Toda arte é também outra arte

Toda arte contém, em sua composição, partículas de outra arte – seja resíduo, seja manancial. Quando não, ela, uma certa arte, é conjunção de outras, líquidos de coração miscível, água com água formando rios singulares. Rios que têm suas próprias águas molhadas com as da chuva (vindas de outros céus) e das grotas fluviais (vindas de subterrâneas nascentes). Pois a vocação de toda arte é a sua impureza, o seu escoamento pluridimensional. Toda arte contamina com sua mina oculta, um dia relevada até suas profundezas, outras tantas artes. Sua matriz é o remix. De si mesma ela tem somente a alma, o corpo nem sempre é só seu. A arte compartilha os trilhos com quem não é unicamente ela, mas nela também se palmilha. A arte é, sozinha, múltiplas alternativas. Autêntica ela tem apenas o seu ser, porque o seu existir é parte de outras teias. Ela é originalmente combinatória. Daí porque, igualmente, encantatória. Um canto é canto pela convergência de linhas, de vozes, de silêncios.

E eis que aqui, nesta edição da revista Z Cultural, a arte mostra mesmo o que é ela, além de ser outra, em artigos de importantes pesquisadores, nos quais a poesia se imbrica com as artes plásticas, a literatura com a filosofia, o cinema com a narrativa urbana e interativa, a prosa com a publicidade, a pintura com a poesia. Há também o que não é artigo, mas ficção, depoimento ou a escrita de uma fala. Porque o texto também é o que ultrapassa os gêneros, flui entre fala e escrita, entre academia e vivência, entre ensaio e ficção.

O leitor é também o fazedor de sentidos, o consumidor produz e ganha o status de prossumidor – e o resultado dessa geleia geral lembra a matéria da qual toda arte é feita: mesclas. Por mais rudes que sejam os seus ingredientes, o que sobra é delicadeza. Mistura fina.

Boa leitura!

Os organizadores desta edição
Beatriz Resende, João Anzanelo Carrascoza e Ieda Magri

Criações espaciais em imagens performáticas | Aline Couri*

É possível pensar em obras de arte como criações espaciais a partir de basicamente dois sentidos principais. O mais imediato é aquele no qual o espaço criado ou proposto é experimentado no momento da presença do corpo de quem experimenta a obra. Outro, que pode ou não incluir este primeiro sentido, propõe criações espaciais em esferas mais amplas, que buscam modificar ou ativar alguns aspectos do ambiente coletivo de vida. Aqui observamos mais acentuadamente o parentesco com movimentos que contestavam a autonomia do campo da prática artística e sua independência quanto a outros aspectos da vida social, política e econômica.  Esses movimentos, ou grupos, eram contrários à separação entre arte e cotidiano; as formas pelas quais contestavam essa separação são múltiplas e um estudo sobre essas práticas e formalizações fogem ao escopo do presente texto. Entretanto, é importante apontar alguns desses movimentos: Arts & Crafts, Art Nouveau, Neoimpressionismo, Cubismo, Futurismo, Dada, Surrealismo, Construtivismo, Fluxus, Pop Art, Internacional Situacionista, Punk, Neoísmo, Arte Conceitual.

Dentro de um recorte centrado nas criações que envolvem interfaces interativas, essas criações espaciais vão desde um espaço imediato ao corpo do visitante-performador da imagem à proposição de outras formas de ação e criação no espaço existente.

Cabe, ainda, enfatizar que não entendemos por “arte interativa” apenas aquela realizada com recursos tecnológicos. Basta pensar em toda pesquisa e obras realizadas pelos artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark, dentre outros.

*

O presente texto faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem por objeto certas obras de arte interativa que podem ser compreendidas como construções espaciais. Nela identificamos alguns recursos de criação de interfaces processuais que são utilizados na realização dessas obras. Tais recursos constituem, de modo geral, dois grande grupos nos quais alguns elementos podem apresentar características híbridas. Num extremo, encontramos obras formadas por loops de imagens fixadas (nos quais a repetição e exibição de algo já registrado constitui o espaço) (Couri, 2006) e do outro, um certo tipo de imagem processual que poderíamos chamar de “cinema sem filme”, por não possuírem um registro prévio a ser projetado.

Nos espaços criados por loops de imagens fixadas, geralmente a imagem projetada é simplificada de tal modo que sua projeção é superada (em importância em relação à obra) pela atenção solicitada ao ato de projetar. Mesmo que envolva a projeção de uma imagem já concluída, esta configura um espaço tridimensional, no qual a imagem projetada deixa de ser o foco principal de atenção. Podemos citar, como exemplos, Line Describing a Cone (1973, 16mm) e Long Film for Four Projectors (1974, 16mm) de Anthony Mccall, que criam um espaço tridimensional, aberto às interações e movimentos dos corpos dos participantes.[1]

Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031
Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031

Consideramos o cinema numa perspectiva expandida.[2] Os artistas que atuam nesta área questionam a forma hegemônica do cinema e seus dispositivos, seu modo de projetar. Agregam referências da performance e do happening, envolvendo os corpos dos observadores.[3] Questionam o espaço perspectivo e enquadrado, o formato narrativo, os elementos do cinema tradicional, a passividade dos espectadores. Essa perspectiva está relacionada ao processo de desocultamento do dispositivo do cinema e à produção de uma imagem processual, aberta, que envolve o espectador (Parente, 2008). Machado também considera o conceito de “cinema” de modo expandido. Para o autor:

muitas das experiências anteriores ou posteriores a isso que chamamos de cinema podem ser muito mais cinematográficas (no sentido etimológico do termo) do que a prática regular da arte que leva este nome. Ou seja, pode haver uma representação mais eloquente do movimento, da duração, do trabalho modelador do tempo e do sincronismo audiovisual nas formas pré e pós-cinematográficas do que nos exemplos “oficiais” da performance cinematográfica” (Machado, 2002, p. 9).

Tais autores fazem parte de um grupo de pesquisadores que tem se dedicado às formas não hegemônicas, desviantes, de cinema. Dentre eles, podemos destacar: G. Youngblood, J. C. Royoux, R. Bellour, D. Païni, P. Dubois, A. M. Duguet, J. P. Fargier, S. Lischi, P. Weibel, J. La Ferla, L. Canongia, K. Maciel, L. Flores e outros. Os estudos desenvolvidos nesta área apontam tanto os diferentes processos dessa transposição (segundo Dubois: cinema exposto, cinema decomposto/recomposto, cinema reconstituído, cinema materializado) quanto as diferenças existentes no sistema de valor, economia, visualização, temporalidade e plasticidade nessas transposições.[4]

Vale lembrar que mesmo que venhamos a tratar de muitas obras que utilizam o vídeo, ainda é válido nos referirmos a elas como sendo um certo tipo de cinema, seja “cinema expandido” ou “cinema sem filme”. Machado, assim como Dubois, vê necessidade de

afirmar o cinema como uma espécie de referência fundante para todo o audiovisual, sem a consideração da qual o discurso sobre as imagens e os sons contemporâneos afrouxa e perde a densidade que levou tanto tempo para sedimentar (Machado in Dubois, 2004, p. 12).

Além disso, “o imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa maneira de falar ou de ser” (Dubois, 2004, p. 25).

Feitas essas ressalvas, nos resta definir nosso objeto, que, além de constituírem criações espaciais, não apresentam

imagem prévia (pré-gravada), nenhuma fita magnética com uma “obra” registrada, nenhum videocassete para “rodá-la”: há nelas apenas um circuito fechado, em que o espectador, ao deixar-se incorporar ao dispositivo, vê sua própria imagem desdobrar-se no espaço perceptivo (Machado in Dubois, 2004, p. 13).

Lembramos que as obras-objetos de nossa pesquisa podem apresentar também outros recursos tecnológicos além dos circuitos fechados (que basicamente envolvem câmeras e projetores): sensores, patchs, softwares, códigos digitais etc.

