pés no local. Um local que gera movimentos em escala nacional e que recebe de volta os frutos das articulações regionais e globais geradas a partir daí, tal como nos debates em torno da comunicação como interesse público.

 

3. A apropriação social das TICs

Por ser uma atividade de grupo ou mesmo coletiva, a apropriação social das TICs não se relaciona à propriedade ou à ideia de sua apropriação em benefício próprio, para levar vantagem ou se diferenciar do restante do coletivo, tornando-se especial ou mais capaz, mas sim para não ser dominado ou explorado – política ou economicamente – e compartilhar com seus iguais.

Esse entendimento autorreferente do processo de aprendizagem, bem como do acesso ao conhecimento necessário para um melhor aproveitamento das tecnologias disponibilizadas, se contrapõe à própria ideia de um trabalho não alienado e colaborativo que, nos dizeres de Holloway,[11] exprime nossa capacidade de fazer como um entrelaçamento de nossa atividade com a atividade anterior ou atual de outros, ou ainda como resultado do fazer dos outros, numa prática que, apesar de se associar à ação direta dos anarquistas tradicionais, não dispensa o entendimento do campo institucional como espaço de luta, ainda que não necessariamente com fins partidários.

Tal iniciativa tem origem nas próprias experiências de comunicação popular dos anos 1970 e 1980, e também na comunicação comunitária dos anos 1990, responsáveis por originar diversos grupos que proporcionaram olhares sobre um Brasil que se rearticulava e se repensava na descoberta do uso dos meios e no desenvolvimento de histórias de sua própria gente, cujos enredos não tinham espaço para exibição na mídia corporativa, revelando o que para Barbero representa “o mundo da cotidianidade, da subjetividade, da sexualidade, (…) o mundo das práticas culturais do povo: narrativas, religiosas ou de conhecimento”,[12] manifestado por iniciativas que, ao longo desse tempo, giravam em torno da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) e das primeiras associações municipais de rádios livres ou comunitárias, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Outro aspecto relevante da apropriação social é vital para esclarecer esse contexto: a efetiva apropriação social dos meios, veículos e produtos de comunicação comunitária é inversamente proporcional à capacidade de serem desenvolvidas novas concentrações no âmbito da sociedade civil. Para Holloway, que conduz sua obra como denúncia de uma prática equivocada ou mesmo oportunista por parte das forças de esquerda (no sentido de perpetuar ou ter acesso ao poder tal como ele se configura) ao longo da história, a luta a ser travada não é “para fazer nossa a propriedade dos meios de produção, mas para dissolver tanto a propriedade como os meios de produção: recuperar ou, melhor ainda, criar a sociabilidade consciente e segura do fluxo social do fazer”.[13]

Para além do conhecimento produzido, sedimentado e que necessita também ser compartilhado, outros campos do conhecimento relacionados às TICs podem ser tomados como possíveis desdobramentos, contemplando atores dos mais diversos: o recente processo de digitalização de rádio e TV no Brasil, visando o acesso e o controle democráticos; a adoção do software livre em larga escala, como garantia de socialização do conhecimento; e o desenvolvimento de experiências em telecentros e pontos públicos de acesso, em conexão com rádios e canais comunitários de TV a cabo, além dos pontos de cultura e de mídia livre, a partir das iniciativas de cultura digital no âmbito das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura ao longo do governo Lula.

Apropriar-se socialmente das possibilidades de uso das TICs representa também, portanto, assumir outras dimensões que não apenas aquelas relacionadas à assimilação de funções e aplicações de programas de computador, a saber: a disponibilidade de infraestrutura (hardware, software e serviços de energia e telecomunicações); a capacitação para utilização de recursos (formação de monitores/facilitadores e pessoas das comunidades em geral); e as soluções a partir do aproveitamento de recursos (produção de conteúdos próprios e utilização de conteúdos já existentes e disponíveis).

As experiências de rádios comunitárias, canais comunitários de TV a cabo, os mais recentes telecentros e pontos de cultura e mídia livre são espaços fundamentais de articulação de setores da sociedade, nos quais o debate sobre aspectos relacionados à lei de comunicação social precisa circular, para que surjam propostas e manifestações a partir do encontro desses atores. A sociedade civil organizada assume, nesse processo, um papel determinante na formulação de suas políticas públicas, a serem tanto reivindicadas quanto afirmadas em seu fazer cotidiano. Seu lugar é muito menos o de afirmar a composição de uma estrutura tripartite, na qual ela se identifica a partir da restritiva concepção de terceiro setor, mas o de, não ignorando a existência de momentos de necessárias concertações junto com o Estado e o mercado, tecer sua autonomia a partir de atividades distintas, capazes de atribuir-lhe identidade junto à população em geral.

Há de se compreender também a complexidade desses papéis, uma vez que o Estado também é composto por atores hegemônicos oriundos da sociedade civil e de suas forças de sustentação, afirmando e se prevalecendo do poder regulador, que cria, julga e executa regulações diversas. A apropriação social aparece não só como estratégia de uso das TICs disponíveis ou a se reivindicar, mas como eixo central de articulação dos atores, no contexto das organizações da sociedade civil, para a elaboração de novas regulações.

No campo da comunicação, cabe compreender de quais formas se torna possível a promoção do interesse público a partir da perspectiva da emergência, bem como relacionar essa comunicação com o sistema vigente. Iniciativas que fomentam a articulação em rede e a aprendizagem de forma compartilhada contribuem para constituir modelos de referência para uma democratização da comunicação que a afirme como direito humano a partir do próprio poder-fazer comunicacional, ou ainda, conforme Holloway, da capacidade de mudar o mundo sem mudar o poder.

 

4. Para uma comunicação emergente

O ideário da emergência nos fenômenos culturais, nos quais o aprendizado coletivo a partir de escalas locais permite o desenvolvimento de processos sociais amplos e consolidados, reivindica os discursos de autonomia relacionados às propostas autogestionárias anarquistas, incrementando valores que afirmam a emergência para consolidar forças e consciências coletivas, determinantes nos processos comunicacionais.

A comunicação neste início de século passa a ser incorporada como componente central dos movimentos sociais, constituída a partir de valores como a pluralidade no cotidiano das ações dos movimentos, a participação na capacidade real de envolvimento das pessoas no processo de produção, a horizontalidade, visando a eliminação de níveis hierárquicos, de concentração de poder ou mesmo de conhecimento, a dialogicidade, pela promoção do conhecimento a partir da informação compartilhada, a que todos têm acesso e, por fim, a interatividade, na preocupação com o nivelamento de informações e capacidades de atuação, compreendendo a capacidade de sustentação de bandeiras de luta a se reivindicar e de novas e diferentes experiências a serem implementadas, dada a plena consciência do papel dos atores sociais nesse contexto. A emergência se apresenta aqui como condição de visibilidade de suas próprias conquistas, bem como estratégia para voos futuros, até porque a contribuição de seus preceitos às formas de organização complexas se dá justamente devido aos processos comunicacionais estabelecidos pelos elementos de seus coletivos, na consolidação de suas ações.

* Professor do curso de Comunicação Social e do Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). E-mail: acabral@comunicacao.pro.br.

 


[1] JOHNSON, 2003, p. 54.

[2] Ibid., p. 56-58.

[3] Ibid., p. 14.

[4] MORIN, 2005, p. 13.

[5] JOHNSON, 2003, p. 16.

[6] ALVES JR., 2006.

[7] DECLARAÇÃO UNIVERSAL…, 2004.

[8] HAMELINK apud MELO; SATHLER, 2005, p. 144.

[9] LA CARTA…, 2005.

[10] PLATFORM…, 2005.

[11] HOLLOWAY, 2003, p. 48.

[12] BARBERO, 1997, p. 244.

[13] HOLLOWAY, op. cit., p. 307.

 

 

 

Referências bibliográficas

 

ALVES JR., Gilberto. Web 2.0: a nova internet é uma plataforma. WebInsider. Disponível em: < http://webinsider.uol.com.br/vernoticia.php/id/2656>. Acesso em: 6 jan. 2006.

 

BASES de um programa para a democratização da Comunicação no Brasil. 1994. Disponível em: <http://www.fndc.org.br/doc_historico/data/programa.doc>. Acesso em: 13 dez. 2004.

CABRAL, Adilson. 5 anos de Indymedia: construindo novos modelos de comunicação democrática. São Leopoldo: Verso & Reverso, 2005.

______. O encontro de três mundos e um mundo de três encontros. In: Sete Pontos, disponível em: <http://www.comunicacao.pro.br/setepontos/16/omiv.htm>. Acesso em: 6 jan. 2005.

CABRAL, Eula. Qualidade na TV pode ser reivindicada. Sete Pontos. Disponível em: <http://www.comunicacao.pro.br/setepontos/qualidade.htm>. Acesso em: 6 jan. 2006.

CARTA de las Radios Comunitarias y Ciudadanas. Aprovada na VII Assembleia Mundial da Amarc 7 (Europa), reunida em Milão de 23 a 29 de agosto de 1988. Disponível em: <http://www.amarc.org/page.php?topic=Carta+de+las+Radios+Comunitarias+y+Ciudadanas>.  Acesso em: 4 jan. 2005.

CARTA ABERTA ao Governo Lula sobre a Lei Geral de Comunicação de Massa. Disponível em: <http://www.crisbrasil.org.br/apc-aa/cris/projetos.shtml?AA_SL_Session=81 fc7af05b8238669241d2bb5fb06253&x=238>. Acesso em: 24 set. 2005.

DECLARAÇÃO: Outra comunicação é possível. Informativo Eletrônico SETE PONTOS n. 16, jul. 2004. Disponível em: <http://www.comunicacao.pro.br/setepontos/ 16/declaracion.htm>. Acesso em: 3 jan. 2005.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em: 10 out. 2004.

HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem mudar o poder. São Paulo: Viramundo, 2003.

JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LA CARTA DE CRIS. Disponível em: <http://www.crisinfo.org/content/view/full/97/>. Acesso em: 4 jan. 2005.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

McIVER, Jr., William J.; BIRDSALL, William F.; RASMUSSEN, Merrilee. The Internet and the right to communicate. Publicado em 15 nov. 2004. Disponível em: <http://www.wacc.org.uk/ modules.php?name=News&file=article&sid=1723>. Acesso em: 24 jan. 2005.

MELO, José Marques de; SATHLER, Luciano (org.). Direitos à comunicação na sociedade da informação. São Bernardo do Campo: Metodista, 2005.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

PLATFORM for Communication Right. Disponível em <http://www.crisinfo.org/content/view/full/80/>. Acesso em: 4 jan. 2005.

PRIMER Forum Mundial de la Información y la Comunicación. Disponível em: <http://www.crisinfo.org/content/view/full/591/>. Acesso em: 3 jan. 2005.

RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de comunicação. São Paulo: Ática, 1987.

RAMOS, Murilo César. Às margens da estrada do futuro: comunicações, políticas e tecnologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.unb.br/fac/ publicacoes/murilo/>.  Acesso em: 12 dez. 2004.

SANTORO, Luiz Fernando. Democracia na nova era da informação. Paper apresentado na XXVI Conferência Anual do Instituto Internacional de Comunicações, em Osaka, Japão, set. 1995. (mimeo.).

 

 

 

Cabo de guerra – A disputa por sentido na comunicação | de Pablo Nabarrete Bastos

Resumo

A comunicação e a cultura, tendo a linguagem, a palavra, como elemento de interseção e face sensível, exercem papéis estratégicos nas disputas por sentido entre interlocutores – a ênfase recai nos movimentos sociais, os meios de comunicação de massa e o poder público –  e seus discursos, os quais compõem a complexa trama da dialética cultural contemporânea. O processo intelectual de construção de mediações e diálogos entre/nos movimentos, nos processos de lutas simbólicas por atribuição de sentido às palavras e aos fenômenos sociais e culturais, bem como as condições estruturais para tessitura desses discursos e dessas identidades, são questões centrais na composição de forças dos  movimentos e agentes sociais, nas suas relações com os meios de comunicação de massa e o poder público, nos jogos de poder e linguagem que medeiam a construção dos aparatos hegemônicos e contra-hegemônicos.

Palavras-chave: comunicação; cultura; linguagem; hegemonia; movimentos sociais.

 

O jogo

Esse cabo de guerra é diferente. De imediato, não é possível reconhecer os oponentes, tampouco as regras do jogo, visto que tanto as composições de forças entre os jogadores quanto os fatores determinantes para vitória ou derrota são circunstanciais, já que dialética e historicamente constituídos. O material externo da corda, sua parte visível, é composto por linguagem, que se modifica conforme o contexto do jogo e o cenário correspondente. A camada interna, o cerne da corda, sua força motriz, é composta pelas ideologias, que tanto equilibram o jogo em benefício dos dominantes, como podem mudar o rumo da partida em favor das classes populares. Os elementos centrais que permitem aos jogadores se locomoverem, se reconhecerem e mudarem os rumos da partida são a história e a estrutura social, correspondentes à força da gravidade e ao atrito do chão, o que em última instância determina o continuum histórico. O olhar para a história e a consciência do seu papel e espaço ocupados no chão são estratégicos para operar mudanças na partida.

Indiscutivelmente, a comunicação e a cultura, e também as denominadas tecnologias da informação e da comunicação – TICs – possuem papel estratégico na contemporaneidade, sendo utilizadas para finalidades distintas, costumeiramente antagônicas, mediando construções e disputas materiais e simbólicas. Pretendo aqui mostrar o papel e o espaço da linguagem, da comunicação, no processo de construção de um aparato hegemônico e possivelmente contra-hegemônico, compreendendo que a palavra, mesmo com o crescente avanço técnico e tecnológico digitais, ocupa papel central na formulação e na compreensão dos discursos que constituem parte importante das disputas por poder; reconhecer a produção, a reprodução e os usos da comunicação como fatores estratégicos na construção das identidades culturais contemporâneas, sem, contudo, perder de vista o determinismo, em última instância, da estrutura social, da base econômica que fornece os elementos concretos para mobilidade dos atores sociais e consolidação do bloco de poder – classes dominantes, instituições e mecanismos de reprodução social. Estrutura social utilizada pragmaticamente para composição de artifícios dos jogos de linguagem com o intuito de aproximar/afastar, mostrar/esconder, apropriar/expropriar, reproduzir/transformar, conforme a intenção e a finalidade sociais, quer perpetuem, quer combatam o bloco de poder estabelecido.

 

A base e a superestrutura

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.[2]

O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva acerca do debate existente na teoria cultural marxista e nos estudos de comunicação acerca da relação entre estrutura e superestrutura. Historicamente, no marxismo dito ortodoxo, a ênfase recai nos aspectos econômicos. No campo da comunicação, os objetos, métodos e teorias são epistemologicamente desenvolvidos visando principalmente o entendimento dos processos simbólicos, comunicacionais, culturais, ideológicos, havendo, em diferentes períodos históricos e teóricos, maior ou menor ênfase à economia política da comunicação e às estruturas interpretativas. Busco expor os contornos gerais de um debate histórico, para mostrar dialeticamente as múltiplas determinações, materiais e simbólicas, que estruturam a construção hegemônica da realidade.

A autorrevolução e a reprodução social incessantes e permanentes do sistema capitalista são expressas no modo como o capital avança sobre todas as áreas da vida e todos os setores de produção; e na efemeridade de suas fórmulas, seus produtos e processos que substanciam desejos e necessidades, características acentuadas na contemporaneidade, denotando a lógica cultural do capitalismo avançado, chamada por alguns autores de pós-modernidade. Conquanto reconheça a relevância de formulações marxistas ortodoxas, a questão do determinismo econômico não pode ser confundida com reducionismo econômico, pois há múltiplas determinações – culturais, comunicacionais, ideológicas e políticas – que confluem e operam na construção e na interpretação da realidade.

Na história da teoria da comunicação, percebemos a mudança, que aqui exponho de forma bastante sucinta, de enfoque teórico: do marxismo ortodoxo para uma perspectiva gramsciana. Sobretudo durante a década de 1970, o embasamento das pesquisas recaía na chamada “teoria da dependência”, na qual a situação de subordinação na economia política global teria como “reflexo” a dependência no desenvolvimento cultural, o que é sintomático de uma abordagem marxista ortodoxa. Enquanto na virada para os anos 1980, devido a fatores endógenos como o processo de redemocratização do país, o surgimento de novos atores sociais e a reorganização e a maior valorização do papel da sociedade civil, como efeito retardado da descrença no “Estado como lugar e instrumento privilegiados das mudanças sociais”,[3] e mudanças globais, como a intensificação do processo de globalização, com os vertiginosos avanços dos meios de comunicação de massa e das novas TICs, há uma valorização, por vezes exagerada, do papel ativo do receptor na decodificação das mensagens, na constituição de sentidos.

A questão do determinismo econômico é cara ao marxismo e aos seminais estudos de comunicação. Quando Marx afirma que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”,[4] marca uma posição filosófica e política diametralmente oposta à filosofia idealista, mostrando que é nas práticas sociais, no trabalho, na posição ocupada na estrutura social e nas relações sociais advindas dessa posição na estrutura, que a consciência é forjada.

O chamado marxismo vulgar, com seu famigerado apelo economicista, é obra de leitores de Marx que se vinculam à tendência comumente chamada ortodoxa. Gramsci, que desenvolveu suas formulações a partir de sua vinculação marxista-leninista, sem, contudo, compactuar dessa ortodoxia, afirma que:

A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infraestrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, devendo ser combatida praticamente com o testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas.[5]

Gramsci possui um papel destacado na história do marxismo e do pensamento ocidental, entre outros aspectos por ter conferido centralidade à comunicação e à cultura no processo de luta política, buscando conciliar, tal qual Lênin, teoria e prática revolucionária. O que se torna evidente na seguinte passagem:

A identificação de teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional. Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloque especialmente em determinados momentos históricos, os quais se chamam “de transição”, isto é, de mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e expansivas, ou então se multiplicam os programas teóricos que demandam, também eles, a sua justificação realista, o que ocorre na medida em que demonstram a sua possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam práticos e reais.[6]

É pertinente abordar, ao menos em linhas gerais, alguns delineamentos históricos da construção do pensamento de Antonio Gramsci, visto que nos estudos de comunicação o autor costuma aparecer ora como força oculta, ora como um culturalista, o que é ainda mais preocupante, acadêmica e intelectualmente, pois em seu trabalho não há uma sobrevalorização do aspecto cultural nem tampouco do papel ativo do sujeito ou da sociedade civil nas possíveis transformações históricas, e sim um grande esforço intelectual e político para pensar as relações entre cultura, comunicação, política, Estado, estrutura social e papel da sociedade civil para sedimentar a revolução. Os conceitos de hegemonia, de bloco histórico, de cultura popular, de ideologia, as questões das relações entre estrutura e superestrutura foram desenvolvidos para conciliar teoria e prática com vistas à revolução comunista na Itália do início do século XX.

O conceito de bloco histórico de Gramsci enseja uma reflexão sobre a complexidade das relações entre estrutura e superestrutura, das relações entre os elementos superestruturais, a cultura, a ideologia, a comunicação, e da ardilosa constituição de um aparato hegemônico, estruturado por operações simbólicas que objetivam o equilíbrio/consenso entre dominantes e dominados. Ao refletir sobre a afirmação de Marx acerca da solidez das crenças populares e da força de uma persuasão popular ter a mesma energia de uma força material, Gramsci atesta que:

A análise dessas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que essa distinção de forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.[7]

 

Como o bloco histórico se mantém por meio de uma relação hegemônica, que é estruturada pela cultura, comunicação e ideologia, por sua vez mantidas e perpetuadas por instituições e práticas sociais e culturais, a relação entre classe dominante e classes populares é problematizada. Já que não há uma correspondência direta entre posição na estrutura e as ideias, a forma de lidar com os meios de comunicação, as instituições culturais, sobretudo com o Estado, é determinante na constituição da força política dos agentes sociais no processo histórico. E a forma de compreender essas relações, o sentido do posicionamento político do sujeito coletivo, é estratégica na elaboração de uma identidade cultural e de um aparato ideológico, pois é por esse prisma que se identificam os aliados, os inimigos e as formas de luta.

De acordo com Raymond Williams, um dos principais nomes dos estudos culturais, cujos textos constituíram a base desse projeto intelectual, acadêmico e político, inicialmente em solo britânico, fundamental para o pensamento que credita papel central à cultura nas práticas e processos sociais:

Nós temos que reavaliar “determinação” como o estabelecimento de limites e o exercício de pressões, e não como a fixação de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Nós temos que reavaliar “superestrutura” em relação a um determinado escopo de práticas culturais relacionadas, e não como um conteúdo refletido, reproduzido ou especialmente dependente. E, principalmente, nós temos que reavaliar “base” não como uma abstração econômica ou tecnológica fixa, mas como as atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, que contêm tradições e variações fundamentais, e por isso estão sempre em estado de processo dinâmico.[8]

Hegemonia e linguagem

O termo hegemonia foi criado por Lênin para “se referir à liderança que o proletariado russo deveria estabelecer sobre os camponeses nas lutas pela fundação de um Estado socialista”.[9] O conceito de hegemonia é posteriormente desenvolvido por Gramsci para pensar, dentro do contexto italiano, como as culturas populares, a filosofia do povo ou do “senso comum”[10] das classes populares eram heterogeneamente estruturadas a partir de elementos progressistas e da filosofia das classes dominantes, historicamente sedimentada.

[…] nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado.[11]

 

Gramsci buscava entender de que forma essa visão de mundo estava atrelada ao bloco de poder, e como o povo poderia, cultural e ideologicamente, se tornar a classe dirigente. “Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.”[12] Stuart Hall afirma que “ele tinha plena consciência do quanto as linhas divisórias ditadas pelos relacionamentos de classe eram perpassadas pelas diferenças regionais, culturais e nacionais; também pelas diferenças nos compassos do desenvolvimento histórico regional ou nacional”.[13]

E, como na guerra de posições[14] as superestruturas são as “trincheiras”,[15] a função dos intelectuais e a formação de novos intelectuais orgânicos são fundamentais na luta pela hegemonia política, pela conquista do dirigismo político-ideológico, para a formação de novos blocos de poder, para a transformação histórica.

A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”.[16]

As negociações entre os conteúdos ideológicos se expressam em processos comunicativos, por intermédio dos agentes sociais e sua relação com os distintos processos culturais e sociais de mediação, sobretudo nas relações com os meios de comunicação de massa e o Estado, compondo a complexa trama da dialética cultural contemporânea. Nesse ínterim, o popular, numa acepção sociológica, que associa cultura popular com a cultura feita pelo povo, pelas classes populares, é um campo privilegiado para pensar as disputas simbólicas por poder que estruturam os processos de comunicação – produção, circulação, troca, apropriação, expropriação –, visto que são forças com potencial antagonismo ao poder estabelecido, sobretudo quando organizadas em movimentos.

As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta. O termo “popular” indica esse relacionamento um tanto deslocado entre a cultura e as classes. Mais precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que constituem as “classes populares”. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é a área à qual o termo “popular” nos remete. E ao lado oposto a isso – o lado do poder cultural de decidir o que pertence e o que não pertence – não é, por definição, outra classe “inteira”, mas aquela outra aliança de classes, estratos e forças sociais que constituem o que não é o “povo” ou as “classes populares”: a cultura do bloco de poder. O povo versus o bloco de poder: isso, em vez de classe contra classe, é a linha central da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmente, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco de poder. Isso confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade.[17]

 

Assim, não é possível uma associação imediata entre as construções simbólicas desenvolvidas ou apropriadas pelas classes populares com sua relação com os discursos oficiais e seu posicionamento diante deles, do bloco de poder, das forças sociais em jogo e disputa. A consciência de fazer parte de um grupo cultural e social popular, de constituir a força simbólica e política do povo não é imediata, implica o desenvolvimento de um conjunto de mediações frente aos processos perpetuados pelas instituições culturais, políticas e pelos aparatos comunicacionais do bloco de poder estabelecido.

Em suas inflexões de cunho epistemológico, Bakhtin (1895-1975) buscou preencher uma lacuna existente no campo do marxismo acerca das relações entre linguagem, ideologia e estruturas sociais, e sua validade histórica persiste, criticando com peculiar perspicácia tanto acepções de caráter subjetivista e idealista quanto as de cunho mecanicista, estas no âmbito do marxismo. Ao afirmar que “tudo que é ideológico é um signo”,[18] mostra-nos que a reprodução social e a reificação são substanciadas por operações linguísticas, compreendendo aqui ideologia no sentido primário marxista, como engodo, máscara que oculta os processos de expropriação e lutas de classe. A própria consciência é formada pela materialidade dos signos e se expressa também por mecanismos linguísticos, pela palavra, prenhe de sentido e cuja fecundidade está diretamente ligada ao grau de orientação social, ao horizonte social dos interlocutores, que podemos também compreender como consciência de classe. Nisso consiste a maleabilidade da palavra, que pode adquirir formas e sentidos diversos conforme seu conteúdo e sua intenção ideológicos, bem como sua função: estética, científica, política, social etc. De acordo com o autor,

classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.[19]

Não obstante, esse caráter multifacetado do signo ideológico, que permite adequações conforme os interesses de classe e a orientação social dos coenunciadores, é obstruído pelas classes dominantes, pelo bloco de poder e seus mecanismos de reprodução social, pois essa dialética interna do signo faculta às classes populares materiais simbólicos para construção de um discurso contra-hegemônico. Dessa forma, as palavras que expressam a ideologia dominante são mostradas com unicidade, legitimando a face que lhe corresponde e ocultando outras possibilidades.

Fragmentações do horizonte social

O econômico fornece o repertório de categorias que serão utilizadas no pensamento. O que o econômico não pode fazer é (a) fornecer os conteúdos particulares dos pensamentos das classes ou grupos sociais em qualquer tempo específico; ou (b) fixar ou garantir para sempre quais ideias serão utilizadas por quais classes. A determinação do econômico sobre o ideológico pode, portanto, acontecer apenas em termos do estabelecimento anterior de limites que definam o terreno das operações, estabelecendo a “matéria-prima” do pensamento.[20]

Embora refutemos abordagens mecanicistas que expressem reducionismo econômico, é inegável, ao menos em última instância, as determinações de ordem econômica, mas essa característica estrutural, ao contrário de estancar possibilidades de compreensão e transformação da realidade, nos impele a desenvolver inflexões tensionadas a abarcar a totalidade dos processos. É certo que os desafios para compreender a complexidade da realidade e suas possibilidades de transformação são cada vez maiores, e as brechas para construção de outro horizonte social, cada vez menores.

Nesse período histórico, apresentam-se fenômenos socioculturais, como fragmentação das identidades, dos conceitos, maleabilidade dos processos, efervescência de imagens, que expressam a lógica cultural do capitalismo avançado. Essa efervescência e essa fragmentação são corolários de mudanças estruturais, do processo destrutivo do capital cada vez mais veloz e avassalador, e são a face aparente, a imagem que perpetua essa mesma estrutura social, o que só interessa ao bloco de poder estabelecido.

David Harvey contribui bastante para esse debate.[21] O autor analisa a pós-modernidade como situação histórico-geográfica. Mostra-nos que na pós-modernidade são intensificadas características fundamentais da modernidade e da própria lógica capitalista de produção, como a efemeridade de produtos, ideias e processos históricos.

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. […] Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que a substituem tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que a sustente. Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.[22]

Para David Harvey, o que gera a multiplicidade e a fragmentação de imagens, conceitos e identidades, sintomas característicos da pós-modernidade, é a alteração das forças produtivas e das relações de produção. O que ocorre, de acordo com as análises do autor, com a mudança do modelo de acumulação fordista para o de acumulação flexível. Com o processo de compressão do espaço-tempo, ou “destruição do espaço através do tempo”, provocado pela interconexão global em redes de comunicação, são exacerbadas a fugacidade das construções materiais e simbólicas, o fetichismo da mercadoria, a necessidade do mercado de se apropriar incessantemente de símbolos, imagens e discursos construídos por diferentes grupos étnicos, sociais e culturais para criação de desejos e necessidades de consumo.[23] Multiplicam-se as linguagens e os discursos, os referenciais de identidade e de luta política, as formas de opressão e propostas alternativas de construção de outra realidade. O autor sugere que “a ideia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter essa voz aceita como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno”.[24]

Obviamente que a pós-modernidade trouxe à tona alteridades regionais, de gênero, de raça e de geração, identidades culturais historicamente oprimidas que tiveram possibilidade de inserir e modular suas vozes na agência histórica. Entretanto, há uma reação perversa no processo do capital a essa proliferação de novas identidades e sua sobrevalorização, que é a acentuada ocultação de processos estruturais, haja vista que a marcha do capitalismo global possui mecanismos de poder para obstruir outras – de gênero, de raça, comportamentais etc. – que muitas vezes não criam seus aparatos conceituais e linguísticos com possibilidade de conter ou reverter sua lógica estrutural. Essa fragmentação tem como corolário também um horizonte social deveras fragmentado, bem como orientações sociais distintas. E os meios de comunicação de massa e as novas TICs atuam como grande espelho, provocando, por seus reflexos, deslocamentos, descentramentos, desterritorializações, mediando a visão dos atores sociais acerca da realidade, possibilitando a construção de novas identidades culturais, movimentos sociais, concomitantemente ao distanciamento cada vez maior de uma unidade política, de uma consciência de classe que possibilite transformações históricas profundas.

As disputas hegemônicas e seus jogos de linguagem, tendo a palavra como construtora e mediadora simbólica, ocorrem em diferentes instâncias e dimensões. Dentro dos movimentos sociais, culturais, em virtude das matizações ideológicas distintas, e também nas relações com os meios de comunicação de massa, o Estado, o bloco de poder.

A disputa do/no hip-hop

As relações no movimento hip-hop expressam bem esse jogo de poder.[25] No processo histórico e cotidiano de constituição do movimento, há distintas dimensões de lutas simbólicas para atribuir sentido ao hip-hop: disputas internas, entre as principais vertentes do movimento hip-hop, e externas, na relação com os meios de comunicação de massa, a indústria cultural e o poder público.

Há uma grande diversidade no posicionamento político, nas formas de se trabalharem as matrizes sociais, étnico-raciais, de gênero e geração, de acordo com as referências históricas e culturais de cada cidade e dos integrantes das organizações de hip-hop: as posses. Posse é o nome criado para as organizações em que trabalham os elementos artísticos – MC, DJ, breaking (a dança de rua mais praticada) e graffiti – em torno de uma visão de mundo e um projeto político, que eles entendem e denominam como o quinto elemento. Atualmente há grandes organizações de hip-hop atuando em projetos políticos mais amplos, em nível nacional e internacional, desenvolvendo alianças com outras entidades, principalmente movimentos negros e partidos políticos de esquerda. Há, inclusive, na tendência classista de hip-hop, que possui como um de seus principais representantes políticos a organização nacional Nação Hip-Hop Brasil, um diálogo com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.[26]

Em síntese, há uma disputa interna, na qual se apresentam três grandes tendências: uma que trabalha com centralidade na questão de raça, outra com ênfase na luta de classes, e uma terceira tendência que podemos chamar de culturalista, que entende que as transformações sociais são resultado do trabalho de formação cultural e cidadã. O trabalho de formação artística, cultural e política desempenhado por essas organizações, constituindo um processo de comunicação e educação, possibilitando a construção de uma consciência crítica, é desenvolvido numa tensão constante, tal qual um cabo de guerra, para atribuir sentido ao movimento hip-hop.  Há tensões internas e uma disputa incessante com os meios de comunicação de massa e o poder público. A visão do Estado é predominantemente a da educação bancária, sem margem para o diálogo, nos dizeres freirianos, com políticas em grande parte com intentos domesticadores.

Os meios de comunicação de massa desenvolvem recortes que privilegiam o bem de consumo simbólico, rentável para a indústria cultural, expropriando seu caráter ideológico, as palavras com potencial para combater, sinalizar e talvez operar mudanças na estrutura social. No caso do hip-hop, associando-o ao rap, reduzindo o conjunto de expressões de um movimento complexo a mais um produto cultural, criando um discurso metonímico, extremamente prejudicial para o caráter político do movimento.

No dia 27/6/2011, uma segunda-feira, quando circula na Folha de S.Paulo um suplemento com matérias selecionadas do New York Times , saiu, na seção Arte & Estilo, uma matéria intitulada “Conhecido por fundar o reggae dancehall” – o que mostra que a estratégia não é uma particularidade nacional. Escrita por Rob Kenner, é uma clara alusão ao hip-hop como gênero musical. A matéria apresenta a seguinte frase logo no lide: “Durante um concerto de reggae e hip-hop em Miami, o DJ Nuffy começou a apresentar o artista de reggae dancehall Vybz Kartel.”

Já no caderno Ilustrada, que apresenta notícias de arte, cultura e entretenimento, do dia 22/6/2011, há matéria sobre lançamento do álbum Doggumentary, do rapper multimilionário e presença constante na mídia, Snoop Dogg. No sétimo parágrafo está a seguinte frase: “Snoop descobriu seu talento para o rap aos 15 anos, quando participava de disputas de hip-hop no colégio.”

Mais uma vez, claramente, a palavra hip-hop é exposta como gênero musical. Nesses casos, sobrepõe-se o valor de troca sobre o valor de uso da palavra. Palavra que, velada, violada e expropriada, vende um bem de consumo aparentemente asséptico, porque travestido de roupagem mercadológica. Assim, isso significa “afirmar que o exercício da língua só parece importar enquanto valor de troca e não de uso mostra o sentimento redutor que acompanha as operações com muitas das palavras em circulação nos media”.[27]

O combate e o exemplo do MST

Na relação com o MST, essa postura dos media é ainda mais agressiva. Isso se explica pelo posicionamento radical do movimento, que faz estremecer o bloco de poder ao construir e mostrar outra lógica de organização e domínio do espaço e do tempo – que se contrapõe enfaticamente à lógica do capital, representado pelo agronegócio, por amplos setores do Estado e pelas multinacionais da comunicação – demonstrando possuir voz própria, que pode e quer ser protagonista da sua história, agente principal das grandes transformações históricas. Pelos impactos simbólicos de suas ações, tendências de movimentos populares urbanos veem no MST um importante espelho para construírem sua identidade de classe e seus projetos de luta pela soberania popular.

Esse movimento incomoda não somente porque traz de volta ao cenário político a questão agrária, que é problema secular no Brasil. A impressão é de que o seu próprio jeito de ser é o que incomoda mais: suas ações, mas, principalmente os personagens que faz entrar em cena, e os valores que esses personagens encarnam e expressam em suas ações, sua postura e sua identidade, que podem, aos poucos, espalhar-se e constituir outros sujeitos, sustentar outras lutas.[28]

O que já era visível empiricamente e também por intermédio de algumas pesquisas sobre o tema, ao menos para os que militam, pesquisam ou se sensibilizam com as disputas por sentido nas formas de representações de movimentos sociais, que é a intensa criminalização por parte da grande mídia, ficou ainda mais evidente a partir de pesquisa desenvolvida pelo Intervozes, coletivo de comunicação social que luta pela democratização dos meios de comunicação. O Intervozes realizou uma pesquisa sobre a cobertura feita pela mídia impressa e televisiva sobre o MST no período da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, realizada em 2010, para investigar o movimento. O corpus da pesquisa é formado por três jornais de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo); três revistas também de circulação nacional (Veja, Época e Carta Capital); e os dois telejornais de maior audiência no Brasil: Jornal Nacional, da Rede Globo, e Jornal da Record. Das 301 matérias pesquisadas, são consideradas apenas matérias que citam explicitamente o MST. O período pesquisado foi de 10/2/2010, data da primeira reunião da CPMI, até 17/7/2010, dia da votação do relatório final da referida Comissão. Alguns dados importantes da pesquisa: em apenas 18,9% das matérias o MST é ouvido, ou seja, raramente o MST é fonte; há uma clara predominância de abordagem pejorativa, foram encontrados termos negativos em 59,1% das matérias; o tema da reforma agrária, principal bandeira de luta do movimento, aparece em apenas 14,6% delas; em apenas 13% das matérias são citados dados estatísticos e em 13,6% são citadas legislações, o que revela, ao menos, jornalismo leviano. No caso dos telejornais, não há qualquer menção à legislação. A pesquisa atesta o caráter panfletário, faccioso e editorializado por parte das matérias construídas pela grande mídia.[29] Obviamente, o MST também possui forte aparato de comunicação que combate ideologicamente o viés da mídia corporativa, entretanto este não tem alcance de massa, o que impossibilita grandes repercussões, inclusive nas novas TICs.

O jogo continua

Pensemos no diálogo freiriano, no humanismo científico e radical, como norte para a mobilização popular, como caminho para encontrar a unidade na diversidade. Conforme o autor, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos”.[30] Mais adiante, Paulo Freire explica o caráter desse humanismo, que define como científico. “Humanismo, que vendo os homens no mundo, no tempo, ‘mergulhados’ na realidade, só é verdadeiro enquanto se dá na ação transformadora das estruturas em que eles se encontram ‘coisificados’, ou quase ‘coisificados’.”[31] Assim como as práticas sociais e a estrutura social constituem o aporte primário para a consciência, a palavra é a base estruturante e o caminho pelo qual o pensamento e a consciência são erigidos, conceitual e simbolicamente. O sentido não está guardado, enclausurado no significado, mas é algo maleável, errático, que se encontra no processo de interação social, nos jogos de linguagem, na busca pela significação, que pressupõe coenunciadores e mediação da história e da palavra – significante e significado – moldados ideologicamente conforme o contexto, a orientação e o horizonte social dos interlocutores. Dispomos, a princípio, de um mesmo campo sígnico, maleável e neutro a princípio, para a construção das pontes da significação, erigidas no diálogo. O jogo de poder, da dialética cultural e da luta pela hegemonia na contemporaneidade tem na linguagem, na palavra e em sua ideologia correspondente, a sua face sensível, moldando e sendo modelada conforme as disputas colocadas pela agenda histórica. O jogo continua.

 

Pablo Nabarrete Bastos é professor, mestre em Comunicação Social na Uninove. Doutorando em Ciências da Comunicação do PPGCOM da ECA-USP, linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob a orientação do Prof. Dr. Celso Frederico. Apresentou artigos em congressos e encontros de comunicação, cultura, cidadania, culturas populares e política. Autor do artigo “Jogo de espelhos”, publicado no livro Comunicação para a cidadania, caminhos e impasses, editado pela E-Papers, compilação de trabalhos publicados no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, em 2007 na cidade de Santos. E-mail: pablobastos@hotmail.com; pablonabarrete@usp.br.


Notas

 

 

[1] Trabalho apresentado inicialmente ao GP Comunicação para a Cidadania, do XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação da Intercom, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Publicado aqui com alterações.

[2] MARX, 2007, p. 47.

[3] SADER, 1995, p. 33.

[4] MARX, 2007.

[5] GRAMSCI, 1966, p. 117.

[6] Ibid., p. 51.

[7] Ibid., p. 63.

[8] WILLIAMS, 2005, p. 214.

[9] HALL, 2003, p. 294.

[10] Gramsci considera que todos somos filósofos e que no senso comum está implícita uma visão de mundo. “Deve-se, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e características dessa “filosofia espontânea”, peculiar a “todo mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por “folclore”. (GRAMSCI, 1966, p. 11).

[11] GRAMSCI, 1966, p. 12.

[12] Ibid., p. 62.

[13] HALL, 2003, p. 283.

[14] O conceito de “guerra de posição” faz parte da teoria da hegemonia e responde à exigência de definição das características históricas novas da luta política no mundo depois da Grande Guerra e da Revolução de Outubro. (…) A importância do conceito de “guerra de posição” se afirma, então, como o ponto de chegada e de máxima generalização do raciocínio. Esse modo de desmontar teoricamente o economicismo pode ser considerado o aspecto de maior originalidade da tradição comunista italiana e também a diferença mais evidente em relação às outras correntes do movimento comunista e socialista internacional. (VACCA, 2006).

[15] HALL, 2003.

[16] GRAMSCI, 1968, p. 10.

[17] HALL, op. cit., p. 245.

[18] BAKHTIN, 2010, p. 31.

[19] Ibid., p. 47.

[20] HALL, op. cit., p. 272

[21] HARVEY, 1993.

[22] MARX; ENGELS, 1987, p. 79.

[23] HARVEY, op. cit.

[24] Ibid., p. 52.

[25] Ver mais sobre as tendências e processos de construção de sentido sobre o movimento hip-hop em BASTOS (2008).

[26] No projeto de doutorado que desenvolvo junto à ECA, na linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob orientação do Prof. Dr. Celso Frederico, pesquiso os impactos da comunicação, da cultura e da ideologia do MST nos movimentos populares urbanos.

[27] CITELLI, 2006, p. 60-61.

[28] CALDART, 2004, p. 27.

[29] O estudo se chama Vozes silenciadas e está disponível em http://www.intervozes.org.br/publicacoes/livros/copy_of_vozes-silenciadas/.

[30] FREIRE, 1977, p. 43.

[31] Ibid., p. 74.

 

Referências bibliográficas

BACCEGA, M. A.; CITELLI, A. O. Retórica da manipulação: os sem-terra nos jornais. Comunicações e Artes. São Paulo, n. 20, 23-29 abr. 1989.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.

BASTOS, Pablo Nabarrete. Ecos de espelhos. Movimento hip-hop do ABC Paulista: sociabilidade, intervenções, identificações e mediações sociais, culturais, raciais, comunicacionais e políticas. São Paulo, 2008. Dissertação de Mestrado – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem-Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

CITELLI, Adilson. Comunicação e linguagem: diálogos, trânsitos e interditos. Revista Matrizes. ECA-USP, ano 2, n. 1, 2008.

______. Palavras, meios de comunicação e educação. São Paulo: Cortez, 2006.

MARX, Karl. Ideologia alemã. In: ______; Engels, F. Textos 1. São Paulo: Boitempo, 2007.

______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

______; Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 1987.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

______. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFM, 2003.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.

VACCA, Giuseppe. Guerra de posição e de movimento. Disponível em: <http://www.intervozes.org.br>. Acesso em: 26 dez. 2011. WILLIAMS, Raymond. Base e estrutura na teoria cultural marxista. São Paulo: Revista USP, n. 65, mar.-maio 2005.

WILLIAMS, Raymond. Base e estrutura na teoria cultural marxista. São Paulo: Revista USP, n. 65, mar.-maio 2005.

 

 

 

 

 

Karl Marx e Walter Benjamin | de Marco Antonio Bonetti

Introdução

A valorização do otimismo presente nas dimensões teológica e tecnológica da obra de Walter Benjamin tem desembocado, por vezes, em menosprezo da sua faceta marxista, o que resulta, na perspectiva do presente artigo, num claro desvio de rota em relação às intenções do autor. Apesar de vasta fortuna crítica filiar o autor da Escola de Frankfurt ao marxismo, ou de ele mesmo citar Karl Marx com frequência em seus escritos, tratar uma obra filosófica complexa como a dele tal qual um bloco concreto que pudesse ser dissecado em partes menores independentes e, o que é pior, possibilitar que tudo o que se refere ao marxismo possa ser posto de lado, sem que se coloque em xeque o alto grau de deturpação do pensamento de Benjamin que tal atitude significa, devem ser consideradas atitudes, no mínimo, resultantes de deficiência metodológica grave.

A presença de um estilo de escrita em fragmentos em alguns de seus compêndios, como Rua de mão única e Passagens, pode ter dado margem a esse tipo de deslize metodológico, mas não seria por isso que ele deixaria de ser um equívoco, mesmo se explicado por essa razão, um violento desvio teórico. O que pretendemos destacar no presente artigo é, em primeiro lugar, a filiação clara do pensamento de Benjamin em relação a Marx, utilizando como objeto dessa análise o texto sobre Charles Baudelaire. Depois, apresentamos como Benjamin analisa o estilo de produção teórica por meio de fragmentos, recurso que terá por objetivo explicitar como e por que o próprio autor aderiu a esse gênero de produção. Sua reflexão sobre esse tema encontra-se na tese de doutoramento em que analisa o fragmento e o conceito de crítica de arte do romantismo alemão.

 

A metodologia de análise aplicada a Baudelaire

O ensaio de Walter Benjamin “Paris do Segundo Império” principia com uma citação de Karl Marx: a sua ideia de que a boêmia do século XIX era uma espécie de esfera pública onde se encontravam os conspiradores profissionais. Eles são divididos por Marx em conspiradores casuais – operários com outras ocupações além da política e que só compareciam quando convocados pelos chefes – e em profissionais – os líderes que viviam da militância. A estação fixa desses últimos eram as tavernas dos distribuidores de vinho.

Benjamin destaca que a ascensão de Napoleão III deu-se num meio boêmio desse gênero e que seu governo incorporou toda ordem de práticas comuns ao submundo: as conspirações, o tráfico de segredos e as ironias impenetráveis – marcas também presentes na obra de Baudelaire. A ação e o discurso, nos campos respectivos da revolução política e da literatura, interpenetram-se um pouco pelo sentimento do nacionalismo e muito pelo efeito final das

maravilhas revolucionárias: bombas incendiárias, máquinas destrutivas de efeito mágico, motins que deverão resultar tanto mais miraculosos quanto menos bases racionais tiverem. Ocupados com esse frenesi de projetos, não têm outra meta senão a mais próxima – ou seja, a derrubada do governo existente – e desdenham profundamente o esclarecimento mais teórico dos trabalhadores sobre seus interesses de classe. Daí sua raiva, não proletária, mas plebeia, contra os habits noirs (capas-pretas), as pessoas mais ou menos cultas que representam esse lado do movimento.[1]

Para explicitar melhor o tipo de gente que se reúne ali, Benjamin cita uma frase com a qual o escritor Flaubert resumiria esse espírito de época: “De toda a política só entendo uma coisa: a revolta.”[2]

Para Benjamin, Baudelaire representa uma metafísica do provocador no grau mais elevado e mais irresponsável: “Digo ‘viva a Revolução’ como diria ‘viva a destruição! Viva a expiação! Viva o castigo! Viva a morte!’ Seria feliz não só como vítima; tampouco me desagradaria representar o carrasco, a fim de sentir a revolução pelos dois lados!”[3]

Benjamin percebe, nesse frenesi de pulsão de morte, a energia do fascismo, que se deixa entrever como uma espécie de transe de guerra. Cita mais uma vez Baudelaire: “Podia-se organizar uma bela conspiração com o intuito de exterminar a raça judaica.”[4] O que Baudelaire representa é o delírio da guerra, uma espécie de meia-luz do transe, da droga e do sangue. Conforme Paul Virilio, é nessa loucura que “se produz uma unidade que identifica em seu corpo a corpo aliados e inimigos, vítimas e algozes”.[5] Virilio percebe que

o homem só é capaz de suportar uma determinada quantidade de terror… [a partir daí,] a primeira vítima da guerra é o conceito de realidade […] ainda que, em 1942, mais de dois milhões de judeus já tivessem sido assassinados, a imprensa judaica na Palestina ainda encontrava motivos para estar tranquila em relação aos centros de educação agrícola na Polônia e em outros países, interpretando signos que já não tinham mais sentido; rejeitando as informações exatas por serem por demais aterrorizantes.[6]

Baudelaire representa esse extremo, já colocado além do bom senso, no lugar da pura revolta. Mas Benjamin percebe como a produção de Baudelaire pode ser útil, já que representa justamente o estado de embriaguez cega. Marx denuncia essa cegueira irracionalista que se pauta na própria energia destrutiva do sujeito numa verdadeira guerra pura contra tudo e contra todos. Uma cólera de dimensão quase demoníaca. Baudelaire diz: “Se alguma vez recuperar o vigor e a energia que já possuí, então desabafarei minha cólera através de livros horripilantes […] Quero incitar toda a raça humana contra mim.”[7] Essa fúria alimentou os conspiradores profissionais em Paris, que erguiam barricadas. “Eles – escreve Marx a respeito desses conspiradores  – são os alquimistas da revolução e partilham inteiramente a desordem mental e a estreiteza das ideias fixas dos antigos alquimistas”.[8]

Esquematicamente, percebemos que Marx critica os vapores das tavernas porque eles desviam as energias primitivas do sujeito de uma perspectiva revolucionária para a alienação etílica. Baudelaire é o alienado típico. Embriaga-se e louva o vinho dos trapeiros – lançando-se vorazmente na direção desses catadores de retalhos do século XIX, uma das classes mais miseráveis do período. Enquanto isso, Benjamin percebe o quão bem Baudelaire impregna, na forma artística de sua literatura, aquela mesma energia analisada por Marx, que poderia desembocar numa ação racional revolucionária, mas, na forma do torpor poético, gera somente uma pura e cega vontade de destruição. Com base nessa forma, o salto dado por Benjamin  é descobrir, no mecanismo do vinho, um prelúdio da alienação dos meios de comunicação. O vinho já é uma primeira manifestação muito primitiva de tecnologias de alienação, poupava ao governo muitos conflitos. “O vinho transmite aos deserdados sonhos de desforra e de glórias futuras”.[9] Esse torpor vai se materializar na sociedade de mercado na figura da indústria cultural. É possível antever ali o prenúncio do papel dos meios de comunicação de massa, que assumirão essa função narcótica a partir do século XX. E a própria intelectualidade se familiarizará com o mercado ao assumir esse novo papel de produtor de vinho, ou melhor, de mídia.