Este artigo trata, portanto, de uma vertente específica do que podemos entender como cinema expandido: certos desdobramentos do cinema nas artes plásticas nos quais a imagem visualizada e experimentada é processual. Uma imagem-processo que exibe seu próprio modo de constituição, incluindo os espectadores e seus corpos em sua produção. O fenômeno da projeção passa a ser desocultado; é quebrada a tradicional separação entre espectador e performance; são construídos espaços que aceitam e incentivam diversos pontos de vistas e o próprio movimento. As imagens processuais nos permitem avançar no estudo da performalidade da imagem, da participação do espectador na obra e do caráter de obra aberta e inacabada que se opõe ao objeto de arte como algo definido e concluído.

As videoinstalações que envolvem imagens processuais agem na contramão de uma arte unidirecional, que encontra no objeto sua culminância. Ao contrário, são identificadas com a efemeridade e a descontinuidade, remetem ao questionamento do ato de contemplar e do conceito de autoria. Exploram a experiência vivida, a ideia do trabalho in progress, as ações em tempo real, provocando e fomentando a fusão entre arte e vida, já proclamada pelos situacionistas.[5] Anne-Marie Duguet (2002), como Dubois, já notou a efemeridade do vídeo, que se configuraria mais como ação, acontecimento, gesto ou processo de comunicação, ou seja, como obra de relacionamento momentâneo, sem traços materiais. A obra é o próprio processo de experiência da obra.

Quando existe transmissão de imagens simultaneamente à sua captação, o trabalho de arte se confunde com seu processo de elaboração. A obra se torna aberta ao acaso, à participação, à imprevisibilidade. Se a fotografia e o cinema se relacionam com a representação do tempo passado, o vídeo tem a “capacidade de registrar, transmitir e reproduzir quase instantaneamente uma imagem em movimento” (Couchot, 1993, p. 37). Foi com o vídeo que tomamos contato com imagens em tempo real, situação acentuada pela transmissão via satélite e, mais tarde, pela transmissão via internet. É com o vídeo que viemos a conhecer a “telepresenca”.[6]

Hoje, muitos trabalhos de arte são produzidos e apresentados como processos. O vídeo apresenta-se como uma importante ferramenta nos processos “em tempo real”, relacionando-se à efemeridade, aos meios digitais interativos e às tecnologias de comunicação. Como mostra Mello (2007, p. 141), o vídeo

é não apenas uma tecnologia representacional – mas também uma linguagem que associa estratégias de simultaneidade do tempo presente – constituindo um modo de investigá-lo em seus mecanismos de expansão, tanto em seu caráter processual e em suas potencialidades temporais quanto em sua característica de estar entre os diversos dispositivos e ambientes. […] Um meio instável, impermanente, transitório, que introduz a ideia de fluxo midiático no universo da arte e é capaz de dialogar com a ampla gama de procedimentos criativos relacionados à cultura digital.

Imagem processual e imagem performática

Entendemos como imagem processual aquela que não é definida ou finalizada previamente à sua visualização: é o produto de um processo que pode envolver variáveis distintas. Já tratamos desse tipo de imagem em um estudo anterior (Couri, 2006). As imagens fractais e as imagens em circuito fechado (hoje atualizadas em versões digitais) são alguns exemplos.

A produção de imagens processuais concentra-se em sua configuração, que depende de sujeitos participantes do processo. Esse tipo de imagem coloca em questão as relações entre espectador, artista e obra. Sem participantes, não existe imagem. A imagem está desprovida de seu caráter de registro.[7]

Muito mais que arte como produção de objetos, lidamos com a arte como produção e proposição de experiência. A obra se dá no modo como faz o público compartilhar e viver a experiência oferecida. O processo de criação da imagem (e da obra) é tornado visível e aberto.

Ao ressaltar a experiência, esse tipo de imagem também coloca ênfase no movimento, no tato, no corpo, questionando a supremacia da visualidade e do olho como único canal de apreensão sensorial. Obras que envolvem imagens sem registro prévio compreendem atualizações e variações do recurso conhecido como circuito fechado, muito explorado nas décadas de 1960 e 1970 por artistas como Peter Campus, Dan Graham, Bruce Nauman, dentre outros. Desde então, muitos artistas utilizam esse processo. O artista atua na criação do processo que criará a imagem a ser visualizada, e não diretamente na criação dos aspectos formais inerentes à imagem.

Por incluir o espectador na produção da imagem visualizada, esta possui um grande potencial de criação espacial. Daí advém nosso interesse por esse tipo de imagem: por incluírem e ressaltarem a materialidade dos corpos, da presença, do tato[8], obras com imagens processuais remetem às discussões conceituais e filosóficas sobre o espaço. Nos interessam principalmente aquelas que chamam a atenção para a presença, o corpo, o observador, numa perspectiva próxima às ideias de Leibniz, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, De Certeau, McLuhan; da geometria de Riemann e da teoria da relatividade de Einstein. Até mesmo Nietzsche chamou atenção para o corpo, que acabaria por ser considerado parte do próprio entendimento e concepção do espaço. Para ele, o mundo

não é algo desperdiçado, infinitamente extenso, mas sim estabelecido em um espaço definido como uma força definida, e não um espaço que pode estar “vazio” aqui ou ali. Uma força ubíqua, um jogo de forças e de ondas de forças, ao mesmo tempo um e muitos, aumentando aqui e ao mesmo tempo diminuindo lá (Nietzsche, 1968, p. 550).

Esta compreensão sobre o corpo e o espaço numa relação dinâmica acabou não sendo desenvolvida mais profundamente pelo filósofo e não teve repercussão comparável a outros conceitos por ele concebidos. Mas é interessante saber que Nietzsche faz parte dos autores que compreendem o espaço como algo essencialmente dinâmico e intrinsecamente relacionado ao corpo.

Câmera escura, origem das imagens processuais

Além das imagens em circuito fechado, é preciso citar a câmera escura, dispositivo que exerceu grande fascínio durante os séculos XVI e XVII. Crary (1992) a considera um dispositivo distinto e autônomo em relação à história da fotografia. Segundo o autor, a câmera escura e a câmera fotográfica pertencem a sistemas de representação e observação fundamentalmente distintas. A função principal da câmera escura não era produzir figuras. Crary (1992, p. 33) cita o verbete da Encyclopédie, que lista seus usos:

esclarece enormemente a natureza da visão; proporciona um divertido espetáculo, no qual são apresentadas imagens perfeitamente similares aos objetos; representa as cores e movimentos dos objetos melhor que qualquer outro tipo de representação.

Só tardiamente o verbete acrescenta que “através deste instrumento alguém que não sabe desenhar torna-se capaz de traçar um desenho com extrema precisão”. As imagens em movimento das câmeras escuras não podiam ser desvinculadas de seu processo de formação: resultam de procedimentos específicos que possibilitam a sua visualização.

Se a câmera escura se aproxima de nosso objeto por se tratar de uma imagem processual, por outro lado é um dispositivo no qual o observador não se sente inserido: aquilo que ele observa é um espaço exterior àquele contíguo à sua presença. “A câmera escura impede que o observador veja a sua posição como parte da representação” (Crary, 1992, p. 41). Crary  ainda acrescenta que a câmera escura “desconecta o ato de ver do corpo físico do observador, descorporifica a visão” (p. 39). Tem-se aí uma diferença fundamental entre a câmera escura e os espaços formados por interfaces interativas.

Imagem, corpo e espaço

a experiência do espaço é uma negociação na qual a co-criação toma lugar. Minha intenção é tentar isolar a negociação ou comprometimento, ou seja, olhar nem para a pessoa e nem para a rua, mas sim, ao invés disso, para o entre (Eliasson, 2009).

Parte-se do entendimento de espaço como lugar praticado (De Certeau, 1980), ou seja, de que existe espaço quando os sujeitos nele presentes estão realmente implicados em sua produção.

Nosso interesse por questões espaciais nos aproximaram do laboratório Life in Space, conduzido por Olafur Eliasson. Em uma palestra TED (2009) Eliasson coloca, dentre outras, as seguintes questões: como se configura a relação entre o nosso corpo e o espaço? Como sabemos que estar num espaço faz diferença? Eu faço diferença? Quais as implicações de minha presença e de meu corpo em determinado espaço?

Eliasson (2009, p. 3) afirma trabalhar para “aumentar o papel da arte como um participante na sociedade e afirmar que ela pode contribuir com reflexões de natureza espacial; ela pode ter impacto político, social e estético nas práticas não artísticas”. Veremos, mais tarde, como essa postura se aproxima dos situacionistas.

Fazer parte de um espaço implica fazer e exercer a diferença. As interfaces interativas colocam situações completamente diversas às colocadas por imagens fotográficas, pinturas, gravuras. O espaço, para ser espaço, precisa ser percorrido, vivido, percebido em suas dimensões. O espaço tende a ser entendido como algo que libera, abre terreno, dá lugar, abertura. Permite as distâncias, as vizinhanças, o próximo e o longínquo, as direções, fronteiras, as grandezas.

Para Heidegger, o espaço não é nem uma propriedade subjetiva da mente, nem existe previamente à existência de um sujeito no mundo (não existe espaço independentemente de sujeitos): “o espaço não é algo que encara o homem. Nem é um objeto externo ou uma experiência subjetiva. Não é que existam os homens, e além deles, o espaço”[9]: o próprio ser, se bem entendido ontologicamente, é espacial. Também Merleau-Ponty (2009) afirma a necessidade de reconhecer a espacialidade do corpo: “não existiria espaço, para mim, se eu não tivesse corpo” (2009, p. 119); “o corpo é o veículo do ser no mundo” (2009, p. 97).

Ou seja, enquanto a espacialidade é um dos aspectos principais do nosso encontro com as coisas do mundo, o espaço como tal não é algo que pode ser conhecido independentemente das coisas, mas somente por sua relação com elas. Obras de arte interativa com imagens processuais definem um campo enorme para experiências espaciais. Então uma questão se coloca: a questão tátil e espacial não estaria já colocada na imagem digital?

Mark Hansen vem desenvolvendo uma fenomenologia elaborada a partir da obra de W. Bejamin, H. Bergson e G. Deleuze, que enfatiza o papel do afeto, da propriocepção e das dimensões táteis da experiência na constituição do espaço. Questionando todo um conjunto de estudos que abordava a imagem digital numa perspectiva de virtualização do corpo, Hansen argumenta que no regime digital o corpo é um constituinte ativo da imagem: é a origem de ação num mundo de imagens. É através dele que selecionamos dentre as influências externas aquelas relevantes para nossos interesses. A vocação bergsoniana de Hansen diz que não existe informação (ou imagem) na falta de uma corporificação humana que lhe dá forma.

Para Hansen a convergência das mídias sob o digital aumenta a centralidade do corpo como um “editor” da informação: enquanto a mídia perde sua especificidade material, o corpo ganha o importante papel de processador seletivo na criação das imagens. Em contraste com um objeto estático, a imagem digital envolve o processamento da informação e a constante atualização da interpretação dessa informação através de uma imagem que pode parecer estática na tela, mas que no entanto é extremamente dinâmica, capaz de ser modificada a qualquer momento (Hansen, 2004, p. 23).

Esta característica da imagem digital pode aproximá-la, em certo sentido, ao espaço como o entendemos. Se o espaço deve ser entendido como um campo de forças estabelecido entre dadas dimensões (física, cultural, econômica, social, de interface, modos de interação e imagem) e atores atuantes, estes trazem a indeterminação de seus atos (diferentes modos de uso) na forma de inputs de ações que modificam o espaço em determinado momento, produzindo outras instâncias. Um espaço vivido sempre implicaria, portanto, um circuito de retroação.

A imagem-experiência em Peter Campus: dobras espaciais

Peter Campus se notabilizou principalmente por um conjunto de videoinstalações realizadas na primeira metade dos anos 1970, nas quais a participação do espectador é essencial para a formação da imagem. Tais obras envolvem circuitos fechados: Interface (1972), Mem (1974) e Dor (1975) são obras desse tipo. O trabalho de Campus convoca algumas das principais tendências da arte do pós-guerra: o minimalismo dos seus dispositivos, o caráter conceitual relacionado com a questão dos limites da representação imagética, o acento performático-processual, o papel do corpo e da presença do artista e/ou do observador.

Interface (1972) é talvez o trabalho mais conhecido de Campus, no qual o dispositivo torna-se o ponto nodal da articulação entre o meio empregado, o observador que o ativa e uma certa desconstrução de determinado regime de crenças e disposições da imagem enquanto representação.

A instalação é muito simples: numa sala há uma câmera, um projetor e um vidro. A câmera está no fundo da sala. Entre ela e o espectador, é colocado um vidro transparente que funciona como uma interface entre os dois espaços, separados por ele. Sobre o vidro, que mede 3 por 2,7 metros (proporção 4×3), é projetada a imagem em preto e branco captada pela câmera em tempo real: uma instalação em circuito fechado.

Ao entrar na sala e se posicionar no espaço captado pela câmera, o participante se vê projetado no vidro. Mas o vidro também o reflete, de forma que ele vê duas imagens: uma projetada (em preto e branco), e seu reflexo. As duas imagens sofrem variações de foco, tamanho, posição e iluminação em função do movimento do espectador no espaço. O espectador pode experimentar os campos limítrofes além dos quais as imagens desaparecem do vidro, se posicionar em um lugar onde as imagens se sobrepõem, fazê-las variar em seus movimentos de aproximação e afastamento, observar sua dissimetria – uma vez que a imagem refletida inverte os lados do objeto, ao contrário da projetada. Esta dissimetria é, na verdade, uma dobra, por meio da qual a interface, o vidro, se torna uma dimensão intermediária, topológica, invertendo as relações do que está do lado de cá ou de lá.

Interface dialoga com a tradição pictórica ao trazer para dentro da obra a figura do espectador. A obra não existe se não há espectador na sala, uma vez que o objeto da obra é a própria experiência do participante, que se vê vendo.

Antes mesmo da emergência das tecnologias digitais, a obra de Campus cria variações no regime estético, colocando em questão a ideia de que a obra de arte remete a uma realidade pré-existente, por meio do uso de uma imagem processual, que se cria durante a experiência sempre presente e singular de um espectador implicado.

Em Interface o que existe é a disposição espacial de vários elementos (projetor, câmera, ator) que variam em relação ao movimento do observador. Trata-se de uma obra aberta, “inacabada” e processual, cuja problemática principal remete à própria atividade perceptiva deslanchada pelo observador. Este tipo de instalação desconstrói a imagem como representação de algo já dado, na medida em que nos faz experimentar o próprio fundamento da percepção: “ver é ser visto” (Merleau-Ponty).

Interface nos é importante pelo caráter fundador de uma experiência espacial; mas é nas suas próximas obras em circuito fechado, Mem e Dor, que Campus parece ampliar a criação de espaços. Além de terem o caráter efêmero da imagem evidenciado, nelas a moldura retangular é distorcida, explodida. A imagem parece querer se livrar da moldura, da bidimensionalidade. Impossível não lembrar do percurso trilhado por Lygia Clark, no momento em que os Casulos se destacam da parede para se transformarem em Bichos.

Em Mem e Dor, Campus explora mais acentuadamente as relações entre o ponto de vista e o plano de projeção. Em Mem a câmera está localizada muito perto da parede e sua objetiva está orientada paralelamente a ela. A imagem é projetada obliquamente, criando uma forma trapezoidal e gerando diversas deformações no corpo projetado. Para entrar no restrito campo de visão da câmera, o visitante deve ficar tão perto da parede que ele não pode apreender globalmente sua imagem. Ao se afastar, numa tentativa de apreensão visual da imagem, a imagem se perde, desaparece. Duguet (2002) aponta que “o espectador se encontra de certa forma imobilizado dentro do virtual”. Ele é sujeito, objeto e plano de projeção da imagem.

Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/
Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/

Dor é organizada de tal modo que a imagem do visitante se forma exatamente no momento em que entra na sala. Este momento é a soleira da porta, um ponto situado num prolongamento da parede na qual a imagem está projetada. Assim, o visitante deve optar entre ser visto e não poder ver, ou tentar se ver, com o risco da imagem desaparecer. O lugar de observação da imagem é radicalmente dissociado do ponto de vista da câmera. Criar a imagem é estar impedido de vê-la, de contemplá-la totalmente. O ponto de criação da imagem se situa no mesmo plano de projeção dela mesma. O jogo acontece neste limite, nessa fronteira entre estar dentro ou fora da obra. O limite da sala, a porta, é exatamente o ponto ativador da imagem.