 

Alienação e tecnologia vistas da perspectiva econômica

A ponte entre esses três posicionamentos é, portanto, uma relação dialética. Do ponto de vista metodológico, percebe-se ali uma construção polifônica promovida por Benjamin, nos moldes dos trabalhos em fragmentos, que só se constituem numa unidade atualizada na síntese benjaminiana. Essa mesma estrutura pode ser identificada em relação ao conceito marxista de alienação. Marx tece sua análise sobre a alienação a partir de uma perspectiva econômica. Há uma presença desse caráter inebriante no capitalismo, desde seu elemento mais básico:

a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total […] os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos […] chamo a isso fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias.[10]

O fetichismo – termo que guarda relação com os mistérios e o animismo dos povos primitivos, e não com seu sentido no campo da sexualidade – é esse passe de mágica com o qual o capitalismo faz desaparecer dos produtos as marcas de quem os produziu, os trabalhadores.

O capitalismo esconde que

ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano […] Daí a magia do dinheiro. Os homens procedem de maneira atomística no processo de produção social e suas relações de produção assumem uma configuração material que não depende de seu controle nem de sua ação consciente individual.[11]

Essa ausência de consciência do processo de geração de riqueza resulta na alienação que colabora com a manutenção da exploração capitalista.

O processo dinheiro-mercadoria-dinheiro [o investidor compra matéria-prima e mão de obra por 10 e vende a mercadoria a 15] não deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa entre seus extremos [Dinheiro – 10 – e Dinheiro – 15], pois ambos são dinheiro, mas há diferença quantitativa entre esses extremos […] Esse acréscimo sobre o valor primitivo chamo de mais-valia.[12]

Marx percebe que o nascedouro desse “lucro” é a exploração da mão de obra. O capitalista coloca 10 em circulação e retira 15 do mercado, ou seja, alguém perdeu 5 e vai ter de pagar por isso. Como? Vendendo sua força de trabalho. O proletariado não tem consciência desse processo. Ele é totalmente alienado. Para Benjamin, Baudelaire representa a energia do trabalho em sua feição destrutiva, individualista e irresponsável, que pode ser caracterizada como a completa alienação, tanto no sentido da perda da razão quanto no do desconhecimento de seu próprio lugar e força históricos.

O passo decisivo de Baudelaire nesse sentido seria sua submissão como força de trabalho à própria indústria do folhetim, por mais raivoso que fosse seu próprio discurso. Benjamin descreve o surgimento e o papel da mídia a partir dos anos 1830, mostrando que ela passa a basear-se em notícias curtas, reclames que geravam os fluxos financeiros e de interesses, e em folhetins, que atraíam públicos imensos. “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”.[13] Anúncios eram colocados ao lado de notícias que falavam bem do produto. Autores recebiam até 600 mil francos por uma única obra de sucesso. Outros, como Alexandre Dumas, só assinavam obras prontas, escritas por tacanhos funcionários públicos malvestidos. Baudelaire também teve de se submeter a esse emprego, embora preservasse um senso crítico dos mais mordazes, que o fazia se comparar diversas vezes a uma prostituta. Não faturou mais do que 15 mil francos ao longo de toda a sua vida com esse trabalho. E percebeu que seu objetivo, ao se aproximar desse mercado dos folhetins, não era olhar, mas se vender. “Dificilmente alguém possuía olhar mais penetrante que Baudelaire para os aspectos problemáticos desse fenômeno brilhante.”[14]

Outro aspecto sobre o qual Benjamin dialogou com Marx dizia respeito à sua visão da técnica. Marx não tinha uma visão negativa da tecnologia, não importando a forma sob a qual ela se apresentasse, desde um pequeno utensílio até uma linha de montagem fabril. “Surge em lugar da máquina isolada um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho.”[15]

É incontestável que a maquinaria em si mesma não é responsável de serem os trabalhadores despojados dos meios de subsistência. A maquinaria, como instrumental que é, encurta o tempo de trabalho, facilita o trabalho, é uma vitória do homem sobre as forças naturais, aumenta a riqueza dos que realmente produzem, mas, com sua aplicação capitalista, gera resultados opostos: prolonga o tempo de trabalho, aumenta sua intensidade, escraviza o homem por meio das forças naturais, pauperiza os verdadeiros produtores”.[16]

 

Da economia para a comunicação

A transposição do pensamento de Marx para Benjamim e Theodor Adorno tem como principal marca o abandono do subterrâneo no qual Marx centrou sua análise, ou seja, o “local reservado da produção, em cuja entrada está escrito ‘No admittance except on business’”,[17] para chegar a esse outro lugar misterioso que é o campo da cultura, entendida num sentido mais amplo, envolvendo a esfera da comunicação social. Os dois autores frankfurtianos partem também da base econômica.

O aumento da produtividade econômica, que, por um lado, produz as condições para um mundo mais justo, confere, por outro lado, ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos.[18]

A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa preservando as relações de produção existentes […] Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados.[19]

Adorno e Benjamin, todavia, fazem avançar a posição marxista, lançando, a partir dela, uma ponte em direção à análise do papel dos meios de comunicação de massa. No que diz respeito especificamente ao papel de instrumento de alienação, que os meios de massa representam, os dois autores também se posicionam em sintonia com o marxismo. Retomando o que já foi exposto, a mídia cumpre o papel do vinho do trapeiro. Adorno diz que

a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas, ao mesmo tempo […], [os programas de comunicação de massa] se tornam, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real […].[20]

Na mesma linha, para Benjamin:[21] “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.”[22]

O termo indústria cultural, cunhado por Adorno em 1946, dá conta dessa dimensão da alienação em massa propagada pelos meios de comunicação, daquilo que tem por função manter aceso o caráter de fetiche da mercadoria, esconder o lugar do trabalho no processo de produção da riqueza econômica, despotencializando a força transformadora da cultura, ao mesmo tempo que baixa seu nível a tal ponto que seu produto serve somente para o dispêndio de um tempo morto tão infecundo quanto o bêbado do vinho de barreira, que era vendido mais barato por não ter impostos, artimanha para a qual o governo fechava os olhos. Benjamin cita Marx: “No imposto do vinho, o camponês prova o bouquet do governo.”[23] No deslocamento a pé que famílias inteiras faziam até a fronteira, onde se encharcavam de bebida e, depois, voltavam cambaleando a pé para suas casas desfilando orgulhosos, eram queimadas as energias que, em outras condições, seriam direcionadas para erguer barricadas e questionar o poder dominante.

Para Adorno, a cultura já havia denunciado, desde seus primórdios, a figura do dominador, ilusionista, como no exemplo da personagem de Ulisses, em Odisseia, de Homero. Numa das passagens do livro, para escapar das sereias, o herói tapa os ouvidos dos seus soldados com cera e os obriga a remar, sem ver ou ouvir nada, dias a fio com toda a força. Diz Adorno:

Disso, a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar para a frente, esquecer o que foi posto de lado. A outra possibilidade é a escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor de terras que faz os outros trabalharem para ele.[24]

A indústria cultural é um dispositivo que impede o ser humano de ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos. Aliena a sensibilidade. Ilude as grandes massas humanas com a mesma artimanha com que Ulisses ludibriou o ciclope Polifemo. Nessa passagem de Odisseia, Ulisses diz que se chama “Ninguém” a fim de que o gigante ferido no único olho avise a todo seu povo que “Ninguém feriu seu olho”, para poder escapar da vingança dos ciclopes. Da mesma maneira como há quem diga que “Ninguém explora o trabalhador”.

O que Benjamin adiciona de potencialmente positivo nesse contexto é a constatação de que a máquina que reproduz cultura pode ser aliada do trabalhador. É o que destaca Benjamin, de modo muito original, no ensaio  “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Se, no capitalismo, um truque fundamental da mercadoria é que ela esconde o produtor, no caso do cinema, ocorre uma subversão. Não vemos o rosto de um operário quando olhamos uma escova de dentes ou um automóvel. Mas vemos seu rosto estampado quando olhamos para a tela de cinema. Assim:

O intérprete do filme […] conserva sua dignidade humana diante do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso, porque é diante de um aparelho que a maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem o cinema para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo.[25]

A tela ideológica do cinema russo de Dziga Vertov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin pode ser mais bem entendida nesse sentido. Retoma-se assim a proposta marxista na qual a maquinaria serve ao agravamento da exploração capitalista por potencializar o trabalho de poucos. Porém a industrialização, tanto da economia quanto da cultura, não é ruim. Ela pode servir ao desenvolvimento do socialismo. Só é preciso reverter seu uso perverso por parte do capital.

 

Fragmento perdido

Acreditamos, a partir desses exemplos, ter reiterado a ideia de que o marxismo está presente na obra de Benjamin de inúmeras formas, seja por meio da apropriação de conceitos – meios de produção, alienação da força de trabalho, fetichização da mercadoria, potencialidades sociais da maquinaria –, seja pela farta citação de passagens e ideias de Marx, apresentadas como base de sua reflexão. Passamos a explorar agora o conceito de fragmento em Benjamim, o que parece ser um dos elementos da sua obra que facilitou uma leitura recortada do autor, excluindo toda a dimensão marxista de seu pensamento.

O lugar em que Benjamin refletiu mais sistematicamente a respeito do fragmento foi sua tese de doutoramento, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Na apresentação da tradução para o português, o pesquisador Márcio Seligmann-Silva diz que

Benjamin foi o primeiro a valorizar a teoria romântica da “Reflexão”. Esse conceito está no centro dessa sua tese. Benjamin define a crítica como um “médium de reflexão”. Na medida em que ele pôs esse conceito no núcleo de sua tese, com todas as suas implicações de crítica ao modelo de teoria do conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e efeitos, e, portanto, de crítica também a uma concepção linear, tanto do desenvolvimento do conhecimento como também do desenrolar da própria história, ele trouxe à tona um debate – a crítica de um determinado modelo de razão e racionalidade – que está particularmente aceso na pós-modernidade .[26]

Percebemos que a escrita em fragmentos, na forma de aforismos, coloca-se em sintonia com o próprio conceito de “reflexão” no sentido explorado por Benjamin no texto sobre o romantismo alemão. O pensamento consegue pensar sobre si mesmo. O sujeito pensa a si mesmo como eu em algum momento. A análise dessa situação serve como garantia de ser possível ao pensamento gerar uma intuição intelectual no sentido proposto por Kant, ou seja, de que um conceito pensado crie um objeto no mundo. O modo dessa geração é que, quando o pensamento reflete, ele assume a forma de algo que lhe é preexistente, mas que não lhe é dado conhecer por meio de uma intuição sensível – simples presença no tempo e no espaço da intuição. Para desenvolver esse conceito, Benjamin se apoia na doutrina da ciência de Fichte, que foi quem percebeu essa abertura no pensamento kantiano, de desdobrar um reflexo da forma do conhecimento num pensamento que, ao ser pensado, adquire nova forma. A reflexão transforma.

Benjamin explica, com base em Fichte, que esse jogo da reflexão parte de uma base, que é a percepção de qualquer coisa dada no espaço e no tempo. “Vejo um livro”. Mas, então, a razão é capaz de elevar essa percepção primeira, fenomenológica, a um segundo grau, mais elevado, no qual compara o título do livro com outras obras que já estudei, e ainda a outro, em que percebe que há uma discordância entre o título e aquilo que o autor falou em textos anteriores etc. O jogo da reflexão vai elevando o pensamento numa escala que, na perspectiva romântica, o ligaria, elevada essa projeção até o infinito, ao absoluto.

É nessa escalada ideal do pensamento reflexivo rumo ao absoluto que surge outro conceito importante de Fichte, o conceito de “pôr”. Numa certa altura da reflexão é possível “pôr” algo e, a partir de então, esse algo que foi posto torna-se representação do pensamento. Ele representa aquela determinada altura do pensamento. Isso que é “posto” é a linguagem, é a representação. O signo põe um termo de estabilidade na escalada infinita da reflexão, dando representação ao estágio em que ela se encontra e que o signo é capaz de representar. A grande diferença, que vai separar o pensamento de Fichte do dos românticos, é que estes optam por um culto quase messiânico do infinito e do absoluto, dando margem à abertura de um misticismo que já vinha de longa data na literatura alemã. E é justamente nesse ponto que Benjamin vai se distanciar do pensamento romântico na sua própria práxis reflexiva. Seus fragmentos abrem mão do messianismo para dar voz ao tino do pensamento racional. Só que a maneira como a razão constrói conhecimento, em Benjamin, é a de uma razão que pensa de modo fragmentário, não linear, a partir de pequenas pílulas de saber que, como Benjamin destaca no texto “O narrador”, conservam, como germens de trigo armazenados por centenas de anos nas tumbas dos faraós, sua potencialidade germinativa. As ideias nunca morrem. A forma mais condensada, e portanto mais intensa, do pensamento é o fragmento.

Benjamin percebe a potencialidade do fragmento como forma de saber e o adota como uma metodologia sem ter de explicitá-la a todo momento. Com base nos românticos, Benjamin teve de deduzir essa metodologia a partir da análise dos textos, por isso será justamente em sua tese sobre o romantismo alemão que essa metodologia adotada pelo autor estará também explicitada. Ali, Benjamin diz que Schlegel não explicitou um sistema filosófico em sua produção teórica. Mas percebe que ele está subjacente ao pensamento do filósofo como um sistema coerente, claramente perceptível, que perpassa a produção fragmentária de Benjamin também. Trata-se do que Fichte chamou de filosofia cíclica. Ela se baseia em provas alternantes confrontadas com conceitos alternantes. Daí a filosofia ter de começar pelo meio. O caminho para conhecer a filosofia seria o círculo. Trata-se de um sistema dinâmico, cuja forma de entendimento é construída a partir da experiência do percurso, do caminho, o que Benjamin chamava de Erlebnis. Daí a impossibilidade de explicitação ou estabilização desse sistema num texto linear. Daí a necessidade da escrita em fragmentos.

Benjamin credita a dificuldade de Schlegel em explicitar seu sistema ao fato de ele ser também um artista, o que dificultou ao filósofo produzir um discurso totalmente sistemático. O meio privilegiado para ocupar o lugar da estabilidade central da reflexão foi, prioritariamente, e não só nesse filósofo, o da arte. Mas esse papel é ocupado em certos momentos pela cultura, pelo gênio, pela ironia, pela religião e até pela história. O trunfo positivo da arte que a faz figurar como objeto privilegiado da reflexão é a fecundidade da análise da arte, da reflexão sobre arte, ou seja, da própria crítica, que é o conceito fundamental que Benjamin quer esclarecer.

A produção da obra fragmentária de Benjamin não deixa de ser um processo crítico também. E crítica aí tem o valor que tinha já desde a perspectiva de Kant, quando escreveu as críticas, ou seja, textos que refletem até a exaustão as limitações e perspectivas do objeto de reflexão, a começar pela reflexão a respeito da própria razão.

Crítica, segundo Benjamin, é um dos termos mais recorrentes nos românticos. Serve até mesmo como elogio quando se queria falar muito bem de determinado trabalho. Em Kant, é a busca da verdade, mas tem um caráter quase mágico. Não é uma análise normativa, mas sim produtiva. É a elevação da reflexão às maiores alturas possíveis, um exercício extremo de reflexão. É o que ele, Benjamin, tenta fazer.

 

Conclusão

Feita essa apresentação dos pontos principais da análise de Benjamin a respeito do conceito de reflexão e crítica do romantismo, percebemos que foi com base também nesse mesmo pano de fundo filosófico que Benjamin passou a expor seu pensamento quando adotou, em seu trabalho, um estilo de escrita em fragmentos. O problema metodológico que nos dispusemos a debater neste artigo pode ser colocado agora em novas bases. Se o marxismo é tão nitidamente uma fonte básica do processo reflexivo de Walter Benjamin para alcançar as alturas a que seu pensamento conseguiu se elevar na reflexão a respeito da comunicação, das artes, das tecnologias, da religião e da história, a produção de signos postos como candidatos à representação de seu pensamento, mas que reneguem de algum modo a dimensão marxista, assim como qualquer outra de suas dimensões constituintes (influência do judaísmo, das relações pessoais, da peculiar leitura dos meios técnicos), constitui violenta deturpação ideológica do seu próprio processo de pensar.

Usando da figura benjaminiana do poder germinativo das sementes, o objetivo deste trabalho foi apontar para o risco de o estilo de Benjamin, de uma escrita em fragmentos, dar margem a interpretações que levam a desvios em relação à rota original do autor. E a posição que buscamos justificar foi a de que leituras antimarxistas de Benjamin constituem um desvio metodológico absurdo, que entra em conflito direto com o pensamento do próprio autor.

Na figura do flâneur a intelectualidade familiariza-se com o mercado. Para lá encaminha-se o flâneur, pensando dar apenas uma volta; mas, na verdade, é para encontrar um comprador. Nessa etapa intermediária, quando a intelectualidade tem ainda mecenas, mas já começa a se curvar às exigências do mercado (na forma do folhetim), ele constitui a bohéme. À indeterminação de sua posição econômica corresponde a ambiguidade de sua função política. Esta se manifesta com muita evidência nas figuras dos conspiradores profissionais que se recrutam na bohéme.[27]

O que garante o distanciamento crítico de Benjamin em relação a esse lugar do intelectual familiarizado com o mercado capitalista, evidentemente, é a permanente presença do aparato crítico marxista como tábua teórica de problematização dessa  questão. Sua supressão tira o pensamento de Benjamin do próprio eixo em que gravita e suprime até mesmo sua mais poderosa força analítica.

 

* Doutor em Semiótica e professor de Teoria da Imagem na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de Teoria da Comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM).

 


[1] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[2] FLAUBERT apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[3] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[4] Ibid., p. 12.

[5] VIRILIO, 1993, p. 12.

[6] Ibid., p. 61.

[7] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 12.

[8] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[9] BENJAMIN, 1994c, p. 16.

[10] MARX, 1968, p. 81.

[11] Ibid., p. 103.

[12] Ibid., p. 103.

[13] BENJAMIN, 1994c, p. 29.

[14] Ibid., p. 29.

[15] MARX, 1968, p. 435.

[16] Ibid., p. 506.

[17] Ibid., p. 196.

[18] ADORNO, 1985, p. 14.

[19] BENJAMIN, 1994c, p. 196.

[20] ADORNO, op. cit., p. 15.

[21] BENJAMIN, 1994a, p. 203.

[22] Passagem do texto “O narrador”. A abordagem de Benjamin é um pouco mais complexa por entrar até mesmo na especificidade do gênero textual. Benjamin contrapõe a narração, gênero textual que instiga o leitor a tecer sua análise a respeito da situação, à informação, gênero jornalístico por natureza que entorpece a mente do leitor ao se colocar como explicação extensiva do fato em todas as suas dimensões e em todos os seus porquês, sem que sobre para o leitor nenhum outro trabalho além de simplesmente ler e se ver informado. Nessa ramificação sutil surge um hiato no qual a própria informação pode ser alienante. Ou seja, na contraposição de um gênero que cobra a iniciativa do sujeito leitor, e outro, característico da indústria cultural que o entorpece tanto quanto uma bebida alcoólica, a própria informação se torna alienação, por mais paradoxal que essa afirmativa soe à primeira vista.

[23] BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[24] ADORNO, 1985, p. 45.

[25] BENJAMIN, 1994a, p. 179.

[26] SELIGMANN-SILVA, In: BENJAMIN, 1973, p. 11.

[27] BENJAMIN: 1994c, p. 61.

 

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

 

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 1999.

______. Magia e técnica, arte e política. 7. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1994a. (Obras escolhidas, v. 1).

______. Rua de mão única. 4. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1994b. (Obras escolhidas v. 2).

______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994c. (Obras escolhidas, v. 3).

______. Einbahnstrasse. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.

______. Moskauer Tagebuch. Frankfurt: Suhrkamp, 1980.

 

FICHTE, Johann Gottlieb. Sobre o conceito da doutrina da ciência. Fichte: São Paulo: Abril, 1982. (Coleção Os Pensadores).

 

GAGNEBIN, Jean-Marie. Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical).

______. História e narração em W. Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

 

MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

 

MATOS, Olgária. A escola de Frankfurt. São Paulo: Moderna, 1993.

 

MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamin. São Paulo: Iluminuras, 1998.

 

SELLIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Fapesp; Annablume, 1999.

 

VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993.

 

Youtube your Facebook! A reconfiguração dos dispositivos audiovisuais na internet e as novas plataformas digitais entendidas como aparelhos de captura e/ou como máquinas de guerra | Ivan Capeller

These are the days of miracle and wonder
Stacatto signals of constant information
This is the long-distance call
The way the camera follows us in slow-mo’
The way we look to us all

(Paul Simon, “The Boy in the Bubble”)

 

Smash the radio
No outside voices here
Smash the watch
Cannot tear the day to shreds
Smash the camera
Cannot steal away the spirits

(Peter Gabriel, “The Rythm of the Heat”)

 

O presente texto procura pensar o papel e a função das plataformas de comunicação digitais na reconfiguração técnica e estética dos dispositivos audiovisuais analógicos que precederam a internet 2.0 na história da indústria cultural dos meios de comunicação de massa modernos (telefonia e fonografia, fotografia e cinema, no século XIX; rádio, cinema sonoro e televisão, no século XX). Pretende-se verificar, sobretudo, se ainda é possível sustentar a pertinência das teorias da comunicação e da cultura de massa baseadas na possibilidade de se opor antiteticamente uma função apocalíptica dos meios de comunicação, considerados como dispositivos ou aparelhos de controle e direcionamento vertical e hierarquizado dos fluxos de informação, à sua função integrada de livre intermediação horizontal e aberta desses mesmos fluxos.

Nesta análise, serão aplicados os conceitos de aparelho de captura e de máquina de guerra à teoria da comunicação.[1] Embora esses conceitos não tenham surgido no âmbito de uma teoria específica da comunicação, sua aplicação em diversas áreas do conhecimento já recebe seus primeiros esboços no último capítulo de Mille Plateaux,[2] e é desenvolvida por Deleuze, no que diz respeito ao campo dos dispositivos audiovisuais, nos seus dois volumes posteriores sobre o cinema.[3] Porém, o nexo entre os estudos, de caráter mais amplo, que marcam os volumes escritos em parceria com Guattari, de um lado, e os volumes específicos sobre o cinema, de outro, só pode ser adequadamente estabelecido a partir da releitura que ambos fizeram da pragmática de Charles S. Peirce.[4] Assim, aplicaremos essa pragmática inicialmente ao cinema, entendido como um dispositivo audiovisual modelar e paradigmático dentre as plataformas analógicas de comunicação características do século XX. Passaremos então aos dispositivos audiovisuais digitais, tentando repensar a dicotomia entre apocalípticos e integrados[5] em suas novas configurações contemporâneas – desde os reality shows do gênero Big Brother (e sua incessante autopromoção dos meios de comunicação de massa entendidos como aparelhos e/ou instrumentos de captura e de controle da informação), até as mais recentes plataformas de comunicação acessíveis pela internet, como o Facebook e oYoutube.

Quando aplicada ao cinema, a pragmática de Peirce possibilita a articulação dos quatro componentes comuns a qualquer dispositivo audiovisual (gerativo, transformacional, diagramático e maquínico).[6] No caso da experiência cinematográfica, seu componente gerativo articula a disjunção assíncrona de imagens e sons, no plano material, à disjunção sincronizada do olhar à escuta, dos rostos e das vozes, no plano audiovisual da expressão. Essa cinemática da mímesis se articula, por sua vez, à práxis cinematográfica por meio da disjunção entre a reprodução do real e a representação do imaginário, a função documental e a função discursiva, o filme como produto e como obra, disjunção essa que perpassa toda a história do cinema, configurando seu componente transformacional. Quanto ao componente diagramático do cinema, revela a sua dupla articulação como a resultante da disjunção entre o plano material do seu conteúdo (técnico) e o plano mental de sua expressão (estética). Ao mesmo tempo, aponta para a complexa questão das relações entre o cinema e a história, isto é, para o seu componente maquínico – articulado simultaneamente nos níveis mecânico e anímico da experiência cinematográfica, o que nos permite pensar o sentido histórico de sua práxis articulado ao problema político do estatuto da técnica nas sociedades modernas.

O dispositivo cinematográfico se conecta historicamente à emergência de diversos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito da ciência e da técnica industriais. Entendido como um aparelho de captura de imagens e, depois, também de sons, o cinema se submeteu aos diversos modelos miméticos de representação gerados no âmbito da história da arte e do espetáculo. O dispositivo cinematográfico é um dispositivo mimético que pode ser, a princípio, pensado como um acoplamento técnico de múltiplos aparelhos de registro (de luz, movimento, som, cor, relevo, etc.). Essa operação assume as funções características de um aparelho de captura: a dupla acoplagem lentes/câmera, microfones/gravador (bem como as técnicas de filmagem com controle da continuidade espaço-temporal e sonora do discurso cinematográfico) organiza a práxis cinematográfica como um trabalho em torno do quadro visual entendido como o centro de gravidade de um processo mimético de captura e apreensão das imagens e dos sons.

Como dispositivo técnico-industrial, o cinema é um aparelho de captura complexo, capaz de conjugar, em seu componente gerativo, o domínio técnico sobre a realidade física das vibrações óticas e acústicas com a maestria estética sobre os modos sonoros, visuais e literários da representação artística. Seu componente transformacional combina estrategicamente a disputa econômica pela conquista de mercados com a tendência à hegemonia ideológica e cultural intrínseca à indústria do entretenimento. Engenheiros do movimento, da luz e do som (fotógrafos, maquinistas e técnicos de som), maestros e condutores do fluxo audiovisual e da narrativa (roteiristas e diretores), empresários e capitães de indústria (produtores e associados): todos são personagens de uma potencial empresa global de captura que constitui, em grande medida, a própria história do cinema como dispositivo audiovisual.

Por outro lado, pensar o dispositivo cinematográfico como máquina de guerra implica a distinção, no interior da dimensão técnica da práxis, entre arma e instrumento.[7] Enquanto aparelho de captura, o dispositivo cinematográfico é um instrumento de apreensão da experiência humana em sua totalidade, tanto em sua dimensão material (trabalho), como em sua dimensão cultural (expressão). Como tal, tende necessariamente a gravitar em torno de certos modelos de representação que possibilitem o sentimento de identificação imaginária entre o espectador e a instância narrativa que organiza o fluxo audiovisual como espetáculo, estriando a superfície da película por meio da codificação significante das imagens e dos sons. Já como máquina de guerra, o dispositivo cinematográfico deve ser pensado como arma de projeção – de imagens e de sons –, sobre o espaço-tempo da tela lisa, regulada pela velocidade do dispositivo. Como arma (e não como instrumento ou aparelho), afeta o espectador por meio da modulação variável de eventos óticos e acústicos.

A máquina de guerra do cinema não obedece a modelos preestabelecidos de procedimento técnico ou de codificação estética, pois se reconfigura incessantemente em seu próprio plano de projeção. Se o momento da filmagem consagra o dispositivo cinematográfico como aparelho de captura (enquanto o momento da montagem, geralmente, corrobora e reforça esse aparelho), o momento da projeção cinematográfica é aquele que pode colocar em risco, no nível estratégico de difusão e propagação dos efeitos possivelmente provocados por um filme, tal operação de captura, provocando uma série de consequências inesperadas. Assim, enquanto estudar o cinema como um aparelho de captura é estudá-lo do ponto de vista de sua produção – seja no sentido industrial ou artístico, técnico ou estético –, estudá-lo como máquina de guerra exige uma teoria da recepção do filme que se situe além da narratologia e do cognitivismo, pensando a triangulação entre projetor, tela e espectador, como um espaço liso de reconfiguração do discurso cinematográfico em que a mímesis cinematográfica é posta à prova.

Em termos autorreflexivos, o cinema contemporâneo demonstra uma aguda autoconsciência do seu componente maquínico enquanto dupla articulação entre aparelho de captura e máquina de guerra, tanto em sua faceta mais artística e intelectualizada como em sua vertente mais comercial, voltada ao entretenimento. No nível estratégico, um filme pode ser utilizado como arma, não necessária ou diretamente de guerra, mas articulada a uma máquina de guerra específica, a determinado fluxo de ideias, desejos e conflitos, que nunca são exclusivamente cinematográficos ou estéticos, pois podem ser de toda ordem, atravessando e perpassando o filme em todos os seus níveis e componentes – como bem o intuiu Sigfried Kracauer em seu ainda hoje essencial De Caligari a Hitler.[8] No filme Vincere, de Marco Bellochio (2009), por exemplo, há uma sequência que se passa em uma sessão de cinema, em 1914, na qual os espectadores se engalfinham em verdadeira batalha campal diante de uma tela de cinema em que um cinejornal anuncia a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial. A projeção cinematográfica figura, aqui, como o estopim da crise social e política que dividiu o país naquele momento, em um recurso sistematicamente utilizado por Bellochio nesse filme. John Carpenter, por sua vez, imagina, em Cigarette Burns[9] (telefilme de 2005), a existência de um filme experimental que estaria terminantemente proibido, devido aos massacres que sua projeção invariavelmente provocava entre aqueles que o assistiam. Tal filme, cujo título seria La fin absolue du monde, representa o próprio componente maquínico do dispositivo cinematográfico como um dispositivo de propagação mimética da ação, livre de amarras representacionais e mediações significantes, e, portanto, como um dispositivo apto à produção social de pânico. Assim, para o espetáculo cinematográfico hodierno, a utopia avant-gardista do específico fílmico se converte em pesadelo distópico, reforçando a necessidade do primado representacional de modelos narrativos, ao mesmo tempo que pretende contestá-los.

Tal impasse é a expressão definitiva de uma tensão constitutiva do dispositivo cinematográfico, em seu componente gerativo, entre o nível especificamente simbólico da representação cinematográfica e o propriamente técnico da reprodução cinemática; essa tensão se traduz, em seu componente maquínico, como a tensão entre a pressão centrípeta dos aparelhos de captura conjugados pelo dispositivo audiovisual (câmera e gravador, roteiro e montagem, trilha sonora e quadro visual) – aparelhos esses que estriam o espaço-tempo da experiência cinematográfica, reterritorializando-a (em cinemas nacionais, por exemplo) e recodificando-a (em gêneros e estilos) – e a tensão inversa, centrífuga, exercida pela máquina de guerra do cinema como projeção de imagens e sons no espaço-tempo liso potencialmente infinito de sua recepção histórica.

A máquina de guerra que subjaz como potência implícita a qualquer dispositivo audiovisual costuma ser encoberta por sua função histórica de aparelho simultaneamente técnico e ideológico de captura. No caso da televisão convencional, aberta e analógica, esse fenômeno aparece de forma ainda mais clara: reality shows, como o Big Brother, são o epítome do dispositivo audiovisual como aparelho de captura total. Todo o tempo de transmissão da TV, com toda a sua audiência, poderia ser capturado por esse virtual aspirador da experiência humana em sua totalidade, projetando a ficção da realidade televisiva sobre a realidade audiovisual do telejornal em um empreendimento de colonização da vida real que apenas reforça o potencial poder direto de captura da experiência já anunciado pelo cinema. Nesse caso, a criação de uma plataforma digital como a internet possibilita apenas a inserção programada e regulada do espectador na programação, por meio de um jogo de estímulos e respostas que os teóricos da comunicação costumam denominar, de maneira algo pomposa, interatividade, restringindo ao máximo o avassalador potencial mimético que uma verdadeira máquina de guerra poderia extrair de tal dispositivo.

O estudo do componente maquínico também nos possibilita pensar, no entanto, como o desenvolvimento tecnológico do rádio, da televisão e de todas as modalidades de vídeo e áudio, ainda que obedeça aos ditames ideológicos e de controle que os organizam em sistemas de comunicação molares, permite aos dispositivos audiovisuais “reconstituir uma imensa máquina de guerra da qual se tornam apenas pequenas partes, apostas ou opostas”.[10] É assim que a vídeoarte, no último quartel do século XX, pôde se apresentar como uma máquina de guerra alternativa aos grandes aparelhos de captura da indústria cinematográfica e da televisão: comparada à tecnologia complexa e “pesada” da impressão em película, o vídeo analógico já apresentava um tipo de agenciamento maquínico mais fluido que o do cinema – o que pode ser amplamente demonstrado pelo uso entusiasmado que o então chamado cinema marginal fazia de janelas (Super-8, 16mm) e texturas alternativas.

Em termos maquínicos, porém, a reconfiguração mais importante dos dispositivos audiovisuais não é ainda a que separa as tecnologias analógicas lisas (fita magnética) das estriadas (película ótica), ou a “linguagem cinematográfica” da “linguagem televisiva”, pois a dicotomia entre cinema e vídeo apenas acentua, quando articulada às tradicionais plataformas analógicas de difusão do seu conteúdo, a disjunção constitutiva de todo e qualquer dispositivo audiovisual enquanto aparelho de captura e/ou máquina de guerra. À possibilidade técnica de difusão de imagens e sons no espaço-tempo liso das ondas de transmissão da TV entendida como uma máquina de guerra, por exemplo, correspondeu a possibilidade técnica da gravação de áudio e vídeo em tapes, ou seja, de aparelhos de captura destinados ao incremento da capacidade de controle de um determinado sistema de comunicação a partir de dispositivos cada vez mais móveis e velozes.

A cada incremento técnico da mobilidade e da ubiquidade desses novos dispositivos audiovisuais, não só novas estéticas e linguagens se apresentam como possibilidades até então inéditas para os dispositivos precedentes, mas, sobretudo, novas plataformas de registro e transmissão de informação se configuram, potencializando novas máquinas de guerra. Se a estética mais característica do cinema contemporâneo, por exemplo, está indubitavelmente ligada aos novos suportes digitais de captação e reprodução de imagens e sons naquilo que estes apresentam de mais próximo às necessidades de uma máquina de guerra, já que são portáteis e fáceis de manusear, leves e velozes, aderindo ao espaço-tempo liso da duração do evento muito mais facilmente que os seus congêneres analógicos, é apenas com a chegada dos dispositivos digitais de alta definição (HD) que se realiza a convergência maquínica do cinema e do vídeo em seus devires entrecruzados como dispositivos audiovisuais, aparelhos de captura e/ou máquinas de guerra desse novo campo de batalhas conhecido como internet. E, assim como o dispositivo cinematográfico mimetizou de maneira canibalesca os dispositivos técnicos e estéticos que lhe precederam (fotográficos, literários, pictóricos, musicais e/ou teatrais), assim como o dispositivo televisivo fez o mesmo com os dispositivos de comunicação de massa anteriores (cinema, rádio e jornal), também a internet funciona como pantagruélica plataforma digital de captura e integração de todos os dispositivos audiovisuais e textuais de que se tem notícia, reconfigurando incessantemente as condições de sua difusão e circulação e também do seu controle e de sua recepção, ou seja, do seu maior ou menor grau de adesão a determinados aparelhos de captura e, portanto, de sua maior ou menor mobilidade em relação a determinadas máquinas de guerra.

O Facebook e o Youtube serão tomados aqui como os dois polos extremos dessa última reconfiguração maquínica dos dispositivos audiovisuais na era da internet 2.0, embora a principal característica dessa nova reconfiguração seja, precisamente, a de uma maior indistinção e ambiguidade entre aparelhos de captura e máquinas de guerra.

O Facebook é um dispositivo que se apresenta, a princípio, como a própria concretização utópica do meio de comunicação de massas perfeitamente integrado, em que a radical horizontalidade dos circuitos de informação não só não impede como pretende até mesmo estimular o compartilhamento personalizado, autônomo e voluntário, de toda sorte de informações. Seu caráter inapelavelmente narcísico, baseado na exposição de perfis pessoais arquivados como fichas em que a banalidade da informação rivaliza com a sua abundância, revela, porém, o modo como novos aparelhos de captura se constituem com base em plataformas digitais presentes na internet. Os dispositivos conhecidos como redes sociais realizam a vigilância integrada da sociedade sobre si mesma, anunciada pelo dispositivo do Big Brother, em um nível de adesão “interativa” inédito em termos tanto de escala como de fluxo de informações. Não por acaso, dentro do novo quadro horizontalizado e multitudinário da internet, dispositivos como o Facebook tendem a reproduzir o padrão quase autista de muitas emissoras tradicionais de TV aberta, comportando-se como se a totalidade do que realmente interessa acessar na rede estivesse inteiramente presente em suas páginas, agregando e assimilando outras áreas e dispositivos da internet ao seu conteúdo próprio, e procurando canalizar e controlar a maior parte do fluxo de informações a partir de comunidades baseadas em todo tipo de identificação imaginária, que configuram, assim, grupos de discussão tendencialmente seletivos e excludentes. Dessa forma, o Facebook acaba reproduzindo, em filigrana e a partir de uma escala maior e mais vasta de abrangência, os processos, que a televisão a cabo dos anos 1980 já havia iniciado, de esquadrinhamento e balcanização do público, por intermédio de suas preferências e hábitos culturais.

O Youtube, por outro lado, demonstra como a internet, como um amplo e disseminado aparelho audiovisual de captura, permite a recomposição estratégica de uma ou mais máquinas de guerra em seus agenciamentos históricos concretos. O Youtube possibilita que pensemos as novas condições de produção e recepção do audiovisual, pois seus agenciamentos ainda escapam, em certo grau, aos grandes aparelhos de captura midiáticos estabelecidos, inclusive na internet, e seu acervo começa a se constituir como uma babélica enciclopédia audiovisual, realizando “postumamente” o fantasma cinematográfico de um dispositivo capaz de abarcar, em todo o conteúdo de sua matéria, a totalidade das formas de expressão. Reconstituindo um espaço liso e veloz de circulação de imagens e sons a partir do espaço previamente estriado pela rede mundial de computadores, sites de compartilhamento de arquivos audiovisuais como o Youtube se contrapõem à lógica de captura da indústria do entretenimento, uma vez que não mais centralizam o espectador em torno do espetáculo e da narrativa, fragmentando a experiência do audiovisual em seus diversos níveis constitutivos e permitindo sua livre recombinação posterior em novas montagens.

Embora a lógica identitário-narcísica que preside as redes sociais também esteja presente aqui, a começar pelo próprio nome do dispositivo, seu efeito específico é bem menos concentracionário e centrípeto: o Youtube é um dispositivo mais propenso ao dissenso e ao desencontro entendidos como modos frutíferos de reconfiguração dos meios de comunicação de massa.[11] Se nem sempre a informação que acompanha o arquivo é confiável ou se o seu conteúdo não corresponde ao nome do arquivo, se a pista de som não corresponde ao som original do filme de origem ou está claramente fora de sincronismo, e, se nem sempre o acesso a um fragmento qualquer garante o acesso posterior a todo um filme ou conjunto de filmes, vídeos e áudios, mesmo assim, ou exatamente por isso, o Youtube exerce sobre os demais dispositivos audiovisuais o mesmo efeito que a internet sobre os outros meios de comunicação – o de uma verdadeira apocatástase de todo o passado audiovisual da humanidade, simultaneamente projetado sobre o nosso instante atual de vigília. Evidentemente, também será possível verificar, dentro do Youtube, áreas mais ou menos fechadas ou exclusivas, controladas por determinadas marcas ou companhias comerciais que padronizam e formatam todo o conteúdo veiculado, seguindo estratégias que configuram o surgimento de ainda outros aparelhos de captura. No entanto, o mesmo argumento pode ser apresentado sob a forma inversa, já que o Facebook, considerado em sua potencialidade ainda não explorada, pode muito bem vir a abrigar, abertamente ou não, certas máquinas de guerra, de letalidade maior ou menor, que eventualmente podem escapar do controle social espontâneo que todos exercem sobre todos nesse verdadeiro sonho orwelliano de consumo.

Essas maiores labilidade e ambiguidade que as noções de aparelho de captura e de máquina de guerra apresentam para o componente maquínico dos atuais dispositivos audiovisuais de comunicação torna possível repensar, com base nas atuais plataformas digitais de transmissão de dados, a maior ou menor pertinência da já clássica distinção entre apocalípticos e integrados para uma teoria contemporânea da comunicação. Se a posição apocalíptica se define, de um lado, como a denúncia generalizada da indústria cultural como um gigantesco empreendimento de captura socioeconômica e político-ideológica da sociedade, são esses mesmos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito dos sistemas e dispositivos de comunicação que permitem a atual integração da sociedade mundial em uma escala sem precedentes históricos; por outro lado, se a posição integrada se define como o elogio inconsequente e acrítico das possibilidades oferecidas à sociedade pelos meios de comunicação de massa, não há dúvidas de que a recepção dessa mesma sociedade à internet se caracterizou, desde o início, pela percepção de que esta última representava uma espécie de apocalipse ou estágio final das formas consagradas de reprodução e transmissão da cultura, notadamente no ramo da indústria fonográfica.

Nesse suposto apocalipse integral, a própria crítica da cultura se vê levada a seus limites constitutivos. Isso porque a integração “total” da sociedade pela internet se realiza idealmente como o apocalipse de todas as formas tradicionais de produção e de transmissão da cultura, levando à superação, no sentido hegeliano do termo, das contradições anteriormente utilizadas na elaboração da sua crítica: categorias e conceitos como os de cultura erudita e cultura popular, saber científico ou saber tradicional, sociedade da vigilância versus sociedade do espetáculo ou alienação ideológica e consciência política, não permitem mais qualquer ilusão teórica acerca de uma possível kulturkritik da era digital que seja capaz de esboçar a paideia do novo século. Emblemática dessa nova situação é a superação da dicotomia entre apocalípticos e integrados nos termos em que foi pensada e aplicada pela teoria da comunicação no século passado: a maior ou menor recusa ou aceitação da indústria cultural pressupõe a maior ou menor adesão simbólica de sujeitos mais (ou menos) integrados à dialética de sua própria sujeição social, enquanto as novas plataformas digitais parecem se basear, cada vez mais, no anonimato e no automatismo das novas formas de servidão maquínica que caracterizam as relações sociais na internet.[12] Assim, da mesma forma que, do ponto de vista da crítica da cultura, as novas plataformas digitais incrementam exponencialmente o nível de integração social e cultural para, com isso, conferir a todos um grau supostamente maior de liberdade subjetiva, são essas mesmas plataformas que, do ponto de vista da crítica da economia política, facilitam de forma igualmente exponencial o incremento do nível mundial de integração do capital e, com isso, supostamente diminuem o grau de liberdade objetiva de que dispomos no controle de nossos próprios fluxos de informação.

Apenas uma análise do componente maquínico dos dispositivos audiovisuais contemporâneos, isto é, das intricadas relações sociais, econômicas e políticas de controle e resistência que perpassam atualmente a esfera da troca de informações digitais, possibilita a compreensão de como – nessa zona de combate que é a internet – tanto as teorias que se inspiram em algum tipo de sociologia da cultura quanto aquelas que pretendem basear-se em uma crítica da economia política do signo não mais se constituem em paradigmas suficientes para a elaboração de uma teoria da comunicação que se torna cada vez mais indiscernível da crítica da economia política tout court.

Nessa análise, o cinema considerado como dispositivo voltado ao registro documental e à memória coletiva (mesmo, e sobretudo, quando a intenção original de um filme ou cineasta não for esta) pode nos fornecer uma série de índices inestimáveis acerca das transformações por que passa o componente maquínico dos dispositivos audiovisuais. Em seu belíssimo filme Sans soleil, de 1982, por exemplo, o cineasta francês Chris Marker consegue nos dar um eloquente testemunho do lugar e do momento histórico em que o dispositivo cinematográfico se deparou, pela primeira vez, com o ainda então inexplorado potencial dos novos dispositivos audiovisuais eletrônicos, analógicos ou digitais.

Nesse filme declaradamente autorreflexivo, narrado/comentado por uma voz em off feminina que afirma ler uma carta escrita pelo cinegrafista autor das imagens que vemos (isto é, o próprio Chris Marker), a paisagem visual e sonora da Tóquio de inícios da década de 1980 é expressa pela alternância entre imagens que apresentam a tradicional textura ótica da película fotográfica e imagens de conteúdo semelhante, porém de textura eletrônica, seja porque vistas através das onipresentes telas de TV e monitores de vídeo da cidade, seja porque já diretamente produzidas como imagens de síntese. Em dado momento, a voz em off que permeia o filme nos introduz a um jovem criador de videogames, Hayao Yamaneko, e às suas imagens de síntese, obtidas a partir de distúrbios e conflitos de rua gravados da TV e posteriormente digitalizados para realçar ao máximo o seu contraste e suas cores, ressaltando o seu aspecto mais gráfico e abstrato de artefato.

Yamaneko, segundo Marker,

(…) tratou as imagens dos tumultos dos anos 1960 no sintetizador. Imagens menos enganosas, diz com a convicção dos fanáticos, do que as que vemos na televisão. Ao menos elas se mostram como são, imagens, e não na forma portátil e compacta de uma realidade já inacessível. Ele chama o mundo de sua máquina, a Zona, em homenagem a Tarkovsky. (…) No fundo, sua linguagem me toca, porque é dirigida àquela parte de nós que insiste em desenhar nas paredes das prisões – um giz a seguir os contornos do que não existe, não existe mais ou ainda não existe. Uma escrita com a qual cada um fará sua lista das coisas que fazem o coração bater, para ofertá-la ou apagá-la; nesse momento, a poesia será feita por todos e haverá tumultos na zona.[13]

Uma “lista das coisas que fazem o coração bater”, de um lado, e “a poesia feita por todos”, de outro: em sua reflexão acerca dessas imagens e sons eletrônicos de trinta anos atrás, pioneiros em relação às atuais plataformas audiovisuais digitais, Marker anteviu poética e profeticamente a internet como uma nova zona ou máquina de guerra, antecipando as novas possibilidades de articulação política e cultural das grandes lutas sociais de que é feita a história da humanidade.

 

* Ivan Capeller é doutor em comunicação pela UFF e professor adjunto da ECO/UFRJ.

 

Notas


[1] Ver, a esse respeito, DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 434-591.

[2] Ibid., p. 592-625.

[3] DELEUZE, Gilles. L’Image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983; L’Image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.

[4] Ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix: Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 140-184.

[5] A formulação tradicional dessa dicotomia encontra-se em ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 33-67.

[6] Ver CAPELLER, Ivan. Pragmática da experiência cinematográfica. Cadernos da 14ª Jornada Peirceana: os objetos do signo. São Paulo: PUC-SP, 2011. p. 17-22.

[7] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 491-502.

[8] KRACAUER, Sigfried. De Caligari a Hitler, uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

[9] Referência autorreflexiva às marcas redondas, parecidas com queimaduras de cigarro, que sinalizam a mudança próxima do rolo de projeção das projeções cinematográficas convencionais.

[10] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 525.

[11] Exemplar, nesse sentido é o episódio ocorrido no Brasil por ocasião do Ano-novo de 2010, quando o “jornalista” Boris Casoy emitiu frases ofensivas contra os trabalhadores do país durante uma transmissão ao vivo de um telejornal que, além de “vazar para o ar” em cobertura nacional de rádio e de TV, foi registrada e, quase imediatamente, postada no Youtube, impedindo assim o abafamento do caso e possibilitando a sua divulgação massiva para mais pessoas durante muito mais tempo. O episódio ainda está disponível em www.youtube.com/watch?v=wOzCMZrWH5w.

[12] Acerca da diferença entre sujeição social e servidão maquínica, ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 570-573.

[13] SANS soleil. Direção: Chris Marker.  Aurora DVD. Coleção cinema essencial v. 4. A tradução do off é minha.

 

 

 

O debate marxista sobre a pós-modernidade | de Ricardo Musse

Desde o Manifesto do partido comunista (1848), o marxismo sempre se posicionou simultaneamente como crítico e defensor da modernidade. A determinação do caráter contraditório do capitalismo – a combinação de aspectos positivos, como a urbanização e a industrialização, com traços negativos: a exploração, a reificação etc. – tornou-se uma de suas principais marcas distintivas. Essa associação fez com que os marxistas rejeitassem peremptoriamente as recorrentes tentativas teóricas de caracterizar o mundo atual como uma superação do capitalismo, da “sociedade pós-industrial” de Daniel Bell ao “fim da história” de Fukuyama. No entanto, o mesmo não ocorreu, como seria de se esperar, com o conceito de “pós-modernismo”.

A controvérsia sobre a pós-modernidade acabou se convertendo em um tópico essencial do debate marxista, sobretudo nos anos 1980, no bojo de uma discussão acalorada sobre o sentido e o significado da modernidade. A retomada dessa controvérsia explica-se em parte pelo próprio modo como o marxismo se constituiu com uma tradição comum, cumprindo a exigência de uma atualização constante do diagnóstico do presente histórico. Mas os próprios termos pelos quais essa avaliação passou a ser referida indica o impacto de determinadas dimensões que foram trazidas ao primeiro plano pela polêmica sobre o conceito de pós-modernismo.

Em geral, ao longo de sua trajetória, as descrições de época ensejadas pela linhagem marxista combinavam análises dos ritmos de desenvolvimento econômico do capitalismo e da conjuntura política com certa dose de “filosofia da história”. A polêmica sobre a pós-modernidade, no entanto, desde suas origens, se caracterizou por associar a configuração do presente histórico com a discussão sobre tendências estéticas e culturais.