Dor remete às ideias de espaço como algo inerentemente coletivo: o espectador, sozinho, não consegue ver ou produzir imagem. Ele precisa de outros participantes. Pode funcionar como uma metáfora para a construção espacial: sozinhos, não construímos nada.

Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg
Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg

Os Sonacirema: um filme processual

Os Sonacirema (1978, 35mm) de André Parente é constituído de quadros pretos e brancos que se revezam. Não possui imagens figurativas, apenas pontas pretas e transparentes, além de transições em fade-in e fade-out. Nele, não foi usado câmera nem moviola. O filme usa a tela de cinema para fazer “refletir”, literalmente, os espectadores, verdadeiros objetos do filme.

O filme é baseado no texto The ritual body among Niacirema, do antropólogo  Horace Minner, publicado em 1956 na revista American Anthropologist. Descreve uma tribo que vive na América do Norte e desenvolveu uma série de obsessões em torno do corpo. As crenças e práticas mágicas dos Niacerema (anagrama de “americain”) apresentam aspectos tão inusitados que descrevê-los nos permite discutir os extremos a que pode chegar o comportamento humano[10]. Os Sonacirema é um documentário experimental sobre uma tribo que supostamente se estende do Oiapoque ao Chuí. O som do filme é constituído pela narração do texto que descreve essa tribo.

Em versão recente do filme, Parente criou o happening intitulado Cine-movido[11] que envolvia os espectadores. Simultaneamente à projeção do filme, uma câmera de vídeo capta as imagens dos espectadores na sala. Essa imagem é projetada sobre o filme. Quando a imagem é escura (quadros pretos) a imagem dos espectadores aparece. Aqui, surge um tipo de imagem-performática, que busca colocar como objeto os próprios sujeitos. O espaço tradicional de projeção da sala de cinema é rebatido, espelhado. Pouco a pouco, os espectadores se dão conta de que a imagem projetada é a sua própria imagem captada em tempo real.

Os Sonacirema cria um processo de frustação do espetáculo cinematográfico instituído, um desocultamento do dispositivo do cinema e do lugar do espectador. É criado um espaço especular, no qual o espectador se torna participante do filme. Quem vê se torna também aquilo que é visto.

Espaços digitais de ação encarnada

A obra de Myron Krueger chama nossa atenção pela importância dada ao corpo e ao espaço tridimensional. Para o artista, o desenvolvimento de simulações tridimensionais na forma de ambiente interativo nos coloca em contato com nossas capacidades perceptivas mais primitivas:

a interface humana está evoluindo para informações mais naturais. Espaço tridimensional é mais intuitivo do que o espaço bidimensional. Espaço tridimensional é aquilo para o que evoluímos para entender. É mais primitivo, não mais avançado (Krueger apud Hansen, 2006, p. 3).

O interesse de Krueger relaciona-se com as potencialidades enativas oferecidas pelas novas mídias, e não para suas capacidades de representação ou de simulação (Hansen, 2006, p. 26). Para ele, o “virtual” não compreende um espaço alternativo transcendente ao corpo, mas sim um novo domínio, aprimorado pelo computador, de extensão de nossa interface com o mundo.

Krueger procurou materializar sua convicção de que o foco da pesquisa em interface deve ser a natureza humana, não o computador. Construiu ambientes em bases digitais que privilegiam o corpo; neles, o computador é um veículo para explorar e expandir interações humanas encarnadas, onde a interface é pensada a colaborar nas relações interpessoais.

De 1970 a 1984 Krueger procurou ampliar as capacidades de interação entre pessoas e programas de computador. Numa época em que a maior parte das pesquisas em realidade virtual envolviam pesadas e desconfortáveis interfaces (como capacetes – Head Mounted Displays – e luvas), a pesquisa de Krueger se concentrou no próprio corpo como interface. Suas obras compreendem Metaplay (1970), Psychic Space (1971) e Videoplace (1974-1975).

Metaplay combinou tecnologia de circuito fechado com código digital para explorar as relações entre as ações do visitante e as reações do sistema. Cria-se um certo tipo de comunicação em tempo real entre seus participantes, que se deparam com projeções bidimensionais de seus corpos. Para similar a tecnologia interativa da qual não dispunha, o artista incluiu-se ao processo: ficava em um espaço distinto desenhando num tablet as respostas aos movimentos dos participantes. Por serem respostas do próprio artista, a obra ganhou em criatividade e indeterminação, incluindo um sentido de erro, de experiência, de brincadeira, que enriquece as respostas exatas dos computadores.

Já em Psychic Space o que está em jogo é a instauração da autonomia do ambiente, obtida através da incorporação de feedback. A origem da imprecisão passa dos desenhos para os movimentos dos corpos dos visitantes, captados por sensores. O visitante é colocado numa interação em tempo real com os dados gerados por seus movimentos.

O visitante é inicialmente convidado a se concentrar em um losango como símbolo de si mesmo. Logo a figura é cercada por um pequeno quadrado do qual o visitante busca se livrar. Em seguida o quadrado se torna um labirinto a ser explorado. Em contraste com os jogos de computador típicos, as possibilidades oferecidas em Psychic Space não são guiadas por objetivos previamente definidos e não culminam na realização de uma tarefa. O ambiente é concebido de forma a impedir o progresso do espectador em relação a qualquer objetivo que se tenha como meta. Por exemplo, o programa reconfigura o labirinto no momento em que o visitante se aproxima da saída, ou altera a direção do controle do losango pelo corpo, de horizontal para vertical.

O computador, nas obras de Krueger, funciona para perturbar a tendência natural do visitante de atingir certo objetivo. Trata-se de um feedback criativo, de adaptação à situações que mudam constantemente. O ambiente continuamente solicita que o visitante se adapte às características de cada novo espaço constituído.

Videoplace marca uma nova etapa na implementação da autonomia do ambiente interativo, que passa a envolver totalmente o visitante. Uma imagem do movimento do visitante, com o contorno de seu corpo, é capturada e processada pelo computador. O visitante pode, por exemplo, preencher o espaço com linhas de imagens coloridas de partes do corpo ou interagir com imagens capturadas, em diferentes tempos, de seus movimentos. Videoplace diferencia-se dos primeiros ambientes interativos de Krueger pela realização técnica e estética da sincronicidade completa entre ação e resposta. Aqui, a atividade do computador coincide absolutamente com o movimento do interator, se tornando (ou sendo experimentado como) uma parte indissociável de seu agenciamento. Cria-se um tipo de agenciamento expandido: devido à sincronicidade entre movimento e imagem, o sistema faz-se disponível como um instrumento a ser experimentado e utilizado. Krueger procurou fazer com que o ambiente “aprendesse com seus visitantes”, tornando o público, de certo modo, também programador do sistema. Ao invés de forçar o visitante a se adaptar ao computador e à sua linguagem, é o computador que é chamado a aprender com os gestos humanos.

Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/

O trabalho de Krueger cria espaços que misturam código com experiência humana: a atuação do corpo em movimento é claramente visível. Embora os códigos estejam subordinados aos movimentos, são também eles que acionam, expandem ou catalisam agenciamentos já encarnados.

Troca de pele: “todos juntos reunidos numa pessoa só”[12]

Nosso trabalho é dar às pessoas a possibilidade de não se identificarem com o meio ambiente e com as condutas-modelo (Kotányi; Vaneigem, 1961, p. 19).

É possível considerar que espaços criados pelas interfaces interativas podem ir além de uma construção física e material pontual. Ao sensibilizar indivíduos em relação aos espaços de vida talvez se possa trabalhar no sentido de lentamente contribuir, mesmo que pouco a pouco, na construção do espaço de vida futuro.

Cabeção, de Aline Couri, é uma obra de arte urbana interativa que coloca e fomenta a discussão sobre o espaço urbano. A interatividade foi implementada pelo live video somado à tecnologia de videomapping. A obra tirou partido do busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) que não é bem quista pela população local. A escultura, em bronze, tem 2,5 metros de altura e fica numa base de 3 metros. A população local a conhece como “Cabeção”.

A instalação envolve uma câmera que capta imagens ao vivo dos rostos do público participante e um projetor que projeta essa imagem sobre o rosto do busto. Um computador, com software de videomapping, faz com que a imagem seja projetada exatamente sobre o rosto da escultura. Cabeção é uma obra que tem um sentido lúdico, de brincadeira, mas que pode gerar discussões e reflexões políticas. Durante o período no qual esteve montada muitas pessoas interagiram, riram e inventaram modos de interação com o dispositivo.

Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri

Nesta obra a construção espacial se dá em várias escalas. A menor delas parece ser a imediata do entorno, na qual é criado o dispositivo que convida e envolve os transeuntes, criando algo como uma “troca de pele” entre as pessoas e a estátua, que parece “criar vida” com cada uma das performances-espontâneas realizadas. Numa perspectiva mais ampla, procurou-se colaborar – ainda que em uma pequena atuação, quase que imaterial – para a construção de um outro espaço urbano de vida. Acreditamos que, de certo modo, atualizamos o desejo situacionista de atuar no sentido de um urbanismo unitário. Este conceito foi resumidamente definido como “emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (IS n. 1, 1958, p. 13.).

O urbanismo unitário não é uma doutrina do urbanismo, mas sim uma crítica ao urbanismo (IS n. 3, 1959, p. 12). Idealiza a unificação do espaço construído com o corpo social e com o corpo individual, rejeitando a busca idealizada por formas fixas e soluções permanentes (bases do planejamento urbano tradicional). Para os situacionistas um genuíno progresso social não subordinaria o indivíduo, mas sim maximizaria sua liberdade e seu potencial. Buscavam criar, além do aspecto utilitário imediato, um ambiente funcional apaixonante, através da “crítica viva da manipulação das cidades e de seus habitantes” (IS n. 6, 1961, p. 17).

Os situacionistas buscavam restituir a criação e a reflexão crítica cotidianas em relação ao espaço, incorporar a arte na prática urbana. Entendiam a arte como ferramenta de transformação da realidade.

O urbanismo unitário foi um enorme exercício teórico sem realizações práticas. Mas está aí justamente sua potencialidade: ele pode ser entendido como um virtual, como uma meta. Tem-se os princípios, a intenção e, quem sabe, a estratégia; já a atualização dessas ideias, o “como fazer”, dependerá – e deve sempre depender – de cada situação particular, oportunidade, ocasião, meios disponíveis. O urbanismo unitário será sempre então um devir; cada ação será uma experiência: produto da questão, situação e do local específicos.

Cinemas sem filme, cidades sem projetos rígidos que se colocam como definitivos: é através da contestação, do pensar diferente, do se colocar constantemente em estado de perigo (como a etimologia da palavra “experimentar”[13]) que seguiremos fomentando pensamentos críticos e criativos.

* Aline Couri é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação ECO/UFRJ com bolsa Capes/Faperj. Arquiteta, mestre em Comunicação e Cultura, com doutorado em Urbanismo (Prourb/Fau/UFRJ).


Referências

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PARENTE, A. Cinema de exposição: o dispositivo em contracampo. Revista Poiésis, n. 12, p. 51-63, nov. 2008.

Notas

[1] McCall substitui o espaço perspectivo do cinema convencional por um espaço projetivo. A parede não mais sustenta uma janela; ela ganha o papel de superfície opaca, de limite espacial. A experiência da projeção ganha um caráter físico e táctil, que envolve o corpo. A obra acontece no espaço entre os projetores e a parede; o espectador está dentro do filme. A imagem torna-se o campo no qual a experiência se dá.

[2] Muito se discute sobre a migração do cinema dos espaços de projeção tradicionais para outros espaços. Numa perspectiva geral podemos citar os filmes digitais, visualizados em computadores, telefones, palmtops, tablets. Dentro do campo das artes, nota-se que os espaços de exposição (museus, galerias, mostras) vêm recebendo um número crescente de obras nas quais a imagem em movimento – projetada ou exibida em telas e monitores – tem lugar de destaque.

[3] O observador, ao contrário do espectador, constrói em parte o que vê.

[4] Aquilo que o senso comum compreende como cinema é apenas uma de suas formas, aquela que se desenvolveu a partir de cerca de 1908 de modo a se estabelecer como modelo hegemônico dominante: o modelo narrativo-representativo-industrial (N.R.I.).

[5] Segundo as “definições” publicadas no primeiro número da revista Internationale Situationniste, situacionista é “o que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações. Membro da internacional situacionista” (IS n. 1, 1958, p. 13). As referências aos textos situacionistas serão feitas de acordo com sua localização original nas revistas (IS n.), estando todas elas reunidas em INTERNATIONALE SITUATIONNISTE(1997).

[6] A possibilidade de atuar e experimentar ações em lugares distintos daquele no qual estamos presentes com nossos corpos físicos. Ver, por exemplo, Teleporting an Unknown State, de Eduardo Kac.

[7] Seja em filme, memória digital, disco ou outra mídia.

[8] No sentido mcluhaniano.

[9] Bauen Wohnen Denken, conferência proferida em 1951.

[10] O texto fala sobre a cultura ocidental como se ela fosse uma cultura “primitiva”. É sobretudo a objetividade da descrição dos nossos gestos do dia-a-dia que produz a nossa cegueira quanto ao objeto do texto, como se, ao olhar o espetáculo desta “tribo de bárbaros”, não nos reconhecêssemos.

[11] Happening-instalação realizado na Escola de Audiovisual de Fortaleza em 2007.

[12] Uma pessoa só, Arnaldo Baptista.

[13] “Experimentar” vem de experire: se colocar em perigo. Experimentar é arriscar: sem risco, nada é alcançado além  do já conhecido.

Três estudos sobre teatro e presença: Strip-tease, Ensaio.Hamlet, Formas breves | Inês Cardoso Martins Moreira*

Algumas das questões que atravessam a minha atual pesquisa, “Texto e presença: o personagem, o ator e a materialidade visual e sonora do texto teatral”, nortearão este artigo. A pesquisa se volta, simultaneamente, para questões cênicas suscitadas, por um lado, por textos que tendem a forçar os limites dos gêneros e modos discursivos, por dramaturgias que tendem a pôr certa concepção de drama em questão e, por outro lado, por encenações que desafiam os paradigmas que costumam orientar o trabalho do ator em cena e, em particular, sua relação com o texto dramático. Para discutir alguns destes pontos, vou desenvolver uma breve reflexão sob a forma de um triplo estudo de caso, tomando por base os exemplos de três espetáculos, encenados recentemente no Brasil, a saber: Strip-tease (2000), Ensaio.Hamlet (2004) e Formas breves (2009).

Uma das primeiras cenas do espetáculo Formas Breves de Bia Lessa e Maria Borba, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo em 2009, mostrava uma atriz sobre uma bicicleta cujas rodas eram presas ao chão por dois atores, que pareciam servir-lhe de pedestal. De frente para o público, a atriz guiava a bicicleta, por vezes pedalando em alta velocidade, e dizendo, também rapidamente, um texto. As rodas da bicicleta serviam de pernas para a atriz que pedalava sem, no entanto, sair do lugar. Ela se equilibrava sobre duas rodas, confiando o equilibro, todavia, à presteza dos dois atores que, por sua vez, aparentavam dar pouca ou nenhuma atenção à sua função de manter a atriz em equilíbrio fora do chão, segurando cada uma das rodas enquanto liam um livro ou fumavam um cigarro de maneira casual. Enquanto permanece pedalando, a atriz vai contando uma história. O relato (em primeira pessoa), recortado do livro Origem, de Thomas Bernhard, é, todo ele construído no pretérito, mas o tempo verbal se vê contrastado por sua presentificação em cena pela atriz-ciclista.[1]

O equilíbrio vacilante da atriz, cujos pés se mantêm fora do chão, faz lembrar a performance Duets on Ice (1974-75)[1] da artista norte-americana Laurie Anderson,  na qual ela se equilibra sobre patins de gelo, cujas lâminas estão presas em cubos de gelo. A performer vai tocando violino enquanto conta histórias e o gelo, que recobre as laminas dos patins, vai aos poucos derretendo. A performance termina quando o gelo derrete e a performer perde, então, o equilíbrio. Equilíbrio tenso que se assemelha ao da atriz sobre a bicicleta com as pernas suspensas. Nos dois casos, onde deveria haver movimento, não há. Nem a bicicleta se move no espaço, nem os patins de Anderson deslizam por uma pista de patinação. O movimento, que deveria estar nos pés suspensos pelas rodas ou pelas lâminas enfiadas no gelo, se desloca do corpo das duas performers para a voz, para a narração de histórias e para o contraste temporal entre o passado da narrativa e o presente da ação dramática. Movimento enfatizado pelo desequilíbrio provocado justamente pela imobilização (das lâminas e das rodas), agenciada pelo gelo ou pelas mãos dos atores displicentes, presentes na abertura do espetáculo de Bia Lessa e Maria Borba.

Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843
Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843

Nos dois exemplos, o de Laurie Anderson e o da atriz-ciclista, com a suspensão do corpo do performer, cujos pés se mantêm fora do chão, como se suspensos por espécies de máquinas, se atribui à imagem do corpo do ator certo descolamento da terra, certo caráter meio incorpóreo, desmaterializado, que chega a lembrar o das figuras de El Greco. Sempre a certa distância do solo. E marcados por certa insubstancialidade. Contrastada, porém, a forte presença. Distância e presença, de um lado, contraste entre pretérito narrativo e presente cênico, entre esforço e imobilidade, ficção e realidade, de outro – o que sugere a discussão sobre o estatuto do personagem, e sua figuração em cena, entre o imaterial e o fortemente corpóreo, como um lugar tenso, contrastivo, de entrada no espetáculo Formas breves.

Passando ao segundo exemplo, Strip-tease e teatro irregular, do poeta catalão Joan Brossa, chama a atenção o fato de, nas cenas de desnudamento do texto, o corpo ser quase que só matéria. A nudez, como questão central, já sublinha a matéria, a exposição de um corpo sem interior, despido de subjetividade psicológica. Gostaria de lembrar, a respeito, um dos primeiros números de strip-tease descritos pelo poeta, quando uma bailarina tira toda a roupa, os cílios postiços, a pinta do rosto, uma peruca, revelando outra peruca por debaixo daquela, até que tira finalmente a segunda peruca, revelando uma careca. Não se identifica nesse corpo nada de suspenso, de imaterial, de não substancial, nem algo capaz de se desfazer no ar, como os espíritos de A tempestade, ou como os personagens que “habitam” os corpos dos atores e que se desmancham ao término do espetáculo. Vislumbra-se, no texto de Brossa, ao contrário, um corpo que é bastante palpável, feito de carne e osso. E o que estaria dentro dele seria, ainda uma vez, matéria (numa das cenas, cai a face e revela-se uma caveira), sempre matéria e não alguma subjetividade ou revelação latente que se apresentaria ao término da cena.

Se há uma oposição nítida entre este exemplo do poeta e dramaturgo catalão e os exemplos citados anteriormente, há, porém, a possibilidade de uma aproximação entre os corpos suspensos criados por Bia Lessa e por Laurie Anderson e uma das cenas do espetáculo dirigido por Daniel Dantas com base nos textos de Joan Brossa.

No strip-tease Lua cheia, entra uma bailarina e se despe de quatro. Quando fica nua, entra um corcunda, bate palmas, desce uma corda, o corcunda amarra os pés da bailarina na corda, bate palmas novamente e a bailarina é suspensa até sumir no urdimento. Na encenação desse número, a luz esverdeada (na verdade uma projeção sobre o telão de fundo e o corpo da atriz) e a cenografia são trabalhados de modo a que o corpo suspenso no ar se confunda com o cenário. Se, por um lado, o corpo suspenso se assemelha a um corpo morto, reduzido à sua materialidade pura, como um pedaço de carne pendurado num açougue, por outro lado, o corpo, ao ser erguido do chão, ao perder o contato com o solo, parece de fato se fundir ao cenário, desaparecer contra o telão de fundo, como se não fosse matéria, como se pudesse, de fato, se desfazer no ar.

Uma tensão semelhante entre desmaterialização e presença física é possível observar numa outra cena do espetáculo Formas breves, em que um ator se despe inteiramente e permanece de pé sem dizer nenhuma palavra, sem executar nenhuma ação, apenas expondo o corpo nu enquanto matéria. Um longo texto é projetado no teto do teatro, nas paredes do teatro, nos corpos dos atores e no chão do palco. O corpo nu do ator se anula, então,  servindo de “tela” para a projeção do texto que não é dito por ele, mas exposto em seu corpo. Como no strip-tease brossiano referido acima, parecendo operar-se uma bidimensionalização desse corpo nu, neste caso servindo de suporte para a escrita.

Este texto que, se dito pelo ator, emprestaria ao corpo alguma possibilidade de fala, de externar possível interioridade, ao contrário, não sai dele, é um elemento que está fora do corpo, que se inscreve nele, mas não se fixa nele, que passa pelo corpo sem deixar qualquer marca ou rastro, e se espalha para além desse corpo, ocupando todo o espaço do teatro. Há aí uma separação entre texto e corpo, entre texto e voz, entre ator e personagem. Ator e personagem parecendo estar em planos diferentes, dissociados um do outro. E o espaço que se abre entre esses dois elementos é ocupado pelo texto projetado, cuja presença acaba por “ganhar” o centro e o foco da cena, atravessando o cenário, dançando pelas paredes do teatro, se movimentando, acariciando os corpos dos atores em cena.

Ainda pensando na tensão entre presença e ausência como forma de discussão do ator em sua relação com o personagem, passo agora brevemente ao espetáculo Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores, dirigido por Enrique Diaz. Nesse caso, essa tensão não se dá a partir da transformação dos corpos dos atores em tela ou em qualquer outro tipo de suporte para a palavra escrita, nem há suspensão de corpos – via gelo, bicicleta ou corda. Nesse espetáculo, o que chama atenção é o movimento de deslocamento dos personagens que vão sendo assumidos por corpos diversos. Quase todos os atores em algum momento fazem Hamlet; Ofélia também é representada por alguns dos participantes da peça. Mas não é só de um ator para outro que os personagens se deslocam. Também podem surgir como objetos. É o caso de Rosencrantz e Guildenstern que são apresentados como dois bonecos de plástico e que depois ressurgem, em carne e osso, na pele de dois atores vestidos exatamente como os bonecos. É o caso também de Ofélia que, a princípio, é apenas um vestido, sem nenhum corpo que o vista. Uma cena inteira é feita assim: uma Ofélia-vestido é manipulada por um ator que contracena com ela. Só ao final da cena, o ator veste o vestido e assume a personagem. No momento em que o vestido é “ocupado” pelo corpo de um ator, no entanto, a personagem ganha corpo e voz, mas logo sai de cena. Em seguida, uma atriz aparece e também não faz, inicialmente, a personagem. Enquanto se prepara para fazer Ofélia, ela reclama da personagem, diz que não gosta de adolescentes e que tem um problema com Ofélia. Só depois desse preâmbulo, a atriz vai aos poucos assumindo a personagem. Há como que uma espécie de recusa em dar corpo a esse personagem. Se nos Strip-teases de Brossa os corpos se despem das roupas, se livram delas e exibem a própria materialidade nua, no Hamlet da Cia dos Atores, aconteceria justo o oposto: um vestido é despido de qualquer corpo que dê forma à personagem Ofélia. É o vestido que se livra do corpo e não o corpo que se livra da roupa. Mas há, na ausência de uma Ofélia de carne e osso, nessa primeira aparição da personagem, no entanto, uma presença muda que se sobrepõe à presença dos atores em cena. O vestido “vazio”, sem qualquer tipo de enchimento que lhe dê forma, bidimensional, especialmente quando colocado no chão, parece querer sublinhar que é aquela roupa que se mostra capaz de presentificar a personagem clássica de Shakespeare com mais eficiência do que se houvesse dentro dela algum ator.