 

1. Jürgen Habermas

Herdeiro da Teoria Crítica, Jürgen Habermas foi um dos primeiros marxistas a tratar a questão da pós-modernidade nesses termos, numa série de intervenções – cujo marco inicial foi o discurso por ocasião do recebimento do prêmio Theodor Adorno em Frankfurt, em setembro de 1980 – que adquiriram ressonância mundial. Nesse texto, denominado “Modernidade versus pós-modernidade”, Habermas ressalta tanto a dimensão sociológica como a estética da discussão.

Ele enfatiza que o neoconservadorismo americano, no qual Daniel Bell destaca-se como um expoente, não pode ser compreendido adequadamente quando se desconsidera que se trata, sobretudo, de um antimodernismo cultural, uma espécie de esquizofrenia que louva o progresso econômico mas rejeita suas consequências culturais, repelidas como regressivas. O centro do artigo de Habermas, no entanto, consiste em um posicionamento próprio em relação à discussão estética vigente no momento acerca da autonomia da arte, o legado das vanguardas e o declínio do modernismo.

Sua compreensão do presente histórico, no entanto, assenta-se sobre dois pressupostos não consensuais no campo do marxismo: (1) a hipótese de um desenvolvimento próprio, autônomo e independente da esfera cultural em relação às esferas econômica e política, proposta por Weber e predominante na sociologia do século XX; (2) a determinação do marxismo como um desdobramento do projeto iluminista, postura que não apenas considera a vertente social-democrata como a mais legítima na bifurcação dessa linhagem entre reformistas e revolucionários, como também ignora aspectos decisivos da crítica do Iluminismo presentes em Marx e destacados por Walter Benjamin, Max Horkheimer e Theodor Adorno.

Habermas retomou e desenvolveu essa análise de forma breve no opúsculo A nova intransparência e de maneira mais extensa no livro O discurso filosófico da modernidade, ambos de 1985. Sua defesa do projeto moderno como inacabado, um conjunto de potencialidades ainda não efetivadas, viga mestra de seu combate simultâneo ao antimoderno e ao pós-modernismo, não deixa de configurar, no entanto, um desvio em relação à avaliação prevalecente no marxismo, que já no Manifesto comunista destaca o caráter contraditório do capitalismo, apreensão que muitos denominaram de “dialética da modernidade”.

Apesar de seu diagnóstico dispensar uma elaboração mais detalhada dos desdobramentos do capitalismo, muitas vezes compreendido como um sistema uniforme e homogêneo, sua interpretação – sobretudo depois do impacto que adquiriu sua polêmica com François Lyotard e com o pós-estruturalismo francês – orientou majoritariamente o campo dos marxistas que rejeitaram, quase em bloco, a tese da emergência da pós-modernidade.

 

2. Fredric Jameson

Uma das poucas vozes marxistas discordantes                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           foi Fredric Jameson. Ele começou a escrever sobre o assunto em 1982, mas sua posição só adquiriu ressonância com a publicação em 1984, na New Left Review, do artigo “A lógica cultural do capitalismo tardio”, que veio a se tornar o primeiro capítulo de seu livro Pós-modernismo (1991), no qual procura detectar uma dialética da pós-modernidade.

O uso do termo parece-lhe irrecusável não só pelas contingências intelectuais norte-americanas, mas principalmente por lhe parecer a descrição mais adequada de uma situação em que a modernização, totalmente implantada, não se defronta mais com obstáculos (leiam-se natureza e formas sociais pré-capitalistas) a serem superados. A realidade desse novo mundo – ao qual não caberia, como ao capitalismo descrito no Manifesto, fazer apologia ou condenar –, designa, por oposição à “modernização incompleta” da modernidade, uma versão mais pura e mais homogênea do capitalismo clássico, ou melhor, um terceiro estágio, o capitalismo multinacional, sucessor do capitalismo monopolista (o estágio do imperialismo) e do primevo capitalismo de mercado.

Jameson confere ao termo “pós-moderno”, para além de seu estatuto cultural, dimensões socioeconômicas e geopolíticas. Diferentemente do neoestruturalismo francês, congrega nesse conceito não apenas uma teoria epistemológica ou uma nova tendência estética, mas o concebe como um fenômeno social.

A nova divisão internacional do trabalho, a dinâmica vertiginosa das transações bancárias mundializadas, as novas formas de inter-relacionamento das mídias, tudo isso que hoje identificamos como sintomas da globalização seria, para Jameson, apenas as manifestações mais visíveis do capitalismo tardio, um estágio fundamentalmente distinto do antigo imperialismo (que ele define como pouco mais que a rivalidade entre várias potências coloniais).

Assim, a transformação cultural é adotada como signo e sintoma de uma metamorfose no interior do próprio modo de produção capitalista. Além de recortar esses três momentos da história do capitalismo, Jameson se propõe a determinar e desenvolver os demais aspectos da terceira fase do capitalismo, em especial a dimensão cultural, exposta por Ernest Mandel em O capitalismo tardio, levando em conta apenas os fatores econômicos.

Para estabelecer a topografia desse mundo onde a própria palavra modernização é prescindível, já que nele tudo é por definição “moderno”, Jameson toma como régua e compasso a determinação da lógica específica da cultura “pós-moderna”.

O primeiro passo consiste na delimitação dos traços recorrentes na produção – mas também nas teorias explicativas – do pós-modernismo, isto é, do período que se estende desde a institucionalização acadêmica do modernismo em meados dos anos 1960 até os anos 1990: a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, ou melhor, a predominância estilística de pastiches (distintos das paródias valorizadas pelo modernismo); a criação de um hiperespaço muito além da capacidade humana de se localizar, seja pela percepção ou mesmo pela cognição, no meio circundante; a transferência da ênfase no objeto para a primazia da representação; a lógica espacial do simulacro etc. Em seguida, Jameson estende as características dessas linguagens culturais à esfera da vida cotidiana, às nossas experiências psíquicas e, por que não, ao “espírito do tempo”.

Essa abordagem totalizante passa – numa retomada do elã enciclopedista do Iluminismo – pelo mapeamento intelectual de uma multiplicidade impressionante de áreas do saber ou da arte. Evitando ao máximo os tiques classificatórios inerentes aos grandes panoramas, Jameson debruça-se sobre casos exemplares dessa nova sensibilidade, procurando – nem sempre de maneira feliz – conciliar análise formal e histórica. Para tanto, examina, entre outros, um leque que vai desde a teoria do pós-modernismo de Lyotard, o vídeo AlienNATION, a casa de Frank Gehry em Santa Monica, um livro nouveau roman de Claude Simon, instalações de Robert Gober e Nam June Paik, o novo historicismo de Walter Benn Michaels e Greenblatt, a análise de Rousseau por DeMan, o neoliberalismo econômico de Gary Becker, até filmes como Totalmente selvagem e Veludo azul.

Desse itinerário se depreende que o esmaecimento do sentido histórico, a substituição, como dominante, da categoria “tempo” pela categoria “espaço” ou a transmutação das coisas em imagens no processo de reificação, mais do que características de uma dominante cultural, constituem traços estruturais do capitalismo tardio.

Esse procedimento – o estabelecimento de conexões, a descoberta de afinidades entre fenômenos e esferas aparentemente distintos e autônomos –, um anátema para Max Weber e a modernidade, legitima-se, no pós-modernismo jamesoniano, pela dissolução explosiva da autonomia da esfera cultural, descrita por ele como uma prodigiosa expansão da cultura até o ponto em que tudo em nossa vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique – deve ser considerado cultural.

Da mesma forma que os principais teóricos da modernidade – em especial Charles Baudelaire e Georg Simmel –, Jameson localiza no pós-modernismo uma alteração profunda das experiências da vida cotidiana, que afetam substancialmente a própria percepção e a vivência psíquica dos indivíduos. Modificações que derivam não apenas do esmaecimento do sentido histórico, com a substituição do predomínio da categoria tempo pela noção de espaço, mas sobretudo da transmutação, no bojo do processo de reificação das coisas em imagens.

Nesse modelo, a colonização do real pela cultura surge como uma atualização, ou melhor, uma amplificação telescópica do conceito de Theodor Adorno e Max Horkheimer de “indústria cultural”. Perdem-se, porém, as diferenciações internas – seja com o fim da autonomia das esferas normativa, cognitiva, cultural; seja pela aniquilação e descentramento do sujeito; seja pela dissolução da “alta cultura” – que possibilitaram tanto ao modernismo quanto ao marxismo ocidental (daí talvez a sua afinidade) se autorrepresentarem, na esteira de Marx, como expressões da dialética da modernidade.

Uma vez que a produção cultural hoje estaria totalmente integrada e, portanto, subordinada à lógica da mercadoria – o que não deixa de ser saudado por Jameson em nome da “democratização da informação” –, nada parece restar como apoio para sua acalentada intenção de estabelecer uma dialética da pós-modernidade. A sua empatia com os objetos que analisa, a evidente satisfação provinciana com o deslocamento do “espírito do mundo” para os Estados Unidos, a surpreendente simpatia pelo mundo “pós-moderno” transformam em mera retórica o seu projeto de “pensar dialeticamente a evolução do capitalismo tardio como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo”.

A satisfação de Jameson no pós-modernismo marca, ela sim, uma ruptura com o mal-estar na modernidade, com a postura, incessantemente crítica frente a seu tempo, tanto dos marxistas ocidentais quanto da maioria dos artistas modernistas.

Apesar desses equívocos, os trabalhos de Jameson sobre o pós-modernismo outorgaram legitimidade intelectual e despertaram interesse por uma série de sintomas que pareciam apenas características de uma moda efêmera. Ao contrário de seus predecessores, entre os quais se destacam Lyotard e Habermas, ele procurou compreender o pós-modernismo não apenas como teoria epistemológica ou estética, mas também como fenômeno social. Abordando a pós-modernidade como signo cultural de um novo estágio na história do capitalismo, consumou uma inflexão de esquerda num conceito e numa discussão cujas origens remetiam à manutenção da ordem existente, como mostrou com propriedade Perry Anderson, em As origens da pós-modernidade.

Mas, a despeito de seu afã totalizante – de inspiração hegeliana – de estabelecer a topografia dessa nova sensibilidade, havia algo de insatisfatório em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Primeiro, nota-se certa dificuldade em seguir o preceito marxista, reiterado por ele próprio, de apontar a investigação para as contradições da nova ordem social. Depois, uma insuficiente utilização, na determinação específica do funcionamento em ato dessa nova lógica cultural, de seu principal achado teórico: a tese de que a estrutura do capitalismo tardio promove uma dissolução da autonomia da esfera cultural, gerando uma prodigiosa expansão até o ponto em que tudo na vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique – passa a ser considerado como cultural. Tudo isso assoma ao primeiro plano do livro, num visível descompasso entre análise formal e histórica.

Para superar esses impasses, Jameson seguiu a pista – aberta mas não desenvolvida naquela obra –, segundo a qual a descrição e a decodificação de uma época pós-moderna nada mais foi que uma precoce e insuficiente tentativa de compreender a nova fase do capitalismo. A virada de Jameson pode ser documentada em um artigo seu publicado no número especial da revista Monthly Review, dedicado ao pós-modernismo, coletado no livro Em defesa da história. Enquanto todos os participantes seguiam a vereda aberta por ele, procurando identificar a lógica cultural da sociedade atual, Jameson, por sua vez, procurava compreender – na mesma chave, tomando-o como um fenômeno cultural sintomático da nova fase do capitalismo – a moda intelectual subsequente: o conceito de “globalização”.

Essa inflexão culmina no livro A virada cultural (1998). Nesse movimento em que desloca a ênfase do pós-modernismo para a globalização, da cultura para a economia, Jameson encontrou o que faltava em seu livro de 1991, uma adequada descrição daquilo que nomeia como terceiro estágio do capitalismo. As análises de Ernest Mandel, em O capitalismo tardio – um livro de 1972, redigido no momento da inflexão que conduziu o capitalismo a uma nova fase – cedem lugar à recente teoria de Giovanni Arrighi, exposta principalmente em O longo século XX.

Na versão de Arrighi, os movimentos do capitalismo, descontínuos e em perpétua expansão, cristalizam-se em um esquema cíclico que se desloca ao longo de nações e espaços geográficos distintos: a hegemonia migrou das cidades italianas para a Holanda, daí para a Inglaterra e, no século XX, para os Estados Unidos. Mas o que interessou a Jameson, em especial, foi a descrição do movimento interno de cada ciclo, uma tríade em que primeiro ocorre “a implantação de capital que busca investimentos numa região nova; em seguida, o desenvolvimento produtivo da região em termos de indústrias e manufaturas; e, finalmente, uma desterritorialização do capital na indústria pesada para possibilitar sua reprodução e multiplicação na especulação financeira”. Assim, o que em geral se denomina globalização seria apenas um aspecto de um processo mais profundo, o ingresso do capitalismo no terceiro estágio, de expansão financeira.

Com esse diagnóstico do presente histórico, Jameson recompõe alguns fios que pareciam soltos em suas análises. A abstração inerente ao capitalismo financeiro possibilita uma equalização entre análise histórica e formal. A lógica cultural do presente não se apresenta mais como um fechado universo foucaultiano, mas como expressão, na esteira da tradição marxista, da dialética da modernidade. Por fim, a tese da colonização do real pela cultura, simultânea à subordinação da produção cultural à lógica da mercadoria, pode ser desdobrada em todas as suas implicações.

Não se trata apenas de restabelecer, em outro patamar, a conexão entre economia e cultura, desplugada desde o declínio do marxismo ocidental em meados dos anos 1970, mas também de precisar, à luz de um novo contexto, a função da crítica. O predomínio do capital financeiro intensificou a dissolução da autonomia do estético, já prevista por Adorno e Horkheimer no conceito de indústria cultural, a tal ponto que inviabilizou o projeto comum de artistas modernistas e marxistas ocidentais de expressarem as contradições inerentes à modernidade. No momento atual, a associação, a reciprocidade entre crítica cultural e crítica social, a possibilidade de “pensar dialeticamente a evolução do capitalismo como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo”, parece ter se tornado uma tarefa solitária da crítica.

 

3. David Harvey

Com a publicação, em 1989, de Condição pós-moderna, David Harvey se tornou uma das vozes mais influentes nesse debate. Seu livro associa a mudança nas práticas culturais, subjacentes ao termo “pós-modernismo”, com alterações político-econômicas que teriam se iniciado em 1972. Mais especificamente, relaciona as novas experiências frente ao tempo e ao espaço (o engendramento de uma nova sensibilidade ou o sentimento qualificado de pós-moderno) com a emergência de modalidades diferentes, mais flexíveis de acumulação do capital, isto é, ao início de um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço na organização do capitalismo”. Isso não significa, no entanto, que ele endosse a tese do surgimento de uma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial, ao contrário.

Um dos pontos fortes do livro de Harvey assenta-se na atenção que dedica à experiência urbana nas grandes cidades – um tópico essencial das teorias sobre a modernidade e também sobre a pós-modernidade. Ele, de certo modo, atualiza as considerações de Georg Simmel, na passagem do século XIX para o XX, nas quais se ressalta o processo de abstração patente nos novos estilos de vida, na experiência do choque, na atitude de reserva, na disseminação da relação monetária etc. Para Harvey, o pós-modernismo não significa apenas uma mudança no estatuto da produção cultural, sinaliza também uma modificação no próprio modo de vida com a generalização de novas práticas, experiências e formas de vida.

Em sua obra anterior, Limits of capital, Harvey examina a teoria marxista das crises econômicas. Nesse diapasão, compreende o pós-modernismo como uma ruptura com o modelo de desenvolvimento do capitalismo prevalecente no pós-guerra. Desde a recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, é minada pela crescente competição internacional, por baixas taxas de lucro corporativo e por um processo inflacionário em aceleração, o que mergulhou a economia capitalista numa crise de superacumulação.

A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou-se como um novo regime de acumulação “flexível”, no qual o capital ampliava sua margem de manobra intensificando a flexibilidade dos mercados de trabalho – privilegiando contratos temporários, a incorporação de força de trabalho imigrante etc. –, dos processos de fabricação – pela via da transposição de unidades fabris para outros países ou regiões –, da produção de mercadorias – por processos just in time, por lotes de encomendas etc. –, nos mercados financeiros – desregulamentados nas transações atinentes ao câmbio, ao crédito e aos investimentos.

Essa nova forma de acumulação fornece a base para a cultura pós-moderna, para uma sensibilidade ligada à desmaterialização do dinheiro, ao caráter efêmero das moedas, à instabilidade da nova economia.

Em 2003, Harvey reformula seu diagnóstico do presente histórico, levando em consideração a nova ordem engendrada pela reação do Estado norte-americano aos atentados de 11 de setembro de 2001, sobretudo as invasões sucessivas do Afeganistão e do Iraque. Esses desdobramentos causaram perplexidade geral. Afinal, a disposição de ocupar esses países não estaria na contramão de uma política cuja hegemonia se firmara ao longo do século XX graças ao discurso e à prática em favor da autonomia nacional? Além disso, como entender a legitimidade obtida pelo governo Bush – uma singular coalizão de militaristas, neoconservadores e cristãos fundamentalistas, acusada de fraude eleitoral –, confirmada com sua escolha para exercer um segundo mandato?

As mudanças na ação externa e no cenário interno suscitaram a onda de explicações que colocou na boca de liberais e conservadores um termo que a esquerda utiliza há muito para caracterizar o Estado norte-americano: imperialismo. A ocupação neocolonial de territórios, seu denodo em determinar os rumos do capitalismo, o estado de guerra permanente (41% dos gastos do governo são destinados a atividades militares) e até mesmo o revezamento de poucas famílias no comando da nação, tudo isso aponta para o ressurgimento de um poder imperial.

Essa inusitada convergência disseminou e banalizou ao extremo a palavra “imperialismo”. Quando se debruçou sobre o tema, David Harvey, para qualificar o debate, procurou restabelecer as determinações conceituais e históricas da teoria marxista do imperialismo. Mas, paradoxalmente, poucos anos depois, a atualidade de O novo imperialismo reporta-se menos às análises de conjuntura – em geral brilhantes e muitas vezes proféticas – do que ao arcabouço teórico que o livro desenvolve.

Ao contrário do que se crê, a discussão sobre o imperialismo não é episódica no corpus marxista, resquício da “era dos impérios” e do leninismo. Quando bem dimensionada, ocupa um lugar central na compreensão teórica e histórica do capitalismo. Se Marx, por um lado, caracteriza a dinâmica desse modo de produção como o desdobramento da acumulação de capitais (numa lógica estritamente econômica), por outro lado, em um capítulo crucial de O Capital (“A assim chamada acumulação primitiva”) mapeia, uma a uma, as práticas extraeconômicas que favorecem a acumulação capitalista.

O debate polarizou-se entre os que consideram a “acumulação primitiva” como mera etapa necessária à emergência do capitalismo e os que a situam como momento estrutural de seu dinamismo histórico. A questão, no fundo, remete às relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver em sua obra.

Harvey é partidário decidido da segunda alternativa. Para ele, o processo de “acumulação interminável de capital”, que configura histórica e geograficamente o capitalismo, combina, de forma contraditória, a lógica econômica, os processos moleculares de acumulação e as estratégias políticas, diplomáticas e militares que denomina “acumulação por espoliação”, renomeando o arsenal de práticas que Marx chamava de acumulação primitiva.

A predecessora mais ilustre dessa posição foi Rosa Luxemburg. Harvey compartilha com ela a tese de que a acumulação capitalista não prescinde de alguma espécie de ambiente externo. Discorda, no entanto, de que esse “outro” seja sempre uma forma de produção pré-capitalista. O próprio capitalismo, em sua geografia e história, pode produzir esse “exterior”, como no caso do desemprego em massa que amplia o exército industrial de reserva. Tampouco concorda que a sucessão de crises que perpassa o capitalismo seja explicável pelo “subconsumo”. Para Harvey, as crises advêm da dificuldade em absorver de forma lucrativa os excedentes de capital e são, portanto, “crises de sobreacumulação”. Sua resolução acarreta tanto a desvalorização de ativos e a destruição de regiões como configura uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder.

Harvey não despreza os ensinamentos de Lênin sobre o imperialismo, em especial a denúncia da assimetria entre Estados no interior de um sistema global de acumulação de capital. Mas, em vez de descrevê-lo como uma fase “última” do capitalismo, prefere vê-lo, na fórmula de Hannah Arendt, como “o primeiro estágio do domínio político da burguesia”. A partir dessa premissa reconstitui, com alguns deslocamentos decisivos, a hipótese de uma sucessão de Estados hegemônicos desenvolvida por Giovanni Arrighi.

Entre 1870 e 1945, imperialismos rivais assentados no nacionalismo e no racismo conduziram as nações a uma série de crises e guerras. A hegemonia norte-americana após 1945 se torna incontestável, dissimulando seu domínio sob a capa de um universalismo abstrato: a defesa das classes proprietárias de todo o mundo em sua luta contra o comunismo. A partir de 1973, o modelo de acumulação altera-se completamente com a criação de um sistema monetário desmaterializado.

Nesses três períodos convivem, com pesos diferenciados, a acumulação molecular de capital e a acumulação por espoliação. Esta vigorou no período 1870-1945 e voltou a prevalecer a partir de 1973, após o interregno dos “trinta anos dourados”. A face imperialista do capitalismo torna-se ostensiva nos momentos em que predomina o acúmulo por espoliação, mas nunca deixa de atuar, sobretudo porque também deriva, de forma complexa, da reprodução expandida do capital.

Essa teoria permite a Harvey explicar de forma convincente os principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos, apresentando a financeirização, a globalização e a política neoliberal como estratégias da “acumulação por espoliação”. Seu predomínio manifesta-se na vida política por meio da cisão dos movimentos antiglobalização, divididos entre a esquerda socialista – cuja ênfase na reprodução ampliada coloca como central a luta anticapitalista – e os novos movimentos sociais, que tendem a assumir formas difusas, fragmentárias e avessas ao controle do aparelho de Estado, posto que lutem prioritariamente contra a espoliação.

 

4. Balanço e perspectivas

A especificidade da discussão marxista sobre a pós-modernidade deriva em grande medida do fato de que a inserção na linhagem do marxismo demanda dos autores, junto com uma atualização da obra de Marx e de seu legado, um diagnóstico do presente histórico que não se confunde com os relatos convencionais que, em geral, se limitam a listar as modificações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Para determinar a configuração histórica de seu tempo, Habermas mirou simultaneamente três âmbitos distintos, o neoconservadorismo anglo-saxão (que tinha em Daniel Bell um de seus expoentes), o pós-estruturalismo francês e o debate estético nas artes plásticas e na arquitetura. Ao se restringir a esses aspectos do problema, ele não fornece uma resposta convincente a uma questão que ele próprio cobra de Daniel Bell – falta-lhe uma explicação das causas econômicas e sociais da mudança cultural. Sua apreciação da modernidade como um projeto inacabado, além de configurar uma interpretação que pouco salienta a contradição inerente ao capitalismo, não constitui propriamente uma teoria histórica do capitalismo.

A ressonância mundial de seus textos, no entanto, tornou a questão estética uma espécie de campo de prova da existência ou não de uma pós-modernidade. O debate sociológico, antes concentrado na controvérsia acerca do surgimento ou não de uma sociedade pós-industrial, foi assim deslocado para uma controvérsia que, como mostrou Perry Anderson, emergiu já na primeira metade do século XX.

O êxito de Jameson em tornar a discussão sobre a pós-modernidade um debate aceitável e até mesmo decisivo no interior do marxismo vincula-se ao alcance de dois procedimentos que ele operou com maestria. Primeiro, ele forneceu o quadro teórico – ao mesmo tempo abrangente e refinado – do que seria a estética pós-moderna, valendo-se de sua familiaridade com a teoria estética desenvolvida pelos marxistas ocidentais, objeto de seu estudo no livro Marxismo e forma. Além disso, Jameson concebeu a “cultura” pós-moderna como uma delimitação mais ampla do que as meramente estéticas. Determinou-a no sentido desenvolvido pelos estudos culturais e, em especial, por Raymond Williams, como uma “sensibilidade” ou “sentimento”, isto é, um conjunto de prática, motivações da ação e de atribuição de sentido ao mundo e à existência (vinculado, em certa medida, a uma determinada estrutura psíquica).

Assim, Jameson não só marcou de forma nítida a ruptura entre a estética da modernidade e a da pós-modernidade – ancorada na primazia da imagem sobre os objetos, sustentada pela disseminação da televisão e do computador pessoal –, mas também estabeleceu um terreno, a cultura, que possibilita o confronto e a comparação com as diversas teorias da modernidade. Argumenta em favor da ruptura entre nossa época e o passado imediato, ressaltando a transmutação da reificação – o fetiche não deriva mais apenas da autonomia ilusória das coisas, mas sobretudo das imagens –, e uma mudança significativa na estrutura da subjetividade – a individualidade não se constitui mais por meio de uma relação temporal que incorpora passado, presente e futuro, mas se encontra submersa numa “presentificação” em que o tempo é substituído por relações espaciais – pela hegemonia a-histórica do aqui e agora.

O calcanhar de aquiles da teoria de Jameson – apontado já em 1991 por Mike Davis e retomado por Perry Anderson – localiza-se em sua tentativa de explicar essa mudança histórica a partir da teoria desenvolvida por Mandel em 1972. Não só pelo fato de O capitalismo tardio ter sido escrito antes do desabrochar pleno das teorias e das práticas que moldaram a cultura pós-moderna, mas sobretudo porque Mandel data a eclosão dessa terceira fase do capitalismo de 1945.

Jameson procurou, em seus escritos posteriores ao livro Pós-modernismo, sanar essa incoerência caracterizando esse terceiro período da história do capitalismo como o da hegemonia norte-americana – retomando a periodização de Giovanni Arrighi em O longo século XX, mas também promovendo uma espécie de simbiose entre as teorias de Mandel e de Arrighi.

David Harvey, em A condição pós-moderna, ainda se encontra, em grande medida, preso a esses esquemas conceituais, seja o de Habermas ou o de Jameson. Até mesmo a maior novidade de seu livro – a percepção de que se trata de uma mudança estrutural (ou de fase) do capitalismo – ainda é apreendida por meio de um diálogo com Jameson. Sua reconstituição do período anterior a partir do conceito de “fordismo”, formulado por Antonio Gramsci e retomado pela escola francesa da regulação, permitiu-lhe, no entanto, apresentar, sob o termo “acumulação flexível”, uma teoria própria que indica transformações decisivas no mercado de trabalho, nas formas e métodos de organização da produção e, sobretudo, na esfera financeira, no mercado de capitais e crédito. Apesar desse avanço para determinar com mais precisão as causas econômicas, políticas e sociais da mudança cultural, só em sua obra posterior ele logrou desenvolver de forma plena e consistente uma teoria da acumulação capitalista, que permitiu compreender a distinção entre modernidade e pós-modernidade como nada mais que a emergência de uma fase da história, ainda aberta, do capitalismo.

 

* Ricardo Musse, professor no departamento de sociologia da USP, é livre-docente e doutor em filosofia pela USP e mestre em filosofia pela UFRRS. Organizou, entre outros, os livros Capítulos do marxismo ocidental (Editora Unesp) e Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho (Ática).

 

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996.

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

BELL, Daniel. O fim da ideologia. Brasília: Editora UnB, 1980.

______. O advento da sociedade industrial. São Paulo: Cultrix, 1977.

DAVIS, Mike. O renascimento urbano e o espírito do pós-modernismo. In: KAPLAN, Ann E. (org.). O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 106-116.

FUKUYAMA, Francis. Fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.

HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência. Novos estudos Cebrap, n. 18, set. 1987, p. 103-114.

______. Arquitetura moderna e pós-moderna. Novos estudos Cebrap, n. 18,  set. 1987, p. 115-124.

______. Modernidade versus pós-modernidade. Arte em revista, n. 7, ago. 1983, p. 86-91.

______. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

______. Limits of capital. London: Verso, 1999.

______. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.

JAMESON, Fredic. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

______. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.

______. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1985.

LÊNIN, Vladimir I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986.

LUXEMBURG, Rosa. A acumulação do capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

______. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Hedra, 2010.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, vol. 11, n. 2, out. 2005.

SIMON, Claude. Les corps conducters. Paris: Éditions de Minuit, 1973.

WOOD, Ellen Meiksins (org.). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

 

 

Novas TICs, cidadania e educação | de Ovidio Mota Peixoto

RESUMO

Desde que a chamada Sociedade da Informação começou a se consolidar, não faltam vozes triunfalistas saudando o avanço social supostamente tornado possível pelas novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, as TICs. Mais do que melhorias efetivas, o advento da sociedade em rede traz incertezas e talvez exageros. Ao mesmo tempo que facilita, amplia e promove o consumo, a internet cria expectativas otimistas quanto ao potencial que teria para reforçar e amplificar a cidadania e melhorar os processos educativos. No entanto, um exame mais rigoroso revela que, ao contrário do que seria esperado, cidadania e educação estão longe de ser consideradas satisfatórias, especialmente no Brasil. A primeira questão investigada aqui é até que ponto a popularização do uso das novas TICs contribui para a melhoria da educação de seus usuários? A outra questão relevante é por que as facilidades e possibilidades de comunicação hoje disponíveis não permitiram até agora um exercício mais consistente da cidadania?

Palavras-chave: cidadania; educação; novas TICs.

 

A universalização do acesso

Na constante histórica da desigualdade social brasileira, há duas bases de sustentação solidamente construídas: a concentração da propriedade da terra e o acesso desigual à educação. Darcy Ribeiro dizia com refinada ironia que a elite brasileira foi muito competente ao implantar o ensino universalizante no Brasil, pois garantiu que a educação ficaria restrita à própria elite e jamais seria de fato estendida a toda a população. Enquanto a educação superior ficou a cargo do governo federal, a educação fundamental e média foi entregue a estados e municípios e, portanto, ficou sujeita à subordinação dos interesses das elites locais. Sobre o Mobral, programa de alfabetização de adultos posto em prática durante os governos militares, Darcy dizia que sem ele a classe dominante estaria perdida, pois o analfabetismo poderia terminar no ano 2000. Nas palavras dele:

Imagine-se o ano 2000 sem analfabetos no Brasil! Seria um absurdo! Não, graças à providência de criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza, de não gastar os escassos recursos destinados à educação onde se deveria gastar, de não investir onde se deveria investir – se o propósito fosse generalizar a educação primária – podemos contar com a garantia plena de que manteremos crescente o número absoluto de analfabetos de nosso país.1

A advertência contida nas palavras de Darcy Ribeiro pode ser dirigida à pretendida universalização do acesso ao mundo dos computadores. A ideia dominante na contemporaneidade é a de que a inclusão digital é uma forma de realização da justiça social. Conforme Cazeloto,2 o acesso às máquinas informáticas é visto como sinônimo de participação sociopolítica, em vez de mera submissão às exigências do próprio capitalismo, em vias de expansão promovida por setores internacionais dominantes, incluídas em tais setores a “elite mundial da megainfoburocracia” e as elites locais, afinadas com as “formas de produção da cibercultura”. O central na ideia de cibercultura, segundo Cazeloto, é a imbricação entre economia, cultura e tecnologia. Doravante, a estratificação social irá depender não apenas do acesso às novas tecnologias, mas principalmente da capacidade de substituir, de atualizar, ou seja, de acompanhar a velocidade das inovações constantes.

Mas não basta se informatizar, isto é, ter e saber usar um computador. É preciso também estar conectado à internet. O Programa Nacional de Banda Larga, criado em 2010, começa com a seguinte afirmação: “A construção do caminho para superar o abismo social que divide a sociedade brasileira é o grande objetivo do Programa Nacional de Banda Larga”. O documento informa que a inclusão digital representa garantia de que os cidadãos e instituições disponham de meios e capacitação para acessar, utilizar, produzir e distribuir informações e conhecimento, por meio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), de forma que possam participar de maneira efetiva e crítica da sociedade da informação. Ainda segundo o texto, é preciso criar uma infraestrutura de banda larga para permitir acesso à internet em alta velocidade, pois “a massificação da banda larga deve ser vista como um instrumento de efetivação de direitos dos cidadãos da era digital”.

O documento reconhece, no entanto, que há ressalvas importantes, como quando observa que “a inclusão digital apenas servirá ao país se for pensada, planejada e executada como meio de inclusão social, e não apenas como um fim em si mesma”.3 Pois é justamente da relevância de ressalvas como essa que este artigo trata. Especialmente das ressalvas ofuscadas e suavizadas pela mistificação do discurso triunfalista que apresenta as novas TICs como panaceia para os problemas sociais brasileiros. De tal modo que, em nome de uma suposta inclusão urgente e indispensável, para a qual deveriam ser direcionados todos os recursos e esforços possíveis, pode-se estar contribuindo, na verdade, para a perpetuação da desigualdade, dos desequilíbrios e da concentração de renda que fundam e marcam a história da sociedade brasileira.

Nossa intenção é contribuir para um conjunto de reflexões, associadas à afirmação de Edilson Cazeloto, para quem, atualmente, “a proliferação dos programas de inclusão digital pode ser interpretada como uma forma de intervenção imperial destinada a criar o ambiente necessário à elite cibercultural pela saturação midiática e pela informatização do cotidiano”.4 O mesmo autor observa que as novas tecnologias digitais atuam sobre todas as classes de cima para baixo, com intensidade semelhante. Assim, elas tendem a consolidar ou ampliar fossos sociais e desigualdades, reforçando exclusões preexistentes, muito mais do que oferecendo chances de ascensão ou de inclusão social.

 

Reflexões necessárias

Segundo José Eisenberg e Marco Cepik, as iniciativas governamentais voltadas para a implantação das novas TICs têm crescido rapidamente, sem ser acompanhadas de uma reflexão mais sistemática acerca dos possíveis impactos e consequências de tais iniciativas, ou dos resultados obtidos em outros contextos.5 O mesmo pode ser dito da maneira como a mídia tem tratado do assunto e como o senso comum tende a reproduzir a pregação triunfalista.

O intento aqui é chamar atenção para a falta de crítica ou para a passividade com que se tem aceitado a repetição de discursos que pretendem glamorizar o potencial democratizante das novas TICs e da internet, mesmo que a realidade continue fornecendo sistematicamente evidências de que os avanços na área da cidadania e da educação estão longe do que seria possível ou esperado com o advento das novas tecnologias.

O eixo transversal, a questão que estrutura essa reflexão, diz respeito a quais são os limites, as distorções e equívocos que impedem que as novas mídias e linguagens produzam novas práticas sociais capazes de reforçar, ampliar e garantir a cidadania democrática, ou seja, permitir que os direitos de cidadania sejam alcançados por todos os cidadãos. O discurso mercadológico solicita políticas públicas e investimento estatal com base em alegações nem sempre garantidamente verdadeiras. E deixa sem resposta questões como:

a) As novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) contribuem para o fortalecimento da cidadania, aqui entendida como igualdade de oportunidades?

b) Ou, ao contrário, tendem a cristalizar desequilíbrios e iniquidades e ampliar o fosso que separa as classes sociais?

c) Modificam a configuração das relações sociais sem alterar estruturalmente a realidade, embora façam parecer que sim?

d) Quem ganha e a quem interessa o clima festivo e triunfalista a respeito do potencial das novas tecnologias?

e) O que fazer – e como fazer – para garantir que as TICs sirvam à causa da cidadania?

f) Como a educação (a escola) pode interferir nisso?

g) As redes sociais são evidência de maior participação ou apenas espaço experimental para coleta de informações e monitoramento do comportamento de consumidores, visando melhorar a eficiência das estratégias de vendas?

 

Números que impressionam

Em geral, quando se trata de novas tecnologias e internet, os números costumam causar impacto. Pela velocidade, pela quantidade de usuários e principalmente pelos valores mobilizados. A seguir, algumas dessas cifras que frequentam os meios de comunicação e slides de palestras sobre a internet.

O número de usuários de computador ultrapassou a marca de 2 bilhões de pessoas em 2011, segundo a Internet World Stats.6 No Brasil, de acordo com o Ibope, o acesso à internet em qualquer ambiente (domicílios, trabalho, escolas, lan houses ou outros locais) atingiu 77,8 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2011.7

O Programa Nacional de Banda Larga menciona um estudo elaborado pelo Banco Mundial, segundo o qual, para um investimento de 5 bilhões de dólares em infraestrutura de telecomunicações, são criados de 100 mil a 250 mil empregos diretos e algo em torno de 2,5 milhões de empregos indiretos.8

De acordo com o jornal Meio e Mensagem, o crescimento da internet na América Latina foi de mais de mil por cento na última década. Dados do Ibope Nielsen Online colocam o Brasil na terceira posição mundial em número de usuários ativos na internet, com uma média de acesso de 47 horas mensais.9

 

Limites

Em contrapartida, vale observar que, pelo menos até cinco anos atrás, a conexão discada era mais difundida que a banda larga, segundo o Pnad do IBGE. A melhora da inclusão digital está ocorrendo vagarosamente. Até 2005, ainda segundo o IBGE, 79% dos brasileiros nunca tinham acessado a internet.10 Há limites ligados ao acesso, como o acesso aos meios, à linguagem, às possibilidades, e outros ligados ao uso. Daí existirem pessoas que não têm nem podem usar as TICs; outras que têm mas não sabem usar; as que sabem mas não usam; e as que usam e abusam.

Dados do Cetic.br apontam que 85% dos lares urbanos brasileiros não possuem acesso à internet em banda larga. A diferença entre o número de domicílios com computador e acesso à internet e aqueles com computador, mas sem acesso à internet, é cada vez maior.11

Segundo dados do Ipea, o custo do uso da banda larga no Brasil é alto para a realidade socioeconômica brasileira. O gasto com banda larga representa 4,5% da renda mensal per capita brasileira. Na Rússia, ele representa 1,68% e, nos países desenvolvidos, 0,5%.12

Muito mais evidente que qualquer iniciativa de fortalecimento da esfera pública ou da participação política é o bom desempenho do comércio eletrônico. Os buscadores, portais e comunidades virtuais atraem 94% dos internautas para os sites de comércio eletrônico, alcançando 70% dos usuários, segundo dados de outubro de 2011 do Ibope Nielsen Online.13

 

O comércio eletrônico aprimora seus instrumentos e amplia a eficácia de suas estratégias, comparecendo e marcando presença ao lado de seus consumidores, isto é, participando das redes sociais. Por outro lado, intensifica e sofistica seus mecanismos de coleta de informações sobre o que esse consumidor vê, busca, compra e onde ele realiza todas essas ações. O sistema há muito já percebeu que a compreensão dessas informações sobre o comportamento do consumidor será o passo mais importante para o crescimento do comércio eletrônico no Brasil e no mundo.

 

Redes sociais e democracia virtual

Sobre webdemocracia, democracia virtual, esfera pública virtual e outras formas de denominar o exercício político mediado pela internet, vejamos estas chamadas jornalísticas:

“Webcidadania” avança no Brasil e muda o foco da participação política.
Ferramentas induzem o cidadão a assumir papel ativo na vida pública.
Redes sociais e banco de dados ajudam a cobrar e fiscalizar políticos.
No momento em que as campanhas eleitorais no Brasil parecem acordar para o potencial da internet, montando estratégias e equipes para fisgar o voto na rede, iniciativas na web sem vínculo partidário ajudam o cidadão a participar da vida pública e fiscalizar a classe política.
São ferramentas digitais que invertem o eixo da participação na vida pública: de simples receptores das mensagens de políticos e partidos, os cidadãos passam a ter voz ativa na organização de suas demandas.
O que antes tomava papel, telefone, carros de som e horas de reuniões hoje pode ser feito em poucos cliques – de listar problemas do bairro a monitorar o trabalho de deputados e senadores em Brasília.
Sites e movimentos que promovem a chamada cidadania na web avançam no país e mostram resultados.14

As afirmações, publicadas no famoso portal de notícias G1 (um dos mais acessados do país), estão carregadas de entusiasmo e expectativas sobre as vantagens e possibilidades trazidas pela web. Ao abordar a internet como esfera pública virtual, Rousiley Maia afirma que não há dúvida de que as comunidades virtuais estão criando plataformas importantes para a participação política. A autora, no entanto, adverte para o fato de que boa parte da literatura vinculada à ciberdemocracia ou à democracia digital costuma exagerar sobre o potencial que as novas tecnologias teriam de revitalizar as instituições e práticas democráticas. Segundo Maia, estruturas comunicacionais eficientes podem ajudar a fortalecer a democracia, mas não bastam. É preciso também haver motivação correta, interesse e disponibilidade dos próprios cidadãos para se engajar em debates.15

Ao refletir sobre as interações entre política e cibercultura, Cazeloto16 observa que existe uma percepção do senso comum, normalmente incentivada pela elite e pela própria mídia, segundo a qual “o acesso às ferramentas informáticas tornou-se uma questão-chave para o processo de participação nas sociedades contemporâneas e para a atualização das garantias democráticas”.

Embora tenham sido incensadas como novos instrumentos de exercício da vontade e da democracia dos cidadãos, sobretudo pelo que a mídia enxergou nas mudanças políticas ocorridas no mundo árabe recentemente, não é possível afirmar com certeza que o potencial emancipador das redes sociais verificou-se também no Brasil. Não obstante algumas campanhas, como a do “ficha limpa” e a campanha contra a corrupção, o desinteresse da população pela política – partidária, vista como degradante, alvo de programas humorísticos e desprezo aparente da opinião pública – permanece alto.

Segundo Marcos Coimbra, as evidências mostram que a maioria das pessoas não costuma dedicar ao tema atenção constante, não se envolve emocionalmente com ele e só o acompanha de vez em quando. Para elas, política é uma coisa chata e aborrecida, da qual, simplesmente, não gostam. Não percebem sua relevância e não entendem aqueles para quem ela é uma preocupação importante.17

Sobre as redes sociais, o que se pode dizer é que, assim como a inclusão vem acompanhada de aceitação, elas são decantadas como revolucionárias, mas pouco analisadas criticamente. A subcategoria comunidades, que é como o Ibope classifica os sites de redes sociais, fóruns, blogs, microblogs e outras páginas de relacionamento, chegou a 39,3 milhões de pessoas, equivalente a um alcance de 87% dos internautas brasileiros em 2011. Em média, cada usuário brasileiro de redes sociais conecta-se a esses sites por um tempo de 7 horas e 14 minutos mensais.18

Nos Estados Unidos, segundo Malcolm Gladwell, as redes sociais têm sido tratadas indevidamente como exemplos de ativismo social. Gladwell cita dois exemplos recentes.  Em 2009, quando 10 mil pessoas saíram às ruas em protesto contra o governo comunista, em Moldova, no Leste Europeu, a ação foi chamada de revolução via Twitter, porque supostamente os manifestantes teriam sido mobilizados por aquela rede social. Meses depois, protestos estudantis abalaram Teerã, capital do Irã e o ex-assessor de segurança nacional, Mark Pfeifle, sugeriu que o Twitter ganhasse o Prêmio Nobel da Paz porque, segundo ele, “sem o Twitter, o povo do Irã não se teria sentido capaz e confiante o bastante para sair em defesa da liberdade e da democracia”. Os dois episódios, no entanto, foram postos em dúvida. Segundo Evgeny Morozov, pesquisador da Universidade de Stanford, a importância do Twitter é quase nula na Moldova, onde existem pouquíssimas contas do serviço. Já no caso do Irã, informa Gladwell, as pessoas que usaram o Twitter viviam quase todas fora do país. Ele conclui seu artigo afirmando que “os instrumentos de redes sociais estão aptos a tornar a ordem social existente mais eficiente”, mas “não são inimigos naturais do status quo”.19

Cazeloto20 adverte para o fato de que a informatização da sociedade termina por reforçar a própria necessidade do computador. Isto é, quanto mais os serviços estatais, as formas de diálogo democráticas, a atividade política e as práticas culturais em geral migram para o ciberespaço, maior é, naturalmente, o apelo para que o cidadão seja convertido em usuário da tecnologia informática. E, quanto mais cidadãos atendem a esse apelo, maior é a legitimação obtida, fazendo com que, cada vez mais, a cidadania mediada pelo computador ou pela internet se torne a forma hegemônica da participação civil, excluindo um persistente “resto”, que vê sua condição marginalizada cada vez mais radicalizada.

Aqui, vale atentar para o que diz Dênis de Moraes21 ao analisar a inovação e a saturação na mídia. Diante da celebração de que “a humanidade nunca dispôs de tanta informação e entretenimento”, o autor lembra que é preciso avaliar “quem controla essa variedade de ofertas, qual é a sua natureza ideológico-cultural, quais são as linhas dos conteúdos e das programações”. Em contraponto à multiplicação da oferta de informação e diversão, há um processo perverso de centralização das fontes emissoras dos conteúdos multimídias e de geração de valor mercantil ampliado, para alimentar os padrões de acumulação e de rentabilidade das grandes empresas do setor. O usufruto de dados, sonhos e imagens depende de acessos e capacidades cognitivas frequentemente desiguais.

 

Cidadania e educação mediadas pelo computador

Os benefícios à democracia comumente alardeados como próprios das novas TICs costumam também ser sugeridos para a educação. De tal modo que, cada vez mais, as escolas passam a ser vistas como lugares estratégicos, essenciais para a implantação de computadores, à custa do Estado.

Para refletir um pouco mais sobre as vantagens que as novas tecnologias podem trazer à cidadania e à educação, ou à cidadania pela educação, vale a pena atentar para algumas das considerações que Magda Soares22 faz a respeito da relação umbilical entre educação e cidadania, ou mais especificamente entre alfabetização e cidadania. A autora explica que tal vinculação faz parte do senso comum, já que “só quem sabe ler e escrever é capaz de agir politicamente, de participar, de ser livre, responsável, consciente – de ser homem histórico e político: de ser cidadão”.

A comparação já aqui começa a fazer sentido. Pois também consta no senso comum que para ser cidadão é preciso estar incluído digitalmente. Mas continuemos com Soares. Ela afirma que não é o simples acesso à leitura e à escrita – nem mesmo a educação ou a escola – que conduzirá o povo à conquista da cidadania. Em vez disso, a construção da cidadania depende da prática social e política, dos movimentos de reivindicação das organizações populares, ou seja, do povo “participando, lutando por seus direitos sociais, civis, políticos, agindo como sujeito histórico, fazendo-se cidadão”.

A educadora lembra ainda que as sociedades modernas são grafocêntricas e, nelas, a escrita não apenas é muito valorizada como também é mitificada, a ponto, por exemplo, de ser frequente a suposição de que na escrita é que estaria o discurso da verdade e que só a escrita seria o repositório do saber legítimo. Nesse contexto, diz Soares: “A alfabetização é um instrumento necessário à vivência e até mesmo à sobrevivência política, econômica, social, e é também um bem simbólico, um bem cultural, instância privilegiada e valorizada de prestígio e de poder”.

Aqui cabem duas linhas de comparação. A inclusão digital também tem sido valorizada como instância de sobrevivência e de prestígio e poder, ainda que de maneira aparentemente exagerada ou equivocada, quando se supõe que prestígio e poder estejam ao alcance de todos. Mas há outra comparação relevante a ser feita entre a mitificação da escrita e a louvação da internet como repositório de quantidades infinitas e generosas de conhecimento. A preocupação no que diz respeito à educação repousa nos possíveis usos dessa abundância de informações. Cada vez parece mais fácil e prático copiar e colar, consultar sem confrontar e acessar sem precisar produzir conhecimento para ser encaminhado à rede mundial. No caso dos trabalhos escolares de pesquisa, na produção de monografias, por exemplo, a possibilidade facilitada de encontrar textos prontos parece criar outra cultura, na qual, talvez, a produção autoral seja cada vez menos incentivada, em nome de um consumo puro e simples, isto é, o uso e a repetição do que está pronto.

Magda Soares afirma que, embora se tenha permitido ao povo que aprendesse a ler e a escrever, “não se lhe tem permitido que se torne leitor e produtor de textos”. Assim, segundo ela, a posse e o uso plenos da leitura e da escrita permanecem privilégio de determinadas classes,  assumindo o papel de arma para o exercício do poder, para a legitimação da dominação econômica, social, cultural e se tornando instrumento de discriminação e exclusão.

Do mesmo modo, por mais que se incluam digitalmente todas as pessoas, isso por si não poderá garantir que todos irão se expressar; assim como a produção de aplicativos, periféricos, softwares e hardwares permanece nas mãos de algumas corporações, os conteúdos consumidos via internet também parecem ainda concentrados em monopólios.

Finalmente, a autora observa que a introdução tanto da criança quanto do adulto no mundo da escrita – e, diríamos nós, no mundo da informática e da internet – vem-se fazendo, quase sempre, mais para controlar, regular o exercício da cidadania que para liberar para esse exercício. Alfabetiza-se, diz ela, “para que o indivíduo seja mais produtivo ao sistema, não para que se aproprie de um bem cultural fundamental à conquista da cidadania”. O mesmo poderia ser dito da inclusão digital.

Considerações finais

Para continuar existindo, o sistema capitalista precisa se renovar ou modificar suas características. É o que está acontecendo em relação às novas tecnologias da informação e da comunicação. Ocorre que para realizar sua estratégia com êxito, o sistema tem que contar com a cooperação da sociedade e do próprio Estado. A fim de persuadir e convencer, ele tenta apresentar um discurso, uma pregação publicitária, que apregoe os benefícios e vantagens: por um lado, é preciso apresentar a nova ordem como um desígnio natural do avanço e da evolução humana; por outro, é necessário convencer o senso comum de que todos poderão ser beneficiados e, por isso mesmo, é natural que todos aceitem, compactuem e se submetam às novas regras, já que não podem nem devem ser detidas ou postas em dúvida. A postura em relação às novas TICs tem sido a de uma inevitável subordinação, como se a única maneira de não ficar de fora, de não ser excluído, fosse fazer o que o próprio sistema demandasse.

Como recomenda Brittos (2011),23 não se trata de propor uma atitude antitecnológica. O que se sugere aqui é a expansão do olhar na hora de se analisarem os reflexos e implicações sociais, econômicas e culturais da nova ordem tecnológica que se tenta impor sem questionamentos. Como diz o autor, aceitar as determinações do sistema capitalista é como “esperar que o mercado aja como filtro, para avaliar as reais necessidades da coletividade”. Seria como aceitar um cenário no qual “a oferta e a demanda serão o termômetro para definir o que é importante ou não à sociedade, o que pode pôr em risco as liberdades individuais, em vez de ampliá-las”.

Cidadania, participação política e educação costumam andar muito próximas. Tanto quanto é possível apontar limitações das novas TICs na área de cidadania, é igualmente possível questionar sua colaboração para a educação. A internet e as redes sociais, em princípio, seriam instrumentos poderosos para se ampliarem as reflexões, os debates, o compartilhamento de conhecimentos. No entanto, a presença de tais tecnologias na escola não tem se mostrado capaz de acelerar processos de aprendizado ou de torná-los mais eficientes, pelo menos não de modo definitivo. O Programa Um Computador por Aluno – Prouca, cujo objetivo era ser “um projeto educacional utilizando tecnologia, inclusão digital e adensamento da cadeia produtiva comercial no Brasil”,24 tem quatro anos de existência e, embora tenha acertado em algumas coisas, registra erros como a falta de treinamento de professores e a compra de equipamentos inadequados. Segundo artigo de Elio Gaspari,25 150 mil máquinas foram entregues e outras 450 mil encomendadas. Em 2012, surgem notícias de que o governo federal pretende abrir licitação para a compra de mais 300 mil tablets. Segundo Gaspari, a cidade de Nova York, com 1,1 milhão de estudantes na rede pública, comprou apenas 2 mil iPads para professores e alunos. O articulista arremata com a observação de que 300 mil é exatamente o número de professores que faltam nas escolas do Brasil.26

Durante o acompanhamento de uma experiência de utilização de um blog como instrumento educativo por estudantes de comunicação no Rio de Janeiro, foi possível constatar que há, pela ordem, as seguintes dificuldades ou limitações:27

– Falta de autonomia. Boa parte dos alunos não está acostumada a cuidar de um espaço como o que o blog oferece.

– Falta de equipamento. Às vezes o aluno tem computador em casa, mas não tem como arcar com o custo da conexão discada. Outras vezes, mora em lugares onde não existe a opção de banda larga ou ela é também muito cara. No caso da conexão discada, a perda de qualidade, em geral, compromete as possibilidades de utilização de um blog. A saída é a lan house, mas essa também é paga.

– Falta de hábito. Embora esteja associado aos mais jovens, às novas gerações, é preciso considerar as restrições de classe social, não apenas pela limitação financeira, mas também pelos hábitos culturais, pelo repertório, ou pelos próprios valores estimulados pelas famílias. Isto é, nem todo mundo convive com pessoas – amigos, parentes, vizinhos – que lidem ou falem sobre internet.

– Falta de habilidade. Nem sempre o aluno terá tido uma escolarização ou aprendido a lidar com as possibilidades tecnológicas de que dispõe o blog. Isto é, embora seja muito comum alunos com perfil no Orkut, no caso do blog a expectativa é que esse internauta leia mais, conheça mais sobre a rede e saiba utilizar minimamente os recursos disponíveis para fotos, vídeos, áudio e texto.

Para finalizar, vale a pena contar uma pequena história, ocorrida há alguns anos, em Miguel Pereira. No centro cultural da cidade havia uma videoteca e, no acervo, estava O encouraçado Potemkin, de Sergei Einsenstein. O visitante pediu para assistir ao filme, mas havia na sala de vídeo um adolescente com a TV ligada num daqueles programas da tarde que tratam de celebridades. Ele costumava ir ao lugar porque em casa sua família, por motivos religiosos, não permitia televisão. Com gentileza, a funcionária do centro cultural explicou ao menino que a preferência era para quem iria assistir a vídeo. O menino não apenas consentiu como quis ver o filme e acabou conhecendo, por acaso, uma obra  do cinema russo de importância mundialmente reconhecida. Ou seja, entre a disponibilidade dos recursos e o bom aproveitamento de seu potencial, é preciso uma bem-pensada mediação ou boa sorte.

 

Ovidio Mota Peixoto é Doutor em Comunicação Social pela UFRJ. Coordenador e professor do curso de Comunicação Social da Unisuam. E-mail: ovidiomota@gmail.com.

 

Notas

1. RIBEIRO, Darcy. Introdução. In: CANELA, Guilherme (org.) Políticas públicas sociais e os desafios para o jornalismo. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. São Paulo: Cortez, 2008. p. 32-45.

2. CAZELOTO, Edilson. Inclusão digital, uma visão crítica. São Paulo: Senac, 2008.  p. 197-199.

3. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva

Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 6-7. Versão eletrônica:

www.planalto.gov.br/brasilconectado.  Arquivo:

http://www4.planalto.gov.br/brasilconectado/forum-brasil-conectado/documentos/3o-fbc/documento-base-do-programa-nacional-de-banda-larga[R2] .

4. CAZELOTO, op. cit., p. 120-121.

5. José Eisenberg e Marco Cepik (org.). Internet e política. Teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.  p. 12.

6. Eram 2.095.006.005 pessoas, segundo dados de março de 2011, disponíveis em http://www.internetworldstats.com/stats.htm. Acesso em:26 dez. 2011.

7. Ibope Nielsen Online. Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R3] .

8. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva

Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 9.

9. Fonte: Comércio eletrônico – avaliação 360º. Meio e Mensagem,19 dez. 2011. Disponível em:

http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&nome=home_materia&db=caldb&docid=0AADE4C29DC53A458325796D0050A2DD[R4] .

10. Pnad, 2005. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=846[R5]

11.  Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic). Pesquisa sobre o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil 2009. Disponível em: <http://www.cetic.br/>

12 e 13. Programa Nacional de Banda Larga, 2010, p. 12 e 13, respectivamente.13. Ibope Nielsen Online.  Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R6] .

14. Thiago Guimarães. Portal G1. Disponível em:

http://g1.globo.com/especiais/eleicoes-2010/noticia/2010/06/webcidadania-avanca-no-brasil-e-muda-o-foco-da-participacao-politica.html[R7] .

15. MAIA, Rousiley C. M. Democracia e a internet como esfera pública virtual: aproximando as condições do discurso e da deliberação. Em MOTTA, Luiz Gonzaga et al. Estratégias e culturas da comunicação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 108-109.

16. CAZELOTO, op. cit., p. 169.

17. COIMBRA, Marcos. O (des)interesse dos eleitores. Deu no Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.oglobo.globo.com/pais/noblat>. Acesso em: 2 maio 2010.

18. Ibope Nielsen Online.  Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R8] >.

19. GLADWELL, Malcolm. A revolução não será tuitada:  os limites do ativismo político nas redes sociais. Trad. de Paulo Migliacci. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 dez. 2010. Ilustríssima, p. 3-5.

20. CAZELOTO, op. cit., p. 166.

21. MORAES, Dênis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009. p. 87.

22. SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2011. p. 54-60.

23. BRITTOS, Valério Cruz. Para entender a TV digital: tecnologia, economia e sociedade no século XXI. São Paulo: Intercom, 2011. p. 58.

24. Fonte: MEC. Disponível em: <http://www.uca.gov.br/institucional/projeto.jsp>. Acesso em: 2 jan. 2012.

25. Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 28 dez. 2011. Também disponível no clipping Secom Mídia, Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Acesso em: 28 dez. 2011, no endereço: <http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/imprensa/clipping>.

26. GASPARI, Elio. Coluna do Elio Gaspari. Folha de S.Paulo. São Paulo, 1 jan. 2012.  Poder, p. A8.

27. Experiência iniciada em agosto de 2009 que permanece em funcionamento, com o blog da comunicação: http://comunicacaounisuam.com/.

 

 

 


[M1]Não seria “web democracia” (palavras separadas)?

[R2]Falta a data do acesso.

[R3]Falta a data de acesso.

[R4]Falta a data de acesso.

[R5]Data de acesso.

[R6]Falta a data de acesso.

[R7]Falta a data de acesso.

[R8]Falta a data de acesso.

 

A Conversation Between Marco Schneider and Douglas Kellner

1. M.S. It is well known that, in its beginnings, in the 60’s, Cultural Studieshad an intense dialog with Marxism. Nowadays this dialog seems emptied. Inyour opinion, what is the reason for that?

DK: With the collapse of the Soviet Union and Soviet empire in the late1980s, Marxism was discredited. At the same time, apostmodern/poststructuralist turn in theory opened the door to newdiscourses, many of which were hostile to Marxism and which were broughtinto cultural studies.

With the global crisis of capitalism, Marxism is once again a relevant andrespectable discourse and it’s focus on class and class difference iscertainty relevant for cultural studies, as well as social theory thatstudies class inequalities and social injustice.

2. M.S. Since the 60’s, the researches about and the struggles against racism,sexism, homophobia and so on, emphasizing its cultural expressions andmediations, were a central part in Cultural Studies agenda, together withclass struggle as a practical and theoretical issue. Nevertheless, the lastone, during the last decades, ceased to be as much present in this agendaas the other ones. Do you see any relation between this fact and the deepsocial changes around the globe, that began in early 90’s, such as the endof Soviet Union and the growing hegemony of neoliberalism throughout theworld, in the midst of which everything can be discussed, except capitalismas a dated problem, and a problem that could be solved?

DK: As I noted above, the global hegemony of neoliberalism and crisis ofcapitalism brings back Marxism as a critical theory which again can andshould be seriously discussed. Many forms of contemporary cultural studies, such as the one I represent, stresses the intersectionality of race, gender, class, sexuality and other key forms of representation and identity and the interconnectedness of struggle around these arenas. Hence, rather than focalizing race, gender, or class, the emphasis is on how they are co-constructed and interconnected and how forms of oppression intersect between these dimensions requiring multi-dimensional struggle.

3. M.S. In your opinion, in face of recent (and linked) events, such as theactual crisis of capitalism in US and Europe, the growing of left winggovernments in South America, the increasing mass revolts in the middleeast, north of Africa, south of Europe and even inside the US, the victoryof neoliberal “solutions” in Euro zone etc., all these things could suggestthat cultural studies should reinforce its dialog with marxism, consideringthat it can, maybe better than any other theoretical frame, articulatecultural issues with political and economic ones?

DK: I exactly agree with you. Marxism is a dialectical theory that makesconnections, articulates culture and politics with economy and is thusextremely relevant and useful to explain contemporary developments inculture, politics, society and economy and how they are interconnected, or to put things as I do in the last question, how intersectionality takes place.

4. M.S. How do you think the new digital environment is changing (or could do itin a better way) the traditional relations between culture, citizenship andcapitalism in the peripheries of the world and of each country?
DK  A new digitial environment is expanding the public sphere and producingnew fields for political intervention. I’ve written extensively on thistheme and append a couple of articles rather than try to summarize.Both of these articles are accessible on my website and can be accessed at:”Habermas, the Public Sphere, and Democracy: A Critical Intervention,” in Perspectives on Habermas, edited by Lewis Hahn (Open Court Press, 2000). At http://pages.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/habermaspublicspheredemocracy.pdfand “Internet Subcultures and Political Activism” (with Richard Kahn) at http://pages.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/internetsubculturesoppositionalpolitics.pdf

M.S. We stopped when I asked you “how do you think that the new digitalenvironment is changing the traditional relations between culture,citizenship and capitalism in the peripheries of the world and of eachcountry”, and you did send to me two papers – “Habermas, the public sphereand democracy” and *“*Internet Subcultures and Political Activism*” *–,saying that you’ve developed some ideas about this subject there.

I appreciated both and from its reading I would like to propose a fewquestions for us to reflect about.
Before that, however, please tell me if it would be correct if I summarizeboth of your papers – in so far as they could be taken as your answer to myquestion quoted above, and apart the reflection on Habermas work from theformer (I think it’s not the case here to deepen your enlighteningcriticism on Habermas’ oeuvre) – saying that, in your opinion, the newdigital environment contribute to shift the features of the public sphere,even to create new public spheres, opening alternative forms of strugglesamidst it. And that radical theorists and activists must not neglect it. Isthat ok for you?

DK: Yes.

M.S. Well, after having read the papers, I remembered Perry Anderson, who once wrote that the sphinx of western marxism is not a misery of theory, but amisery of strategy (probably thinking about Edward P. Thompson’s criticismon Althusser…). Let’s talk about that “sphinx”? In a lighter way, I guessyou said something similar about Habermas’ general position, didn’t you?Well, and I hope this question won’t bother you, don’t you think that thesame criticism could be directed to these two papers of yours (and, as faras I know, to the whole of contemporary intellectual production on thefield of radical social theory, despite the efforts of Hardt and Negritowards this direction)? Yes, the later, actually, lists indeed a large setof concrete anti-hegemonic actions in the field of internet etc., but in amore descriptive rather than theoretical way. The former, for its turn,which deepens the theoretical reflection, doesn’t properly discussstrategy, except when it criticizes Habermas’ lack of concretepropositions, isn’t it?  Actually, in the conclusion of your “Habermas…”,when you mention the necessity of this or that action to be performed(“the need for public intervention in debates over the future of media culture andcommunications in the information highways and entertainment […] thecreation of new public spheres and the need for democratic strategies topromote the project of democratization and to provide access to more peopleto get involved in more political issues and struggles”), that was when Iremembered Perry Andersons’ sphinx for the first time:  I do agree with youabout what should be done, but my main question is how it can be done,considering  the unequal relation of forces, the silent majority, thecomplex moment of class struggle, in each country and around the wholeworld. It’s not a rhetoric question – me neither, of course, I don’t havethe answer. But don´t you think that media radical thinkers and activistsneed to face seriously this “sphinx” mentioned by Perry Anderson, beingaware that maybe their central challenge today is to develop newtheoretical reflections on strategy and organization? Do you know somerelevant contemporary intellectual production of this kind?In “Internet, Subcultures and Political Activism”, besides a good set ofexamples, you developed a more empirically based reflection about howcyber-activism is changing the public sphere, and, as in the former paper,you also finishes it with a good appeal: “Those interested in the politicsand culture of the future should therefore be clear on the important roleof the new public spheres and intervene accordingly, while criticalcultural theorists have the responsibility of educating students around thecultural and subcultural literacies that ultimately amount to the skillsthat will enable them to participate in the ongoing struggle inherent incultural politics.” Once again, I agree with you. Yet, let’s push ourreflection on strategy further: you suggest that there is a kind ofcrossroad for all the activists that discuss or fight against neo-liberalglobalization, in face of which some assume a global strategy and othersprefer to act locally; you also identify the later way with post-modernpositions and defends the need of overcoming this dichotomy. All right, butI see a second crossroad, when you specifically mention that to “thecapitalist international of transnational corporate-led globalization, aFifth International […] of computer-mediated activism is emerging, […]qualitatively different from the party-based socialist and communistInternationals”.

Well, despite the fact that this cyber-horizontalitysounds very promising, and its appearance of novelty (of course,computer-mediated activism is, indeed, a novelty), isn’t this anarchist way of thought and decentralized organization even older then “party-based socialist and communist Internationals”? So, shouldn’t we wander if it is not preciselythis anarchist way of refusing “party-based socialist and communistInternationals” as an organizational alternative, not necessarilyanti-democratic and that could perhaps be renewed as an effectiveanti-hegemonic force in the new internet era, what reveals more clearly the(relative) weakness of all anti-capitalist movements quoted in your essay?Or is the old anarchist decentralized way of making politics –  togetherwith its criticism, first against Marx “authoritarian centralism”, duringthe First International, then against Lenin bolshevist party model, and soon – proving itself to be more useful for nowadays political struggles thanits Marxian inspired rivals within the left? Or, perhaps, decentralizedextreme left cyber-groups, of anarchist or post-modern inspiration, aregrowing in cyberspace and elsewhere, instead of Marxian ones, preciselybecause, as Brizola (an old Brazilian left wing politician) said about anopponent leftist party, “it is the left that the right love best”?

DK: Actually, I think your questions cannot be answered theoretically but only practically. The article with Richard Kahn “Internet, Subcultures and Political Activism” described the use of the Internet by the anti-globalization movement, the Zapitistas, and a variety of other social movements in the late 1990s and early 2000s. The answer to your questions today, however, would be clarified by description of the use of new media and social networking in the North African Arab Uprisings and the Occupy movements, exactly the topic of my forthcoming book= Media Spectacle 2011: From the Arab Uprisings to Occupy Everywhere! That is, the actual activist practice defines the way that the Internet and new media can be used for activism, but theoretical reflections, although theorists can, as Kahn and I and Hardt and Negri attempted in different ways, can provide categories that describe and even anticipate new forms of revolutionary practice that might not fit into traditional categories such as Marxism or anarchism.M.S. Back to your “Habermas”, and still thinking about strategy (both in apractical and theoretical way): you said that  “Habermas […] often arguedhimself that the expanding functions of science and technology in theproduction process undermined the Marxian labor theory of value […]Expanding this argument, I contend that increased intensification oftechnological revolution in our era undermines Habermas’s own fundamentaldistinction between production and interaction, since production obviouslyis structured by increased information and communication networks, whilethe latter are increasingly generated and structured by technology.”

I agree with your criticism about Habermas, but as you seem to accept hisargument according to which the growing role of science and technologyamong production processes undermined Marxian labor theory of value, I haveto ask you how is it actually possible, if we take into account that Marxhad,  indeed, in his labor theory of value, considered science as aproductive force, and had also conceived intellectual labor as complex labor(remember the idea of the general intellect, in the *Grundrisse*), whosevalue could be measured taking simple labor as its unity of measurement, ina given economic universe etc. Besides, in the second book of Capital, hewrote specifically about communications, the term involving the press andthe mail, but also steamships and railways (as was usual at his time),focusing its common importance towards accelerating the circulation ofcapital. So how can the new role of science and information in contemporarycapitalism “undermine” Marxian labor theory of value? Isn’t it thecontrary, i.e., doesn’t it proves its correctness, as far as it pushescapitalism to its radical conclusion – the impossibility of the continuingprocess of expanded reproduction of capital, without the “aid”, suicidal inthe long term, of a casino way of financial speculations, with all kinds ofdestructions related to this? I think the answer is yes, mainly if weremember the tendency within the organic composition of capital towards thegrowing of its constant part (dead labor, technology) in place of thevariable one (living labor, simple or complex), and the subordination ofthe later to the former, including *intelligence and *information, not tomention the descending tendency of profit rate etc. So, as Mészáros pointsit in his “Beyond Capital”, Habermas was wrong when he saw in latecapitalism a subordination of economy to scientific determinations (or to“instrumental reason”, to remember the weberian idealistic inspiration ofthe reasoning), while what was (is) really as stake was (is) anincreasing  subordination of science and information (of “reason”) to capitalist disruptive economicdeterminations. If it is true, even agreeing with you, when you  say that your “perspectives, by contrast [with Haberma’s dicotomies betweenproduction and interactions, system and lifeworld etc.], open the entiresocial field to transformation and reconstruction, ranging from the economyand technology to media and education”, don’t you think that the centralrole of economy (and by this word I mean now the social planning andcontrol over production and consumption, what necessarily implies therelations of production, the problem of property, political forms etc.)among this process couldn’t be strategically neglected, as its yet theübergreifendes moment of the whole process?
DK: Actually, Marco I agree with you completely here in positing Marx vs. Habermas. Marx is surely right concerning the central role of economy, of  therelations of production, including the state and other political, legal, and cultural forms, and capital is still  the übergreifendes moment of the whole process. Interestingly, Egypt was a “laboratory for neo-liberalism” which created tremendous divisions between the rich and the poor (as in the U.S.) but had the more visible form of oppression in an authoritarian state that was the target of the Egypt Uprising. Interestingly, Occupy Wall Street articulates that Wall Street and finance capital in the U.S. is a major problem that has led to a division between the 1% and the 99% and is trying to figure out how to publicize and attack this division. At least they have publicized the issue and for the first time we can discuss seriously in the public sphere in the U.S. today redistribution of wealth, more progressive tax policy, regulation of Wall Street and finance capital, and even target it as the enemy of the people. Previously, the U.S. hegemonic neo-liberal and conservative discourses made this impossible. What the future of the Occupy movements will be we do not know, but they create openings for more radical political change, and right now 2011 is looking like a year of new political upheavals, as was 1968 during my student days.

Apresentação | de Cleomar Rocha

O recorte desta edição da Z Cultural coloca em questão a tecnologia, englobando a relação arte, ciência e tecnologia, tecnologias visuais e sonoras e mídias interativas. O conjunto de artigos problematiza estas questões, em visadas históricas e críticas, estabelecendo um panorama breve e denso de aspectos motrizes das discussões que se alastram, tanto na caracterização e importância das mídias quanto de seu envolvimento com a ciência e interatividade com seu usuário.

Convidamos para este número alguns pesquisadores do Reino Unido, Portugal, Colômbia e Brasil, para juntos comporem um quadro denso de referências e possíveis desdobramentos da tecnologia na cultura, vislumbrando desde relatos mais pontuais, como o faz Roy Ascott ao mesclar conceitos com sua trajetória, passando pela revisão da relação arte, ciência e tecnologia, defendida por Martha Blassnigg, pela revisão do cinema, realizado por Michael Punt, chegando ao processo de interação, discutido por Márcio Rocha e o envolvimento do corpoespaço e os dispositivos móveis, com Luisa Paraguai. Alcançamos, neste percurso, as imagens interativas com João Tiago Silva e a música tecnológica, com Diana Cardoso, que se vale da experiência de pesquisa neste campo. Raul Niño Bernal nos convida a pensar a cidade como rede interativa da cultura, problematizando o conceito de rede social. Finalmente retornaremos a noção de poiésis, ciceroneados por Vanderlei Veget, que a pretexto de discutir interfaces, nos aponta para a construção poética, esta noção aristotélica que sonda corações e mentes, tornando-os terra fértil para plantações imaginárias, teóricas, reflexivas, cujas raízes alcançam o berço de nossa capacidade de ser. Em suma, falamos todos sobre cultura.

Agradeço a profa. Heloisa Buarque de Hollanda, por compartilhar o espaço do PACC para nossas discussões, a Júlio César dos Santos, que traduziu os textos dos originais em inglês (Roy Ascott, Martha Blassnigg e Michael Punt), aos amigos Alice Martins e Jairo Bamberg, pelo apoio de sempre e a equipe de produção da revista Z cultural. Especial agradecimento aos autores que atenderam o nosso convite e nos alegram com suas reflexões.

Cleomar Rocha
FAV UFG, Media Lab UFG | PACC – UFRJ

Além das Mídias Interativas: das cibernéticas às tecnoéticas | de Roy Ascott – tradução Cleomar Rocha e Júlio César dos Santos

Por toda a minha carreira, as mídias cibernéticas tem sido o elemento integrativo no meu processo criativo. Em 1959, os escritos de Ross Ashbyi, Norberto Wiennerii, e Heinz von Foersteriii inspirou meu pensamento sobre redes dentro de redes – tanto semânticas quanto orgânicas – que poderiam dar forma a uma arte conectiva, transformativa e generativa. Eu percebi, de pronto, que isto poderia prover uma disciplina para a arte interativa, lincando mente-a-mente, lugar-a-lugar, dentro de uma complexidade de sistemas variados. Eu demonstro minhas ideias no texto “Behaviourist Art and the Cybernetic Vision” (Arte Comportamental e a Visão Cibernética) publicado em 1966/7iv.

As mídias cibernéticas me permitiram identificar arte como um sistema combinando o artista, o trabalho artístico e o espectador num processo de interação experimental e semântico. Como estudante eu fui profundamente mobilizado pelo trabalho de Paul Cézanne, Jackson Pollock e Marcel Duchamp, que apresentam três estéticas aparentemente opostas e que levaram muitos anos para se resolverem no meu próprio trabalho. Em Cézanne, eu pude entender a pintura como um organismo que se desenvolve da mobilidade caótica, inquieta, para o ponto de vista do artista que interage com o fluxo do comportamento natural, e somente o espectador pode resolver a incompletude do seu trabalho. Em Pollock, o plano de operações foi deslocado da parede (um elemento divisor) para o chão, unificando os traços do comportamento (gestual) do artista. No caso de Duchamp, há o desafio para que o espectador negocie subjetivamente e resolva a contingência do sentido que se encontra em todo e qualquer trabalho. A sua abordagem também se dirige à própria identidade, a qual ele vê como maleável. Esta tríade estética é fundante para (minha) prática artística digital, onde comportamento, interação, negociação, desenvolvimento e identidade são seus termos definidores.

Minha “change-painting1” e “hinged relief constructions2” dos anos 1960 foram um resposta exploratória para resolver (ou, como eu teorizaria mais tarde, ‘sincretizar’) estas incompatibilidades, com cada painel transparente transportando um elemento gestual ou semiótico que poderia ser re-arranjado em novas relações através da manipalação do espectador. Este processo de permitir o espectador manipular as partes, reordená-las em configurações infinitamente variáveis, levou-me para o “tabletop3” como arena de interação com possibilidades muito importantes para o desenvolvimento do trabalho. Usando, ao acaso, “instrumentos” domésticos de controle (funis/fluxos, modeladores de bolinhos/formas, moldes/formas, tapetes anti-derrapantes/redes, cabides de roupas/conectores), o espectador era convidado a sentar-se à mesa interagindo num jogo com um parceiro, com o fim em aberto. Estes trabalhos eram, de fato, para serem coisas em si mesmas como metáforas num nível amplo de significação. O “tabletop” como interface tem sido um importante tema e suporte no meu trabalho, em suas ambas formas análogas e como um modo de exibição do meu trabalho digital projetado num suporte horizontal.

Eu pude explorar mais o poder das mídas cibernéticas como uma ferramenta cognitiva e criativa quando fui convidado a ministrar um curso totalmente experimental em Londres (e eventualmente em Ipswich). Eu o chamei de “Groundcourse”v. Seu efeito foi sentido internacionalmente, tendo ganhado muita atenção a partir da notoriedade de algum dos mais extremos desafios propostos para estudantes, mas também pela notabilidade de cada bem conhecido graduado como Brian Eno e Pete Townsend. A qualidade destes graduados pode demonstrar a excelência de um curso, e pode revelar sua natureza transformativa e integrativa. Isto pode também ser pensado como a maior aventura dos últimos tempos no mais alto nível de investigação artística, o “Planetary Collegium”vi, uma rede de pesquisa internacional, agora baseada na Universidade de Plymouth com pontos em Zurique e Milão, e que foi primeiro estabelecida por mim na Universidade de Wales em 1994, e da qual incluem, como ex-alunos, Bill Seaman, Victoria Vesna, Char Davies e o artista brasileiro Guto Nóbrega, juntamente com muitos outros artistas e teóricos notáveis.

Quando eu me mudei, em 1970, de Londres para Toronto, como presidente da “Ontário College of Art”, eu pude levar as implicações artísticas, intelectuais e filosóficas deste processo educacional para um outro nível. Aqui, as divisões de práticas do velho século em departamentos de artes refinadas, desenho gráfico, moda e produtos de estilo foram abandonadas em prol de um currículo estruturado em três principais zonas de ação: Informação, Conceito e Estrutura, cada qual elaborada com base em Análise, Teoria, Especulação e Aplicação Social, a partir das quais áreas específicas de assuntos poderiam ser geradas. A maioria dos estudantes gostaram disto; alguns professores temeram, especialmente aqueles cujos domínios eram representados por territóriosvii.

Em 1974 mudei-me para o “San Francisco Art Institute”, como vice-presidente e decano do Colégio. Na Califórnia, eu encontrei pesquisas em conferências por computador no “Stanford Research Institute”. Eu vi , claramente, as implicações futuras para a prática artística desta mídia. Eu escrevi mais tarde: ”redes de computadores podem fornecer campos de interação entre inteligências humanas e artificiais, envolvendo simbiose e integração de modos de pensar, imaginar e criar, os quais, do ponto de vista da arte, podem conduzir a uma imensa diversidade de transformações culturais; e também na ciência e filosofia, definições enriquecidas da condição humana. Redes de computadores, em resumo, respondem ao nosso profundo desejo psicológico por transcendência – por considerar o imaterial, o espiritual – a vontade de estar fora do corpo, fora da mente, de extrapolar as limitações do tempo e espaço: um tipo de teologia bio-tecnológica”viii. Eu requeri, com sucesso, uma subvenção ao “National Endowment for the Arts”, o que me permitiu distribuir terminais portáteis “Texas Instrument” para artistas no Reino Unido, Estados Unidos e Europa no primeiro evento telemático internacional que eu chamei “Terminal Art”.

Paralelamente, eu continuei pintando, buscando negociar com o não-linear, esculturas em camadas mas, em 1980, eu decidi dedicar-me inteiramente às comunicações computacionais e cunhei o termo “telematic art” para definir a minha prática. Assim como antes, eu tive um flash despertador do valor da teoria cibernética para minha prática (com) arte interativa, muito claramente eu vi na telemática a possibilidade para uma nova mídia conectiva para minha arte. Com o “National Endowment for the Arts” financiando o projeto, terminais portáteis foram enviados para artistas nos Estados Unidos e o Reino Unido. No momento em que este projeto teve início, eu mudei minha base da “Bay Area” para o Reino Unido. Lá, minha proximidade com a França me possibilitou testemunhar os primeiros passos na “telematização da sociedade”, resultante de um relatório do MinC e Nora ao Presidente da França: o programa telemáticoix. Neste momento eu comecei a desenvolver uma série de pesquisas especulativas com vistas a prováveis apropriações para a arte de desenvolvimentos tecnológicos que já haviam sido realizados ou que poderiam vir a ser desenvolvidos iminentemente. O que se pode vislumbrar está, muitas vezes, fora de alcance, tecnologicamente falando, e só pode ser antecipado pela (através da) linguagem – um processo que necessita a formulação de novas metáforas e neologismos. Penso que seja necessário a criação de termos como: “tecnoética”, “cibercepção” e “mídia-úmida”, por exemplox.

Meu primeiro grande trabalho telemático foi “La Plissure du Texte4”. O projeto surgiu em resposta a um convite de Frank Popper para participar de Electra: Eletricidade e Eletrônica na Arte do Século XXxi, no “Musèe Art Moderne de la Ville de Paris”, no outono de 1983. Popper havia escrito anteriormente sobre o meu trabalho e eu estava confiante de que seu convite oferecia uma oportunidade perfeita para criar um evento telemático de grande escala que poderia incorporar idéias e atitudes que eu havia formado ao longo dos últimos vinte anos ou mais. “La Plissure du Texte (LPDT): um Conto de Fadas Planetário, buscou pôr em marcha um processo pelo qual uma narrativa com final-aberto pode ser construída a partir de uma “mente” autoral cujos nós (da rede) interagiam assincronicamente cobrindo grandes distâncias – de fato, em escala planetária. Retrospectivamente, eu vejo como uma complexidade de ideias é capaz de criar um contexto para um trabalho cuja aparente simplicidade mascara um processo generativo que pode bifurcar em muitos outros modos de expressão e criação. Isto tem sido provado ser o caso do “LPTD2”xii que foi criado especificamente para minha exposição retrospectiva na Coréia, como parte do “Incheon Digital Arts Festival” em outubro de 2010.

Eram os sistemas psíquicos que eu vinha estudando deste o início dos anos 1960 – telepatia através dos oceanos, a comunicação com os desencarnados em mundos distantes – que me levou, uma década depois, a formular ideias da “mente compartilhada” e o conceito de autoria compartilhada. Foram narrativas tecidas por volta do período neolítico, “tecnologia espiritual” clássica e medieval da minha região-natal – Aveburry, Silbury Hill, Stonehenge e Glastonbury – que me preparou, desde muito jovem, para meus estudos subsequentes de esoterismo e o sentido do numinoso5 que, mais tarde, fui encontrar no ciberespaço. Em abril de 1970, publiquei “The Psibernetic Arch”xiii, que procurava fazer uma ponte entre as aparentemente opostas esferas da cibernética dura e os sistemas psíquicos moles.

Muitos projetos telemáticos vieram depois dos LPDT. Em 1984, eu liderei a criação do “Laboratorio Ubiqua”xiv da Bienal de Veneza, para o qual eu era um comissário internacional. Este se categorizou por todo tipo de mídia interativa computadorizada disponível no momento. Um projeto semelhante, em menor escala, introduziu o meu conceito de “Telenoia”xv – um projeto de 24 horas patrocinado pelo “V2 Centre for Unstable Media” na Holanda. Isto era uma chamada para um oitavo dia da semana, a ser conhecido como Telenoia, que defini como a celebração da conectividade, ao contrário da paranóia da cultura industrial ocidental. Em 1989, eu criei “Aspects of Gaia: vias digitais em toda a terraxvi, instaladas em dois canais em Brucknerhaus, Lins para o “Ars Electronica Festival”. “Aspects of Gaia” combinou a experiência telemática de estar fora-do-corpo no ciberespaço com a realidade concreta do espaço físico, colocando juntos uma rede de participantes distribuída globalmente, colaborando na criação e transformação de textos e imagens relacionadas a Gaia, a Terra, vista a partir de uma multiplicidade de perspectivas espirituais, científicas, culturais e mitológicas. No nível superior da Brucknerhaus, uma grande tela horizontal permitiu que espectadores olhassem para baixo e interagissem com imagens e textos compartilhados remotamente, de todo o mundo. No nível inferior, em um túnel em todo o comprimento do edifício, espectadores podiam se deslocar num carrinho eletrônico que passava por telas LED que mostrava mensagens flashes sobre Gaia. O espectador torna-se fisicamente engajado na experiência que transmitia ideias sobre a emergente qualidade da consciência telemática que se refere à Terra como um organismo vivo.

Neste ponto, reconhecendo em mim mesmo, e na experiência de artistas parceiros, a necessidade de compreender mais profundamente a nova arte-mídia que está emergindo, eu montei um programa de pesquisa de doutorado na Universidade Walles. Este foi o Centro de Pesquisa Avançada em Arte Interativa (CAAiiA), que mais tarde se mudou para a Universidade de Plymouth, com pontos filiados em Zurique e Milãoxvii. Existem hoje cerca de 60 candidatos em pesquisa ativa de doutoramento, e 25 títulos de doutorados concedidos.

No final dos anos 1990 visitei o Brasil na primeira das muitas visitas que se estenderam de Caxias do Sul no Sul para Fortaleza no Norte, tanto quanto, por algum tempo, pela região do rio Xingu com o povo Kuikuru. Durante estas visitas me tornei cada vez mais consciente da natureza sincrética das práticas espirituais do País, que inclui a Umbanda, o Candomblé, o Santo Daime e a União do Vegetal. Em muitos casos, os princípios do xamanismo aparecem dentro das culturas contemporâneas, como eu acredito que seja na Coréia hoje, onde tive o privilégio de assistir a uma série de cerimônias rituais. No Brasil fui apresentado à bebida sagrada “Ayahuasca”, que induz a estados alterados de consciência. Eu vi nisso uma tecnologia farmacêutica muito específica que altera a cognição e a percepção de maneira similar à cibercepção mediada por computador (embora muito mais profunda). Neste ponto eu introduzi a idéia das Três Realidades Virtuais – VR: Realidade Validade, Virtual e Vegetalxviii. Uma proposta em que o mundo “seco” da virtualidade computacional e o mundo “molhado” dos sistemas biológicos estão convergindo para produzir um novo substrato para o trabalho criativo – mídia-úmida – consistindo em bits, átomos, neurônios e genes. Há também uma certa convergência destas três realidades virtuais

  • Realidade Virtual (tecnologia digital interativa), que é telemática e imersiva;
  • Realidade Validada (tecnologia mecânica reativa), que é prosaica e newtoniana;
  • Realidade Vegetal (tecnologia de plantas psicoativas), que é enteogênica e espiritual.

Neste interespaço reside o grande desafio para a ciência e a arte: compreender a natureza da consciência. A estética tecnoética se faz necessária, em consórcio com a mídia-úmida, a qual pode possibilitar-nos como artistas abordar questões fundamentais do nosso tempo:

  • o que é ser humano na cultura pós biológica?
  • o que é a ontologia da mente e do corpo compartilhado no ciberespaço?
  • como lidar com a responsabilidade de redefinir a natureza e até mesmo a própria vida?
  • quais aspectos do imaterial podem contribuir com a re-materialização da arte?

Estou convencido de que a química cerebral, como acontece com a consciência de forma mais ampla, estará no topo da agenda durante a maior parte deste século. Por esta razão, eu acredito que o cânone da tecnoética dará forma a uma arte séria num futuro previsível, uma arte que investe em interação e conectividade.

Os mais antigos e legitimados códigos de pesquisa, definidos em qualquer área das humanidades ou tradição científica, são inadequados para a pesquisa realizada por artistas. Uma nova pesquisa especulativa é demandada, em apoio da qual eu persuadi a “Intellect Ltda” a publicar a revista “Technoetic Arts”xix. Eu tenho definido tecnoética como um campo convergente de práticas que procuram explorar a consciência (estados) e conectividade por meios digitais, telemáticos, químicos e espirituais, e o uso criativo da mídia-úmida. A pesquisa especulativa do artista do século XXI segue uma trajetória quíntupla, que envolve:

  • conectividade das mentes, máquinas e culturas;
  • imersão no espaço híbrido da realidade variável;
  • interação como trans-modalidades de mídias e sistemas;
  • transformação da imagem, forma e consciência;
  • a emergência de novas representações, estruturas, valores e significados individuais, culturais, espirituais e sociais.

Imersão telemática na NET que leva a múltiplos “si-mesmos”, que nos leva além da representação da absorção em consciência global e dos estados de representação sincrética.

Na prática da arte, o sincretismo pode tornar-se um imperativo metodológico. Sincretismo, na tentativa de conciliar crenças díspares ou contrárias, reúne entidades diferentes – material e imaterial – e seus costumes e códigos filosóficos, religiosos e culturais. O pensamento sincrético é associativo e não-linear. Como artistas envolvidos na conectividade e interatividade global, a nossa prática está envolvida por uma arte sincrética, refletindo e construindo uma cultura sincrética numa realidade sincrética. Sincretismo pode servir-nos para compreender as visões de mundo como multicamadas, tanto materiais como metafísicas, que estão emergindo de nosso engajamento com tecnologias computacionais infiltrantes e sistemas pós biológicos. A aplicação do pensamento sincrético tem efeitos distintos e positivos. Ela acelera o desenvolvimento tecnoético, desestabiliza ideias ortodoxas, desafia representações, hibridiza identidades, suaviza a interação social e re-ordena o tempo e o espaço.

Olhando para o futuro, podemos ver que nosso planeta está cada vez mais telemático, gerando densa e inclusiva conectividade global; nossa mente está se tornando mais plenamente tecnoética, abrindo caminhos para a consciência expandida, nosso sistema sensorial é extendido por próteses que ampliam a faculdade da cibercepção, e por uma renovação do interesse em cultivar aqueles sentidos de segunda ordem (psíquica) que a iluminação fundamentalista estrita baniu do repertório da sensibilidade humana; a identidade individual está se tornando múltipla com a criação de avatares e personagens alternativos; nosso corpo é transformável tanto em termos do físico quanto do virtual; nossa realidade se mostra numa maior variabilidade; tornando domínios múltiplos indissociáveis. Agora que nosso substrato na construção da nossa realidade está no nível do “nano”, estamos ampliando a interface das condições materiais e imateriais de ser.

Em consequência, a arte se torna progressivamente mais sincrética, com o risco de perder inteiramente seu significado social e espiritual. A mente está, em muitos aspectos, superando o corpo, e o sentido de si mesmo é tornar-se múltiplo. Como foi o caso de Duchamp, a primeira influência no meu trabalho – a identidade é maleável, o si-mesmo é emergente. Estamos em um constante estado de tornar-se: não todo mas múltiplo, não um mas muitos. O fato é que já não somos um organismo único. Progressivamente nos tornaremos mais permeáveis e transparentes – na mente, assim com no corpo – e não apenas para os outros, mas também para nós mesmos e para nossa própria auto-realização. Como consequência do desenvolvimento tecnoético estamos reconstruindo o “si-mesmo”. Estamos cada qual envolvido na construção e sincretização dos muitos “eus”xx. Quanto mais fundo entramos em nós-mesmos, mais eus descobriremos.

Como consequência do desenvolvimento das mídias interativas ao longo dos últimos 50 anos, as artes, a indústria, o meio ambiente e a educação estão todos passando por mudanças e transformações significativas; o alcance da conectividade global, a engenharia radical em matéria de corpo e mente, e o previsível poder dos sistemas computacionais são as causas mais evidentes destas mudanças de desenvolvimento. Esta época de transformações irá gerar formas totalmente novas de comportamento e comunicação, novos sistemas e estruturas. Os efeitos vão ser sentidos rapidamente na arquitetura, entretenimento, aprendizagem, características da produção industrial, mercado consumidor e nas fronteiras nacionais e geofísicas. Vamos gerar uma abordagem mais colaborativa e transdisciplinar visando solucionar nossos problemas e projetar novas iniciativas. Arte, Ciência e Tecnologia devem repensar suas interações. O Sincretismo, encontrado unidade na diferença, pode tornar-se um imperativo metodológico. Enquanto uma parte do mundo da arte continua implacavelmente materialista e competitiva, outras práticas, nomeadamente nas artes interativas e em muitos aspectos e aplicações das redes sociais, estão voltados para a conectividade pessoal e a criação de significado.

 

1 Pinturas sobre placas móveis, dispostas em camadas que parecem se mover, ou seja, mudar de lugar com o movimento do espectador, alteram a noção de profundidade e principalmente re-ordena a própria pintura. Posteriormente este trabalho é desenvolvido utilizando-se de mídias digitais. http://www.youtube.com/watch?v=stXIHsL1xm8 é um exemplo deste tipo de trabalho.

2 Do mesmo modo, elementos e placas dobráveis que constroem relevos que podem ser alterados, ou que se alteram de acordo com o movimento do espectador diante do objeto artístico. Ou seja, da mesma forma que a change-painting propõe um final-aberto, que nunca é acabado, mas sempre re-ordenada.

3 Pensado no sentido de um tabuleiro, de uma mesa para futebol de botão, onde se pode alterar a posição dos objetos, as dimensões, as formas, manipulando uma mesa-tela horizontal na qual o espectador pode interagir, tocando e manipulando elementos, re-organizando sua poética, ou seja, estética e ética.

4 Literalmente, as pregas (dobras) do texto.

5 Numinoso (do latim “numen”, divindade) é algo que é sagrado ou divino. Esse termo foi utilizado academicamene por Rudolf Otto, um dos pais da Fenomenologia Religiosa. É usado numa conotação psicológica na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, como aquilo que está ao dogma do supremo ordenador do cosmos, uma especie de iluminação.

i ASHBY, Ross. Design for a Brain. London: Chapman & Hall, 1952.

ii WIENER, Norbert. Cybernetcs or Control and Communication in the Animal and the Machine. New York: Wiley, 1948. The Human Use of Human Beings. Boston: Houghton Miffin, 1950.

iii FOERSTER, H. Von. Cybernetcs of Cybernetics, Urbana Illinois: University of Illinois, 1974.

iv ASCOTT, Roy. “Behaviourist Art and the Cybernetic Vision”. In: Cybernetica, Journal of the International Association for Cybernetics (Namur), 9, 1966, pp. 247-264. ASSCOTT, Roy. “Behaviourist Art and the Cybernetic Vision”. In: Cybernetica, Journal of the International Association for Cybernetics (Namur), 10, 1967. Pp.25-56.

v ASCOTT, Roy. “The Construction of Change”. In: Cambridge Opinion (Cambridge, England), 1964. Pp. 37-42.

vii WOLFE, Morris. OCA 1967-72: five turbulent years. Toronto: Brub Street Books, 2001.

viii ASCOTT, Roy. Seeing Double: Art and the Technology or Transcendence. In: ASCOTT, Roy (ed.). Reframing consciousness. Exeter: Intellect Books, 1999.

ix MINC, Alain; NORA, Simon. L’Informatisation de la société. Paris: Seuil, 1978.

x ASCOTT, Roy. Telematic Embrace: visionary theories of art, technology, and consciousness. Bekerley: University of California Press, 2003.

xi POPPER, Frank. Electra: Electricity and electronics in the art of the XXth Century. Paris: Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1984.

xiii ASCOTT, Roy. “The Psibernetic Arch”. In: Studio International. London. April, 1970, pp. 181-182.

xiv ASCOTT, Roy. “Arte, Tecnologia e Computer”. In: PIROVANO, Carlo (ed.). Arte e Scienza, Biologia, Technologia e Informática. La Biennale di Venezia: Electra Editrice, 1986.

xv ASCOOT, Roy. “Telenoia”. In: ADRIAN, Robert (ed.), On Line – Kunst in Netz. Graz: Steirischen Kultuiniative, 1993.

xx ASCOTT, Roy. The Ambiguity of Self. In: ASCOTT, Roy; BAST, G. et all, New Realities: Being Syncretic. Wein, New York: Springer, pp. 22-25.

 

Roy Ascott, julho/2011.
Universidade de Plymouth, Reino Unido: Professor de Artes Tecnoéticas e Presidente do “Planetary Collegium”. Telematic Embrace. University of California Press, 2003.

A convergência da Arte e Ciência: Pistas do Passado | de Martha Blassnigg – tradução Cleomar Rocha e Júlio César dos Santos

Este artigo faz uma breve excursão pela história européia da ciência e da tecnologia numa perspectiva antropológica, destacando os valores humanos nas diretrizes subjacentes, imaginação, e atividades relacionadas à mente, como a maioria fundamentalmente constitutiva de toda a colaboração inter-disciplinar e seu impacto sobre a avaliação atual do valor associado às trocas cada vez maiores entre as Artes e as Ciências.

A Conferência Científica Internacional “Rumo a uma terceira cultura. A coexistência da arte, ciência e tecnologia”, organizada pelo Centro Laznia de Arte Contemporânea e o Museu de História em Gdansk, 23 a 25 maio de 2011, começou a discutir como “Atingir a arte por tecnologias científicas desenvolvidas agora no contexto da visão de uma terceira cultura, postulada por John Brockman “. Em vista das críticas e equívocos da problemática “duas culturas” da C.P. Snow, a postulação de uma “terceira cultura” foi criticamente abordada pela agenda das discussões da conferência, em particular em torno de idéias sobre a ciência para a arte e arte para a ciência, o papel, o significado da abordagem colaborativa, revista e criticamente a partir de diferentes perspectivas. A dimensão da interação humana em seus aportes subjacentes, a imaginação e a atividades mentais relacionadas, foi um entre muitos outros assuntos discutidos, o que será destacado aqui como o mais significativo parceiro constitucional, em especial entre as artes e ciências. Este artigo, portanto, concentra-se nas intersecções históricas entre a arte e a ciência e o que isso pode nos dizer, se não sobre a mudança de paradigmas, pelo menos, sobre a mudança em relação aos valores humanos envolvidos na colaboração.

A partir de uma excursão na história da ciência e tecnologia dos últimos dois séculos, fica evidente que o final do século 18 via a Arte e a Ciência ainda intimamente relacionados, como é explicitado, por exemplo, pelo químico e inventor Sir Humphrey Davy (1778-1829), na sua comparação entre o filósofo natural e o estado mental do artista:

A contemplação das leis do universo está conectada a uma exaltação imediata a e tranqüila da mente e puro prazer mental. A percepção da verdade é quase tão simples quanto um sentimento, como a percepção da beleza … o amor da natureza é a mesma paixão, como o amor do magnífico, do sublime e do belo. (WRIGHT, 1980: 199)

Quando o filósofo e historiador da ciência William Whewell cunhou o termo cientista, em 1833, na Inglaterra, o termo foi publicado pela primeira vez, anonimamente, em 1834, na resenha de “On the Connexion of the Physical Sciences” de Mary Somerville, com um comentário satírico sobre a crescente tendência “de separação e desmembramento “das ciências, que excluía filosofia, a menos no que referia aos termos “natural” ou “experimental”1. Ele propôs o termo novamente, de modo mais sério e em seu próprio nome em 1840, em “The Philosophy of the Inductive Science”, dando um nome genérico compreendendo vários campos científicos, semelhante à maneira como ele concebeu o termo artista para se referir às áreas da música, pintura, poesia etc. O que é particularmente interessante sobre a intervenção de Whewell para o contexto atual é que ele concebeu que todo conhecimento tem um ideal, ou dimensão subjetiva; bem como uma dimensão objetiva. O que ele viu como uma antítese fundamental do conhecimento, revelou em todo ato de conhecimento há dois elementos opostos: idéias e percepções. Por contrariar os Idealistas Alemães, bem como os sensacionalistas por sua propensão exclusivista, ele alegou estar procurando uma “via intermediária” entre racionalismo puro e um empirismo extremo.