A encenação segue trabalhando com essa tensão entre vazios e cheios, presenças e ausências. Se Ofélia é apresentada como um vestido vazio, como uma personagem de vento, o monólogo “ser ou não ser”, de Hamlet, é construído em cena por três atores que enchem o espaço com as palavras de Shakespeare. Ao invés de fazer do monólogo um solo, a cena oferece um coro de vozes, o que já conferiria ao texto uma presença sonora significativa. As palavras que compõem o primeiro verso do texto são ditas mais de uma vez pelos atores, que, ao repetirem desordenadamente os vocábulos não-ser-ser-não ser-ser-não ser, e assim por diante, retiram as palavras da frase, descontextualizam momentaneamente cada uma, quebrando o período, fazendo com que o verso soe de forma imprevista e trazendo assim o verso, já tantas vezes descontextualizado, de volta para o contexto da peça e do personagem.

Em contraste então, numa mesma encenação, o vazio (de corpo e de voz) que ocupa o vestido-Ofélia e o cheio (de corpos e de vozes) que ocupam a cena do ser ou não ser de Hamlet. Em ambos os momentos há presença e há ausência. Há a presença da personagem clássica na ausência de corpo e voz na Ofélia-vestido e há ausência de um ator soberano da cena, enunciador do famoso solilóquio shakesperiano, para que haja uma presentificação do texto multiplicado em três vozes.

Nas três encenações aqui brevemente comentadas, foi possível observar a presença tanto material (na projeção do texto em Formas breves) quanto sonora (no coro de três vozes para o solilóquio de Hamlet) do texto na cena. E modos diversos de essa presença problematizar a relação entre ator e personagem. E permitir que se observem algumas possibilidades de configuração do corpo na cena contemporânea: os corpos sem matéria, efêmeros, “feitos de sonho”, como a Ofélia-vestido de Ensaio.Hamlet, os corpos-matéria, despidos de roupas e de interioridades, como o corpo pendurado do Strip-tease de Brossa ou o corpo nu de Formas breves, e os corpos suspensos, presos num lugar intermediário entre a presentificação cênica e a narração, como o da menina que se equilibra sobre as rodas da bicicleta em Formas breves.

*Inês Cardoso Martins Moreira é doutora em Artes Cênicas e professora adjunta do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da Unirio.


[1] A performance Duets on Ice foi reencenada por Laurie Anderson no Brasil, no CCBB de São Paulo em outubro de 2010 e no CCBB do Rio de Janeiro em março de 2011, por ocasião da abertura de sua exposição Eu em Tu / I in U.

Dois textos: A memória sangra e Fruição em tempos de entretenimento

A memória sangra: literatura e propaganda na segunda guerra mundial

João Anzanello Carrascoza* e Christiane Santarelli**

…quando tento me lembrar de tudo que passei (…), as lembranças se fundem numa só imagem, como se tudo tivesse durado apenas um dia. Por mais que tente, não consigo desdobrá-las em partes e arrumá-las em ordem cronológica, como normalmente se faz quando se escreve um diário.
Wladislaw Szpilman

Prelúdio

Este artigo é o segundo “conto ilustrado” de uma trilogia sobre a evolução da publicidade com o advento do espírito moderno, o incremento das estratégias e táticas da propaganda durante a Segunda Grande Guerra e suas novas conformações no cenário midiático da pós-modernidade. Inspirado no romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, que reproduz imagens culturais como elementos narrativos (anúncios, cartazes, rótulos etc.), o presente texto adota a forma de relato ficcional. Por meio das anotações de uma judia, a narrativa traz o drama de sua família na Alemanha, a partir de 1938, sua emigração para o Brasil em 1942, e seu cotidiano até o fim da guerra em 1945. Na trama, os personagens tomam contato com as técnicas de propaganda usadas por Hitler e, em seguida, com a propaganda nacionalista de Getúlio Vargas e a publicidade impressa brasileira.[1]

O caderno de anotações

Lembro de ter visto a gravura num livro de mitologia. Prometeu está lá, acorrentado, e as aves de rapina bicam seu fígado eternamente. Agora ocupo o seu lugar nessa cena e vejo a águia ariana descer dos céus, a toda velocidade, e bicar com avidez a minha memória. Em seguida, ela alça vôo de novo e, quando chega às alturas, volta para me bicar impiedosamente outra vez. E outra. E mais outra. E cada investida sua é como o arrancar de um dente a sangue-frio: a memória sangra, sangra, sangra, e não há como estancar a hemorragia.

O que podemos fazer com as recordações? O que podemos aprender a cada tiro, a cada lembrança de dor disparada no pensamento? O pior de lembrar é que os momentos já passados, sobretudo os cruéis, não cessam de ser revividos.

Aquela noite foi da mais profunda escuridão. A primeira. Em que tudo se partiu. Em que o “j” vermelho passou a nos identificar em todos os documentos. A noite do pogrom, quando a perseguição começou de fato. Kristallnacht. Em hordas, eles atacaram as sinagogas, as nossas escolas, as nossas lojas. O armarinho de Berta e Alexander, nossos vizinhos, ficou totalmente destruído. Ruínas, ruínas, esse é o novo compasso do meu coração.

Não me esquecerei enquanto viver. Vi pela janela de casa a sinagoga queimando, as labaredas subindo, vorazes, e o povo assistindo, pacífico, como se fosse um espetáculo inocente. Meus olhos represam cada segundo dessa cena, enquanto a minha angústia vai desaguando sem parar, infiltrando-se em todos os cantos de meu ser para afogar qualquer átomo de resignação que porventura ainda reste. Meus olhos, como se fossem de vidro, vão me estilhaçando um pouco mais a cada manhã, quando, ao abri-los, vejo que o sol ilumina toda a cidade lá fora. Um novo dia. Mas só em sua pele é um dia bonito. As suas horas, negras, se acumulam, em grossas camadas, no fundo de mim.

Berta chora, chora, os olhos como duas brasas que parecem queimarão para sempre. Conta que viu judeus sendo presos pelos nazistas, dezenas deles. Dezenas. Viu policiais baterem num velho rabino até ele desmaiar. Um homem, ao seu lado, disse que não podiam tratar assim os mais velhos, fossem de que origem fossem. Então um policial gritou que ia mostrar como tratavam os judeus, para que ninguém ali se esquecesse, e espancaram o homem até a morte. Berta o conhecia. Havia estudado com ela, quando menino, no mesmo colégio judaico. Ela treme, soluça. Vejo o susto e o terror em seu rosto desfeito: como um espelho, seu rosto é o meu também.

Por todos os lados, destroços. Os vidros quebrados são cacos de um passado íntegro e honesto. São vidas despedaçadas. Somos gravetos partidos e macerados pelos agentes covardes do Terceiro Reich.

Fomos proibidos de ir aos parques, às pracas, às escolas, aos teatros. Não tenho mais onde passear com Jan. Ensino a ele, às ocultas, canções judaicas. Agarro-me à Torá. Agarro-me à esperança de que ainda há humanidade. Kurt diz que há filas imensas de judeus no consulado americano, buscando uma chance de escapar. Alguns estão conseguindo vistos de emigração para a Argentina, o Uruguai, a Venezuela. Todos, todos, pensamos em sair daqui. Da terra onde nasceram nossos avós e nossos pais. Da terra onde vivíamos livres e agora nos aprisionam, nos desintegram, nos humilham.

Os dias são tão sombrios quanto as noites. Nos jornais, nas revistas, nos cartazes de rua, nos selos, as mensagens nacionalistas e promotoras da “raça pura”. Hitler, seu armamento, seus soldados, seus discursos, o Deutsches Reich. As trevas reinam por todos os cantos. O inferno vai se tornando ubíquo.