Whewell (1858, I, 91) denominou ideias fundamentais como sendo: “… não uma conseqüência da experiência, mas um resultado da constituição particular e atividade da mente, que é independente de toda a experiência em sua origem, embora constantemente combinadas com experiência no seu exercício “. Ele reconheceu que a mente não é um mero receptor passivo de dados sensoriais, mas um participante ativo na produção de conhecimento.

É notável que a filosofia da mente reflete na história da ciência no modo como vários processos de produção de conhecimento foram compreendidos e modificados nas metodologias e significados implicados. Embora tenha sido freqüentemente alertado que a condição humana tem de ser reconhecida na sua implicitude em qualquer ato de observação ou de análise (se não na coleção científica de dados em si, e ainda, na leitura e interpretação da informação recolhida), as implicações do papel ativo da mente humana, no entanto, tem sido freqüentemente subestimado. A longa tradição na separação dualista entre a racionalidade como um processo de ordem superior e os sentidos físicos e a mente do corpo como os processos menores relacionados ao instinto deixou seus traços e ainda prevalece. Consequentemente, o dualismo cartesiano serviu predominantemente de modelo para racionalizar a separação crescente entre as Artes e Ciências durante o século 19 com uma presunçosa oposição binária entre o racional e o irracional, o inteligível e o sensível, ou o dionisíaco e o apolíneo, que Friedrich Nietzche (1872) reinterpretou como as unidades da natureza artística, como oposição estética fundamental.

Ao olhar para a interseção entre Arte e Ciência em estudos de casos particularizados, no entanto, muitos dos limites freqüentemente discutidos parecem se dissolver no reconhecimento das tensões produtivas dentro de contradições, paradoxos e incoerências nas práticas cotidianas. A partir dos muitos exemplos que podem ser extraídos da história da ciência, um caso paradigmático pode ser encontrado no fisiologista francês Etienne-Jules Marey (1830-1904), cuja obra se coloca entre as tensões que transformaram a ciência do século XIX dentro do paradigma positivista do século XX. Enquanto um estudo de caso mais completo é desenvolvido em outros lugares (BLASSNIGG, 2009) deve-se notar aqui que os estudos sobre movimento de Marey estava entre a sua capacidade visionária e orientação motivadora que entendeu o movimento como força subjacente para além da atividade executada de corpos em movimento ou substâncias, e o método científico de análise que reduziu essa força de apreender momentos para estudar posições individuais e casos de intensidades.2 A sobreposição de fotografias em série em sua “composite chronophotographs” situaram as tensões entre a calibração instrumental e a expansão da percepção subjetiva por uma ligação rigorosa com uma imaginação visionária e uma consciência explícita das suas implicações perceptuais e epistemológicas. Através de sua combinação única de métodos gráficos e fotográficos, de tecnologias de análise e de síntese, Marey teve sucesso abordando intrinsecamente a ambos: o capturado (análise) e o percebido (em suas tensões entre o experienciado e o sintetizado), em contraste com o paradigma positivista, cada vez mais privado desta totalidade e dinamismo visionário3 enquanto método científico. Esses recursos são evidentes no trabalho inovador de Marey, em que a imaginação desempenhou um papel fundamental tanto quanto a estética, ambos aplicados como ferramentas intrínsecas para complementar o rigor científico e a precisão.

A discrepância entre a análise e a descrição (ou representação visual) do movimento e o dinamismo atual das forças subjacentes de corpos animados que se cristalizam como duas dimensões chaves no trabalho de Marey, que na época também foi discutido pelo filósofo Bergson Hneri (1859-1941), que foi quem identificou a confusão entre a medição do tempo quantificável e do tempo como experiência qualitativa, uma vez que permanece fundamental reconhecer as potencialidades intrínsecas da mente humana que se mantém envolvida. Ele procurou desenvolver uma abordagem pragmático filosófica para abordar a questão da mudança de paradigma anteriormente mencionado nas ciências; inicialmente escrito como uma crítica à posição extremada do idealismo de Kant dentro do idealismo alemão de uma filosofia transcendental, ele tentou se mover através da dicotomia matéria (corpo) e espírito (mente), evitando estabelecer um reino transcendental e sem ter que considerar a consciência como um epifenômeno do cérebro. Assim procedento, os esforços de Bergson resultaram na distinção de duas tendências da mente – intelecto e intuição (antigo instinto), em uma oposição esquemática, que de forma construtiva e colaborativa foram complementando-se mutuamente ao longo do processo evolutivo, como ele demonstra em particular o caso dos processos criativos da mente (BERGSON 1999, 1998). Ao invés de representar uma crítica polêmica ao método científico, ele refletiu sobre o entreleçamento implícito e de contingências entre esses dois pólos dinâmicos e as suas necessidades evolutivas como tendência integradora: “Há coisas que a inteligência sozinha é capaz de buscar, mas que, sozinha, nunca as vai encontrar. O instinto, por si só, poderia encontrar; mas nunca irá procurá-las ” (BERGSON, 1998, 151).

A partir da perspectiva de uma filosofia (ou antropologia) da ment,e Marey e Bergson reconhecem intuição e imaginação como constituintes intrínsecos de sua prática do conhecimento, e viram a arte como uma disciplina importante para manter o movimento em uma posição dinâmica e instável – o próprio princípio da vida como é experimentado e aspirado. Há paradigmáticos exemplos anteriores de tentativas similares para descobrir um acesso mais direto e holístico para os fenômenos observados, em particular nas suas comunicações interrelacionais e representações com e no espectador, como nas obras de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832 ) e Joseph Mallord William Turner (1775-1851), que tanto tentaram mediar e comunicar a experiência de fenômenos de luz e escuridão em seu caráter unificado e alterações transitórias.4 Goethe, mais explicitamente, tinha manifestado a interação entre a intuição e o intelecto de uma forma semelhante a Bergson, pois ele compreendeu a percepção intuitiva (Anschauung) e a faculdade do pensamento (DENK-KRAFT) como duas forças complementares na conformação de qualquer ato criativo que objetiva alcançar uma maior atenção e análise mais completa (NAYDLER, 1996, 120). Não obstante que a resolução de Turner para estas tensões inerentes, como expresso em particular na sua pintura do Dilúvio, tem sido interpretada como uma imagem de desespero, a resolução de Goethe foi vivamente contestada e as intenções inerentes de Marey têm sido negligenciadas ou deliberadamente prejudicadas , suas obras tem sido orientadas por sensibilidades e preocupações interconectadas, embora em enquadramentos muito diferentes e através de metodologias divergentes. As tensões intrínsecas no tratamento do movimento dinâmico no seu trabalho e pensamento indicam a aparente incompatibilidade e paradoxo que Bergson e, semelhante aWhewell e Goethe, situou como tendências complementares da mente humana: o intelecto e a intuição.

A busca de Bergson, no entanto, não só reconhece alguns destes paradoxos irreconciliáveis, mas escava um caminho através do reconhecimento da agência imanente durante o processo perceptivo co-criativo como evento ontológico que interliga apreensão estética e intuição com rigor intelectual. O esforço em direção ao holismo, sem negligenciar a agência criativa e promulgada autodeterminação do participante (seja ele humano ou não humano), oferece-se como uma solução potencial para a dicotomia comumente assumida entre mente e matéria através de uma compreensão pragmática da intuição, que suplementa e, finalmente, contém o intelecto. A fim de manter em vista a constante renegociação dos valores humanos em qualquer prática do conhecimento (no pleno reconhecimento de agência e criatividade como forças motrizes), uma das principais preocupações pode ser identificada nos canais que facilitam a co-construção de conclusões específicas levantados deles mesmos. Estes “conjuntos” com as práticas e experiências do cotidiano através de participação(1) pro-ativa, co-criativa e consciente pode constituir uma verdadeira “ciência compartilhada”, em especial quando se trata de troca de conhecimento através da colaboração. Neste sentido, o binário arte-ciência genérico, talvez entre os muitos binários interdisciplinares, serve como um modelo para aludir ao potencial transformador da dinâmica da troca, como eles aspiram e que Sundar Sarukkai (2009) chamou de uma “ética da curiosidade” em ciência. Ao invés de contar os resultados em termos de diferença (1 + 1 = 2) ou de equalização em terra comum como uma espécie de amálgama (1 + 1 = 1), a equação mais valiosa da arte-ciência pode estar no recorte da dinâmica fusão: 1 + 1 = 3; não como uma terceira “cultura”, no entanto, mas como algo novo e diferente que pode acontecer em um meta-nível como princípio autotranscendente de qualquer colisão materializada. O restabelecimento do sublime como uma qualidade na efetiva atividade da mente humana, ao invés de um “dado” de natureza transcendental em termos de um “absoluto”, fornece uma reconciliação potencial da condição humana de viver entre binários, em um dualismo que não precisa ser necessariamente superado, mas que alimenta a fusão evidente que produz os deleites da mente promulgada por meio de uma responsabilidade de a conceber como um todo. Um dom ativo do amor que só pode ser apreciado na atividade concreta de estar com, no próprio ato co-criativo entre dois elementos, nas seções transversais de qualquer prática com o objetivo de produzir novos conhecimentos ou algo assim, com ou sem o auxílio da tecnologia, o movimento efetivamente criativo da mente que “mentaliza”. Como tal, a polaridade da arte-ciencia pode ser vista em uma gama muito maior de oposições binárias, onde questões semelhantes e dificuldades de comunicação podem ocorrer: nas colaborações interdisciplinares relacionadas a diálogos inter-culturais, a assuntos relacionados a gênero, a trocas inter-nacionais, a relações inter-geracionais etc.

A capacidade de apreciar e facilitar a transcendência disciplinar aparece como o fulcro de que podem inflamar no encontro ciência-arte, mas somente se os métodos envolvidos e as abordagens forem mantidos inteiros numa relação dialógica (ao invés de uma dialética ou uma convergência) que desafiem a unificação e abraçem a diferença na mutualidade (co-sendo). Deixar de lado modelos paradoxais como premissas, para dislumbrar novas visões podem provocar uma fusão onde as relações envolvidas estão sendo transformadas e discernimentos sendo transferidos através de uma troca de conhecimentos que não elimina, mas acomoda diferenças. Um encontro idealizado e produtivo que se orienta potencialmente em direção a uma auto-transcendência responsável, privilegiando o todo . Mentalidade aberta, tolerância, generosidade intelectual, curiosidade ética, modéstia – qualidades essenciais para qualquer encontro na fronteira entre as disciplinas, culturas, nações, ideologias, etc – indicam um papel-modelo que a ciência da arte da colaboração poderia representar no século XXI, para um reconsideração dos valores das Humanidades, que não se restringem aos seres humanos, mas estende seu parentesco a todas as formas de vida. Isto estava no cerne da visão de Henri Bergson de uma nova ciência que abraçava a metafísica por meio da filosofia, especialmente como expressa em sua abordagem para a compreensão da consciência além dos limites humanos em “L’Evolução Créatrice “(1907. Evolution, Creative, 1998) pelo que , pode-se sugerir retrospectivamente, ele talvez deveria ter ganhado o prêmio Nobel da Paz, além do que ele recebeu em 1929, de Literatura. Intuição, entendida como prática responsável auto-consciente e dom ativo do amor , mais que uma visão espontânea, pode servir como abordagem potencial em direção a uma atitude “humanitária” através da escolha auto-transcendente e agência individual para descobrir os domínios que são deliberadamente ou acidentalmente perdidos na tradução. Numa última análise, o principal desafio a ser identificado pode não ser a busca de uma linguagem comum, mas sim o desenvolvimento de competências e habilidades em relação ao entendimento da mente humana de modo a acomodar diferença e contingência em sintonia com os valores selecionados e advogados para orientar buscas futuras.

 

Referências

Bergson, Henri. An Introduction to Metaphysics (tr. T.E. Hulme). Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing. [1903. ‘Introduction à la Métaphysique’ in Revue de Métaphysique et de Morale, January].

______ 1998. Creative Evolution (tr. A. Mitchell). Mineola, New York: Dover Publications. [1907. L’Évolution Créatrice. Paris: Alcan].

Blassing, Martha. 2009. Time, Memory, Consciousness and the Cinema Experience: Revisiting Ideas on Matter and Spirit. Amsterdan: Rodopi.

Marey, Étienne-Jules. 1895. Movement: The Results and Possibilities of Photography (tr. E. Pritchard). London: William Heinemann. [French original: 1894. Le Mouvement. Paris: Masson].

Naydler, Jeremy (ed.) 1996. Goethe on Science. An Anthology of Goethe’s Scientific Writings. Trowbridge: Floris Books.

Nietzche, Friedrich. 1872. Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (The Birth of Tragedy: Out of the Spirit of Music). Leipzig: E.W. Fritzsch.

Sarukkai, Sundhar. 2009. Science and the Ethics of Curiosity. Current Science 97 (6): 756-767.

Whewell, William. 1858. The History of Sientific Ideas. Two Volumes. London.

Wright, C.J. 1980. The ‘Spectre’ of Science. The Sutdy of Optical Phenomena and the Romantic Imagination. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 43.

 

1Citação retirada da Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2006. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/whewell. Acessado em 30/05/2011.

2A Monografia de Marey: Movement (1895; Le Movement, 1894) é particularmente esclarecedora para compreender as intenções subjacentes em seus estudos do movimento.

3O método científico é reducionista a certos valores e dimensões humanas como uma condição necessária da sua eficaz especialização e quantificação e isto não é considerado um problema – somente é problema se esta redução estiver ultrapassando a perspectiva do todo e, consequentemente, a especialização se mostra como a totalidade, o que não só ocorre nas Ciências mas também nas Artes e Humanidades.

4 A contextualização do trabalho de Marey e Bergson com as ideias de Goethe e Turner, da percepção da luz, é mais plenamente elaborada no artigo: The Delightful (1) Mind and a Case for Aesthetic Intuition: Marey and Bergson in the Company of Goehte’s and Turner’s Conceptions of Light. In: Light, Image, Imagination: The Spectrum Beyond Reality and Illusion. Blassing, M. (ed.) Amsterdan: Amsterdan University Press.

 

Martha Blassnigg
Universidade de Plymouth

Combinando Tecnologias: primeiro cinema, cultura popular e o imaginário tecnológico, de Michel Punt – tradução Cleomar Rocha e Júlio César dos Santos

A história tecnológica do cinema sempre levantou questões polêmicas: não simplesmente quem inventou qual parte do dispositivo a quando, mas talvez, mais profundamente, o que foi realmente inventado e como aquele conjunto de invenções se tornou a portadora de uma mistura heterogênea de coisas que hoje reconhecemos como filmes. E, o que é ainda mais desconcertante, como eles todos se juntam para se tornar o que nós conhecemos como cinema.

Para começar por algum lugar – ao invés de em toda parte – poderíamos iniciar na Europa e mais precisamente em Roundhay e Leeds Bridge onde, em 1888, Louis Le Prince fez fotografias sequenciais com uma câmera recém desenvolvida com a finalidade de projetá-las de forma a dar a ilusão de movimento. Nós poderíamos também começar em Clovelly Cottage, St Albans, no Reino Unido, onde em março de 1895 Brit Acres também produziu o que poderia ser chamado um filme de sua casa e, em seguida, em junho, com vários filmes de sucessão de quadrinhos. Nós poderíamos igualmente iniciar em Newark, New Jersey, com os experimentos de W.K.L. Dickson com filme sonoro em 1894 (possivelmente antes); ou Lyons com August e Louis Lumière e sua filmagem de suas portas de fábrica, também em março de 1895; ou na Alemanha com Otto Anschutz ou os Irmaos Skladanowsky ou, antes, no Reino Unido com Robert Paul e William Firese-Greene. Faz-se necessário começar por algum lugar, invés de por todos os lugares porque se as últimas décadas de pesquisa do primeiro cinema nos ensinaram alguma coisa é que ninguém é dono da invenção e, mais particularmente, o que hoje conhecemos como cinema era uma construção colaborativa; uma dinâmica combinação de de forças tracionando em várias direções.

Apesar disso, muita energia intelectual tem sido dedicada a correlacionar as histórias pessoais destes e de muitos outros inventores, artistas, empresários e construtores de aparelhos de modo a fornecer uma linha de tempo – uma cronologia – que, de uma vez por todas, diga-nos quem inventou o cinema. Parece pouco provável que esta história um tanto nacionalista nunca será conclusiva, mas imagine que algumas evidências convincentes viessem à luz que poderiam – sem medo de contração – estabelecer de uma vez por todas quem inventou o cinema e quando, o que isso nos diria? Certamente quase nada de útil, exceto, talvez, que um país poderia finalmente imprimir um retrato em um selo postal e reivindicar definitivamente ter sido o berço do maior engenho da cultura audiovisual na história do planeta. Isto, com certeza, não nos diz muito sobre filme como um meio de descrever o mundo como nós o percebemos correntemente, e nada sobre as instituições de produção, distribuição e recepção que se uniram para formar o que o mundo começou a conhecer por volta de 1906 como o cinema. Tentativas para dar conta do cinema quase sempre incorporavam uma outra história em um “segundo nível acadêmico”; por exemplo histórias do entretenimento, as formas da mídia, formas do filme, a economia, o nacionalismo, rodovias, imigração, relações industriais, demografia, urbanização, parques de diversão, mulheres, homens, esporte de espectador e assim por diante. Todas essas abordagens também englobam histórias materialistas da tecnologia e usam um ou mais destes suplementos junto a uma cronologia de patentes para fornecer um zigoto convincente do cinema que aparece num determinado lugar e tempo.

Desafiado pela evidente arbitrariedade deste tipo de abordagem tem-se tentado desenhar histórias especulativas e contrafactuais num novo historicismo, com uma falsa modéstia, para apresentar uma rede de determinantes que nos conduz a uma história provisória, subjetiva e assumidamente parcial da origem dos filmes. Estas redes de atores, com sua franca admissão de incompletude, permitem que o cinema emerja de uma trajetória histórica e insinuações numa gestualidade que lembra o truque hábil das mãos realizado por um mágico. Para avançar neste tipo de história da tecnologia em geral, e do cinema em particular, que era consistente com o modelo correlativo no meu próprio trabalho, há algum tempo eu introduzi o conceito de Imaginário Tecnológico. Este foi um conceito que desenvolvi para discutir os modos pelos quais a tecnologia foi pensado tanto como hardware quanto como uma aspiração cultural. A importância desta coexistência do material e do imaginado era que abraçava tanto as atuais condições da tecnologia quanto seu futuro desenvolvimento. Embora não haja nisto uma espécie de tautologia, é aquela que, na minha opinião, pode ser aceita porque nos permite pensar a tecnologia da mesmo forma como pensamos a mídia, sem confundir os dois (caso frequente no estudo de novas mídias em particular). A busca por progresso tecnológico no modelo que eu desenvolvi não é autônoma e externa, é também a consequência (e, portanto, pode representar) das aspirações e desejos das dimensões relativas que nós chamamos cultura. Além disso, este modelo também incorpora uma dimensão recursiva, com outra mídia, no ato de representar aquelas aspirações e desejos que se transmutam em modos que nós não estamos completamente seguros sobre se eles podem, mas podemos estar razoavelmente certos, contribuir para a construção de novas aspirações e desejos.

O conceito de Imaginário Tecnológico foi usado para revisitar a história do cinema e abordar questões como: porque o “Kinetoscope” (kinetoscópio) e o “Cinematagraphe” (cinematógrafo) foram inventados quando eles o foram? E como a tecnologia para produzir, projetar e sintetizar imagens fotográficas em formas tais que a cognitivamente impenetrável percepção do movimento artifical tornou-se o cinema? E, talvez acima de tudo, qual foi a agência de quem se utilizou de tudo isso? Estas não são perguntas originais ou mesmo notáveis, e elas foram respondidas direta ou indiretamente em grande parte do material publicado aludido acima. No entanto, ninguém poderia fazer mais do que fornecer uma cronologia na qual a tecnologia é investida em vários degraus de determinação de modo a explicar o momento da invenção e, no mais, a formação do cinema foi atribuída a forças sociais, econômicas e políticas como determinantes de suas formas. O Imaginário Tecnológico, no entanto, insistia numa abordagem mais sofisticada e informada para a questão da tecnologia e mudanças que combinavam com a discussão da própria idéia de tecnologia como mídia.

O primeiro impacto desta forma de pensamento é o de forçar questões sobre a distinção entre o entendimento individual de um tecnologia e um “consenso” mais amplo sobre o que uma invenção pode geralmente significar. No caso do cinema parece óbvio agora, com o benefício da retrospectiva, que os tecnologistas, difusores e inovadores considerados chave não compartilham uma mesma visão do que a tecnologia veio, muito rapidamente, significar para a maioria daquelas pessoas que se utilizaram dela. Esta visão foi tomada num conceito correlacional tal como “inteligibilidade mútua” que poderia dar conta do cinema como uma realidade contingente – uma força que se produz a partir de um compromisso dinâmico entre a tríade: produtores, distribuidores e exibidores.

O segundo impacto de considerar a tecnologia como uma mídia é insistir que um quarto termo é adicionado à tríade familiar – a audiência. Conforme nos tornamos mais familiarizados com as tão propaladas “histórias baseada nos atores”, particularmente na história da tecnologia, a inclusão da audiência torna-se mais que uma tática politicamente atrativa. No exemplo do início do cinema fica claro que exibidores (muitas vezes lanternistas usando imagem em movimento rotativas (como slides) e audiências estavam do mesmo modo tecnologicamente implicadas. Além disso, como exibidores eram, no mínimo, editores dos filmes (colocando-os mais curtos para compor um programa de exibição) e mais frequentemente produtores, o produto final filme era uma colaboração entre o que o produtor pensava que seria sucesso tendo por base uma experiência de interação direta com a audiência. Um dos grandes pioneiros do cinema britânico, Cecil Hepworth, nos lembra que os produtores tinham interação direta com o público desde quando filmes eram mostrados em feiras e eles poderiam ser, pessoalmente, os responsáveis por coletar os ingressos vendidos. Da mesma forma, R.W.Paul pedalou ele mesmo por Londres para apresentar seus shows em teatros, não só para garantir a qualidade da projeção mas, também, para ser capaz de avaliar quais filmes impressionaram ou não a audiência. A inteligibilidade mútua dos dispositivos inventados pelos Irmãos Lumière, Edison, Dixson, Paul et. al. dependia desse contato íntimo do qual Antoine Lumière, que apresentou o Cinematógrafo em Paris, em 1985, não pareceu reconhecer quando aconselhou Georges Miliéu a não comprar máquinas, pois sua atração não duraria mais que três meses. Miliéu, no entanto, era um mágico, e sabia que os artistas tinham que trabalhar com o público para criar uma interpretação mútua de um efeito tecnológico (ainda que assimétrica). Ele viu, na projeção de imagens que pareciam mover-se, uma oportunidade a mais de apresentar algo surpreendente, mas suficiente curto e maravilhoso, de modo que os levasse a especular sobre a causa de tal maravilhamento.

O terceiro impacto de considerar a tecnologia como mídia é situar sua história, teoria e estética conjuntamente ao canône de pensamento estabelecido sobre a representação. O que poderia ser chamado de “realismo ingênuo” há muito foi visto com ceticismo no pensamento crítico nas Artes e Humanidades (infelizmente, porém, não nas ciências duras). A certeza de uma ligação direta e imutável entre o modo como mundo é (seja lá o que poderíamos escolher como significado) e o modo como nossos sentidos são capazes de o perceber foi desafiado por Kant. Em seu lugar várias filosofias correlacionadas foram propostas num esforço de oferecer suporte a um espectro de premissas de uma realidade contingente que remontam o construtivismo radical, passando vários modelos de relativismo. Neste caminho, seria muito equivocado (ou corajoso) fazer uma efetiva reivindicação de uma ligação absoluta entre a representação e o representado, e isto tem sido uma das pedras angulares da teoria moderna da mídia. Em suma, assim como o realismo ingênuo é suspeito (depois de Kant) na discussão de como é o mundo, é do mesmo modo insustentável na discussão da representação. No entanto, grande parte da literatura em estudos de cinema, incluindo a história da tecnologia dos filmes, adere ao realismo ingênuo para falar das primeiras audiências. O mito que o público confundia a imagem de um trem chegando à estação com um trem real, apesar de evidências contraditórias, e que era visto por seus próprios olhos, tem sofrido questionamentos. “L’Arrival d’un train à la Ciotat” não foi mostrado nas primeiras exibições feitas em Paris, em 1895, mas a afirmação de que o público se esquivou dela, feita por aqueles que a conheceriam melhor, e sua resistência como cânone, no entanto, são essenciais se o imperativo cultural do “realismo” for usado para responder a questões como: porque o cinematógrafo foi inventado e quando o foi? Por que o público inesperadamente se juntou para vê-lo? E como ele se tornou cinema?

Se a tecnologia da imagem em movimento foi impulsionada pelo imperativo cultural de investir na imagem fotográfica com o movimento em busca de um realismo ainda maior, então, algumas questões importantes precisam ser respondidas. Além das objeções descritas acima de que uma pequena imagem distorcida de um trem não poderia ser confundida com a experiência familiar de um trem real, nós precisamos ter certeza que, enquanto inventores, críticas e estudiosos eram críticos ao realismo ingênuo, o público em geral – ou mais precisamente um público atento e curioso, que pagaria um franco para ver uma nova invenção – estavam sob a influência de uma simplificação, que não se sustentava, de sua própria experiência. A resistência deste mito tem despertado muitas casualidades históricas e nós, agora, precisamos recuperar os seus pontos cegos. Precisamos rever a evidência do gosto popular por literatura, artes, ciências e tecnologia da mesma forma como a popularidade de jornais instrucionais baratos, palestras, exposições etc., e a afirmação que em Paris, pelo menos, filósofos como Bergson eram vistos como heróis. Além disso, seria preciso rever como uma mente aberta a uma enorme resistência, de um materialismo evidentemente arrogante e uma crença generalizada e quase totalmente inclusiva do imaterialismo transcendente, ainda apóia o espiritualismo em seus vários tons.

O entusiasmo para o que poderíamos chamar de fenômenos sobrenaturais foi não somente evidenciada pela participação popular em eventos Espiritualistas e de entretenimento público, mas também na comunidade científica, segundo Richard Luckhurst, que viu pouca distinção entre telepatia e frequências no espectro eletromagnético que estavam além do visível, incluindo aqueles que não faziam muito questionamentos, tais como a ultra-violeta, infra-vermelhos e bandas de rádio. William Crookes, figura chave na identificação de elementos e o desenvolvimento de tubos (lâmpadas) fluorescentes e raios anódicos, era também um pesquisador ativo em pesquisa psíquica. Esta cultura intelectual, na qual se assumia uma continuidade entre o material e o imaterial, pode lançar alguma luz sobre os usos de tecnologias fotográficas e, em particular, fotografias espirituais e post-mortem, que podem agora ser vistas como ilustrativas mais do que como fraudulentas ou mórbidas. Além do que, da mesma maneira, muitos documentários contemporâneos (feitos para a televisão principalmente) use filmagens aparentemente autênticas para ilustrar, por exemplo, eventos tais como as tentativas de assassinato contra a Rainha Victória que teve lugar antes de 1895. Este uso do anacronismo e da analogia parece ser razoavelmente aceitável e, como tal, é continuada na representação de batalhas “Boer War” usando modelos e re-decretos, erotismo e pornografia, pictorialismo fotográfico, publicidade e jornalismo documental.

A fotografia era, e apesar de toda retórica ainda é, primeiro e principalmente legal ao sistema particular da produção de imagens e apenas em segundo lugar liga a um evento que pode ou não ter se desenrolado antes da câmera. A transição relativamente ininterrupta da fotografia ótico-química para ótico-digital, e o óbvio rebaixamento de segundo para uma segunda ordem que está implícita nesta ausência de significado, tem, ao que parece, finalmente nos permitido fotografias espirituais (de espíritos), como expressão de uma dimensão imaginária que parecia ser bastante difundida na Europa e nos EUA. Além disso, retirando da tecnologia fotográfica (como distinta do discurso da fotografia) o ônus de satisfazer um imperativo cultural dúbio para um realismo, nos permite considerá-la independentemente das discussões de representação e oferece uma oportunidade de vê-la como uma tecnologia cujo sentido é correlativo. Crary e Batchen argumentaram convincentemente que localizar a pré-história da fotografia na câmara escura é perder a significância das mudanças radicais na compreensão dos aparatos perceptivos após o que foi difundido por Kant e Goethe, e negligenciar a natureza histórica da percepção – um conceito que já está bem estabelecido na neurociência e estudos sobre a consciência.

Como é bem conhecido, a história da fotografia como uma tecnologia de produção da imagem tem um precedente importante de antes de 1834, e muitos relatos minaram sua pré história como um processo de “escrita de luz”. A atração do “mágico” não pode ser descartada, mas a consolidação da fotografia como meio popular de representação e, ao final, de sua inteligibilidade mútua, também pode ser rastreada em suas conexões com outra fascinação do século XIX – seriografia – na medida em que a interpretação dominante desta tecnologia privelgia seu potencial para repetibilidade no “Calotype”. Enquanto tecnologia fotográfica (e outros meios heliográficos) poderia produzir uma imagem que era co-extensiva com as convenções de representação desenvolvidas por pintores europeus e, como tal, encontrei um mercado na reprodução de certos gêneros artísticos (retratos e paisagem, principalmente); foi na reprodução infinita de imagens idênticas que se encontrou sua inteligibilidade mútua. Aqui, muito independentemente da discussão da representação e do imperativo do realismo (ingênuo), podemos encontrar a extensão de um sistema foto-ótico da fotografia em tecnologias da imagem em movimento. O “Kinetoscope”, “Flip-books”, “Filoscope”, “Mutoscope”, o “Kionora” e outros chamados invenções pré cinema (algumas não baseadas em fotografia e patenteadas a partir de 1895) dialogicamente envolvem, através da agência de vários técnicos e empresários, com tecnologias seriográficas a partir de um efeito perceptivo de tecnologias que fazem cópias. Ficou claro que quando eram incrementadas pequenas diferenças entre as imagens havia um efeito particular na percepção humana que produz uma sensação de inteligibilidade mútua de realidade, que às vezes é propositadamente confundida com a crença numa realidade ingênua.

Enquanto a base ótico-química do cinema não é para ser desprezada, do mesmo modo o impacto da serigrafia é um fator que também deve ser internamente contabilizado. Se é na produção em massa de lanternas mágicas que mostravam séries de slides idênticos ou o trabalho de W.K.L. Dickson para Edison no fonógrafo cilíndrico “Kinetoscope” (no qual se usou micro-fotografias) ou o de Louis Le Prince, de William Friese-Greene, Birt Acres ou o de Roberto Paul, contribuições para a tecnologia do cinema, pode-se sugerir que cada um deles contou com a capacidade tecnológica de imprimir imagens idênticas, com registro preciso. Esses inventores também enfrentaram de longe uma solução tecnológica mais difícil de projetar a imagem (como uma forma de re-impressão fugitiva), de tal forma que também se criou a ilusão de movimento através destes aparatos perceptivos no observador. Retrospectivamente, isso não foi difícil, mas na época foi desafiador, pois, como sabemos agora, o truque desse efeito é conseguido por amostragem, tomando o que foi antes fotografado pela câmera a 16 fotogramas por segundo, copiando-os para 300 fotogramas por segundo e projetando-os a 25 fotogramas por segundo (interrompidos por um período preto do mesmo comprimento). A tecnologia da imagem em movimento alcança seu efeito através da diferença significativa entre a maneira como a imagem é produzida, a maneira como é apresentada e a maneira como ela é apreendida. Este efeito em particular tem sido descrito como cognitivamente impenetrável na medida em que a familiaridade com os meios não atrapalhe a ilusão e, neste sentido, está tão próximo da cromolitografia quanto da fotografia.

Destacar o “Cinematógrafo” das anteriores e bem estabelecidas histórias da fotografia e insistir numa conexão primária (como uma tecnologia) com a serigrafia não tem em si mérito especial, salvo se procedemos da história tecnológica para além, para a história da mídia, nós evitamos os erros do determinismo tecnológico. Esta não é simplesmente uma consequência do benefício da retrospectiva – afinal, a litografia não foi ultrapassada por outras mídias e agora está no cerne da produção de chips de silício e fornece suporte para um outro grande engenho da cultura. Mas, pela inseparável dupla tecnologia e mídia – um meio de transformar a percepção através de um processo ativo de representação – nós somos capazes de contar a ambos como fatores naquilo que eu tenho chamado de imaginário tecnológico e, mais importante, levando em consideração a sedução do cinema sem pensar o público como caipiras ingênuos (primitivos) que estejam sob a influência de uma versão pré kantiana da realidade.

 

Referências

Abel, Richard. Cine Goes to Town. Berkeley: CUP, 1994.

Allen, Richard. and Gomery, Douglas. Film History Theory and Practice. New York: McGraw-Hill, 1985.

Barnouw, Eric. The Magician and the Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1981.

Bowser, Eileen. The Transformation of Cinema 1907-1915, History of the American Cinema. New York: Charles Scribners’s Sons, 1991.

Brownlow, Kevin, and Kobal, John. Hollywood the Pioneers. London: Book Club Associates, 1989.

Ceram, C. W. The Archaeology of the Cinema. New York: Harcourt Brace & World, Inc, 1965.

Coe, Brian. The History of Movie Photography. Westfield: Easyview Editions, 1981.

Cook, Olive. Movement in Two Dimensions London: Hutchins and Co, 1963.

Deslandes, Jacques and Jacques, Richard. Histoire comparèe du cinèma: Du cinèmatographe au cinèma 1896-1906, vol 2. Tournai: Casterman, 1966.

Eder, Josef. trans., E. Epstrean. History of Photography. New York: Columbia University Press, 1978.

Fielding, Raymond. A Technological History of Motion Pictures and Television. Berkley: University of California Press, 1967.
Haines, Richard. Technicolor Movies: The History of Dye Transfer Printing. McFarland & Company: Jefferson, 2003.

Gallagher, Catherine, and Greenblatt, Stephan. Practicing New Historicism. Chicago University Press, Chicago, 2000.

Gomery, Douglas. Shared Pleasures: A History of Movie Presentation in The United States. Madison: University of Wisconsin Press, 1992.

Hepworth, Cecil. Came the Dawn. London: Phoenix House, 1951.

Kracauer, Siegfried, trans. Thomas Y. Levine. The Mass Ornament. Cams. Mass. Hravard University Press, 1995.
Nasaw, David. Stepping Out, New York: Basic Books, 1993.

Jenkins, Rees, V. Images and Enterprise: Technology and the American Photographic Industry, 1839-1925. London: John Hopkins University Press, 1975.

Lane, Thomas. The New Techniques of Screen Writing. York PA:Maple Press, 1936.

Marx, Leo. The Pilot and the Passenger: Essays on Literature, Technology, and Culture in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1988.

Mast, Gerald. Movies in Our Midst: Documents in the Cultural History of Film in America. Chicago: University of Chicago Press, 1982.

May, Larry. Screening Out The Past: the Birth of Mass Culture and the Motion Picture Industry. New York: Oxford University Press, 1980.

Musser, Charles. Before the Nickelodeon. Berkeley: University of California Press, 1991.

Neale, Steve. Cinema and Technology: Image, Colour, Sound. London: Macmillan, 1985.

Punt, Michael. Earlycinema and the Technological Imaginary. Chepstow: Post Digital Press, 2000 (http://dare.uva.nl/en/record/86563)

Schatz, Thomas. “The New Hollywood,” In: J. Collins, H. Radner, A. Preacher Collins (Eds.) Film Theory Goes to The Movies, (pp.8-36), London: Routledge, 1993.

Senefelder, Alois. A Complete Course of Lithograph. New York: Da Capo Press, 1968.

Smith, Merrit, and Marx, Leo. Does Technology Drive History? The Dilemma of Technological Determinism. Cambridge, Mass.: M.I.T, 1996.

Stafford, Barbara Maria Visual Analogy: Consciousness as the Art of Connecting. Cambridge, Mass: MIT Press, 1999.

Talbot, Frederick. Moving Pictures: How they are Made and Worked London: William Heinemann, 1925

Thomas, David. The First Colour Motion Pictures. HMSO: London.1969

Turner, Graeme. The Film Cultures Reader. London:Routledge, 2002.

Usai, Paolo. Burning Passions: An Introduction to the Study of Silent Cinema. London: BFI, 1994.

Weber, William. A History of Lithography. New York: McGraw-Hill, 1966

Whittock, Trevor. Metaphor and Film. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

Biografia

Michael Punt é Professor de Arte e Tecnologia na “University of Plymouth”. É também editor-chefe da “Leonardo Reviews” que publica mais de 200 artigos (ensaios) por ano em arte, ciência e tecnologia. Entre 1969 e 1994 ele tinha realizado mais de cem exposições (exibições) de seu trabalho incluindo performances individuais, tem feito 15 filmes. Ele recebeu seu Doutorado na “University of Amsterdan (Early Cinema and Technological Imaginary, 2000), disponível em http://dare.uva.nl/document/100064) e produziu dois livros em co-autoria.

Ele publicou mais de 80 artigos sobre cinema e história da tecnologia digital em periódicos chave. Entre 1996 e 2000 ele foi um colaborador regular da “Skrien”, a revista holandesa sobre memória do cinema e crítica televisiva. Durante esse período, ele escreveu uma coluna mensal sobre cinema, arte e internet. Nos últimos cinco anos, ele apresentou “papers” e palestras em mais de uma dzia de países e, atualmente, está trabalhando num projeto de dois volumes sobre tecnologia e imaginação durante o “longo século XX”.

Ele está atualmente conduzindo um grande projeto de pesquisa conjunta com a “VU”, Amsterdan; a “University of Applied Arts”, Viena; o “Netherlands Filmmuseum” e “The Netherlands Institue for Sound and Vision”. Este projeto: “Technology, Excange and Flow: Artistic Practices and Commercial Application”, financiado através do HERA, concentra-se em filme experimental e publicidade na Europa e será concluído com uma grande exposição (exibição) em Viena.

Michel Punt
Pesquisa em Transtecnologia
Universidade de Plymouth, Reino Unido

Cognitive Embodied e Enaction são reais perspectivas para o Design de Interação? | de Marcio Rocha

Resumo

Alguns movimentos distintos são apresentados nesse artigo. Primeiro, conceitua Embodiment e Enaction 1 dentro do campo teórico das ciências cognitivas. Em seguida, argumenta utilizando esses conceitos, para uma reflexão sobre esse campo teórico e sugere que a partir dessas duas teorias externalistas da filosofia da mente, novos conhecimentos podem emergir de forma a contribuir para o Design de Interação ampliando nosso desenvolvimento teórico sobre o assunto. Teorias externalistas sugerem que a mente e os processos cognitivos que as constituem se ampliam para além da fronteira do corpo do indivíduo. Se nossa compreensão do mundo se dá através da interação de nossos corpos com o ambiente como parte do processo cognitivo, como o campo Design de Interação pode explorar Embodied e Enaction para tornar nossas interações com a tecnologia mais natural?

Palavras-chave
Embodiement – Enaction –Interaction Design.

O campo interdisciplinar das ciências cognitivas têm tradicionalmente se debruçado sobre questões que tentam explicar como nossa cognição é modelada e como nossa compreensão do mundo é construída. Há no entanto, outras noções de computação que figuraram nas histórias tanto das ciências da computação, quanto das ciências cognitivas. A visão externalista explorada atualmente entre os cientistas das ciências cognitivas se refere a teoria do Embodiement e Enaction trabalhada do ponto de vista fenomenológico de Husserl e Merleau-Ponty, e atualizadas por filósofos e cientistas como Clark (1997) Varela et al. (1991), Thompson (2007), Thompson e Varela (2001), Sheets-Johnstone (1990, 1999), Michael Wheeler (2005), entre outros.

Embodiement fundamentalmente é a premissa de que nossos corpos influenciam a forma como pensamos e que os processos cognitivos estão intrínsicamente conectados aos nossos corpos.

According to the embodied perspective, cognition is situated in the interaction of body and world, dynamic bodily process such a motor activity can be part of reasoning process, and offline cognition is body-based too. Finally embodiment assumes that cognition evolved for action, and because of this, perception and action are not separate systems, but are inextricably linked to each other and to cognition. This last idea is a near relative to the core idea of enaction. (Edwin Hutchins, 428, 2010).

Complementarmente, Enaction é a idéia de que nossa experiência do mundo é criado no nosso organismo modelado por nossas ações.

Enaction is the idea that organism create their own experience through their actions. Organism are not passive receivers of input from the environment, but are actors in the environment such that what they experience is shaped by how they act.

Embodiment and enaction are names for two approaches that strive for a new understanding of the nature of human cognition by taking seriously the fact that humans are biological creatures. Neither approach is yet well defined, but both provide some useful analytic tools for understanding real-world cognition (Edwin Hutchins, 428, 2010).

Ambas perspectivas são provocativas na mesma medida em que, ainda que promissoras, não estão totalmente elucidadas. Porém, essas duas premissas indicam que nossos corpos biológicos, não são receptores passivos de entrada do ambiente, mas são atores ativos no ambiente onde suas experiências são moldadas através de seus atos e que o aprender e a nossa compreensão do mundo, ou seja o processo de cognição está não somente conectado com o fazer, como conectado com o mundo real experienciado.

De fato é curioso notar, evidenciada através das observações do nosso quotidiano, o quanto estamos facilmente inclinados a concordar com essas duas premissas. Há uma velha história conhecida no Brasil, que quando você mostra um novo objeto a alguém, seu interlocutor logo deseja tocar e sentir o objeto. Quase que instantaneamente e as vezes preventivamente, o proprietário do novo objeto diz de forma bem humorada e protetora ao seu interlocutor: – Veja com os olhos, não com as mãos! É que para nós, não basta somente olhar, é preciso pegar e sentir o objeto. Essa história cotidiana, apesar de reducionista, ilustra bem um condição enraizada da natureza humana e sugere o quanto nossas interações com os objetos não somente são mediadas pelo nosso corpo biológico, mas também o quanto nossas interações e a nossa percepção dependem de nossa mente encarnada, que percebe o nosso aparelho sensório-motor, gerando a percepção. De fato, a percepção de incompletude é enfatizada quando não tocamos o objeto e nos limitamos somente a olhar para ele. Isso de certa maneira indica que nossos organismos não são somente receptores passivos. Nossos organismos reagem avidamente pela busca da experiência que inclui nosso aparelho sensório-motor que tem predileção por atuar com o ambiente e talvez essa seja a maneira como o nossos corpos biológicos encontraram para se conectar mais naturalmente ao mundo ao seu redor e adaptar-se a ele, ser transformado e moldado por ele e essa perspectiva cognitiva incorporada parece compactuar em grande parte para o nosso processo de raciocínio e aprendizado.

Um outro exemplo que ilustra bem isso é quando estamos interagindo com um aplicativo no computador. Em um certo ponto da interação, (assumindo que se esta navegando em um aplicativo que permita essa relativa imersão) é possível até mesmo esquecer-se que se está manipulando um mouse ou teclado, já que absorvidos pelo conteúdo ou pela tarefa que realizamos, nem sequer notamos a presença do mouse ou teclado, assumindo como extensão do nosso corpo e da nossa mente a pequena seta do mouse que se move diligentemente no monitor. De fato quando nos sentamos em nossos computadores, toda ou grande parte da nossa atenção é captada, incluindo a completude do nossos corpos, mentes e ambientes, já que são inseparáveis e indivisíveis e de alguma forma complementares, sendo difícil precisar ao certo, onde termina um e onde começa o outro. Também em harmonia com nossa condição cognitiva incorporada, Andy Clark (2003), argumenta sobre a facilidade que os humanos possuem em se integrar (seus corpos e mentes) com o mundo artificial e o sistema de objetos que o homem construiu para si próprio:

The accomplished writer, armed with pen and paper, usually pays no heed to the pen and paper tools while attempting to create an essay or a poem. They have become transparent equipment, tools whose use and functioning have become so deeply dovetailed to the biological system that there is a very real sense in which—while they are up and running—the problem-solving system just is the composite of the biological system and these non-biological tools. The artist’s sketch pad and the blind person’s cane can come to function as transparent equipment, as may certain well-used and well-integrated items of higher technology, a teenager’s cell phone perhaps. Sports equipment and musical instruments often fall into the same broad category (2003, p.38).

O clássico exemplo do homem cego com uma bengala que o auxilia no processo de cognição e o integra ao ambiente, se tornou freqüente na literatura desde que Head (1920) mencionou-o pela primeira vez. Como Merleau-Ponty também descreve:

The blind man’s stick has ceased to be an object for him, and is no longer perceived for itself; its point has become an area of sensitivity, extending the scope and active radius of touch, and providing a parallel to sight’ (1962, p. 143).

Clark também destaca o processo pelo qual nos tornamos aptos a nos integrar com essas ferramentas, argumentando que não nascemos com as habilidades necessárias, mas que nossos organismos biológicos são moldados para interagir com essas ferramentas, que apresentam diferentes níveis de dificuldade de apreensão de forma a integrar-se com nossos organismos.

Often, such integration and ease of use require training and practice. We are not born in command of the skills required. Nonetheless, some technologies may demand only skills that already suit our biological profiles, while others may demand skills that require extended training programs designed to bend the biological organism into shape (2003, p. 38).

Isso abre um escopo para a compreensão de que a interação não é somente sobre o que está sendo feito, mas também como esta relação é estabelecida. Mais do que isso, coloca definitivamente juntos corpo, mente e ambiente em uma tentativa harmoniosa de compreendê-los conectados, tornando Embodiement e Enaction perspectivas extremamente interessantes para pensar como a cognição humana opera com o mundo natural e que tipo de conhecimento pode emergir para a compreensão do homem interagindo com as novas tecnologias digitais. Embodiment cognition, ou cognição personificada, indica que a nossa mente não está restrita e enclausurada somente em nossos cerébros, e nosso processo mental está distribuído por todo o nosso organismo e a nossa ampla condição de ser vivo no mundo.

 

Seres humanos e computadores

As ciências cognitivas como estudo da mente e da inteligência, por sua condição interdisciplinar propiciou subsidiar vários campos de investigação, entre elas a Interação humano computador. Apesar dos esforços, o campo da Interação Humano Computador tem tradicionalmente se encarregado de tornar as nossas interações com tecnologia mais amigáveis e naturais, suavizando a relação com métodos e técnicas de aproximação muitas vezes com grande ênfase na tecnologia e pouco foco humanista até então. Muito do que se sabe sobre Interação humano computador são baseadas na noção arcaica das ciências cognitivas que acreditava que as pessoas se comportavam como processadores de informação e que o processo de pensar era muito semelhante ao processo de computar. Grande parte desse pensamento surgiu com as ideias de Alan Turing e e sua máquina de Turing (e, posteriormente, o teste de Turing2) e também com as idéias de Claude Shannon, em 1937, a partir de seu trabalho de mestrado, A Symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits, que posteriormente contribuiu para a origem do Teoria da Informação.

Gradativamente, pontuais avanços nos permitiram compreender que pessoas e computadores não eram semelhantes e que o processo de pensar seria bem mais complexo do que somente processar informações. Um argumento conhecido como Chinese Room3 (John Searle, 1980) refutava a ideia de que o processo mental era semelhante a computar. Mesmo se um computador simular um comportamento ou um diálogo inteligente, isso não significa necessariamente “pensar”. O ser humano, por sua vez, mais do que manipular símbolos, pensa sobre os símbolos que estão sendo manipulados, operando-os sintática e semanticamente. Trata-se de um processo dinâmico, mais complexo do que computar. O experimento pressupõe de que a sintaxe não garante a existência da semântica e por consequência a produção de significados/sentidos.

Bem mais tarde, ainda dentro desse mesmo espírito fundamentado nessa época, foram desenvolvidos alguns métodos para equalizar as interações do usuário com o computador, na tentativa de reduzir a fricção entre ambos (CARD, MORAN, and NEWELL, 1983). Essas ações poderiam ser físicas, cognitivas ou perceptivas e a utilização desses três ações elementares serviram para o desenvolvimento de técnicas que forneciam informações valiosas para o estudo das interfaces, mas ainda assim apresentavam alguns inconvenientes pois não consideravam o quão seres humanos podem ser afetados por fatores como fadiga, seu grau individual de deficiência, limitações físicas, seus hábitos, personalidades, grau de experiência como usuários e o ambiente social no qual estão inseridos, entre outros.

Seu foco na usabilidade também desconsiderava a funcionalidade do sistema, baseado em um sistema de regras contraditórias de difícil adaptação. A inclusão do uso de personas e técnicas que consideravam a individualidade dos usuários tornaram o foco mais específico e humanista, mas ainda longe de uma resolução definitiva. O campo então passou a integrar diferentes disciplinas e, apesar de propor métodos cada vez mais inclusivos, a tendência do IHC tem sido essencialmente simplificar. O caminho da simplificação sugere ser um caminho lúcido, com muitas preposições advindas da Teoria da Informação. Não se trata somente de reduzir erros, mas de transmitir informações de forma mais eficaz, mas em contraste, a palavra simplificar sugere que apesar dos avanços na compreensão dos métodos, contraditoriamente, o homem ainda continua sendo visto como um processador de informações, que precisa ter suas ações modeladas, os passos ou cliques do mouse calculados, não pode ter sua memória sobrecarregada e precisa ser prevenido constantemente sobre seus próprios ações e erros. Muitas dessas técnicas foram aplicadas com o uso de restrições e da manipulação direta proporcionada pelas Interfaces Gráficas do Usuário (GUI).

O advento das Interfaces gráficas ajudou a popularizar o computador pessoal impulsionando em grande parte a integração entre o homem e o computador, ampliando o acesso antes restrito a cientistas, programadores e técnicos mais especializados, gerando a partir daí, um campo completo de pesquisadores interessados em interfaces computacionais. De fato muito se tem falado sobre interfaces, mas muito pouco ainda se tem feito para penetrar o seu lado humano. A democratização proporcionada pelos computadores pessoais e o advento das interfaces computacionais tornou o computador mais popular, mas nossa interação com a tecnologia não se tornou tão menos complicada e obscura. A mesma interface que supostamente traduziria e tornaria o computador inteligível para a maioria de nós, muitas vezes ao invés de aproximar, divide homem e máquina. Ao separamos superfície de sua estrutura, grande parte do significado se perde entre o mundo físico e o mundo “virtual” e ocasionalmente a interface não reflete as possibilidades do software.

Por que apesar dos avanços sobre o nosso conhecimento sobre nós mesmos são insuficientes para tornar nossa relação com a tecnologia mais natural? As ciências cognitivas têm percorrido esse caminho. Ora demonstrando-se insuficiente para o enfrentamento do problema da interação em amplo aspecto. O ser humano, provido de emoções, consciência, corpo biológico, livre arbítrio e sujeito a condições do ambiente tem se demonstrado muitas vezes incapaz de compreender parte desse novo repertório digital, que tem apresentado um comportamento cada vez mais complexo com o passar dos anos. Supostamente, a forma como refletimos e produzimos o conhecimento sobre nós mesmos, não acompanha a rapidez e a dinâmica envolvida nessa relação. A própria tecnologia se encarrega de nos tornar mais rápidos e de ampliar nossas capacidades, e talvez por consequência torna o processo de reflexão sobre nós mesmos, um tanto quanto mais lento, dada a natureza da própria auto-reflexão e a nova ecologia de produtos em franca expansão tecnológica. Podemos inclusive considerar que nossa capacidade de processar informações com o auxílio das tecnologias progrediu. Na utilização de automação, câmeras de monitoramento, vigilância e controle os computadores demonstram mais eficácia que os seres humanos, assim como em muitas outras tarefas. O jogo de xadrez por exemplo, se tornou um clássico para os cientistas testarem a potencialidade de seus computadores. Para um computador é muito simples “jogar” xadrez e é considerada uma tarefa um tanto quanto difícil jogar em alto nivel para um ser humano. Mas o computador o fará utilizando cálculo bruto e massiva capacidade de processamento operando simulações matemáticas dos prováveis movimentos, mas ainda assim estará distante de “jogar” xadrez em um sentido mais humano do uso do termo. O computador irá prever e calcular os movimentos das peças no tabuleiro, mas ainda está longe de compreender toda a dinâmica que envolve um jogo de xadrez em um sentido ampliado, assim como prever as ações humanas de seu oponente. Um software de computador irá meramente manipular símbolos, operar funções matemáticas, calcular probabilidades, enquanto a mente humana construirá significados a partir do jogo. A competência computacional se encerra na matriz matemática imposta pelo tabuleiro e nas possibilidades das peças do jogo, assim como os limites de movimentação das peças disponíveis. Essa competência está mais relacionada a capacidade de cálculo e processamento do computador, no entanto seres humanos fazem coisas consideradas bem mais complexas, como aprender, compreender poesia, interpretar um texto e apreciar as artes por exemplo.

Isso tudo tem demonstrado que prever as ações humanas muitas vezes tem se revelado uma atividade complexa, e a história recente nos faz crer que há domínios de problemas que os humanos podem pensar e alcançar o conhecimento, mas que não são formalmente computáveis. A conclusão é que conhecer as raízes biológicas por trás das ações humanas parece ser um caminho para compreender a interação das pessoas com as tecnologias digitais e muitos pesquisadores tem trabalhado com temas que consideram essa maior aproximação, como Paul Dourish (2001) e Malcolm McCullough (2004), enfatizando também como os conceitos são socialmente construídos e como a cognição é contextualmente distribuída (HUTCHINS, 1995). Apesar de não constituirem campos essencialmente novos, as pesquisas nessa área indicam uma mudança para o reconhecimento de uma pluralidade de novas perspectivas.

 

Conectando interação, embodiment e enaction

Os movimentos acimas descritos procuraram de forma ainda exploratória integrar Embodiment, Enaction e Design de Interação tendo em vista a compreensão desses fenômenos de forma inter-relacionada com os desafios que o Design de Interação. A mudança dessa visão sugere que o problema está intrinsicamente ligado a mutabilidade das ciências cognitivas e da interação humano computador como campo de conhecimento. De fato o Design de Interação surgiu como uma abordagem alternativa a interação humano computador. O design de interação considera uma aproximação mais plural, não se limitando apenas a nossa relação com os computadores, mas sim a uma gama muito maior de objetos, produtos e artefatos e a complexidade advinda dessa nova ecologia tecnológica, com uma abordagem multidisciplinar e holística. Tendências recentes em design de interação incluem emoção em design, usabilidade e prazer no uso produtos interativos (NORMAN 2004), tecnologia como experiência (McCARTHY e WRIGHT 2004), tecnologias persuasivas (FOGG, 2000), computação afetiva (PICARD, 1997), design afetivo (ABOULAFIA e BANNON 2004), agentes autônomos (TOMLINSON, 2005), design performativo (KUUTTI, IACUCCI e IACUCCI 2002), computação sensível ao contexto (DOURISH 2001b), entre outros.

Já é possível vislumbrar, por exemplo, uma certa aproximação dessa dimensão interativa em alguns produtos. É possivel perceber uma certa movimentação na indústria voltada para o desenvolvimento de produtos que consideram o uso do corpo, utilizando recursos na pesquisa e no desenvolvimento de seu sensores de profundidade, com algoritmos de rastreamento-esquelético, que funciona através da atribuição de cada pixel em uma imagem para uma parte particular do corpo, criando uma imagem difusa do corpo humano onde a profundidade de cada ponto é reconhecido, graças a um sensor infravermelho. O sistema basicamente é alimentado com uma vasta catalogação de dados de captação de movimento que incluem dançar, chutar e correr, além de outros movimentos. Através desses frames captados, partes do corpo são identificadas e o sistema calcula a localização provável das articulações para construir e mapear um esqueleto humano. O algoritmo é executado para o reconhecer o corpo humano, e rastrear os movimentos com a rapidez suficiente para que sejam incorporados ao sistema. Trata-se de uma combinação altamente inovadora de câmeras, microfones e um software que transforma o seu corpo no controle do sistema, ativado por voz, captação de vídeo e reconhecimento facial, com grande potencialidade de aplicação. Longe de ser uma solução definitiva, a qualidade desse produto em específico leva em conta que a mente e o corpo parecem ser equipados com diferentes caminhos pelos quais nós conceituamos a realidade, valorizando a experiência para o aprendizado, a cognição e a descoberta intuitiva, considerando nossa complexa conformação biológica. O que está por trás desse tipo de produto é que a interação considera de forma contundente o corpo do indivíduo como parte do processo de interação e cognição, estimula a autonomia do usuário e cria a experiência sem ignorar o contexto do qual o indivíduo está inserido.

Maturana e Varela fundamentalmente descrevem que o termo enactivismo sugere que a cognição depende de um conjunto dinâmico de relações e associações dependentes do contexto.

Thus we confront the problem of understanding how our experience – the praxis of our living – is coupled to a surrounding world which appears filled with regularities that are at every instant the result of our biological and social histories.

Indeed, the whole mechanism of generating ourselves as describers and observers tells us that our world, as the world which we bring forth in our coexistence with others, will always have precisely that mixture of regularity and mutability, that combination of solidity and shifting sand, so typical of human experience when we look at it up close. (Varella, 1992, pg. 241)

Embodiment em uma tradução livre, significa que o processo cognitivo está incorporado, embutido em nosso corpos. Enaction sugere uma espécie de ação futura. Uma espécie de potencialidade de ação e ambos os conceitos estão relacionados. Ainda segundo vários pesquisadores (VARELA, THOMPSON, and ROSCH 1991; THOMPSON, 2005) nós podemos identificar cinco ideias conectadas que constituem a noção de Enaction. São elas: autonomia, produção dos sentidos, emergência, incorporamento ou encarnado e experiência (autonomy, sense-making, emergence, embodiment and experience), mas que por hora não cabem tanto aqui. O que se mostra interessante nessa perspectiva é considerar o que pode emergir dessa concepção na construção do diálogo com as novas tecnologias. Antes de tudo é preciso primeiro reconhecer o computador dentro de uma perspectiva mais ampliada. O computador não é mais um aparelho limitado somente às nossas mesas de trabalho. Com o avanço da tecnologia, da engenharia da computação e do crescimento do poder de processamento desses aparelhos, aliado a miniaturização, o avanço dos semicondutores e processadores, qualquer objeto pode ser um computador em potencial, desde que carregue consigo potencial para manipular e executar instruções. Muito da ecologia de novos artefatos digitais sofreu radicais mudanças nos últimos anos. Com o advento das redes sem fios e a implementação de tecnologias móveis e telas sensíveis ao toque, uma nova gama de produtos foram criados, desde laptops, netbooks, notebooks, tablets, celulares, etc. A diversidade, a onipresença e o tamanho das telas variam desde pequenas dimensões, para telas com a extensão de uma parede ou várias telas de alta definição, redefinindo profundamente a forma de exergarmos a computação e o design desse produtos. Além dessas mudanças, um novo cenário ubíquo e pervasivo promete ser potencializar ainda mais, incluindo gestos, toques, movimentos, vozes, sons podem se tornar formas mais naturais de interação. Mas para isso é preciso construir toda uma nova base crítica para reformular as ciências cognitivas dentro dessa nova perspectiva, baseada no Embodiement e no Enaction. Esse movimentos já estão ocorrendo gradativamente com pesquisadores interessados em avançar, mas que precisa se solidificar para que os designers possam projetar à luz desses novos conhecimentos.

 

Conclusão

Diariamente novos produtos são lançados contendo novos códigos, tornando senão todos, parte de nós pouco competentes para lidar com a tecnologia digital e suas diversas formas de interagir. Esses novos produtos, fruto do avanço da tecnologia, tem apresentado um comportamento cada dia mais complexo. O tradicional funcionalismo que dominou o início das teorias que buscavam compreender a relação entre o homem e o computador ainda não se dissipou por completo. Parte do esforço aqui concentrado procura contrapor essa posição prospectando novas possibilidades a partir de uma visão mais contemporânea da compreensão da cognição humana e como isso pode reduzir substancialmente a fricção entre homem e tecnologia. A intenção aqui não é propor o abandono das técnicas e métodos que tem sido úteis aos designers para a criação do diálogo entre homem e a tecnologia digital, nem sugerir que seres humanos compartilham semelhanças biológicas e portanto o design de interação deve considerar uma suposta pasteurização de soluções, mas sim tentar estender a consciência do nível de orquestração e do esforço que é necessário fazer para o design de interação avançar, compreendendo melhor a natureza humana. Até certo ponto, é contraditório que tenhamos dificuldade em nos relacionar com a tecnologia que de alguma forma foi criada pelos homens, para os homens. O que nós ainda não entendemos de fato, a tecnologia ou a nós mesmos?

Infelizmente, estas questões ainda não podem ser respondidas satisfatoriamente. De fato, não há resposta simples para um problema tão complexo. O movimento aqui descrito, ainda que exploratório, procura, de certa maneira, despertar o interesse de pesquisadores em design de interação em atualizar-se sobre os novos movimentos operados pelas ciências cognitivas. A tendência “enativa” vigorosamente defendido por Varela ainda está longe de ter se tornado um paradigma de pleno consenso teórico. No entanto, ele tem o mérito de salientar alguns pontos fracos das ciências cognitivas, em particular a sua tendência a negligenciar fenômenos dinâmicos, autonomia, ação e contexto. As pesquisas e a investigação futura irão mostrar se é possível acomodar alguns desses aspectos da cognição em uma teoria mais abrangente das quais os designers e interessados possam se beneficiar de alguma forma. Sobretudo, essa teoria sugere que nossa interação não é isoladamente representacional, mas encontra-se em movimento para um novo conjunto de relações dinâmicas que devem ser consideradas e isso por sí só representa uma completa mudança paradigmática da compreensão sobre como nós interagimos com o mundo natural, artificial e tecnológico que nos cercam.

 

Referências

Aboulafia, A., and L. Bannon. 2004. Understanding affect in design: An outline conceptual framework. Journal of Theoretical Issues in Ergonomics Science 5: 4–15.

Brooks, R.A. (1990). Elephants don’t play chess. Robotics and Autonomous Systems 6, 3–15.

Card, Stuart; Thomas P. Moran; and Allen Newell (1983). The Psychology of Human Computer Interaction. Lawrence Erlbaum Associates.

Clark, A. (1997). Being There: Putting Brain, Body, and World Together Again. Cambridge, MA: MIT Press.

Clark, A. (2001). Mindware: An Introduction to the Philosophy of Cognitive science, New York: Oxford University Press.

Clark, A. (2008). Supersizing the Mind: Embodiment, Action, and Cognitive Extension, New York: Oxford University Press.

Cooper, A; Reimann, R; Dubberly. H (2007). About Face 2.0: The Essentials of Interaction Design. Wiley Publishing, Inc.

Dourish, P. (2001) Where the Action Is: The Foundations of Embodied Interaction

MIT Press.

Dourish, P. 2001a. Where the Action Is: The Foundations of Embodied Interaction. Cambridge, Mass.: MIT Press.

Dourish, P. 2001b. Seeking a foundation for context-aware computing. Human–Computer Interaction 16: 229–241.

Dourish, P., W. Edwards, A. LaMarca, and M. Salisbury. 1999. Presto: An experimental architecture for fluid interactive document spaces. ACM Transactions on Computer–Human Interaction 6: 133–161.

Fogg, B. J. 2000. Persuasive technologies and Netsmart devices. In E. Bergman (ed.), Information Appliances and Beyond: Interaction Design for Consumer Products, pp. 335–360. San Francisco: Morgan Kaufmann.

Gallagher, S. (2001). The practice of mind: theory, simulation, or interaction? Journal of Consciousness Studies 8/5–7, 83–107.

Gallagher, S. (2005). How the Body Shapes the Mind. Oxford: Oxford University Press.

Gallagher, S. (2008). The Phenomenological mind. Oxford: Oxford University Press.

Gibson, J.J. (1986). The Ecological Approach to Visual Perception. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates.

Gibson, J. J. 1979. The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton Mifflin.

Head, H. (1920). Studies in Neurology, Volume 2. London: Oxford University Press.

Hutchins, Edwin (1995). Cognition in the Wild. Cambridge, MA: MIT Press.

Imaz, M., Benyon, D. (2007). Designing with Blends – Conceptual Foundations of Human-Computer Interaction and Software Engineering. Cambridge, MA: MIT Press.

Kuutti, K., G. Iacucci, and C. Iacucci. 2002. Acting to know: Improving creativity in the design of mobile services by using performances. In Proceedings of the Fourth Conference on Creativity and Cognition, pp. 95–102. Loughborough, UK, October 13–16.

Licoppe, C. 2004. ‘‘Connected’’ presence: The emergence of a new repertoire for managing social relationships in a changing communication technoscape. Environment and Planning: Society and Space 22: 135–156.

McCarthy, J., and P. Wright. 2004. Technology as Experience. Cambridge, Mass.: MIT Press.

Merleau-Ponty, M. (1962). Phenomenology of Perception. Trans. C. Smith. London: Routledge and Kegan Paul.

Norman, D. 1988. The Psychology of Everyday Things. New York: Basic Books.

Norman, D. 1991. Cognitive artifacts. In J. Carroll (ed.), Designing Interaction:

Psychology at the Human–Computer Interface, pp. 17–38. Cambridge: Cambridge University Press.

Norman, D. 1993. Things That Make Us Smart: Defending Human Attributes in the Age of the Machine. Reading, Mass.: Addison-Wesley.

Norman, D. 1998. The Invisible Computer: Why Good Products Can Fail, the Personal Computer Is So Complex, and Information Appliances Are the Solution. Cambridge, Mass.: MIT Press.

Norman, D. 1999. Affordance, conventions, and design. interactions 6: 38–42.

Norman, D. 2004. Emotional Design: Why We Love (Or Hate) Everyday Things. New York: Basic Books.

Norman, D., and S. Draper (eds.). 1986. User-Centered System Design: New Perspectives on Human–Computer Interaction. Hillsdale, N.J.: Lawrence Erlbaum.

Núñez R. (2010). Enacting Infinity: Bringing Transfinite Cardinals into Being. In J. Stewart, O. Gappene, and E. di Paolo (Eds.), Enaction: Towards a New Paradigm in Cognitive Science (pp. 307-333). Cambridge, MA: MIT Press.

Picard, R. 1997. Affective Computing. Cambridge, Mass.: MIT Press.

Sheets-Johnstone, M. (1990). The Roots of Thinking. Philadelphia, PA: Temple University Press.

Sheets-Johnstone, M. (1999). The Primacy of Movement. Amsterdam: John Benjamins.

Stewart, J; Gapenne, O; and Di Paolo, E; (2011). Enaction – Toward a New Paradigm for Cognitive Science. Cambridge, MA: MIT Press.

Stolterman, Erik. “Transform Grounds” Interaction Design, Technology and Society, Philosophical Reflections. Acessed on July,18,2011. http://transground.blogspot.com/.

Thompson, E. (2007). Mind in Life: Biology, Phenomenology, and the Sciences of Mind. Cambridge, MA: Harvard University Press.

Tomlinson, B. 2005. Social characters for computer games. International Journal of Interactive Technology and Smart Education 2: 101–115.

Varela, F.J., Thompson, E. and Rosch, E. (1991). The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge, MA: MIT Press.

Varela, F.J., Maturana, H. The Tree of Knowledge: The Biological Roots of Human Understanding.

Wheeler, M. (2005). Reconstructing the Cognitive World. Cambridge, MA: MIT Press.

 

Notes

1 – Embodiment e Enaction são apresentados aqui originamente em ingles, conforme literatura consultada e encontram-se traduzidas, interpretativamente dentro do conteúdo do proprio texto.

2 – O teste consistia em submeter um operador, fechado em uma sala, a descobrir se quem respondia suas perguntas, introduzidas através do teclado era um outro homem ou uma máquina. A intenção era de descobrir se podiamos atribuir à máquina a noção de inteligência.

3 – Chinese Room – ou experimento do Quarto Chines, é considerada uma resposta a teoria proposta por Alan Turing, que basicamente desmistificava a noção de inteligencia por sugerir que manipular simbolos não implica necessariamente em compreende-los.

 

Marcio Alves da Rocha
PhD Researcher Student in Art and Media of Transtechnology Research Group
University of Plymouth – United Kingdom

Federal University of Goiás
School of Visual Arts – Bachelor of Visual Arts / Graphic Design
Funded by CAPES 0854107

Estudante e pesquisador no PhD em Arte e Mídia pelo grupo de pesquisa Transtechnology
da Universidade de Plymouth – Reino Unido

Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Artes Visuais – Bacharelado em Artes Visuais/Design Grafico
Bolsista da CAPES 0854107

 

 

Dispositivos móveis: Dimensões e espacialidades do corpoespaço | de Luisa Paraguai

Resumo

O texto aborda o contexto de dispositivos móveis, vestíveis ou não, enquanto artefatos multisensoriais que atualizam, de forma complexa, nossas construções perceptivas e ações. Ao assumir a fisicalidade corpórea dos usuários e a materialidade de objetos e do espaço como dados de entrada em sistemas computacionais, questiona-se a possibilidade de reconfiguração do corpo na sua própria apresentação e percepção a partir das interações mediadas neste contexto. Essa condição híbrida e processual apontam modos específicos de apreensão e de comunicação, que interessam discutir neste trabalho. Após as abordagens teóricas sobre interfaces enactives, alguns trabalhos artísticos serão apresentados, diante das específicas propostas de construção e experimentação de estados sensórios. Estas propostas artísticas potencializam o corpo e o espaço nas suas condições matéricas e dimensionais, na medida em que a percepção dos mesmos articula elementos interdependentes para a construção sensível da realidade como uma experiência estética e fenomenológica.

Palavras-chave
Design, Arte e tecnologia, Espacialidades, Dispositivo móvel, Computador vestivel.

 

Introdução

Os dispositivos móveis, vestíveis ou não, vêm promovendo uma mediação humano/máquina peculiar aos usuários, marcadamente em suas atividades diárias, de forma que a gestualidade e/ou contato físico dos mesmos com as interfaces transformam-se literalmente em informação para os sistemas computacionais. Assim, o que parece diferenciá-los de outros dispositivos, não apenas como sistemas de representação, é a forma determinante com que o corpo em movimento do usuário são atuantes e constituem-se enquanto dados de entrada e de saída. Os usuários apresentam-se reconfigurados na sua gestualidade e terminam por construir uma compreensão corpórea e espacial peculiares, dinâmicas, que se estendem e contraem, diante da movimentação dos mesmos. Os limites territoriais da relação corpoespaço reorganizam-se dinamicamente a partir de uma negociação do sensível, em constantes remediações entre o local e o remoto, o pessoal e o coletivo, o físico e o digital, e apresentam-se como tema para reflexão neste texto.

Os dispositivos tecnológicos são abordados como artefatos multisensoriais na medida em que suas específicas interconexões promovem interferências na percepção dos usuários tanto pela visualidade (forma) como nas articulações dimensionais do espaço (comunicação); reforça-se o entendimento de um corpo agente e determinante na relação humano/máquina. O processo do fazer, entre o pensamento e a ação, contém o corpo como elemento articulador e organizador e essa condição processual, bem como a dinâmica baseada na circularidade entre a ação do usuário sobre aquilo que ele constituiu como objeto e, reflexivamente, a ação desse objeto sobre o mesmo, parecem apontar um modo específico de operar e estabelecer relações entre usuário e interface.

O cotidiano de todo indivíduo está repleto de objetos, cujas funções, texturas e formas, determinam maneiras específicas de pegar, carregar, acionar, jogar, e constroem assim práticas que passam a ser recuperadas em outras situações de ressignificação. As relações entre operação e função, assim recuperadas, apontam para o estudo da interfaces enactive, a ser desenvolvido a seguir. Como afirma MOLES (apud SANTOS, 1999, p.77) “os objetos são duplamente mediadores, porque colocam-se entre o homem e a sociedade e entre o homem e sua situação material”. A construção de conhecimento apresenta-se assim, dependente da condição de existência no mundo, e portanto, intrinsecamente relacionada com o entendimento de corpo, com a linguagem e com a história política e social de cada indivíduo.

I. Enaction: corpoespaço em constante construção

No contexto das interfaces tecnológicas recentes, cada vez mais a ação e percepção dos usuários imbricam-se em formas complexas que traçam dependências e interferências dependentes do meio onde acontecem. Isto vale dizer que das relações estabelecidas por um fluxo dinâmico de informações e trocas emergem espacialidades presentes, articuladas entre o físico e o virtual, ambas reais. O corpo, ao articular infinitas apropriações estéticas e vivenciais com os seus desdobramentos e experimentações expande os limites territoriais físicos e manifesta um acontecimento subjetivo. Para contextualizar estas articulações e apontar a relação multimodal e situada no corpo apresenta-se a interface enactive, objetivo central deste texto.

O termo “enaction” foi introduzido pela primeira vez por Jerome Bruner, na Psicologia Cognitiva, (PASQUINELLI, 2007, p.93), quando afirmou que o conhecimento “enactive” é construído a partir de competências que requisitam habilidades motoras durante o processo do fazer, como por exemplo dançar, tocar um instrumento musical, manipular objetos, andar de bicicleta. Diferentemente do conhecimento elaborado de forma icônica ou metafórica, este paradigma da cognição está centrado em dinâmicas sensório-motoras, atividades corpóreas, e coloca as mediações entre o indivíduo e seu ambiente como fundamentais e determinantes para a produção de significados; este conhecimento apresenta-se assim constituído por padrões de experiência incorporada, que necessariamente precisam ser cultural e socialmente compartilhados. A ação é considerada como pré-requisito para percepção; assim, os inputs sensórios, como o reconhecimento do entorno, apenas passam a significar na medida em que ações são realizadas. Como afirma STEWART (2007, p.90) “sem ação não existe mundo e nem percepção”.

Para validar esta afirmação recuperam-se os trabalhos de vários artistas, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Robert Morris, que em diferentes momentos da história e com distintas tecnologias procuraram validar a construção da relação corpoespaço no campo do poético. Lygia Clark com a experiência sensória do corpo no trabalho “Nostalgia do corpo – corpo coletivo” (figura 1) apresenta os corpos totalmente envolvidos na fronteira do vestir e de certa forma aprisionados pelo limite físico do corpo; a condição apresentada reconstrói a relação corpo/espaço ao estimular uma ação e percepção diferenciadas diante do acontecimento – corpos atravessados que se opõem e compõem de forma inusitadas. Hoje, com as tecnologias móveis reelabora-se a percepção do corpo, que se apresenta constantemente detectado e monitorado na sua ação e deslocamento espacial. As chamadas via celular e as trocas de arquivo via bluetooth rastreiam o usuário no ambiente físico e requisitam sua atenção, momentaneamente alterada para uma condição multi-tarefa.

Figura 1: "Nostalgia do corpo-corpo coletivo", Lygia Clark, 1965-88. Fonte: http://www.sbi.org.br/sbinarede/SBInarede63/ LygiaClarkNostalgiadoCorpoaCorpo1986.jpg

Hélio Oiticica com seus “parangolés” (figura 2) propõe uma aproximação estética com o cotidiano onde o corpo apresenta-se como um receptáculo de informações que se expande no comportamento e na aparência que transita no espaço. Nesta vivência do corpo-e-o-vestir, o espaço concreto articula com o espaço sensório e revela sentidos. A ação/movimento proporcionada pelo parangolé é extraída da visceralidade do corpo, da sua realidade concreta, da compreensão da arte/vida que ultrapassa o território de ocupação. A expansão sem limites do mundo íntimo do corpo está no cotidiano da conectividade.

 

Figura 2: Nildo da Mangueira com Parangolé, Hélio Oiticica, 1964. Fonte: http://www.digestivocultural.com/upload/ jardeldiascavalcanti/parangole1.jpg.

O artista Robert Morris em seu trabalho “untitled” (figura 3) impõe ao visitante uma relação de encontro e definição do espaço, ora determinado pela construção de diferentes ângulos e pontos de vista, ora determinado pela inclusão visual da sua própria existência. A obra em si espelha o infinito pela regra simples de reflexão da física, mas com a presença dos visitantes, corpos em movimento, vê-se o espaço emergir.

Figura 3: “Untitled”, Robert Morris, Tate Modern, 1965-71. Fonte: http://www.tate.org.uk/collection/T/T01/T01532_9.jpg.

Como afirma NOË (2000, p.132) “uma experiência perceptiva como um modo de exploração ativa do mundo”. Antes de qualquer movimentação das pessoas em torno, este trabalho só existe na sua própria reflexão, mas que gradativamente ganha compreensão e estabelece relações com outros espaços na medida em que os deslocamentos dos espectadores revelam e desnudam outras dimensões. A leitura não se dá por inteiro, em momento algum, mas a sua existência no tempo permite a reconstituição do todo enquanto fruímos partes.

Refletir sobre os padrões de percepção e ação – modos de aproximação e distanciamento, significa pensar sobre uma forma de corpo comprometida com a situação, que como diz BORGES (2006, p.31) “é um espaço significativo, um espaço como propriedade de acontecimentos” onde “as tensões musculares estão no corpo mas também no espaço. Os corpos se cruzam; o espaço é cheio”. Um corpo sempre na postura de relação – um corpo que caminha entre outros corpos e objetos, e que se ajusta aos mesmos pela dinâmica das tensões musculares que são operações de posição, postura, atitude, direção. (GAIARSA, 1988, p.66) O corpo ao movimentar-se implica na elaboração de configurações específicas de forças, que por sua vez implicam em maneiras próprias de apreciar, de agir e de reagir. Na articulação destas tensões o corpo existe e se reconhece no espaço.

Articular a fenomenologia para refletir sobre estas interfaces “enactive” implica em assumir o conceito de experiência como uma atividade de encontro com o mundo, determinada por contingências sensório-motoras. A relação com o mundo acontece dependente do estímulo sensório e dos movimentos em torno; por exemplo, um tomate é reconhecido pelas partes visíveis, enquanto a compreensão das não-visíveis pode depender de uma reorientação do leitor em torno do objeto e não somente de construções mentais. Vale reforçar que o conteúdo apresenta-se a partir de experiências perceptivas, atividades baseadas na exploração do ambiente, onde o conhecimento não se dá como um todo, mas “enacted”, estendido no tempo das ações. Em contraste, por exemplo, a relação com a torre Eiffel não está agora momentaneamente mediada pelas contingências sensório-motoras, mas dependente de um processo cognitivo de inferências sobre o objeto mediado por outros suportes ou mesmo até experienciado anteriormente. (NOË, 2002) Admite-se assim que a estrutura fisiológica do corpo e suas experiências sensórias com o ambiente, tanto quanto os processos neurais, assumem um papel determinante no desenvolvimento dos artefatos tecnológicos, cada vez mais estruturados, segundo nos parece, a partir deste conhecimento “enactive” para evocar a interação usuário/interface.

A ênfase nas qualidades da ação mais do que no conhecimento da representação, assegura interfaces onde a aprendizagem dá-se com o ato do fazer. Como conseqüência direta o desenvolvimento de interfaces tecnológicas tem procurado por características morfológicas e funcionais cada vez mais compatíveis com as estruturas humanas e numa dependência direta da experiência incorporada nas ações do cotidiano. As empresas de bens de consumo tecnológicos vêm assim investindo de forma clara e objetiva em acessórios que apresentam um alto grau de inserção na relação diária dos indivíduos com o mundo; diante desta demanda, cada vez mais os objetos/aparelhos demonstram a existência de estudos cognitivos para construir a relação usuário/interface e recuperar em parte o conhecimento corpóreo já culturalmente interiorizado.

Como exemplo, pontua-se o desenvolvimento da interface do iphone e iPad da Macintosh, no qual a ampliação ou redução de um texto ou imagem acontece por um pequeno movimento, já conhecido – o afastar e aproximar os dedos polegar e indicador, respectivamente. Outro movimento, já incorporado, que leva o dedo indicador para direita ou para esquerda enquanto os usuários lêem ou percorrem os conteúdos ou páginas também recupera em parte a idéia de interesse e/ou desinteresse por algo. Outro exemplo, também recente, é o Kinect para Xbox 360, que vem revolucionando o mundo do entretenimento diante do peculiar modo de jogar: o corpo como controle – todos os movimentos do jogador, braços, tronco, pernas, são reconhecidos para acionar funções e controlar as ações dos avatares nos jogos. As funções, comportamentos e gestualidades, não são pré-dadas mas sim resgatadas de referências em ações outras, contextualmente determinadas e significadas pelo senso comum. Assim, jogar tênis com o Kinect implica necessariamente em pular, girar, abaixar-se, levantar-se, com a intenção objetiva de bater na bolinha e resgatar qualquer outra experiência corpórea já vivenciada em uma quadra de tênis.

Assim, a experiência de existir e de gerar significados acontecem de forma inseparável e trazem, como afirma MERLEAU-PONTY (apud DOURISH, 2004, p.114) a relação sujeito/objeto focada em uma “teoria do corpo e conseqüentemente uma teoria da percepção”. Partindo-se desta premissa fenomenológica, pode-se pensar sobre a relação usuário/interface dependente de uma íntima relação entre percepção e ação (modos de apreensão), sendo que o indivíduo e o ambiente nas suas condições corporais e matéricas, respectivamente, estão implicitamente considerados na determinação destas interfaces tecnológicas. Em consonância com estas premissas cita-se ARMSTRONG (apud BENNET e O’MODHRAIN, 2007, p.38) e o critério de “interação incorporada” que descreve como “uma atividade incorporada de maneira a ser situada, em tempo real, multimodal, engajada, e com o sentido de incorporação como um fenômeno emergente”. Na medida em que a interface e seu funcionamento dependem diretamente das ações dos usuários, fica claro a noção de engajamento dos mesmos e não apenas considerações sobre os seus níveis de atenção; nesta condição a sincronização temporal das interações vem reforçar que o estado do sistema computacional altera-se dinâmica e diretamente relacionado com as trocas realizadas.

II. Experimentações artísticas

No processo contínuo e imbricado entre objetos e espaço, este deixa de ser representação, e assume-se enquanto processo de construção, e como afirma FERRARA (2007, p.12) um lugar fenomênico a ser preenchido pelas ações no qual se reconhece “a emergência do espaço como experiência sensível”. O espaço passa a ser explorado, construído, habitado, ocupado, enquanto movimentos de mediação, interação, percepção, entre sujeitos – corpos, objetos. O espaço é desafiado em seus limites físicos e simbólicos para ser apreendido pelas espacialidades híbridas, que compõem o digital no campo físico. Ao falar desta forma, justifica-se apresentar algumas pesquisas e produções em arte e tecnologia, que configuram-se como um local recorrente desta experimentação. As obras procuram, claramente, não afirmar a produção e os recorrentes usos da sociedade tecnológica, mas gerar como afirma MACHADO (2004, p.6) “instrumentos críticos para pensar o modo como as sociedades contemporâneas constituem-se, reproduzem-se e se mantêm”.

II.1. Redes vestiveis

O artista Cláudio Bueno propõe com seu projeto uma performance coletiva baseada numa rede virtual elástica, topograficamente localizada e graficamente representada nas telas dos celulares. Na medida em que, as pessoas conectam-se à rede tornam-se nós da mesma trama, que depende dos seus deslocamentos físicos no espaço físico para existir. Assim, o corpo em movimento estabelece e conecta o usuário na rede virtual, estimulando o movimento dos outros; estes, caso não se desloquem rompem a estrutura em rede, desconectando o usuário. Para o artista “a informação toma o corpo e o move”.

Figura 5: Redes vestiveis, Cláudio Bueno, 2010. Fonte: http://redesvestiveis.net/.

II.2. Cylindres

O artista Pierre-Guillaume Clos explora esteticamente um fenômeno cotidiano, mas que nem sempre é avaliado pelas pessoas: a nossa percepção do espaço depende diretamente da posição e interrelação dos objetos no mesmo. Esta experiência estética questiona o que acontece com a compreensão do espaço físico quando os objetos movem-se; a percepção do entorno sofre transformações nas suas dimensões básicas de largura, comprimento e profundidade, que passam a formalizar-se dinâmica e empiricamente. Na instalação, três cilindros [figura 6] rolam paralelos e independentemente sem que qualquer causa física produza tais deslocamentos. Estes deslocamentos dos cilindros foram criados através de uma simulação gerada no software MIMESIS e passam a ser controlados. Assim, os visitantes ali presentes constroem a percepção sensória do espaço a partir das relações com os cilindros e destes com o espaço, que se revela maior ou menor conforme a distribuição e localização dos mesmos.

Os visitantes da exposição, “Enaction in Arts”, Grenoble, Novembro de 2007, na medida em que precisam contornar, parar e pular os cilindros para evitar um choque, encontram-se em um processo dinâmico de construção e entendimento do espaço ocupado; este conhecimento acontece a cada momento que os participantes atualizam uma referência espacial dependente da relação corpo/objeto. Outros limites espaciais são determinados não mais dependentes de uma leitura inicial dada pelo participante, mas em consonância com as exigências pontuais, constantes readaptações para o equilíbrio biomecânico do corpo em movimento foram evocadas, aí sim, dependentes da capacidade de auto-organização. Assim, para cada disposição dos cilindros no espaço, os participantes reordenam-se, assumindo distintas posições e portanto reocupando-o; uma tentativa quase espontânea de dialogar com os objetos, promovendo um estado de equilíbrio ou de tensão e qualificando a própria existência no contexto físico.

Figura 6: Três cilindros paralelos dispostos no chão do espaço expositivo. Fonte: Luisa Paraguai. Novembro de 2007.

 

II.3. Seven mile boots

Neste projeto, seven mile boots a artista Laura Beloff e seus colaboradores Erich Berger e Martin Pichlmair criaram um par de botas que permite incursões físicas através de espaços virtuais. Foram apresentadas no ISEA 2004 em Tallinn, Estonia, e no Ars Electronica 2004, em Linz, Áustria. Valendo-se da lenda folclórica, onde um par de botas era capaz de fazer a pessoa andar sete mil léguas em um passo, os artistas desenvolveram um par de botas vermelhas (figura 7) permitindo o usuário enquanto anda fisicamente atualizar conexões na Internet, navegando e escutando algumas específicas salas de bate-papo. Alguns teóricos vêm nomeando esta condição como híbrida, quando atuar significa coexistir em contextos distantes e atuais simultaneamente, na medida em que os limites entre espaços virtuais e físicos esvanecem-se. O usuário continua presente e atuante no seu espaço físico em torno enquanto as informações recebidas e transmitidas remotamente adicionam outras características a esta experiência fenomenológica. Para De Souza e Silva (2006, p.26) um espaço híbrido apresenta-se como um local de comunicação, “caracterizado por três perspectivas descritas como espaços conectados, espaços móveis e espaços sociais”.

 

Figura 6: Três cilindros paralelos dispostos no chão do espaço expositivo. Fonte: Luisa Paraguai. Novembro de 2007.

 

Considerações finais

O fato de atuar no mundo implica na construção da realidade do espaço, um contexto que se reconhece a partir da dinâmica dos movimentos e gestos corpóreos – comportamentos, que redefinem constantemente as relações espaciais. O conceito de “espaço incorporado” de LOW (2003, p.9) apresenta um modelo de compreensão para a criação do espaço através da “orientação espacial, movimento e linguagem” das pessoas, e cabe aqui neste trabalho perfeitamente para contextualizar as interferências sugeridas pelos dispositivos na relação participante/corpo/espaço.

A percepção do espaço é reconhecidamente dinâmica e fluída, diretamente relacionada com a ação, isto é, com o que pode ser feito em um determinado contexto. Segundo De Kerckhove (1997, p.24) “… Instalações Artísticas Interativas fazem o papel de conectores diante do fazer não mais preocupado em gerar objetos, mas produzir contextos. Eles convidam os usuários a interiorizar o que eles estão experienciando, fazer novas conexões, em outras palavras, remapear nossos sistema nervoso.” Os trabalhos redes vestiveis e cylindres apresentam esta condição onde os indivíduo e indivíduo-objeto no espaço físico, determinam-se um na existência possível do outro, isto é, constroem e significam na medida em que as relações usuário/rede e espectador/cilindros, respectivamente, acontecem diferentemente no tempo. O trabalho seven mile boots qualifica poeticamente e habilita a condição de coexistir simultaneamente no ciberespaço sonoro dos chats enquanto o usuário circula no ambiente físico. Estes trabalhos operam assim com as características emergentes de um conhecimento que depende do estar no mundo integrando corpos, percepção e consciência. A diluição dos limites e a possibilidade de compor espaços físicos e contextos informacionais vêm sugerir outras dimensões para a interação; a relação entre percepção e ação apresenta-se como uma experiência fenomenológica, onde o indivíduo e o ambiente estão midiaticamente incluídos. Como afirma VARELA (2000, p.149-150) o mundo não é dado a priori, independente do referente, mas seu conhecimento é um processo ativo, de recuperação e construção constantes por parte dos indivíduos reconhecidamente aculturados. Em outras palavras, apesar da capacidade de compreensão do mundo ser baseada nas estruturas biológicas de cada indivíduo, é experienciada e vivida no domínio da ação consensual e da história cultural. Portanto, não considerar as relações históricas – sociais, econômicas, políticas, envolvidas na leitura destes indivíduos implica em negar territórios, limites culturais, categorias do social, classes de poder.

 

Referências Bibliográficas

BORGES, F.C. A filosofia do jeito, um modo brasileiro de pensar com o corpo. São Paulo, Summus Editorial, 2006.

De Kerckhove, D. Connected intelligence, the arrival of the Web society. Toronto: Sommerville House Publishing, 1997.

De Souza e Silva, A.A. Do ciber ao híbrido: tecnologias móveis como interfaces de espaços híbridos. In Imagem (ir)realidade, comunicação e cibermídia. Denize Correa Araújo (organizadora). Porto Alegre: Sulina, p.21-51, 2006.

DOURISH, P. Where the action is: the foundations of embodied interaction. Cambridge: The MIT Press, 2004.

FERRARA, L. D’A. (org.) Espaços Comunicantes. São Paulo: Annablume; Grupo ESPACC, 2007.

GAIARSA, J.A. A estátua e a bailarina. São Paulo: Ícone, 1988.

LOW, S.M. Anthropological theories of body, space, and culture. In Space and Culture, vol.6, n.1, pp.9-18, 2003.

McGANN, M. What is enactive cognition. Disponível em: <http://www.eucognition.org/wiki/index.php?title=What_is_%22Enactive%22_Cognition%3F>. Acesso em: <16.setembro.2008>.

MACHADO, A. Arte e Mídia: aproximações e distinções. E-compos, edição 1, p.1-15, dezembro, 2004. Disponível em: <http://www.compos.org.br/e-compos>. Acesso em: 16.maio.2006.

NOË, A. Art as enaction. In Art and Cognition Conference. Novembro, 2002. Disponível em: < http://www.interdisciplines.org/artcog/papers/8>. Acesso em: <20.outubro.2008>.

NOË, A. Experience an Experiment in Art. In Journal of Consciousness Studies, vol.7, n.8-9, pp.123-135, 2000.

PASQUINELLI, E. Enactive Knowledge. In Enaction and enactive interfaces, a handbook of terms. LUCIANI, A.; CADOZ, C. (editors). p.93. Grenoble: Enactive Systems Books, 2007.

SANTOS, M. A natureza do espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 3a Edição. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.

STEWART, J. Enactive Cognitive Science_1. In Enaction and enactive interfaces, a handbook of terms. LUCIANI, A.; CADOZ, C. (editors). p.89-91. Grenoble: Enactive Systems Books, 2007.

VARELA, F.J. Las ciencias cognitivas: tendencias y perspectivas. Cartografía de las ideas actuales. 2ª reimpresión. Barcelona: Editorial Gedisa, 1998.

VARELA, F.J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The embodied mind, cognitive science and human experience. 8a edição. Cambridge, London: The MIT Press, 2000.

Luisa Paraguai
luisaparaguai@gmail.com
Universidade Anhembi Morumbi

A questão da imagem-interativa: Rumo a uma Estética de leitura dinâmica e de participação interdependente | de João Tiago Silva

Resumo

O trabalho de investigação proposto visa o estudo da imagem-interativa. Com um enfoque particular nas condições estéticas desta nova Imagem, o nosso objetivo passa por desenvolver um estudo teórico aprofundado sobre o conceito de uma leitura dinâmica da imagem-interativa e de uma participação interdependente de um público que se quer cada vez mais ativo/ interativo.

Conceitos-chave: Imagem-interativa, leitura dinâmica, participação interdependente, arte interativa.

Introdução

A imagem-interactiva acontecerá em pleno, quando as coisas se formarem a nossos olhos com a clareza da nossa subjetividade. Um novo tipo de imagem não utópica será declarado, quando de um processo interativo resultar na forma combinada de uma imagem, uma correspondência cristalina entre interactor e sistema, de tal forma que, o juízo sobre a imagem, não deixe dúvidas do processo interativo que a gerou e da sua imprescindibilidade.

É com esta nossa expressão, como primeira tentativa de definição das condições do nosso estudo (porventura surgida como estratégia motivacional), que inauguramos a nossa investigação sobre a imagem-interativa. Talvez a ela voltaremos numa fase mais avançada da nossa demanda. A nossa pesquisa, centrada particularmente no campo das Artes interativas, parte da convicção de que a imagem-interativa apresenta condições próprias, tanto ao nível da sua produção (criação) como ao nível da sua receção e interpretação (leitura). Perguntamo-nos que implicações estéticas estão abrangidas numa imagem mediada por um dispositivo interativo, querendo averiguar que condições (estéticas) orientam a criação da imagem-interativa. É assim nosso propósito, definir um novo tipo de imagem, a imagem-interativa, através de uma análise profunda dos seus modos de leitura e de interação com o público/ participante. Fará objeto deste estudo uma categorização da(s) imagem(ns)-interativa(s) e o seu posicionamento no conjunto de Imagens que habitam o mundo contemporâneo.

A Imagem e a sua interpretação

A imagem imaginada é sempre diferente da imagem reproduzida. Por exemplo, o resultado do nosso gesto com o lápis sobre o papel, será diferente da nossa intenção primária. Este desafio complexifica-se à medida que novos dispositivos interativos se afirmam na expressão visual. Deste modo, se afirmam pertinentes as bem conhecidas questões levantadas ao nível do design da interatividade: «como as pessoas agem, como sentem e como compreendem» (B. Verplank, 2007), sendo que para nós, ao uso dos sentidos aplicamos “como veem”.

Pela introdução de dispositivos interativos, a Imagem assume caraterísticas que a conduzem da ilusão à imersão e da contemplação passiva à participação ativa. Afirma-se hoje um “interactor” com possibilidade de agir sobre a obra digital e introduzir «a sua própria presença na presença da obra» (E. Couchot e N. Hillaire, 2005). Assim, a participação apresenta-se como um problema decisivo nas artes (F. Popper, 1985) que, no caso da imagem mediada por dispositivos interativos, assumem maior relevo as suas interdependências (entre obra-sistema e público-participante), pois sem interação e interatividade não existe imagem-interativa. Da «participação à interação» (S. Dinkla, 1996) inicia-se um novo diálogo de relações, em que a Imagem pode ser entendida como uma “atividade” e como um momento (N. Bourriaud, 2002) que põe em jogo as técnicas, um sujeito-artista e um público-operador.

Do ponto de vista estético, a Imagem é marcada por diferentes modos de a compreender/ classificar. Pelo termo «objetos espaçio-temporais» podemos designar objetos onde o tempo se inscreve numa dimensão espacial (T. Ruiz-Gutierrez, 2004). Relacionando-o com a imagem-interativa, encontramos neste conceito a introdução da temporalidade na imagem, na qual o tempo não é apenas utilizado como “duração”, mas como um elemento de profundidade espacial. Esta relação encontra-se na imagem-perspetiva da Idade média (Brunelleschi), na sua utilização na pintura renascentista ou na representação dos corpos em todas as posições do movimento no Barroco, como recursos para a representação temporal numa narrativa contada pelas imagens.

igitizing the Garibaldi Panorama (pintura panorama do Século XIX), Brown University Library, Departamento de Estudos Italianos e Centro de Iniciativas Digitais, 2010.
Digitizing the Garibaldi Panorama (pintura panorama do Século XIX), Brown University Library, Departamento de Estudos Italianos e Centro de Iniciativas Digitais, 2010.

Em diferentes períodos da nossa história, identificamos nas imagens panorâmicas uma expansão do espaço para além dos limites da nossa visão, abrangendo uma extensão temporal pela construção cronológica do tempo. As primeiras imagem-panorama consistiam em pinturas fixas, onde a ilusão de movimento e passagem do tempo era conseguida pela deslocação dos observadores ou pelo desenrolar dessas pinturas. Esta aproximação a uma leitura dinâmica das imagens pode também ser identificada na afirmação: «é o observador quem faz o quadro» (M. Duchamp) ou na “Op-art” (por ilusões óticas).

Perante uma obra com um processo de criação/ apresentação interativo e aberto, a Imagem pode ser entendida como produto de um “ato”, o que apresenta novos desafios à sua interpretação. Estamos perante uma necessária distinção entre interação e interatividade, na relação informática do termo (J.-L. Weissberg, 2002), pois não falamos apenas de uma interação-interpretativa, mas de uma interação-concreta que se apropria de aspetos sensíveis da obra de arte e os torna percetivelmente diferentes.

Para o nosso estudo, a noção de interatividade é aplicável com sentido quando o programa informático não está fechado, mas permanece aberto com uma parte indefinida, na qual se torna necessária a intervenção humana. Para alguns autores, a interatividade deve ser entendida como uma nova condição de receção (condição espectatorial) e pensada segundo as especificidades da informática (Cauquelin; Louis-Claude Paquin, 2006). Optamos pela sua localização no significado informático do termo e desta forma concordamos que deve ser considerada em relação com as especificidades da informática, mais precisamente em relação às propriedades reflexivas do software (J.-L. Weissberg). De acordo com o autor, a interatividade deve assim ser encarada como uma propriedade da informática e não apenas, de forma vaga, como uma relação homem-máquina, que localiza como uma propriedade da interação.

Pensamos estar próximos da noção de uma “obra aberta”, resultado de interpretações da ordem do inteligível (U. Eco, 1965) e de uma “obra em movimento” onde se designam possibilidades de transformação material e de ação concreta sobre a obra (J.-P. Sartre, 1948).

A noção de imagem-interativa recorre de uma particularidade da imagem computacional/ digital, uma “imagem-matriz” que possibilita ter acesso direto à sua estrutura (ao ponto) e agir sobre eles. A imagem-interativa aproxima-se, julgamos nós, do conceito de “imagem-relação”, uma «figura de pensamento pela qual o mental é introduzido na imagem» e de “imagem-movimento” e de uma “imagem-tempo”, em que elementos variáveis agem/ reagem uns sobre os outros (G. Deleuze, 1983/85). São conceitos que podem ser estendidos aos objetos de arte digital/ interativa, apontando para uma imagem operacional que abre caminho ao jogo interativo (J.-L. Boissier, 2004).

Roy Ascott, Change-painting, Molton Gallery, Londres, 1960.
Roy Ascott, Change-painting, Molton Gallery, Londres, 1960.

 

Quatro obras

A título de exemplo, na obra Change-painting (Ascott, 1960) pode ser reconhecida uma tentativa em explorar o conceito de interação com a imagem antes de a tecnologia estar disponível. Na imagem-panorama agora assistimos a uma alteração tecnológica, com a possibilidade de navegação em tempo real e imersividade, em escalas crescentes de realidade aumentada, por exemplo com o Google earth/ maps. Porém, neste caso, a imagem não é produzida por um processo de interação, apenas por ele revelada.

Masaki Fujihata, na obra pioneira Beyond Pages (1995) abordou o conceito de uma audiência como um participante ativo e o artista como um provedor, isto é, o criador de um sistema interativo. Neste caso, o interactor seleciona e combina elementos contidos num sistema que configura, de forma predefinida, todas as variáveis possíveis.

É no entanto interessante desenvolver sistemas em que a imagem é incluída pelo próprio participante e “trabalhada” no sistema interativo. Marce-lí Antúnez define a peça Protomembrana (2006) como «uma lição mecatrônica no formato de uma performance, configurando um sistema interativo visual, em interfaces dinâmicas distintas». A somar à imagem e ao som, esta estória interativa utiliza dispositivos como uma “câmara/ pistola” que permite capturar os rostos de voluntários do público e introduzir a sua imagem na performance, como as faces dos protagonistas nas animações seguintes.

Karsten Schmidt (toxi) é o autor de Decode: Digital Design Sensations (2009), um projeto que permite a modelação de uma identidade gráfica generativa, assumindo-se como um «projeto de design interativo». Ao afirmar que o autor é o criador do sistema interativo, auxilia-nos a focar na ideia de que, embora seja o participante e a sua ação a gerar as imagens, o autor não deixa de ser apenas um – o criador do sistema que o permite. No caso de Karsten, o recurso a algoritmos e a critérios pseudoaleatórios revelam, também uma estratégia para atingir um maior grau de imprevisibilidade. Do ponto de vista da sua interpretação o mesmo se verifica. Não é uma questão nova e vejamos o problema de outra forma, ao imaginar que tentamos descrever a um amigo invisual uma pintura de Pollock. Será um desafio para o qual, certamente, necessitaremos de mais tempo e mais palavras do que no caso de uma tela monocromática de Klein. Com isto não pretendemos realizar um juízo sobre a complexidade conceptual das obras.

Na recente publicação Imagery in the 21st Century (O. Grau, et al., 2011) afirma-se que estamos rodeados de imagens como nunca: no Flickr, Facebook, no Youtube; em milhares de canais de TV; em jogos digitais e mundos virtuais; na media art e ciência e que, sem novos esforços para visualizar ideias complexas, estruturas e sistemas, a explosão de informação de hoje seria inimaginável. A imagem digital representa opções inesgotáveis de manipulação; as imagens parecem ser capazes de mudar interativamente e até de forma autônoma.

Novos mundos de imagens estão aqui e requerem uma análise aos seus modos de interação e compreensão nas artes.

 

Apenas estou satisfeito se os meus espetadores, tremendo e estremecendo, levantem as mãos ou cubram os olhos com medo dos fantasmas e demônios que correm na sua direcção. Êtienne-Gaspard Robert (1763-1837).  O teatro “Fantasmagoria” em finais do Século XVIII, utilizava imagens projetadas (de forma oculta) em paredes, em fumo (imagem-fumo) ou ecrãs semitransparentes.
Apenas estou satisfeito se os meus espetadores, tremendo e estremecendo, levantem as mãos ou cubram os olhos com medo dos fantasmas e demônios que correm na sua direcção. Êtienne-Gaspard Robert (1763-1837).

O teatro “Fantasmagoria” em finais do Século XVIII, utilizava imagens projetadas (de forma oculta) em paredes, em fumo (imagem-fumo) ou ecrãs semitransparentes.

A nossa questão de partida e a sua relação com o ecrã

À medida que os ecrãs se transformam em terminais de interação combinados e a imagem estática é progressivamente substituída por práticas, também sociais, em lidar com imagens digitais dinâmicas, a categorização dos seus dispositivos chave ganha pertinência. Não podemos deixar se analisar as ferramentas/ dispositivos que estão na sua consubstanciação técnica. A imagem, neste contexto, revela uma relação com o ecrã que atravessa um período muito significativo na história contemporânea e que resulta em somas ou divergências estéticas.

Jean-Louis Boissier define vários tipos de ecrãs: o ecrã como livro, o ecrã como carta, o ecrã como mensagem e o ecrã como ecrã. No caso do livro, o autor afirma que é o modelo dominante de leitura com o ecrã, particularmente devido à mobilidade dos suportes, começando com o princípio de plastificação e encadernamento. Atravessa as conquistas dos formulários Web e as definições, nos anos 90 do Século XX, para o CD-ROM. Isto trouxe para a primeira linha os interfaces tangíveis e novos gestos de consulta, que tendem a normalizar (vejamos hoje a panóplia de ecrãs móveis tangíveis disponíveis). Este fato inscreve-se numa lógica de portabilidade e do “local”, que é dependente da capacidade de carregamento e de interconexão das redes (informáticas). Quanto ao mapa, o ecrã móvel parece estender a distinção histórica entre estrutura e publicação, portanto, a leitura do livro e do mapa. O modelo cartográfico é especificamente suportado através das técnicas de rastreamento e localização, agora incluídas neste tipo de ecrãs. Porém o ecrã pode também ser relacionado com a mensagem. Herdeiro da telegrafia e da telefonia, o ecrã móvel não pode ser considerado fora da sua função de mensagem e a sua inclusão nas Redes. É uma forma de “cartão postal”, romance, autorretrato e diário, para uma plataforma de declarações públicas, o terminal por excelência das redes sociais. Neste ponto, o autor discute o ecrã como ecrã, isto é, como ele mesmo. Ao ganhar uma maior autonomia, tornando-se sobretudo pessoal, o ecrã pode manter a sua função de ecrã, i.e., de projeção, que herdou do cinema e do vídeo, estendendo estas funções à consulta interativa com o computador. No despertar do cinema e do “multimédia”, a sua hibridação é uma renovação das formas de escrita e narrativa, baseada do movimento real de manipulação, bem como a inscrição ativa do movimento e do contexto.

Surge à nossa atenção, após conduzir um estudo mais profundo e uma análise pormenorizada acerca dos modos de leitura e de interação com a imagem através de diferentes dispositivos, se será possível encontrar um denominador comum, que localiza de um ponto de vista estético, a imagem na sua relação com o processo interativo que a origina. Apontamos para a possibilidade de um conceito (a ser por nós definido) – a imagem-ecrã.

Breve nota conclusiva e linhas de trabalho futuro

Aqui chegados, apesar de possíveis e esperados desenvolvimentos, motiva-nos responder à seguinte questão: o que é uma imagem-interativa?

O tempo de contemplação da Imagem foi substituído por um espaço no qual a leitura toma lugar em simultâneo com o processo de produção da própria imagem, um momento de interação mediado por dispositivos interativos e lógicos/ computacionais. Uma imagem que é “lida” e produzida praticamente ao mesmo tempo, certamente apresenta novos desafios estéticos, a ter em conta tanto na sua produção (criação) e leitura (interpretação). O fenômeno a que nos queremos referir especificamente é ao de uma imagem resultante de uma relação interdependente de participação, isto é, sem interação e interatividade, não existe imagem. É possível encontrar um denominador comum que localize esta nova imagem (de um ponto de vista estético) no conjunto de imagens que habitam o mundo contemporâneo?

Referências

BOISSIER, Jean-Louis, Jouable: dans Jouable, art, jeu et interactivité. Genève: HES, ENSAD, Ciren & CIC, 2004.

BOURRIAUD, Nicolas, Relational Aesthetics. Paris: Les presses du réel, 2002.

COUCHOT, Edmond e HILLAIRE, Norbert, L’art numérique: Comment la technologie vient au mond de l’art. Paris: Ed. Flammarion, Poche, 2005.

DELEUZE, Gilles, Cinéma I, L’image-mouvement, “Critique”. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983.

DELEUZE, Gilles, Cinéma II, L’image-temps, “Critique”. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.

ECO, Umberto, L’ ouvre ouverte. Paris: Seuil, 1965.

GRAU, Oliver e VEIGL, Thomas, Imagery in the 21st Century. MIT Press, 2011.

PAQUIN, Luis-Claude, Comprendre les médias interactifs, “Somme”. Paris: Ed. Isabelle Quentin, 2006.

POPPER, Frank, Art, Action et Participation: L’ artiste et la créativité aujourd’hui. Paris: Klincksieck, 1985.

RUIZ-GUTIERREZ, Tania, 2004. Étude sur le temps et l’espace dans l’image en mouvement. Tissage vidéo, objects spacio-temporels, images prédictives et cinéma infini. Ph.D. Dissertação, Universidade Paris I.

SARTRE, Jean-Paul, Qu’est-ce que la littérature. Paris: folio essais, 1948.

SÖKE, Dinkla, “From Participation to Interaction – Toward the Origins of Interactive Art”, In: LYNN HERSHMAN, Leeson (org.). Clicking In: Hot Links to a Digital Culture. Seattle: Bay Press, 2004.

VERPLANK, Bill, “How do you…?”, In: MOGGRIDGE, Bill. Designing Interactions. MIT Press, 2007.

WEISSBERG, Jean-Louis, Qu’est-ce que l’interactivité? Éléments pour une réponse I. Paris: L’image-mouvement, 2002.

Referências na Rede

«Change-painting», Roy Ascott. London: Molton Gallery, 1960. Entrevista em: http://nabi.or.kr/english/archive/creator_interview_read.nab?idx=78

«Decode: Digital Design Sensations», Karsten Schmidt, Victoria and Albert Museum, 2009: http://www.vam.ac.uk/microsites/decode//

«Garibaldi Panorama», Brown University Library, 2010: http://dl.lib.brown.edu/garibaldi/panorama.php

POLITY, Yolla, «Eléments pour un débat sur l’interactivité», Université Pierre Mendès, IUT2 de Grenoble, Département Information-Communication. France, 2001:
http://www.iut2.upmf-grenoble.fr/RI3/TPS_interactivite.htm

«Protomembrana», ROCA, Marcel·lí Antúnez, 2006:
http://tiki.marceliantunez.com/tikiwiki/tiki-read_article.php?articleId=161 and: http://vimeo.com/19396246

SAUVAGE, Emmanuelle, «Les fantasmagories de Robertson: entre “spectacle instructif” et mystification, Université de Waterloo, 2004: www.cceae.umontreal.ca/IMG/pdf/CEL_0102.pdf

Outras referências

BARBOZA, Pierre e WEISSBERG, Jean-Louis (dir.), L’image actée. Scénarisations numériques, parcours du séminaire L’action sur l’image. Paris: Ed. L’Harmattan, 2006.

BERGSON, Henri, La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Paris: Ed. PUF, 1938. (15ª Ed., “Quadrige”, PUF, Paris: 2005).

BOISSIER, Jean-Louis, La relation comme forme. L’interactivité en art. Genève: Ed. MAMCO, 2004.

LAUREL, Brenda, Computer as theater. New York: Addison-Wesley Publishing Company, Inc., 1993.

MCLUHAN, Marshall, Pour comprendre les médias : les prolongements technologiques de l’homme. “Points”. Paris: Éditions du Seuil, 1967.

MELOT, Michel, Une brève histoire de l’image. Paris: L’œil 9 Ed., 2007.

MONDZAIN, Marie José, Homo spectator. De la fabrication à la manipulation des images. Ed. Bayard, 2007.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Professor Doutor Carlos Sena Caires (EA-UCP/ CITAR) pelo seu aconselhamento e contributos. Agradeço à Professora Doutora Natalie Woolf (EA-UCP) pelas suas relevantes sugestões.

* João Tiago Silva é Mestre em Artes Digitais e graduado em Som e Imagem pela Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa – Porto e doutorando em Ciência e Tecnologia das Artes – Arte Interativa, acolhido pelo CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes, UCP. É designer gráfico e autor de vários projetos de arte digital, tendo a sua obra apresentada no Get Set Art Festival (Portugal, 2010), entre outras exposições e realizações.

 

SoundWalk: Um Instrumento de Música Digital como caso de Arte Pública – Relatório de Progresso | de Diana da Silva Graça Cardoso

Abstract — O trabalho que apresentamos é um relatório de progresso de SoundWalK e evidencia o desenvolvimento/concepção de um Instrumento controlado por computador, pertencendo ao grupo dos Instrumentos de Música Digitais. [1]
Estes instrumentos, são na sua maioria padronizados pela questão do gesto/interacção humana, servindo-se das novas tecnologias como agente controlador dos processos de interacção.[2]
SoundWalk foi realizado no âmbito do projecto de investigação PRICES II, numa parceria entre a Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa e o Departamento ComputerStudio do Instituto de Musicologia e Música Informática da Universidade de Música de Karlsruhe, demonstrando um especial interesse pelas novas tecnologias.
Este instrumento, centra a sua investigação teórica na procura de novas sonoridades e timbres e tem o propósito de investigar novos conceitos emergentes na criação sonora e nas tecnologias digitais. SoundWalk é um instrumento, mas também um objecto de arte pública, que pode ser acessível não só a músicos, mas a qualquer utilizador possível em situação individual ou de grupo.

Palavras – Chave: DMI (Digital Music Instruments), timbre, arte pública, compositor, Interactor, Performer, Performance, Instalação, Composição interactiva.

 

I. Introdução

Segundo Walter Benjamin [3], a experiência da obra de arte era condicionada para os utilizadores por ser única. Hoje, o utilizador interage activamente na concepção e composição da obra, devido ao poder da interactividade.

Pelo aparecimento da arte tecnológica surgem novas definições de arte, aliadas à técnica e à ciência, ainda que, com as mesmas preocupações éticas e estéticas.

Os novos instrumentos digitais e o computador possibilitam aos músicos contemporâneos a possibilidade de transformar sons de uma forma menos limitadora, elevando as possibilidades de composição/decomposição do som a universos micro temporais e micro espectrais.

Deixámos de estar restringidos aos instrumentos tradicionais e alcançamos a oportunidade de criar novos conceitos de instrumentos e com eles novas características e sonoridades.

Interessam-nos os instrumentos tradicionais e acústicos como parte da história musical, mas é acima de tudo, o paradigma entre os sons gerados de forma acústica e eléctrica pelos novos instrumentos da música digitais, que aqui se tenciona estudar. A história da música electrónica e dos instrumentos que nela foram surgindo, tem associado a si, sempre a ânsia da procura de novas sonoridades. Vivemos num tempo de permanentes novidades tecnológicas.

Na última década, devido ao crescimento dos utilizadores de tecnologias digitais, têm surgido novos conceitos como: música interactiva, sistemas musicais interactivos, improvisação musical por computador, ou música por computador. [4]

Os sistemas de música interactiva baseados em computador tiveram origem nos finais dos anos 60, primeiramente envolvendo sintetizadores analógicos controlados por computador em situações de concerto ou em instalações artísticas. A composição algorítmica em tempo real, só se divulgou dez anos depois, na década de 70 com o trabalho de compositores e intérpretes, tais como: David Behrman, Joel Chadabe, Martirano Salvatore, Gordon Mumma ou Laurie Spiegel. Mumma, (1975); Bernardini, (1986). [5]

Todavia, a sua expansão só aconteceu realmente em meados dos anos 80 com o aparecimento do protocolo MIDI, e pouco depois, com a chegada de linguagens de programação gráfica, como é exemplo o Max/Msp. Puckette, (1988); [5] Foi esta década de 1980, que preparou terreno para o avanço da concepção e implementação dos actuais sistemas interactivos personalizados, extremamente simples. [5]

Quando abordamos esta questão da simplicidade, devemos assumir nela, a reflexão de que esta existe não só para os criadores artísticos, mas principalmente para os utilizadores dos seus objectos interactivos.

Uma década e meia depois, a música por computador e de improvisação, com o uso destas máquinas, ainda parece ser uma área multidisciplinar em crescimento e com necessidade de exploração. A construção dos novos instrumentos de música digitais, o design de novos interfaces, a síntese de som em tempo real, bem como de técnicas de processamento, a teoria da música, a ciência cognitiva, as práticas de composição, e os modelos existentes de improvisação (baseados e não baseados em computador) podem
efectivamente conduzir a novos modelos de interfaces musicais. [5]

Todos estes conceitos continuam a ser motivo para estudos actuais, e constituem fortes pilares para definir novos modelos de instrumentos de música digitais, quer sejam feitos para público especializado como artistas/músicos ou para o público comum, que não tem propriamente formação musical.

A quantidade de trabalhos de investigação que ocorrem nesta área comprova que estamos perante uma matéria que se encontra em perfeita emergência e que precisa de desenvolvimentos na sua investigação. [4]

As pesquisas, no domínio dos instrumentos de música digitais, têm associadas nomes como Martin Kaltenbrunner, Sergi Jordá ou Atau Tanaka ou Tod Machover. O propósito principal destes artistas/cientistas é explorar as novas possibilidades que o gesto humano introduz na continuidade e aumento da percepção.

Os primeiros instrumentos musicais, nascem de um conceito tradicionalista e conservador, pois surgiam com intenções ordeiras e protectoras em relação à musica clássica ou popular. Um instrumento novo ou um instrumento de música digital, só adquire o estatuto de ser instrumento completo, quando ganha contextualização histórica e técnica [6].

A definição de instrumento não se alterou como a de música, somente com o aparecimento dos instrumentos electrónicos e do computador, é que a sua significação tem sido questionada e readaptada às novas situações [7].

Este artigo assimila a investigação traduzida nestas ideias introdutórias e faz uma reflexão critica ao mesmo tempo que apresenta os procedimentos da concepção, construção e programação de SoundWalk.

Este texto apresenta-se dividido em cinco secções, distintas. Inicia-se por uma breve definição do tema em que apresentamos as tecnologias, características e limitações do instrumento, abordando todo o processo de construção e de implementação do mesmo. De seguida discutimos SoundWalk como um caso de arte pública, apresentamos dois casos de estudo referentes a duas apresentações públicas, havendo ainda lugar para mostrar registos fotográficos da sua estruturação e apresentação pública.

Por fim, elaboramos uma conclusão de todos os aspectos pertinentes da investigação e manifestamos intenções para trabalho futuro.

 

II. TECNOLOGIAS, características e APLICAÇÕES

SoundWalk é um instrumento de música digital e existe como elemento e instrumento físico, porém a sua concepção provém de um trabalho anterior que se debruça extensamente em reflexões teóricas. Este ensaio ajudou ao desenvolvimento do processo experimental deste projecto.

A realização física do instrumento, consiste num tapete com 8 áreas diferentes de interacção. Os utilizadores interagem com o tapete através do movimento, isto é, dão passos pelas áreas deste, estas correspondem ao número de sensores de pressão incrustados na parte inferior da estrutura. Estes sensores, captam o movimento dos visitantes como data para uma estrutura Hardware intermédia (2 placas Arduíno) [9] e depois para o Max/Msp [8] com o objectivo de controlar displays de bancos de som em tempo real.

O resultado final da peça, consistirá na reprodução dos sons por meio de altifalantes colocados à altura das pessoas.

Durante a concepção e implementação de SoundWalk, colocámos várias questões sobre não só o que é um instrumento de música digital mas também o que é a música.

O computador e a informática, são neste projecto a ferramenta essencial da génese deste instrumento. Interessam como matéria, bem como vertente científica que se encarrega do tratamento mecânico e racional da informação, encarada como base dos conhecimentos e das comunicações.

A estrutura do instrumento – SoundWalk dividir-se em duas partes principais:

1. Software – com base na linguagem de programação Max/Msp; [8]

2. Hardware – tendo com base os seguintes interfaces: sensores de força e pressão e placa Arduíno; [9]

2.1. Tecnologias

Para a criação deste projecto, trabalhámos ao nível do hardware, com base na programação em 2 placas Arduino [9] e com 8 sensores de força e pressão. O software escolhido foi o Max/Msp. [8]

2.2. Aplicações

SoundWalk, pode ter várias aplicações no que diz respeito ao modo como pode ser apresentado. São de destacar as suas funções em contexto de situação de concerto/performance e instalação interactiva, neste último caso com o propósito de ser arte pública.

Como instalação estamos perante a possibilidade de criar distintos temas e com isso diferentes instrumentos, devido à capacidade de poder ser programado com diferentes grupos de sons. No ponto III, esta questão terá um desenvolvimento mais aprofundado.

2.3. Construção

Para a construção deste instrumento SoundWalk (Fig. 1) foi necessário escolher um tapete que se adequasse ao projecto, não só pela sua textura, mas também pelo design – o utilizador deveria ser de modo instantâneo estimulado pela sua imagem gráfica, percebendo instintivamente onde estavam os sensores. O tapete que foi escolhido é da colecção da IKEA, e uma medida Standard, logo é fácil encontrá-lo em qualquer parte do mundo, facilitando o transporte da peça.

Depois de escolhidos os oito sensores e as duas placas Arduino [9], foi necessário construir adaptadores para garantir ligações seguras dos sensores colados no tapete até às placas Arduino [9]. Para isso foi preciso dividir a ordem das ligações efectuadas entre a placa Arduino [9] e o tapete, soldando cabos com adaptadores específicos que pudessem ser conectados facilmente uns aos outros.

Criámos caminhos para os cabos de cada sensor, para que o cabo maior que parte dos sensores até à placa pudesse estar estável no tapete, que definiram o tamanho dos próprios cabos. Colocámos os sensores no tapete com fita especial para tecido e uma protecção (Fig. 1).

Fig.1 Passos efectuados para a construção do instrumento
Fig.1 Passos efectuados para a construção do instrumento

Fizemos o upload da biblioteca firmata [10] do programa da Arduino [9] para as placas, tendo de seguida conectado os sensores às Arduino [9], verificando se estavam a funcionar. Uma vez que sim, foi iniciado o processo de programação no Max/Msp [8]. Este trabalho, principiou do patcher maxuino (versão 007), através do qual obtivemos a conexão das placas Arduino [9] ao Max/Msp [8] de uma forma simples e de onde começámos a retirar os valores dos sensores, efectuando testes com estes (Fig.2).

Durante o decurso do trabalho notámos que, ao ligar o transformador às placas além da conexão USB, os sensores se comportam de uma forma mais estável.

Posteriormente, foi necessário analisar os valores recebidos dos sensores presentes no patcher maxuino e passá-los para os nossos patchers de programação de bancos de som. Este processo foi conseguido através dos objectos send e receive do Max/Msp. [8]

Fig.2 Testes com sensores
Fig.2 Testes com sensores

2.4. Programação

Para a programação do interface de SoundWalk, resolvemos dividir o tapete em três áreas distintas, organizando os grupos de sensores:

– Grupo 1- pertencem os sensores número 1, 2 e 3.

– Grupo 2- pertencem os sensores número 4 e 5.

– Grupo 3- pertencem os sensores número 6, 7 e 8.

O primeiro grupo de sensores tem associado a si um único ficheiro de som que é activado quando o utilizador pressiona o sensor 1. Todavia, a programação do sensor 2, é uma alteração do ficheiro accionado do sensor 1, ou seja, o aumento da velocidade do ficheiro. A programação do sensor 3, é um reverse do mesmo ficheiro de som.

O plano construído para a programação dos sensores foi pensada para um utilizador de cada vez. Unicamente com os fade ins e fade outs de cada ficheiro, é possível ouvirmos dois sons diferentes em simultâneo, mas durante um curto espaço de tempo.

Os sensores do grupo 2 têm um ficheiro de som associado referente ao som concreto dos passos humanos. Quando o utilizador pisa o sensor 4, activa este ficheiro. Por sua vez, o sensor 5, trabalha com o mesmo ficheiro de som, porém modificado com um efeito (delay).

O terceiro grupo de sensores, funciona dentro desta mesma linha de pensamento. O sensor 6, activa um ficheiro de som, ulteriormente os sensores 7 e 8, têm equalizações diferentes do mesmo som, respectivamente LPF (Low Pass Filter ) e HPF (High Pass Filter).

2.5. Metodologia

A metodologia adoptada neste trabalho, dividiu-se entre duas fases principais, uma de pré-produção e outra de produção.

Na primeira fase foram formuladas questões sobre a contextualização artística e tecnológica do projecto, que se pretenderam ir respondendo ao longo da fase empírica deste. As conclusões alcançadas abrangem a investigação a nível histórico, teórico, prático e da técnica, associados à área de estudo.

As conclusões foram obtidas com base na análise de pensamentos de autores e reflexão crítica individual, bem como da observação que foi possível aferir das duas apresentações públicas da obra.

 

III. arte pública em soundwalk

SoundWalk pretende ser um instrumento de música que qualquer pessoa possa tocar, o público alvo não é definido.

Ao pensar na criação e plataformas empregadas, foi necessário termos em conta o progresso da obra de arte, não só como objecto artístico, mas igualmente como objecto passível de levar a uma experiência, e por isso de ser fruído.

No final dos anos 50, Umberto Eco, anuncia pela primeira vez novos propósitos sobre a concepção da obra de arte, expondo o seu conceito de obra aberta. Obra aberta, surge no contexto do progresso da sensibilidade contemporânea. O desenvolvimento social e artístico, levou a que, com o tempo, o desejo de alcançar um género de obra de arte, cada vez mais ciente de poder ter várias possibilidades de leitura, sem ser visto como falta de conhecimento, fosse um estímulo para uma interpretação mais livre guiada somente para pelas seus características essenciais. [11]

As próprias características do instrumento, mas também o tempo, o espaço e os performers têm o propósito de influenciar o resultado final e o próprio som da peça. Dependendo da forma como as pessoas utilizam o instrumento criam-se diferentes e únicas composições sonoras. Podemos questionar se há diferenças nestas composições quando o instrumento é utilizado por uma só pessoa ou um grupo. Foram pensadas regras de interacção no sentido de Soundwalk ser usado mais ao nível individual. Preocupa-nos que cada pessoa seja consciente dos seus movimentos e acções, sendo responsável pelas consequências sonoras da obra. É esta a experiência que SoundWalk deseja oferecer ao público. Cada vez mais, a sociedade precisa destes encontros, que mesmo acontecendo num contexto social, se transformam em experiências interiores celestiais, compensadoras e educativas.

O trabalho final foi concebido com o intuito das pessoas acederem a esta ideia de forma inteligível. O trabalho pretende que o visitante seja fruidor e criador do som da obra. Ele será o performer e o interactor, ao ser apelado à sua percepção e audição. Há uma ideia de descontracção incutida, mas ao mesmo tempo de comprometimento relativamente à utilização do objecto.

Explorar o som no espaço é um propósito, bem como proporcionar interactividade e participação na peça aos indivíduos visitantes/participantes na obra.

Mais próximo do nosso tempo, Tod Machover, um professor de música e tecnologia do MIT, atreveu-se a unir o mundo da música erudita à era digital e assim criou os chamados hiperinstrumentos. [12] Machover, propõe este termo para definir ferramentas, provenientes de pesquisa tecnológica na área artística, e que não pudessem ser interpretadas por humanos, devido aos limites da gestualidade humana. Estes instrumentos, gerados com o recurso do computador, criam controladores específicos de som. Ele divide o instrumento: parte humana e parte do computador. Hiperinstrumentos, são sistemas estimuladores e auxiliadores do processo criativo, pois combinam as funções tradicionais do performer e do compositor juntamente com as capacidade computacionais. Para o autor, eram instrumentos musicais do futuro que, pela expressividade aumentada, e seriam cruciais para definir um novo conceito de música e expressão musical. [13]

Temos assistido a uma era de experimentação e inovação nos instrumentos musicais: do violino savat, aos instrumentos microtonais. Esculturas sonoras, compósitos e plásticos na construção de instrumentos. Todavia, há correntes que têm nascido desta evolução, às quais não podemos ficar indiferentes.

Definir instrumento não é simples, mas há ideias e tentativas para definir este tema, que podem ser discutidas e analisadas de forma a colocar algumas questões pertinentes, que nos ajudem a compreender melhor este sector.

É de considerar, a diversidade existente de instrumentos e a forma diferente como podem ser tocados entre eles, dependendo das características de cada um.

Para todos os que se interessam por música de alguma forma, os instrumentos musicais são objectos poderosos e distintos, pois através deles podemos comunicar.

Esta transmissão, não é apenas ao nível dos do som, das ideias, ou dos sentimentos, mas é também estética e artística. Segundo Eco, as coisas mudam no que diz respeito à criação musical no lado do consumo. [14]

As performances em situações de concerto prevêem alterações na concepção das peças musicais, assim como as instalações interactivas já não vivem sem a colaboração do público, devido às novas necessidades técnicas e artísticas. Nomeadamente no que diz respeito ao desempenho e à possível participação do consumidor nas obras, o público passou a ter novos níveis de responsabilidade em conjunto com o músico/ artista.

Nos dias de hoje, quando pronunciamos instalação, já não nos estamos a referir somente a uma forma de expressão artística. Instalação significa uma experiência de espaço,

composição temporal (som e/ou imagem), e interactividade com uma audiência de fruidores.

Importa que a obra seja percebida pelo seu criador e pelo público que desempenha muitas vezes a função de co-autor.

Projectos como SoundWalk, feitos a pensar nos utilizadores só cumprem a sua função principal quando vão ao encontro das pessoas, envolvendo-as na obra e numa experiência de arte pública.

iv. Casos de Estudo – apresentações públicas

SoundWalk teve duas apresentações públicas. A primeira

na Universidade de Música de Karlsruhe, (Fig. 3), mais propriamente no programa das apresentações finais de licenciatura e mestrado, dos alunos do Instituto de Musicologia e Música Informática. A segunda apresentação, esteve patente na edição 2010 da exposição ton:art, [15] na Galerie Margit Haupt, também em Karlsruhe (Fig. 4).

Não tivemos oportunidade de realizar um estudo sociológico no que diz respeito à interacção dos sujeitos com o instrumento. No entanto, nestas primeiras apresentações públicas da peça, conseguimos, explorar pela observação no terreno, diversos aspectos sob um ponto vista técnico, estético, criativo e social da composição musical.

Os problemas que ainda assim queremos abordar ao longo da continuação e desenvolvimento deste projecto de investigação, centram-se em teorias da interacção e estruturas de comunicação associadas ao estudo dos instrumentos de música digitais, que importam estudar com a mesma relevância que se tem investigado a interacção Homem – computador (máquina).

Fig. 3 HFM, Karlsruhe, 2010
Fig. 3 HFM, Karlsruhe, 2010
Fig. 4 ton:art 2010, Karlsruhe
Fig. 4 ton:art 2010, Karlsruhe

v. conclusão

Com o digital e o acesso às novas tecnologias, tem-se trabalhado no sentido de construir instrumentos “para todos”, onde não há pré-requisitos de formação ou técnica, não deixando de forma alguma, de existir instrumentos para interpretes especializados e deste modo não abertos ao público em geral.

Com o estudo e reflexão destas matérias, há a expectativa de analisar todos os estes aspectos e aproveita-los da melhor forma para melhorar projectos deste âmbito.

O conceito de instrumentos de música digitais, é algo recente. Existe necessidade em levantar questões sobre este tema, pois nada está definido de forma fechada. Muitos autores têm tentado chegar a uma conclusão una e abrangente para todos os trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos nesta área, mas ainda há dificuldades a ultrapassar. No entanto, muito do saber estará na sabedoria de procurar algumas incertezas, para posteriormente nos interrogarmos e encontrar respostas.

Esta foi uma experiência positiva, não só ao nível de toda a investigação efectuada, como da aprendizagem obtida da experiência do trabalho, e de novos conceitos adquiridos.

Podemos ainda concluir, que com o aperfeiçoamento das novas tecnologias (musicais), os Instrumentos de Música Digitais, têm evoluído no sentido de possuírem um aspecto físico simplificado, indo desta forma ao encontro de mais utilizadores e deste modo de se afirmarem também como um caso forte de arte pública.

O trabalho futuro deverá ser nesse caminho, aperfeiçoando os estudos sociológicos ao nível da performance dos instrumentos de música digitais.

O design e a construção dos instrumentos de música digitais, com especial interesse pelas suas características e as variadas relações intrínsecas com os seus utilizadores, compositores e performers, será um assunto que achamos pertinente investigar com detalhe.

 

vI. AGRADECIMENTOS

UCP – EA; CITAR; HFM, Karlsruhe; FCT; Prof. Doutor Paulo Ferreira-Lopes, Prof. Doutor Álvaro Barbosa, Prof. Doutor Thomas Troge e Matthias Schneiderbanger.

 

Referências

[1] Jordà, Sergi. Digital Lutherie Crafting musical computers for new musics’ performance and improvisation, Barcelona, 2005.

[2] Ferreira-Lopes, P., Vitez F. , Dominguez, D. , Wikström, V., New tendencies in the digital music instrument design: Progress Report, Karlsruhe, 2010.

[3] Benjamin, Walter, A Obra de Arte na Era da Sua

Reprodutibilidade Técnica, 1955.

[4] Ferreira-Lopes, Paulo. Música e Interacção – O instrumento de música digital como metáfora. UCP – E.Artes / CITAR. 2009.

[5] Jordà, Sergi Improvising With Computers: A Personal Survey (1989–2001). Journal of New Music Research, 1744-5027, Volume 31, Issue 1, 2002, Pages 1 – 10.

[6] Toeplitz, Kasper T. L’ordinateur comme instrument de concert – aussi une question d’écriture ?. Journées d’Informatique Musicale, 9e édition, Marseille, 29 – 31.

Mai, 2002.

[7] Roads, Curtis. Composing Electronic Music .

Chapters: 0, 6, 7, 9. Oxford University Press.

(Draft of 14 November 2009).

[8] www.cycling74.com

[9] http://www.arduino.cc/

[10] http://www.arduino.cc/en/Reference/Firmata

[11] Eco, Umberto. A Definição da Arte.

Lisboa: Edições 70, 2006.

[12] Machover, Tod. Hyperinstruments – A Progress Report.

MIT Media Laboratory,

Massachusetts Institute of Technology. 1992.

[13] Macedo, André Rangel. Espectros Audível e Visível

Proposta de correspondência, Universidade Católica Portuguesa, CITAR 2009.

[14] Eco, Umberto, Apocalípticos e Integrados, Lisboa: Difel, 1991.

[15] http://www.ton-art-expo.de/2010/soundwalk.php

Diana da Silva Graça Cardoso
CITAR Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes
Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes
Rua Diogo Botelho, nº 1327
4169-055 Porto – Portugal
dcardoso@porto.ucp.pt

La ciudad como interfaz de cambios culturales | de Raúl Niño Bernali

Palabras claves: Estética, Interfaz, Subjetividad, Redes sociales.

Descripción: La noción de ciudad como interfaz desde una dimensión estética, siguiendo a Peter Weibel, se refiere al conjunto de fenómenos culturales observables y signados por la interactividad de las tecnologías de información y comunicación; y también la manera endofísica como se despliegan y transforman las relaciones y procesos inmateriales de acontecimientos que se entrecruzan con el espacio físico y virtual en el que se (des) materializa la ciudad; se trata, pues, de hacer visibles los procesos de producción de intersubjetividad en la habitabilidad de la ciudad, desde realidades ampliadas con los procesos de virtualización tecnológica, el pensar, como proceso cognitivo, y la ciudad en la pluralidad de mundos posibles.

Este análisis estético, desde estrategias heurísticas en el sentido de mirar las tramas simbólicas que se tejen y entrecruzan a partir de relaciones culturales complejas, busca comprender las dimensiones de la cultura como redes que emergen por la producción de subjetividades. En el cruce teórico de la estética y la conjunción con otras ciencias y disciplinas, pues nos movemos en una trama de significados del mundo dinámico y de la vida que emerge en la ciudad.

La ciudad, representa así el espaciotiempo de las interacciones sociales colectivas, la construcción de procesos de intersubjetividad en los cuales se producen y definen relaciones emergentes tan diversas en las formas de ciudadanía donde convergen dinámicas que comprenden la economía, la ecología, el arte, las ciencias, las tecnologías, la historia cultural de las tradiciones, rupturas y discontinuidades políticas y herencias culturales, pero también creativamente mirando la recomposición de lo urbano como esquema cultural de interactividades complejas.

Mi perspectiva teórica consiste en mirar los procesos de emergencia colectiva, los intercambios y las hibridaciones en las formas de habitabilidad urbanas en las ciudades y las formas de conocimiento estético como interfases para comprender el paso hacia las ciberciudades.

Las tramas y redes sociales, trayectos culturales en la producción de subjetividad

Plantear la pregunta a partir de las tramas de la ciudad como red interactiva de cultura, en el contexto actual de un cerebro global, coloca en perspectiva el tema de las ciberciudades, sin embargo la cuestión es indagar sobre las relaciones emergentes en la vida colectiva de la ciudad por la influencia de todas las personas que activan la inteligencia colectiva mediante la utilización de medios, dispositivos de información y comunicación. En sentido, los mundos posibles que están presentes en la ciudad como lugar de interactividad abre una perspectiva de análisis y comprensión estética que puntualiza sobre la dimensión colectiva de los deseos e intercambios de manera diferencial y relacional a la vez que convoca a construir sentidos y ver la ciudad en tramas y tejidos sociales en procesos de emergencia1.

El punto de partida para la subjetividad, es la manera como se ha estudiado la ciudad a partir del cuerpo y quien mejor que Richard Sennett, para mostrar los elementos de significación sobre éste ámbito en los espacios urbanos que cobran forma por la experiencia del cuerpo. Este análisis sobre La Ciudad de la Civilización Occidental proporciona nuevas claves de interpretación para el pensamiento estético y se infiere que la subjetividad emerge como experiencia cultural en redes de pensamiento desde espacios inteligentes los cuales confieren sentido a la noción de ciberciudad. La sociedad entendida como trama de significados, complejiza a las ciudades ya que en ésta se juntan tecnologías, ciencias, formas de vida altamente complejas de interculturalidad e hibridaciones de patrones y lenguajes mundo.

Esto es equiparable a decir que la manera de habitar subjetivamente la ciudad contemporánea es a partir de cómo pensamos y transformamos el mundo, cómo nos comunicamos y nos interconectamos culturalmente entre diversos sentidos y realidades y por tanto como se modela el cuerpo y la mente expandida.

Dice R. Sennett: A lo largo del texto Carne y Piedra he argumentado que los espacios urbanos cobran forma en buena medida a partir de la manera en que las personas experimentan su cuerpo. Para que las personas que viven en una ciudad multicultural se interesen por los demás, creo que tenemos que cambiar la forma en que percibimos nuestros cuerpos. No experimentaremos la diferencia de los demás, mientras no reconozcamos las insuficiencias corporales que existen en nosotros mismos. La compasión cívica procede de esa conciencia física de nuestras creencias, y no de la mera buena voluntad o rectitud política. Sennett (1997) p, 394

El giro estético de estos fenómenos a partir de la reflexión de Sennett, consiste en explicar que la representación del cuerpo se hace desde otras modalidades en el espacio urbano, y que el cuerpo ahora es una ampliación con dispositivos tecnológicos y electrónicos que hacen posible la experiencia y la interactividad, de ahí que se pueda hablar de la sociedad como un organismo global; la ciudad es el resultado de las personas que la habitan y como lugar múltiple proporciona nuevas opciones de información e interconexión , lo cual supone el curso de una mayor capacidad de pensar en universos de significado que son propios para estar en los circuitos y dinámicas de expansiones globales. Podemos decir desde la idea ontológica en la filosofía de M. Heidegger sobre el habitar, que el lugar de la ciudad se produce por la interacción de los trayectos imaginarios y el construir es la dinámica de flujos entre lo virtual y lo real.

Es común observar y percibir en distintas ciudades del mundo, sobre todo aquellas que le apuestan a los cambios tecnológicos constantes, lugares contemporáneos con espacialidades cambiantes e hibridadas desde el ámbito de la información fusión de códigos y patrones estéticos de otra naturaleza. Las dinámicas culturales urbanas (en centros comerciales, campus universitarios, café Internet o telecentros, plazas para red inalámbrica, aeropuertos, etc.), en las formas de habitabilidad de los individuos, que además de llevar audífonos para escuchar privadamente música, desde cualquier aparato electrónico (celular, Ipod, computador, etc.,) puede estar simultáneamente, consultando la red, chateando y además conversando con grupos (el parche) de amigos. El mundo de los jóvenes es en la ciudad un modelo de consumo y apropiación de tecnologías, pero por otra parte es una especie de fascinación de múltiples universos conectados con lúdica, lenguajes, modas y nuevas maneras de diversión y entretenimiento.

Existe un interesante debate contemporáneo y una amplia reflexión sobre la interpretación de la ciudad tanto en sus ámbitos de transformación urbana a partir de la planificación y el desarrollo que nos arrojan a un terreno práctico de su materialidad, y de sus formas representadas en tiempos y estilos; y a partir de ello se enuncian ciudades inteligentes, informadas, tecnológicas, ecológicas, o se crean nuevas denominaciones como cosmópolis, aerópolis, agrópolis, metápolis, telépolis, entre otras, pero el interés cambia cuando intentamos comprender que más allá de los procesos de modernización, la vida colectiva, los imaginarios y los deseos sociales modelan cotidianamente una experiencia cultural de ser ciudadanos. Esta ciudadanía se ha reconfigurado a ciudadanías globales (Castells, Kaldor), o civilizaciones planetarias (Kakú), y cuya dimensión se conecta en el principio del cosmopolitismo y como resultado de este proceso, es sin duda la interactividad tecnológica la forma cultural en que se halla una nueva evolución cultural, ligada a los cambios de un organismo social planetario.

Esta condición de relaciones intangibles de flujos globales cosmopolitas nos hace pensar en las relaciones estéticas y culturales que experimentamos en la ciudad; son formas de relación en tramas sociales de significados y redes que nos sirven para examinar la imagen de la ciudad, pero sobre todo para entender la diversidad y complejidad de relaciones sociales mediante el cruce de experiencias y prácticas que se producen ahora con la fuerza de los procesos de globalización, la ciencia, las tecnologías de información y comunicación.

La trama social de este organismo global, es el proceso constituido por la multiplicidad de personas que comparten la inteligencia y los despliegues de la información que circula y se consume y a partir de ella, se organizan los circuitos y dinámicas cotidianas entre las que se destacan la producción y transferencia de conocimientos, las lúdicas urbanas, los deportes, las exposiciones en equipamientos, las experiencias con el arte urbano, el cine, las músicas del mundo, en fin, acontecimientos de distinto orden que inciden en la cognición individual de los ciudadanos que viven el mundo contemporáneo desde hibridaciones tecnológicas a partir de la cuales se crean las tramas de información e interrelación.

Hacer un estado del arte de los diferentes enfoques y perspectivas sobre la ciudad y la cultura, resultaría ser una tarea inacabable y también imaginativa de gran valor, pero será un reto para otro momento. Sin embargo, creo oportuno plantear, que la situación cultural de la ciudad, requiere de una manera distinta de hacer sus análisis para interpretar los grados de complejidad social, y para ello he de incorporar el sentido de pluralidad que se le ha otorgado al concepto de la interactividad, condición necesaria para la interfaz de los Territorios existenciales2 en el encuentro de relaciones y formas de pensamiento de múltiples maneras de ser y estar en el mundo.

La ciudad como interfaz es el lugar donde se hace y se reproduce la vida; es ante todo una experiencia social y global significativa. Como lugar de la vida, la ciudad permite que sea leída, comprendida, vivida además como intersubjetividad y umbral de cambios en las maneras de pensar y coexistir, en los cuales habitamos, sentimos y percibimos de manera cambiante múltiples experiencias de pensamiento, conocimiento, tecnologías, arte, política, economía. Todas estas dimensiones están presentes e interactúan simultáneamente en la experiencia social de las personas.

Los rasgos culturales de la interactividad y la producción de nuevas subjetividades, conforman la experiencia del superoganismo global (Rosnay) en tanto que la ciudad es un conjunto de relaciones multiculturales, hoy, experimentadas de manera más compleja por la virtualización tecnológica y el cruce de caminos de los acontecimientos provenientes de la economía, los mercados, la política, el tiempo libre, entre otros.

En la ciudad y los procesos de modernización, mutabilidad y construcción, se puede ver un acopio importante de creatividad, así como también sus problemas neurálgicos de inseguridad, pobreza y exclusión, pero al fin y al cabo en donde se hace la ciudadanía en procesos de encuentro y desencuentro, recuerdos y olvidos, en fin la memoria que se recrea y transforma por las ampliaciones o expansiones con la interactividad tecnológica de los medios, dispositivos y redes del paisaje tecnológico. La memoria de las ciberciudades es la condición y la capacidad de la información, registro y transferencia.

Tendríamos que preguntarnos acerca de la interactividad de las culturas como experiencia ciudadana. La experiencia colectiva de los teleservicios, la desmaterialización de procesos nos lleva como cuerpo cívico en la ciudad a una producción intersubjetiva de sentidos de vida impulsados por los procesos de globalización.

La emergencia tecnológica produce cambios en la habitabilidad social y en las tramas sociales. Es decir, que la complejidad de todos los organismos vivos incluyendo a los humanos, en la ciudad es ante todo un asunto de múltiples diversidades presentes en sus cambios, mutaciones, transformaciones e hibridaciones.

Las tramas sociales, como experiencia estética son además de campos simbólicos, los trayectos que conforman el conjunto de fenómenos como universos de significación social y cultural; es decir, los que construyen los vínculos que se producen de facto en el hecho de la habitabilidad y explican la experiencia estética que emerge en el cruce de sentidos del mundo como interfaz.

Los procesos interactivos de la ciudad, están generando una complejidad conceptual y teórica que incide en los cambios de la experiencia cultural y también como proceso de intersubjetividad; es precisamente en este sentido que se produce una nueva emergencia cultural.

La vida urbana, es ya una emergencia de cambios y contrastes, de contradicciones y mismo de alteridades sociales, de conflictos y tensiones, de riesgos e incertidumbres, que están modelando formas de ser diversas y plurales, o lo que podríamos llamar, las tramas sociales de personas que ya no son esa forma convencional de sociedad civil, sino el resultado de fuerzas provenientes de una densidad de relaciones transnacionales de redes económicas, tecnológicas, intergubernamentales, de comunicación, integrando diversidades culturales en redes de múltiples actividades, prácticas, conocimientos y acontecimientos.

En esta exploración propuesta, resulta pertinente hablar de la emoción como principal construcción de la interactividad cultural para explorar la heterogeneidad social que conforma ese tejido de relaciones creativas en el espacio de habitabilidad que es la ciudad.

La habitabilidad está cruzada por experiencias emocionales y flujos de velocidad, virtualizaciones, información, tecnologías, procesos caosmicos3, los cuales son determinantes en las líneas de ruptura de la subjetividad.

Humberto Maturana (1997), señala cómo lo emocional en la convivencia es determinante en la constitución política del vivir:

Las relaciones humanas se dan siempre desde una base emocional que define el ámbito de convivencia. Por esto la convivencia de personas que pertenecen a dominios sociales y no sociales distintos, requiere de la estipulación de una legalidad que opera definiendo el espacio de la convivencia como un dominio emocional declarativo que especifica los deseos de convivencia y así el espacio de acciones que lo realizan. P, 81

Es importante señalar que la relación entre la convivencia como experiencia política y lo emocional como experiencia cultural se produce por la interactividad tecnológicas de las redes de intercambio de significados; los flujos de información y comunicación, están permitiendo la interactividad cultural en la ciudad, y también los deseos de convivencia y significación en la manera de ser sujetos en forma colectiva.

Ser ciudadanos en la ciudad contemporánea de redes y tecnologías de información es la experiencia estética y política de la emoción; es estar en una intersubjetividad que es transversal a la cultura evolutiva que la misma ciudadana complejiza, en términos de diversidad de valores y normas compartidas para la convivencia y la divergencia. La experiencia estética contemporánea propicia el aprendizaje y la mutación de la cultura como experiencia global de la interactividad con sistemas de información circulantes por distintos medios y dispositivos.

Estamos en procesos de transición construyendo nuevos campos perceptuales porque la experiencia global de la cultura es una nueva experiencia de emoción informatizada, virtualizada, pero por demás política. Esto quiere decir, que la construcción de la subjetividad política es el resultado de la interactividad circulante y autoreferenciada de múltiples maneras por sujetos maquínicos mediante interfaces y dispositivos con los cuales se reconfigura un tipo de trama social amorfa, fragmentada, que a la vez cohesiona, desarticula, emociona, trasgrede, produce conocimientos y experiencias que recorren las tramas sociales de la sociedad.

Lo que resulta de esta situación, es, que los espacios de fuga son portadores de universos de significación plurales, delirantes, o incluso esquizoides en la manera como se presentan en tanto son extrañeza de productos culturales o mismos de experiencias y prácticas sociales de comunidades que se convierten en estrategias de conocimiento y de novedad para el entramado social urbano. Esta es la experiencia de la intersubjetividad que cambia la manera de leer la diversidad cultural en la ciudad. La diversidad cultural no es entonces esa manera autárquica de mantener los saberes, de guardar los conocimientos y las herencias culturales o de musealizar las prácticas culturales en la ciudad que todo el tiempo se está dinamizando por las tramas sociales, especialmente porque la fuerzas productivas se dan gracias a que la condición humana es cambiante, dinámica, adaptativa y transgresora y por tanto desterritorializa sus deseos.

Así las cosas, se complejiza la trama social de las interactividades en esta época de pluralidades y multiplicidades; la experiencia estética que emerge por imaginarios son resultantes distintas a las formas clásicas y compartimentadas de ver el mundo. Los territorios existenciales (Guattarí) donde no hay ningún orden prevaleciente o determinante en la producción de subjetividad, las alteridades reconfiguran las emergencias sociales y culturales y, esa es una trama social en la cual la cultura de la ciudad se despliega o se desterritorializa, ampliándose de sus nociones antropológicas, políticas, económicas sociológicas a esa nueva dimensión de ciberciudad.

La experiencia estética de la ciudad es una forma plural de tramas sociales y divergentes, de vínculos fragmentados y de poderosas expresiones que se desmarcan o que se mezclan para experimentar procesos de comunicación distintos. Las tecnologías de información y comunicación, recrean y modelan la subjetividad en torno a los intercambios por las formas de expresión cruzada o imbricada con la dimensión económica que signa los procesos de consumo de la ciudad.

El problema que se revela aquí, es el de interpretar la ciudad mediante relaciones interactivas; es decir, por la multiplicidad de sujetos interactivos que se entrecruzan y generan vínculos divergentes maquínicos son sujetos políticos, sujetos económicos, sujetos tecnológicos que están presentes en la intimidad, en la emoción, en las redes de virtualización tecnológica desde las cuales se activan vínculos y procesos de información. La habitabilidad de esas maneras diversas y plurales en que miles de personas, géneros, organizaciones, agentes, se representan en la ciudad de manera cruzada, es el primer entramado social que coloca a manera de calidoscopio la interactividad tecnológica y cultural, la cual se denomina organismo social.

En ese calidoscopio de amalgamas, la subjetividad que emerge por la práctica del vivir mismo en medio de relaciones económicas, sociales, tecnológicas, científicas, la ciudad se nos desdibuja de su materialidad, el paisaje, el territorio, se redefinen como el espaciamiento del conjunto de experiencias virtuales hacia nuevos umbrales que se transfieren mediante fuerzas creativas.

A manera de un primer excurso, haciendo una paráfrasis, nos diría Guattarí (1996), tratándose de entender la subjetividad desde las tramas sociales de la ciudad como una experiencia de emoción y sentido en donde la vida se despliega:

[…] No se trata de un objeto ‘dado’ en coordenadas extrínsecas, sino de una conformación de subjetivación que otorga sentido y valor a Territorios existenciales determinados. Esta conformación se debe trabajar para vivir, procesualizarse a partir de las singularidades que la percuten. Todo esto implica la idea de una necesaria práctica creativa o incluso de una pragmática ontológica. Son nuevos modos de ser del ser los que crean los ritmos, las formas, los colores, las intensidades de la danza. Nada cae por su peso. Hay que volver a tomar todo desde cero, en el punto de emergencia caósmica. Potencia del eterno retorno del estado naciente. P, 116.

Las tramas sociales virtuales son el estado naciente de una ecología virtual de relaciones existenciales singulares en la trama de significados que deviene vida. Este devenir puede estar gestando la más importante práctica social que estamos experimentando de manera compartida en muchas partes a la vez, como sucede en el ciberespacio y por ende en la ciberciudades. La simultaneidad que experimentamos como habitantes coparticipes de un cerebro global, sentimos que las nuevas fuerzas tecnológicas e interactivas nos conducen a ser ciudadanos planetarios en el contexto de un organismo global, pues los procesos geopolíticos y la singularidades estéticas emergentes de las músicas del mundo, el cine, el arte los videojuegos, y todos los dispositivos electrónicos y computacionales conforman las interfaces y ampliaciones tecnológicas, las redes del urbanismo y las interconexiones con mundos posibles.

 

Inteligencia colectiva y superorganismo global

Como lo hemos venido esbozando, al tratar de comprender los universos de significado por la experiencia global e interactiva de las tecnologías, es importante entrar en la comprensión de los principios organizativos de las redes, pues si se trata de principios o territorios existenciales como los llama F. Guattarí, la experiencia estética de la vida contemporánea nos conduce a tener tramas sociales que ya no operan por la forma normativizada e instrumental de la información, sino que sobre la base de rupturas multitemporales que se producen por la interactividad cultural urbana por los procesos de interconexión y simultaneidad en el contexto del planeta. Internet y su multiplicación ha logrado que el superorganismo global se entienda como el proceso creciente de interconexiones y este proceso está en el contexto de las ciberciudades, a través de las cuales se desmaterializan acciones y servicios especialmente en el intercambio de información, formado así el funcionamiento inteligente de los espacios, como lo describe W. Mitchell, mediante el uso de pantallas, cámaras, ordenadores, micrófonos, transistores y un sinnúmero de dispositivos electrónicos.

Esta trama de redes sociales, o mejor el trayecto plural de la cibercultura (P. Lévy) es el de la configuración global que emerge con los procesos de globalización. En la ciudad, sería la resultante de nuevas asociaciones a las redes de información a los flujos y dinámicas económicas, a la construcción de subjetividades en el orden de lo colectivo. En esta perspectiva el despliegue de la información y el conjunto de imaginarios asociados a los procesos de la vida urbana respecto a patrones globales de representación, trata de complejos sociales habitables como barrios, complejos industriales, complejos culturales, complejos tecnológicos y complejas redes en el ciberespacio cuya topología es la interfaz del mundo que nos conecta con el superoganismo social y la inteligencia de un cerebro global que autoorganiza los flujos de información.

Los dispositivos virtuales del cerebro global a través de las redes tecnológicas son los fenómenos de convergencia de los sistemas de información y las tecnologías. La presencia y uso de estos dispositivos y los canales que las redes integran, permiten que las expresiones colectivas de las personas sean parte de una colectividad que se reorganiza constantemente en la ciudad compleja.

M. Castells4, explica cómo las dinámicas y movimientos sociales desde la segunda mitad de los años ochenta en el siglo pasado, fueron constituyendo un giro cultural sobre la base de las autoridades locales o los intereses de la vida local cotidiana. Dinámicas que focalizaban a grupos sociales que querían simplemente conectarse a la red global como una experiencia exploratoria, o las movilizaciones virtuales y la conformación de redes hasta pasar a las grandes manifestaciones a través de la red para hacer oposición política, para lo cual se pueden explorar las rutas de resistencia virtual que vienen sucediendo detrás de las cumbres del capitalismo, iniciadas en el año de 1997.5

La interactividad como proceso de interfaz acerca los problemas de impacto mundial que se traducen en lo local tales como: la contaminación del medio ambiente, episodios de extinción, conflictos sociales y políticos cambios en las estructuras culturales como la relación con la familia, la identidad, el sentido de la vecindad, los símbolos e imaginarios locales, conforman el primer elemento constitutivo y de desplazamiento que le confiere lugar a la noción de ciudadanía. Un primer paso en la reorganización del sentido y de la subjetividad ligada a los condicionamientos de la cotidianidad, a las características en las cuales se desarrolla parte de la esencia de los derechos sociales, y por ende a las pulsiones vitales de lo microsocial.

El superoganismo global se reorganiza alrededor de derechos que van emergiendo con las redes, con las formas de producción inmaterial y por los insumos de los intereses que el sistema mundo representa a través de los medios, cuya forma de producción se convierte en el sentido y centro de transformación de la subjetividad. La sociedad global multiplica los nodos de interacción en la misma dinámica y acontecimientos de carácter global.

El espaciotiempo de la globalización determina los lineamientos de un nuevo paradigma del ser y el sentir colectivo, que se instala en la creación del mundo posible, en la dimensión del entorno creativo, de la reinvención del entorno en el cual se cruza la interactividad cultural, la dinamización de las rupturas sociales.

 

Universos de significación e interactividades urbanas

En este sentido, la recomposición de la subjetividad se orienta sobre las prácticas culturales como dimensión estética en la experiencia social a escala urbana, a fin de tejer y rescatar a las ciudades como el espacio de la vida colectiva que se recrea por la interacción social, cultural, económica y política, en donde tienen lugar las transformaciones de la diversidad cultural y los procesos estéticos reconfigurados constantemente en imaginarios y símbolos que inciden en las maneras de abordar las formas de vida urbana contemporáneas

La complejidad y comprensión de los problemas de la ciudad, es en el sentido estético, la oportunidad para entender la ciudad en los procesos de interactividad incorporados tecnológicamente como una manera de entender la expansión de la naturaleza humana en la realización de cambios posibles en el conjunto de la vida que es interactiva. En esta dimensión se hallan la recomposición de la subjetividad, respecto a la acción humana en nuevas conexiones de cooperación, cuya base es la innovación tecnocientífica, la capacidad tecnológica humana, y la apuesta por la gratificación de la vida. Estaríamos mirando las cualidades con las que se harían nuevos acoplamientos estructurales, nuevas configuraciones en los procesos de producción de subjetividad en el contexto de lugares complejos como son las ciberciudades.

Los puntos centrales de esta discusión versan sobre la significación de la vida en la ciudad y el paso de recomposición tecnológica a ciberciudades, y sobre los procesos de la política para una defensa de la evolución cultural, está última considerada como la dimensión más significativa de la política que estaría contribuyendo en la comprensión de los universos de significación ligados a revoluciones en curso tales como la información, biomoleculares, y atómicas, entre otras. Estos universos son parte prioritaria de los procesos complejos de la ciudad como lugar creativo en donde la vida humana se despliega colectivamente en medio de incertidumbres e irracionalidades.

La construcción de Territorios existenciales desde una visión optimista de la vida como totalidad (el entrecruzamiento de los sistemas de vida del cosmos) y de la cual se puede repotenciar el interés colectivo a través de la conexión de procesos simbióticos, permite plantear dos bifurcaciones de análisis en las siguientes direcciones. La primera con respecto a la política como acción y su incidencia a gran escala. La acción colectiva de la sociedad civil global en defensa de la vida como totalidad del cosmos, es decir el paso a ser ciudadanos planetarios. La segunda, respecto a lo político como la alternativa de la acción o de las acciones para la vida en torno al trabajo colectivo, a las formas de cooperación y a una dignificación de la condición humana en el conjunto de los organismos vivos, mediante la recomposición de la ciudadanía en formas de subjetividad con objetivos creadores y emancipadores. Es decir el paso heurístico en los procesos de producción de la intersubjetividad y en el acoplamiento de interfaces para hacer posible la transferencia de conocimiento y creatividad.

Surge entonces, otro aspecto que coloca el interés cultural y político en la perspectiva de analizar la ciudad como el espacio inteligente del habitar desde el pensar, como estrategia de cohesión social o de respuesta creativa a las crisis que afronta la ciudad contemporánea, debido a que los procesos transversales del poder, la economía, los conflictos sociales, el crecimiento y diversificación demográfica, la aparición constante de nuevos problemas sociales, pandemias, opacan los campos de creación que se manifiestan en las esferas de las artes y los campos de creación, pero sobre todo inciden negativamente en la ampliación de la diversidad cultural como experiencia colectiva para la solución de los problemas en curso.

Se estaría entonces propiciando un nuevo elemento de diálogo y convergencia en el que la vida urbana cada vez más construye demandas significativas que se encuentran en mayor medida en el complejo cultural de la diversión, el entretenimiento, el tiempo libre, el ocio, las cualidades de formación y cómo los ámbitos de la información y la ciencia, están modelando estos procesos dinámicamente, también como forma de mercado.

La salida a esta encrucijada necesariamente debe basarse en una ética de la cooperación y no violencia, como lo señala Capra, cuando habla del nuevo paradigma de la red.

 

La ciberciudad y las redes en procesos heterogenéticos

La intersubjetividad y sus ampliaciones en la trama de significados se amplía en su definición hacia las redes y conexiones que se tejen de manera transversal. Redes en donde converge la vida humana en conjunto con las otras formas de vida del planeta, con las culturas biodiversas, sobrepasando la noción de lo eminentemente local y lo micro social y, éstas a su vez, cómo base de interrelaciones con lo universal, con las transformaciones a gran escala.

Los universos de significación que adquiere la ciberciudad contemporánea en torno a las redes, debe permitirnos pensar qué sentimos cuando estamos en diversas conexiones, cuando ampliamos las relaciones afectivas o de vínculos emocionales, o de los espacios de confianza y seguridad para la convivencia están virtualmente conectados.

La recomposición de la subjetividad política como acción a gran escala, tomará sentido cuando la dimensión de pensar su significación creciente esté en conjunción con los demás sistemas vivos. En el contexto de territorios existenciales que propone F. Guattarí, la política como el umbral más alto a la que podemos aspirar inteligentemente es la coexistencia con todas las generaciones humanas en formas sociales diversas y por tanto la diversidad cultural en una dimensión cualitativa, que permitiría o estaría en la base de los procesos de una civilidad e inteligencia colectiva.

Las redes sociales son relaciones de comunicación y significado que se definen como la compleja interacción de múltiples espacios y tiempos que se cruzan y se determinan, se entrecruzan y se modifican unas a otras tejiendo la experiencia vital de las trama de significado que caracterizan a la sociedad del conocimiento.

Desde la visión de la cultura como complejidad6, las redes sociales las definimos como los procesos de comunicación y simbolización que corresponde al espacio de las instituciones y organizaciones (simbólicas) que se ocupan de integrar los ámbitos de investigación, producción, difusión, de experiencias y prácticas culturales.

Resulta adecuado detenernos a pensar sobre el espacio intersticial de las redes sociales, por cuanto se refiere al tipo de organización social que promueve el desarrollo de la sociedad del conocimiento, y que además se vuelve visible en el paisaje urbano, haciendo una transformación de la singularidad local y poniendo de relieve la época contemporánea que modela a las nuevas generaciones.

Veamos un asunto crucial ¿cómo se puede estar modelando la ciberciudad tecnológicamente desde el significado de las redes de ciudadanía e incorpora la forma de la sociedad del conocimiento? La pregunta es uno de los campos heurísticos más complejos que nos surgen en esta aproximación, porque las redes sociales desde la aproximación de la cultura de los grupos sociales, nos permite hacer una prefiguración a tiempos normales de modernidades atemporales, es decir procesos abarcables de manera abstracta, pero ahora con este espacio intersticial de emergencia en la era digital que atraviesa cualquier espaciotiempo y lo urbano, nos produce esa ruptura o discontinuidad con una forma de ciudadanía normalizada o centrista definida por el fundamento del estado-nación. Esta es una inferencia heurística respecto a la dimensión social de la ciudadanía en el sentido de las redes sociales. Una estrategia conceptual determinante para los significados contemporáneos de la vida social y cultural urbana.

Se puede considerar entonces, que la cibercultura en redes sociales es la forma específica del vivir y parte del cuerpo de conocimientos que construye y determina su significación en el tiempo. En tal sentido, el espaciotiempo es el que el siglo XXI, coloca como experiencia cultural inmaterial: la integración de redes de información y la evolución cultural en un escenario de hibridación, que no sabemos que valores culturales transforma o permite conservar para los territorios, pero lo que si sabemos es que los procesos de intersubjetividad y de diversidad cultural son cambiantes de manera vertiginosa.

La cultura contemporánea, como lo plantea R. Sennett7, se caracteriza por la superficialidad que propone un poder a través de la cultura. La condición que ha descrito Sennett, nos invita a pensar en la dimensión estética de la ciudad contemporánea, la que inspira una producción de subjetividad ampliada con los dispositivos electrónicos la cual hace pensar en los cambios del «yo-como-proceso» en patrones culturales para recrear el espacio urbano con vínculos claves para la vida y la sostenibilidad del planeta, cuando su curso de deterioro parece irreversible. Volviendo a Sennett, se necesita de un «pensamiento artesanal». «En lugar del encierro, la cultura aconseja renuncia, esto es, cortar lazos a fin de ser libres, en particular los lazos que se han formado con el tiempo». P, 167. El punto acá es el de la adaptación con las nuevas tecnologías en el proceso emergente de las ciberciudades.

Si las comunidades humanas asumimos nuevos universos de valoración para construir la Sostenibilidad como patrón cultural y de cambio en los modelos de vida contemporáneos, es posible entrar en la dimensión sostenible del planeta mediante el uso de la inteligencia colectiva, sin homogeneizar la diversidad cultural que es esencial para lograr la construcción de los horizontes comunes y de trabajo colectivo, a partir de las acciones que puedan servir de puente entre lo público y lo privado restituyendo el sentido de hacer gratificante la vida incluso como apuesta a la transformación en las formas de habitabilidad.

La diversidad cultural que emerge desde la sociedad de la información, la sociedad del conocimiento, las comunas culturales movilizadas por flujos de experiencia tecnológica, intentan localizarse o desplazarse por intersticios de fuga en las ciberciudades.

 

Nuevos trayectos

La ciudad como interfaz, es una conjunción significativa de códigos y patrones culturales ampliados en las interacciones de la vida, la cual se comprende como diversidad cultural a partir de procesos de autoorganización en tramas sociales ampliadas en las redes electrónicas, configurando así una dimensión de ciberciudades. Los universos de significación al igual que los territorios de existencia, son la dimensión estética de una nueva producción de subjetividad, la cual está pensada como clave para encontrar nuevos significados en un mundo diferente de suma cero8. Se trata entonces de comprender en que está la condición humana respecto al sistema que se constituye como un superorganismo global, es decir, en el cambio de cognición que estamos asumiendo en el planeta, desde la relación de vida que tenemos en el mundo urbano y en nuestro espacio singular de la ciudad.

A la ciberciudad hay que hallarle el fundamento de la vida, entendiendo los nuevos fenómenos de los cambios contemporáneos, que se han acrecentado en perspectivas de escala global. Corresponde a la sociedad del conocimiento, es decir a las ciudadanías planetarias o globales, liderar a través del avance tecnológico y científico de redes, incluso desde el pensamiento artesanal, incidir en los principios de la cooperación y no violencia, en la necesidad de construir una nueva perspectiva de sostenibilidad sobre la totalidad de la vida. Modificar los principios de la política lineal en las matrices sociales diversas, y establecer los vínculos de una política no lineal, es decir de relaciones de complejidad e interconectar lo público con lo privado mediante los cambios culturales de la época significativamente tecnológica del siglo XXI.

La ciberciudad como epicentro de la vida debe inspirar los principios de corresponsabilidad en la producción de intersubjetividades. Es necesario imaginarla en el sentido de una sociedad de conocimiento creativo, con premisas fundamentales sobre los principios de la vida a escala cósmica, partiendo del reconocimiento del problema de las diversidades biológicas y culturales cuando se comparten cualitativamente los fundamentos de la vida ampliada en un mundo de bioinformación por las conexiones e interactividades activas de los ciudadanos que comparten espacios inteligentes.

Habitar estéticamente la ciberciudad es fundar políticamente nuevas interconexiones que nos permitan la coexistencia no fragmentaria, sino integral para la comprensión de las acciones, suponiendo que son mejores que en otras épocas, sino para descubrir los quiebres y rupturas de los elementos inestables que gobiernan las relaciones de la cibercultura.

 

Bibliografía

BAUMAN, Z. (2002). En busca de la política. México, Fondo de Cultura Económica.

BAUMAN, Z. (2002). La Sociedad Sitiada. México, Fondo de Cultura Económica.

CRICK, B. (2001). En defensa de la política. España, Kriterios TusQuest.

CAPRA, F. (2003) Las conexiones ocultas. Implicaciones sociales, medioambientales, económicas y biológicas de una nueva visión del mundo. Barcelona, Anagrama.

CAPRA, F. (1999), La trama de la vida. Una nueva perspectiva de los sistemas vivos. Barcelona, Anagrama.

DE ROSNAY, Joël. (1995) El hombre simbiótico. Miradas sobre el tercer milenio. Madrid, Cátedra.

GUATTARÍ, F. (1976) Psicoanálisis y transversalidad. Crítica psicoanalítica de las instituciones. Siglo XXI Argentina Editores, Buenos Aires

GUATTARÍ, F. (2000). Las tres ecologías. Valencia, Pre-Textos.

GUATTARI, F. (1992). Caosmosis. Argentina, Manantial.

GELL-MANN, M. (1998). El Quark y el jaguar. Transiciones hacia un mundo más sostenible. Barcelona, Metatemas, libros para pensar la ciencia.

KURZWEIL, Ray. (1999). La era de las máquinas espirituales. Barcelona: Planeta.

GONZÁLEZ, P. (2004). Las nuevas ciencias y las humanidades: De la academia a la política. Autores, textos y temas, 37. Barcelona: Anthropos.

LÉVY, Pierre. (2007) Cibercultura. La cultura de la sociedad digital. España, Anthropos.

Maldonado, C. (2000) Sociedad Civil. Racionalidad colectiva y acción colectiva. Serie Filosofía y Política. Universidad Libre. Bogotá.

MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. (1994) De máquinas y seres vivos. Autopoiesis: la organización de lo vivo. Argentina: Editorial Lumen.

Maturana, H. (1998). Emociones y lenguaje en educación y política. Bogotá, Tercer Mundo.

MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. (1994) El árbol del conocimiento. España: Anthropos

NIÑO, Raúl (2008). Cognición y subjetividades políticas. Perspectivas estéticas para la ciudadanía global. Bogotá, Editorial Pontificia Universidad Javeriana.

Sennett, R. (1997). Carne y Piedra. Barcelona, Alianza.

Sennett, R. (2006). La cultura del nuevo Capitalismo. Barcelona, Anagrama.

Rheingold H. (2004). Multitudes Inteligentes. La próxima revolución social. Barcelona, Gedisa.

SCHULTZ, Margarita. (2007) El factor humano en la cibercultura. Buenos Aires, Alfagrama Ediciones

SCHNITMAN, Dora Fried. (1998). Nuevos paradigmas, cultura y subjetividad. Barcelona, Paidós

SUDJIC, Deyan. (2007) La arquitectura del poder. Cómo los ricos y poderosos dan forma al mundo. Barcelona, Ariel

UNESCO. (2004) Informe sobre desarrollo humano 2004. La libertad cultural en el mundo diverso de hoy. PNUD. Barcelona Ediciones Mundi-Prensa.

Vergara, Alfonso. (2004). Territorios inteligentes. Madrid Fundación Metrópoli

Weibel, Peter. (2005) El mundo como interfaz. En:

 

Paginas electrónicas consultadas

http://www.nuso.org/upload/articulos/2680_1.pdf
http://www.mcc.gouv.qc.ca/diversite-culturelle/esp/pdf/publicationes2003-2004/ESP-PUSH.pdf
http://www.barcelona2004.org/esp/banco_del_conocimiento/documentos/ficha.cfm?idDoc=1658
http://www.w3.org/
http://www.goertzel.org/benzine/
http://www.goertzel.org/benzine/PrincipiaCybernetica.htm
http://www.kurzweilcyberart.com/aaro/hi_essays.html

 

NOTAS DE REFERENCIAS

 

1 Esta perspectiva se encuentra ampliamente desarrollada, desde varios autores (Prigogine, Varela, Maturana, Capra, Gell-Mann), pero particularmente en el desarrollo del artículo sobre el concepto de emergencia es el que hace la articulación con el problema de la vida. Respecto de lo anterior, la siguiente definición nos permite avanzar: “para extender la comprensión de la naturaleza de la vida a la dimensión social humana, que es la pareja principal de esta obra, tendremos que manejar el pensamiento conceptual, los valores, el significado y el propósito, fenómenos que pertenecen al ámbito de la consciencia y la cultura humanas. Ello significa que debemos ampliar nuestra comprensión de la mente y la consciencia. A medida que desplacemos nuestra atención a la dimensión cognitiva de la vida, comprobaremos que nace una nueva visión unificada de la vida, la mente y la consciencia, en la que la consciencia humana está inextricablemente ligada al mundo social de las relaciones interpersonales y de la cultura. Y, lo que es más, descubriremos que esa visión unificada nos permite comprender la dimensión espiritual de la vida de un modo plenamente coherente con los conceptos tradicionales de espiritualidad”. Capra (2002), 59. También se puede ampliar esta noción: “Esta emergencia espontánea de orden en puntos críticos de inestabilidad constituye uno de los conceptos más importantes para la nueva comprensión de la vida. Esta característica, que se conoce técnicamente con el nombre de autoorganización aunque a menudo se la designe, simplemente, como “emergencia”, ha sido reconocida como el origen dinámico del desarrollo, del aprendizaje y de la evolución. En otras palabras, la creatividad –la capacidad para generar nuevas formas- constituye una propiedad clave de todo sistema vivo. Y puesto que la emergencia constituye una parte integrante de la dinámica de los sistemas abiertos, podemos llegar a la importante conclusión de que éstos se desarrollan y evolucionan: la vida avanza constantemente hacia la novedad” Capra (2002) pp., 38-39

2 Félix Guattarí, (1996). Caósmosis. […] Yo tiendo la mano hacia el futuro. según que, a mi entender, todo esté jugado de antemano o que haya que reemprenderlo todo, que el mundo pueda ser reconstruido a partir de otros Universos de valor, que otros Territorios existenciales deban ser construidos con ese fin, mi actitud estará teñida de una seguridad mecánica o de una incertidumbre creadora. las grandes pruebas por las que atraviesa el planeta, como la asfixia de su atmósfera, implican un cambio de producción de modo de vida.” p, 163

3 Félix Guattarí. (1992) Caósmosis. Argentina, Manantial

4 Los procesos de cambio social conflictivo en la era de la Información giran en torno a los esfuerzos por transformar las categorías de nuestra existencia a base de construir redes interactivas como formas de organización y movilización. Estas redes, que surgen de la resistencia de sociedades locales, se proponen vencer el poder de las redes globales para así reconstruir el mundo desde abajo. Castells, en: La Galaxia Internet. P.165

5 Junio del 97, Marcha Europea a Amsterdam por otra Europa. Web de la llamada “coalición Holandesa por una Europa diferente en: <http://www.snore.org/archief/1997/different-europe/>

6 Esta noción de cultura como complejidad ha sido ampliada a partir de F. Capra, respecto a la comprensión sistémica de la vida y al ámbito social dentro del marco conceptual de cuatro perspectivas a saber: a) forma; b) materia; c) proceso; d) significado. Ver: Capra (2002) Las conexiones ocultas, p, p, 113-121

7 En: La Cultura del Nuevo Capitalismo. 2006, Barcelona, Anagrama.

8[…] El juego de suma cero es aquel en que un ganador se lo lleva todo. por cada ganador tiene que haber un perdedor. […] en algunos juegos de suma no cero, todos los jugadores se benefician si cooperan. el incremento del número de personas que participan en juegos más complejos de suma no cero produce efectos emergentes como ciudades vibrantes, cuerpos de conocimiento, ,obras maestras arquitectónicas, mercados y sistemas sanitarios públicos”. Wright señala que la evolución cultural ha impulsado la superación de diversos umbrales en la sociedad durante los últimos 20.000 años: ahora nos encaminamos hacia un nuevo umbral »En: Rheingold H. (2004). Multitudes Inteligentes. La próxima revolución social. Barcelona, Gedisa., p, 238

 

Raúl Niño Bernal, es Profesor e investigador del grupo de investigación Estética y Nuevas Tecnología, en el Departamento de Estética en la Facultad de Arquitectura y Diseño de la Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá. PhD (c), Magíster en Estudios Políticos Gerente en Gestión Cultural y Restaurador de Bienes Muebles. Autor de las siguientes publicaciones: Ciberbiología y procesos tecnológicos de la cultura. (2010) En: Estética Vida Artificial y Biopolítica. (2010) (coeditor). Bogotá, Pontificia Universidad javeriana. ISBN: 978-958-716-366-7. Repolitizar la biodiversidad (2009). En: Poéticas del Devenir. Bogotá, Editorial Pontificia Universidad Javeriana. Cognición y Subjetividades Políticas: Perspectivas estéticas para las ciudadanías globales (2008) ISBN: 978-958-716-033-8, Indicadores Estéticos de Cultura Urbana (2006) ISBN: 978-958-683-864-1. Ensayo: Giro Cultural de la Estética Contemporánea (2003) ISBN: 978-958-683-570-1, en libro colectivo, coautor de “Nuestros Museos de Bogotá”, publicación universal en www.encolombia.com/museos/.

Dias Feitos de Vidro | de Vanderlei Veget C. Lopes Junior

Resumo

O presente artigo discute aproximações entre arte e tecnologia, tomando-os separadamente de início, e apontando para algumas articulações poéticas entre os dois campos. Busca tais articulações face a utilização de recursos equivalentes, voltados a despertar a atenção do espectador ou usuário. Em vista da caracterização desses recursos, aborda a ideia de sublimação, ocultação ou transparência dos aparatos de suporte, como uma tendência ou predileção ao aspecto sígnico em detrimento do objetual ou do hardware. Nesse sentido, faz referência a algumas recentes produções artísticas e a vídeo promocional, que indicam a pertinência das proposições apontadas.

Palavras-chave: luminância, ocultação, estratégia, poética, signo

 

1. Material, meio e interface

Há uma tendência bastante recorrente de nos colocarmos em estado de pura inocência e encantamento frente a novos aparatos surgidos dentro de um processo tecnológico que vivenciamos, o qual se apresenta, a cada dia, com fôlego e força renovados. Esse novos produtos tecnológicos, mesmo quando apenas remodelados, ou reapresentadas as suas funcionalidades, fazem obliterar outros, agora associados ao passado e à obsolescência. Kerckhove (1997), que possui uma visão bastante peculiar e pertinente acerca do tema, considera que há um “processo mais profundo a decorrer” (Op. cit., p. 141):

Como se cada tecnologia importante, antes de atingir níveis de saturação nas culturas, tenha tido de passar por dois estádios básicos: primeiro estar em clara evidência; segundo ser interiorizada até ao ponto de se tornar invisível (Idem, ibidem).

O autor descreve como exemplo o fato dos fios elétricos, postes e cabos telefônicos terem ficado muito em evidência nas cidades quando do advento e propagação da energia elétrica, estruturas as quais se fazia questão de ostentar, como um verdadeiro sinal de que o progresso tecnológico já havia chegado à localidade em questão. Passado algum tempo, verificava-se a necessidade de se criar dutos subterrâneos para a instalação desses cabos, de forma a ocultá-los.

Estendendo algumas das importantes constatações de McLuhan 1, Kerckhove (Op. cit.), chegaria ao tema da necessidade de ocultação ou da sublimação do material. Nesse ponto, interessa-nos relacionar esta constatação a alguns desdobramentos verificados no âmbito da artemídia, com artistas valendo-se de estratégias de ocultação do aparato, colocando o conteúdo em evidencia, encantando-nos a partir dessas estratégias.

 

2. Catedrais de luzes em todos os lugares

Chamamos a atenção para a necessidade pela luz artificial, o que marcaria toda uma época, tendo sido caracterizada como uma sociedade do “gosto pelas luzes brutais que nenhum abajur consegue abrandar” (Virilio, 2002, p. 25). Nesse sentido, quanto maior fosse a intensidade da luz, maior era o indicativo de prosperidade econômica das pessoas, como analisado por Virilio (Op. cit.), o que fazia da luz artificial um verdadeiro espetáculo:

[…] as ruas à noite ficam tomadas por uma multidão que contempla as obras dos iluminadores e dos especialistas em fogos de artifício, habitualmente chamados de impressionistas (Idem, ibidem).

Partindo também das conclusões de McLuhan (2002), destaca-se a luz como meio, que contém tudo o que está iluminado e, logo, tudo o que é possibilitado por ela e pela eletricidade, seja “uma intervenção cirúrgica no cérebro ou para uma partida noturna de beisebol” (Idem, op. cit., p.22). Para o autor eram importantes:

[…] as conseqüências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões na medida em que ampliam ou aceleram os processos já existentes […] Pois a mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas (Idem, ibidem).

Então, tomando a luz elétrica como exemplo, nota-se toda sua influência sobre a cadência na execução de tarefas, a ponto de criar cidades sonâmbulas e síndromes, como a do despertar incompleto, mencionada por Virilio (2002). Um novo patamar para a produção e consumo de bens é promovido, para, então, chegarmos à época do advento dos aparelhos cintilantes, alimentados por eletricidade, como a TV e o computador, estes que, ironicamente, nos levam a olhar diretamente para “caixas de luz”, e representam tão bem esse período de deslumbramento e consumo.

Por esse caminho, Virilio destaca o termo fantasmagoria 2, que vai buscar em discurso de Albert Speer, arquiteto do Reich, palavra relacionada à criação de “muros luminosos”, usados na divulgação de evento do partido nazista alemão. Conhecido por suas habilidades propagandísticas, o regime nazista de Hitler soube se sustentar em simulações eficientes, que faziam seus militantes “obedecerem a uma lei que eles mesmos não conheciam, mas que poderiam recitar dormindo” (Goebbels apud. Virilio, op. cit., p. 28).

Imagem : a aclamada Catedral de Luzes, de Albert Speer (1937). Disponível em www.sitemaker.umich.edu/artunderfacism.

 

A forma de iluminação criada por Speer serviu para deslumbrar sua plateia e, principalmente, serviu como demonstração de quanto as pessoas se deixavam encantar pelos fachos de luz a iluminar os céus durante a noite. Conduzida, em um segundo momento, para as “caixas iluminadas de imagens”, chegamos a um período das telas gigantescas de TV, dos formidáveis monitores computacionais, que agora consegue agregar em suas finas estruturas, os processadores e, ademais, todo o hardware do sistema. Época, também, dos palms ou pads, e suas telas sensíveis ao toque, que dispensam periféricos como mouse e teclados alfanuméricos. Cabe-nos destacar que, por um período importante, os computadores dispensavam totalmente os monitores, ou estes eram considerados apenas como “opcionais”. 3

Como apontado por McLuhan (2005) temos que o meio é que configura e controla a proporção e a forma das ações humanas, então, luzes elétricas, excesso de luminosidade, transparência – fenômenos que colocaram a visão em outro patamar – passam a fazer parte da vida das cidades e a ditarem o seu ritmo. Dessa forma, poéticas e cânones da condução do olhar nas artes, passam a se modificar, se misturar e encadear-se às novas possibilidades elétricas de causar envolvimento, encantamento, articulando-se à publicidade, ao design de bens de consumo, verificados outros desdobramentos e quebra de paradigmas 4:

A lanterna mágica, os panoramas, dioramas, a fantasmagoria, o cinema, os monitores de computador e as mídias de imagens técnicas aparecem todos nessa perspectiva como agregados de máquinas, formas de organização e materiais em mudança contínua que permanecem, apesar de todas as padronizações, raramente estáveis; estamos constantemente fascinados pela possibilidade de aumentar a ilusão (Grau, op. cit., p. 257)

Imagens 2 e 3: o computador Altair, de 1975, cuja versão original não incluía monitor, e o atual iMac MC508BZ. Disponíveis em www.altairboerner.net (imagem 2) e www.apple-imacprogrammersheaver.com (imagem 3).

Com as formas de aumentar o envolvimento e criar ilusão sustentando-se sobre táticas de ocultação do aparato, passam a ser exitosas as construções que conseguem efetivamente colocar em evidência os aspectos sígnicos, ou dizendo de outra forma, ao “material enquanto signo”, verificado o desinteresse pelo “material de suporte do signo”. Nessa perspectiva, assenta-se o processo de diluição sistemática do contexto, o que favorece à independência que a imagem-luz, enquanto elemento sígnico, precisa para encantar.

 

Um dia feito de vidro

Tanto no campo das artes, como na produção da indústria tecnológica e na publicidade, percebe-se as reverberações desse processo, que tem como uma de suas qualidades a capacidade de se converter em uma poética, que parte exatamente do pressuposto da superação dos limites impostos por quadros, telas e outros suportes. Falamos em poética, pois, a superação desses limites é dada mais por uma simulação que por uma superação propriamente dita, por construções orientadas a prender a atenção, criar ilusões, desencadear encantamentos. Podemos ver essa orientação nos recentes trabalhos de Sommerer e Mignonneau (Lifewriter, 2006), e de Chris Sugrue (Delicate Bondaries, 2007), que são exemplos verdadeiramente formidáveis nesse sentido.

Em Lifewriter e em Delicate Boundaries, busca-se causar a impressão que as imagens projetadas possuem certa autonomia, ao simularem comportamento correlato ao de seres vivos, como a movimentação característica de pequenos insetos, sempre prontos a interagirem com o fruidor. Ao mesmo tempo, nota-se a ocultação do aparato responsável pela projeção dessas imagens, e a sublimação ou abrandamento dos limites do quadro de projeção, deixando as imagens livres para transitarem pelo corpo do fruidor, ou por folhas de papel, que tornam-se superfície de projeção. Com relação a esse tema, em vista da obra de Sugrue, Rocha (2010) pontua:

Elementos antes tidos como virtuais, presos nas telas dos computadores, parecem agora deixar este espaço de confinamento, avançando o mundo natural, causando a percepção de serem seres vivos de fato. Embora não haja envolvimento tátil, o recurso visual se basta, causando uma sensação sinestésica, via memória visual, de completude da experiência, de deleite estético (Rocha, op. cit., p.5).

Imagem 4: Lifewriter (2006), de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau. Disponível em www.sommc-lab.com.uk.

 

Imagem 5: Delicate Boundaries (2007), de Chris Sugrue.

Entender o que nos faz saltar aos olhos as imagens dessas duas obras e o caminho rumo à transparência e ocultação de aparatos exige-nos, ainda, que percebamos aí um processo, também relacionado à materialidade, já visto na história da arte e caracterizado pela “procura por novos materiais e, por fim, pelo imaterial” (Poissant, 2009). Tal afirmação, embora não nos permita concluir acerca de uma possível superação do material, nos revela, por outro lado, a importância do momento de escolha deste, indicando-nos a preocupação com a estruturação de estratégias voltadas a agregar mais atratividade à obra e, com isso, despertar mais a atenção. Conforme Poissant (Idem), “não existe material inocente”, e, no mesmo caminho:

[…] a ênfase foi se deslocando progressivamente do processo para a experimentação de dispositivos que convidavam o espectador a se conectar num outro nível e, por fim, interagir com a obra de arte e seu ambiente. O interesse pelo processo abriu caminho para uma série de considerações e tentativas de técnicas. Como Isabelle Rieusset-Lemarier salientou: “A técnica é um espelho interativo” (Idem, p. 73).

Encontraremos, facilmente, articulações entre formas de estruturação encantadoras da arte, como as propostas por Sugrue e Sommerer-Mignonneau, e prospecções de novos formatos para produtos industriais, como podemos ver no vídeo promocional A Day Made of Glass (2010), produzido pela Corning Incorporated, empresa especializada na produção de vidros e cerâmicas especiais.

O vídeo expressa uma visão de um ambiente urbano futurista, mas que poderíamos classificar como um futuro próximo (talvez seja esta a intenção), tratando-se de uma ficção bastante imaginativa, com nítida preocupação com a verossimilhança. O ambiente, proposto pela Corning, assemelha-se a uma cidade de vidro, tamanha a presença desse material. Mas, muito além de sua elegante transparência, nessa ideia de futuro, o vidro consegue agregar em si interfaces que possibilitam aos humanos o controle de várias funções que precisam desempenhar no cotidiano, desde a verificação de e-mails, passando pelo preparo de alimentos à consulta aos itinerários do transporte coletivo da cidade.

Imagem 6: um dos cenários propostos pelo vídeo A Day Made of Glass, no caso, uma parada de ônibus em vidro transparente, com informações dinâmicas de localização, grades de horários, clima, dando ao usuário possibilidade de consulta a mapas de ruas e avenidas, por meio de interface gráfica e tecnologia touchscreen. Disponível em www.daysavevid.com.

As transparentes interfaces gráficas estão prontas para surgir em qualquer superfície lisa, como a de geladeiras, mesas de jantar, pára-brisas de carros, paradas de ônibus e vitrines de lojas, tendo como o vidro, os espelhos e as cerâmicas o seu substrato de referência. A estratégia explorada pelo vídeo para valorização do elemento sígnico em detrimento de seu suporte, consistiu em fazê-los translúcidos e flexíveis e, ao mesmo tempo, espalhá-los em vários tipos de superfícies.

A eficiência na escolha do material, que pudesse dar esse sentido de ocultação e do aparato, retorna, então, como eficiência poética, sabendo que “os materiais não são inocentes”. Tomando o vidro como exemplo, além de verificarmos o importante lugar que já ocupa na arquitetura de centros urbanos, sua própria materialidade nos familiariza com a tela de monitor computacional. Às imagens estão, aparentemente, liberadas dos limites impostos pelo material, podendo agora fluir entre superfícies, estas que ainda nos dão a possibilidade de interação pelo toque 5.

Imagens 7 e 8: as próprias divisórias de vidro de um toillet podem servir como suporte às interfaces gráficas, permitindo a leitura e resposta a e-mails e acesso às informações de telejornais. Disponíveis em www.dayecowiser.com.


Imagem 9: em mais um exemplo extraído do vídeo da Corning, somos novamente direcionados à uma ideia de computação ubíqua, como defendida por Mark Weiser, ou seja, que no futuro os computadores seriam invisíveis e as interfaces calmas e transparentes (Domingues, 2010). Disponível em www.daymilhousedevelopment.com.

Concluímos que, o desenvolvimento no campo das tecnologias tem favorecido um processo de evidenciação sígnica e, ao mesmo tempo, de ocultação ou sublimação de suportes destes signos, cujos reflexos podem ser vistos tanto no campo do design, quanto da arte ou mesmo da arquitetura. Muitas vezes estabelecidos por meio de estratégias bem definidas, voltadas ao envolvimento perceptivo e orientados para causar encantamento, esses recursos remontam a outros períodos, cujos exemplos tornam-se importantes para a própria compreensão dessas mesmas estratégias, como vimos no trabalho de Speer, que buscava, da mesma forma, levar o olhar das pessoas para vaguearem rumo à luminância de uma catedral ofuscante, deixando para trás as paredes de concreto e os pesados holofotes que nelas se sustentavam.

 

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução Jaime Bruna. In: A poética clássica (Aristóteles, Horácio, Longino). São Paulo: Cultrix, 2005.

GRAU, Oliver. Lembrem a fantasmagoria: política da ilusão do século XVIII e sua vida após a morte multimídia. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Unesp, 2009.

________. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora Unesp: Editora Senac São Paulo, 2007.

KERCKHOVE, Derrick de. A pele da cultura (uma investigação sobre a nova realidade electrônica) Lisboa: Relógio D’Água, 1997.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix Ltda., 2005.

POISSANT, Louise. A passagem do material para a interface. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Unesp, 2009.

ROCHA, Cleomar. Interfaces computacionais e experiência sensível. [no prelo – texto a ser submetido para publicação]. “2010.

VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

 

Vanderlei Veget Cassiano Lopes Junior é Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás, com graduação em Direito e em Comunicação Social, ambas pela mesma universidade. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Faculdade de Artes Visuais da UFG, integrante de grupo de pesquisa em poéticas visuais e processos de criação e pesquisador do Laboratório de Investigação em Mídias Eletrônicas LIME – UFG, coordenado pelo Prof. Dr. Cleomar de Sousa Rocha.

vanderveget@hotmail.com
FAV – UFG

 

1 “O meio é que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas” (McLuhan, 2005). Por isso o meio é a mensagem. A consideração de McLuhan é de fundamental importância, pois, deriva que, se não notamos a energia elétrica – luz elétrica – como um meio de comunicação, é porque tendemos a considerar como meio somente o conteúdo da luz elétrica – TV ou computador, por exemplo. Daí que pode concluir que meio = conteúdo, ou meio = mensagem.

2 Utilizado com muita propriedade por Speer, o termo “fantasmagoria” remete-nos também às lanternas mágicas e aos efeitos gerados em seus espectadores, objeto de discussão proposto por artigo recente de Oliver Grau intitulado Lembrem a Fatasmagoria! Política da Ilusão do Século XVIII e sua vida após a morte multimídia. Mas, se na época das lanternas mágicas, ilustrações estáticas projetadas em salas escuras acompanhadas por narrações de temas mórbidos, causavam espanto e cativavam a plateia, no decorrer do século XX essas estruturas foram repaginadas, modificadas mas mantido o seu objetivo: prender a atenção pela redução do distanciamento crítico com o que é representado e pelo envolvimento emocional, como nos aponta o autor.

3 Notemos que os primeiros computadores, como o ENIAC, não possuíam monitores para visualização de dados processados pelo sistema, assim como aconteceu com os primeiros microcomputadores, surgidos na década de 1970. Nessa época, monitores passaram a ser comercializados como periféricos, como foi o caso do primeiro Apple. Recentemente, há quase quarenta anos do lançamento de seu primeiro microcomputador, a mesma empresa, festejada pela qualidade do design e usabilidade de suas máquinas e sistemas, disponibiliza para a venda os seus famosos iPads, e microcomputadores que se apresentam como um fino monitor de cristal liquido. Mesmo com espessura muito reduzida, ocultam toda a parte do hardware computacional, dando-nos a real impressão de estarmos utilizando apenas um “smart monitor”

Vanderlei Veget C. Lopes Junior
vanderveget@hotmail.com
FAV – UFG

Arte(s) Multifária(s): proposta temática de uma curadoria | de Rosza W. Vel Zoladz

A afirmação contundente de Ernest Fischer “A arte é necessária” poderia parecer datada e hoje não teria, diriam alguns, o mesmo vigor que teve quando o seu autor publicou o livro A Necessidade da Arte. A expressão, que é datada de 1973, mostra-se, no entanto, atualíssima, tendo em vista as formas afirmativas que a arte suscita entre nós, por meio de projetos econômicos, sociais, culturais, profissionalização desafiadora, enfim, por todas as formas com que ela, a arte, hoje se apresenta. É preciso acrescentar à afirmação uma outra resposta mais atualizada, bem menos enigmática que a que foi dada por Fischer ao que se indagava. Ou seja, “ao menos se soubesse para que?”

Curiosamente é um poeta como Ferreira Gullar que, numa linguagem simples, nos diz que a arte continua indispensável. Mas faz uma advertência: “porque a vida não basta”. Eu acrescentaria que é assim, diante de tudo, que a arte se impõe e se coloca ante toda a complexidade que a vida comporta. De fato, ao dizer que a arte funda realidades, Marcel Mauss, em sua genialidade, quer nos ajudar a entender que não é mais possível considerar a arte no singular, mas sim, no plural nas suas manifestações multifárias que se dão juntas, separadas, isoladas, misturadas ou cada uma em todas as expressões. Elas buscam dizer o que o homem que as cria, pensa, sente e elabora. Daí a afirmativa de Pierre Francastel de que arte engloba formas de conhecimento, portanto formas criativas do mundo em que os homens vivem e, nelas se inventam. Dá consequentemente para alcançar o que Beuyus diz que todos os homens são criativos – artistas – porque para todos eles os desafios da existência provocam o desejo incontido de entender o que vivem, experimentam, amam e sofrem, no dizer de Jean Duvignaud. O poeta tem então razão de dizer que a arte é mais que a própria vida. É o que os colaboradores do atual número da Revista Z Cultural nos apontam, cada um a seu modo, no seu jeito. Eles nos mostram em que o lixo extraordinário de Vik Muniz e seus catadores de Gramacho (RJ) querem fazer valer o seu status de arte, no sangue das veias que tingem tecnologias avassaladoras de arte digital, impregnando suas artes multifárias.

É o que a coordenadora do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Profa. Dra. Heloisa Buarque de Hollanda, tem como anelo ao me confiar a honrosa curadoria. A Revista Z Cultural é a revista virtual desse Programa.