Hoje é aniversário de Kurt. Não há o que comemorar, senão que estamos vivos. Mas por quanto tempo? E para quê? Os soldados do Führer estão em todas as ruas. A cidade está cheia de cartazes com propaganda nazista. A maioria deles nos maldizem, mas há os que também acusam os cristãos. Alguns trazem palavras de ordem do ministro Goebbels. Se uma mentira é repetida suficientemente, ela acaba por se converter em verdade. Sim, há um deus aqui: Adolph Hitler.

O frio aumenta à noite. Jan dorme no meio de nós. Não sei como consigo aquecê-lo. Neva dentro de mim.

O Rosh Hashanah se aproxima. O que podemos esperar do ano-novo, senão a paz e a decência dos velhos tempos? Os tempos em que podíamos ainda planejar a nossa vida e sonhar em envelhecer com dignidade…

As deportações começaram. Kurt teme que nos enviem em breve para algum campo de trabalhadores. Sugeriu que Jan vá para a Inglaterra no kindertransport. Muitas crianças judias estão indo para lá. É uma longa viagem de trem até a Holanda, Depois, em barcos, as crianças seguem para Londres. Os pais, desolados, tentam convencer os filhos que vão logo depois reencontrá-los. Mas sabem, como nós sabemos, que não haverá depois. Às vezes, no auge da aflição, hesito, o sim e o não me atormentando como agulhas de mil pontas. O kindertransport pode ser a única chance para Jan.

A guerra estourou com a invasão da Alemanha na Polônia. Não sabemos se vão nos dar alguma trégua, enquanto combatem fora do país, ou se vão semear ainda mais o terror.

Hoje aviões sobrevoaram Hamburgo várias vezes. Explodem o silêncio com seus motores, rasgam a nossa calma como uma folha de papel, acendem o pânico em cada um de nós. Cortam o céu cinzento de inverno e, somem, nervosos. Minutos depois, retornam, ainda mais barulhentos. Na última vez, lançaram uma chuva de folhetos sobre a cidade. Berta pegou um na rua. São mensagens do Führer, repetindo seus dizeres megalomaníacos, seus delírios expansionistas.

Nos murais, nos cartazes, nas faixas estendidas pela cidade, nos jornais, em meio às fileiras de bandeiras nazistas, proliferam as propagandas contra nós. Ou contra os cristãos. Contra todos os que não têm sangue ariano.

Hermann, irmão de Berta, conseguiu um emprego de carregador. Vigiado por homens da Geheime Staatspolizei, transporta para a casa dos burgueses arianos o que foi confiscado dos judeus. Móveis, roupas, cofres, mercadorias, tudo. Uma manhã, os soldados comentavam que a Alemanha atacara os Países Baixos. E, de repente, resolveram descarregar suas armas num casal de judeus que passava na rua conversando. Pra comemorar, disseram. Os corpos ficaram estendidos ali, na mesma posição, durante dois dias. Então obrigaram Hermann e outros carregadores a colocá-los num caminhão e os enterrar. A cada dia estamos mais pobres, doentes e amedrontados.

Mas existe alguma esperança. Uma revista americana, passada de mão em mão, chegou até nós. Kurt, que sabe um pouco de inglês, mostrou nela a imagem de uma águia: era uma propaganda que convocava o povo americano a se alistar no exército. Quase chorei, confusa, pensando na águia ariana. A águia que nos meus sonhos vem me bicar a memória, me arrancando lembranças dolorosas que, infelizmente, voltam a se regenerar.

Kurt mostrou-me outra propaganda na revista: a imagem trazia pequenos desenhos de bombas sendo lançadas por um avião. Pacotes de presente que os americanos mandam para Hitler, ele disse. E para nós, também, eu penso. Afinal, aqui estamos, sem direito a abrigos antiaéreos.

A humilhação é cada dia maior. Agora temos de levar presa à roupa, ou ao redor do braço, sempre visível, como uma nódoa, a estrela de davi, para que todos saibam que somos judeus.

Já os nazistas, orgulhosos, levam a suástia, como sua insígnia. A suástica é sua bandeira, seu cálice do Graal.

A estrela de davi é a nossa cruz, o nosso calvário cotidiano. Jan, que fez seis anos, já é obrigado a usar uma também. Nas ruas, espalharam cartazes com fotos de um adolescente, tendo Hitler ao fundo. A juventude serve o líder, diz o título. E, a seguir, a convocação: Todos os meninos de dez anos para as Juventudes Hitlerianas. Kurt diz que as fotografias, como imagens sagradas, ajudam a ampliar o fanatismo dos alemães pelo Führer.

Não nos tratam só como inferiores, julgam que somos seres perigosos. São obcecados pela ideia de que o nosso povo detém o poder em todo o mundo e pretendemos aniquilar a “raça” ariana, que tem neles a representação máxima. É justamente o contrário o que sucede. Estamos sendo perseguidos à luz do dia, sem nenhuma misericórdia.

Kurt conseguiu um exemplar do Der Sturmer, um jornal antissemita. Uma reportagem informava que havia mais de 16 mil pessoas na manifestação contra os judeus em Berlim. O editor, Julius Steicher, diz que somos uma ameaça. Na seção de cartas, nos xingam, dizem que nós somos a desgraça e a perdição da Alemanha. Morro a cada uma das linhas que leio. Os meus olhos me doem. Choro para dentro, como quem engole um pedaço de pano.

Os homens da Gestapo cruzam a cidade de um lado para o outro, o tempo inteiro. Reprimem, maltratam, espancam, torturam. As tropas das SA também vão e vêm, para proteger os membros do partido, as autoridades. Aprendemos a distinguir quem é quem. Uma moeda com duas faces iguais. Eles estão por toda a parte, como se nos vigiassem até a consciência. Nem temos mais os olhos baixos. Nossos olhos estão no fundo da terra, em meio à matéria de que são feitos os pesadelos. Ao despertar, não me lembro mais dos sonhos que tenho. Quando a realidade é um naufrágo cercado de perigos por todos os lados, os sonhos nos afundam em angústias iguais as da vigília. Não há uma linha divisória: o mal se derramou, apagando as fronteiras, como a moeda de faces iguais. De tanto ver o Führer nas fotos dos cartazes, nas faixas, nos murais, sonhei com ele. Minha vida é uma moeda de duas faces iguais. Duas faces dantescas.

Não há mais dignidade. Levas de judeus vivem feitos molambos, pedindo esmolas, roubando e pilhando como os soldados da Gestapo. Racionamos a comida. Por vezes, passamos o dia todo apenas com umas torradas. Deixamos os legumes para a sopa de Jan. Procuramos emprego nos classificados dos jornais, mas ninguém dá trabalho a judeus, senão para nos imolar ainda mais.

Hermann conseguiu emprego para Kurt numa marcenaria. Ele sai cedo de casa, ainda no escuro, e volta ao anoitecer, moído, as mãos feridas, as unhas sujas, às vezes cheias de lascas e estrepes, que depois eu tento extirpar com uma pinça. O pó da madeira lhe dá alergia. Levanta de madrugada se coçando e vai à janela mirar a cidade onde um dia podíamos andar de mãos dadas, caminhando, sem medo de ser ultrajados ou fuzilados de forma injustiçadas, a qualquer hora.

Deus não nos abandonou. Milagres estão ocorrendo. Kurt soube que a chefe do serviço de vistos do consulado do Brasil tem emitido vistos para judeus. Alguns conseguiram fugir para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sei se lá existem índios, mas se houver, não serão tão selvagens quanto os nazistas. Kurt disse que amanhã vai procurá-la. Quem sabe ela não nos livre desse martírio…

Entramos no carro do consulado brasileiro. Não me atenho a esses detalhes, mas Kurt sussurrou, é um Opel Olympia. Nunca mais me esqueci desse seu comentário. Não sei por quê. No banco da frente, o motorista e, à direita, a chefe de serviços de vistos. Eu não sabia que anjos tinham rosto e nome. Aracy, ela se chamava. Pediu a Kurt que lhe desse as jóias e o dinheiro. Iria levá-los na bolsa, para que não fossem confiscados, se a Gestapo nos prendesse. Acompanhou-nos até o interior do navio para ter certeza de que estávamos a salvo e lá nos devolveu nossos pertences. Agradeci-lhe com um abraço forte. Ela disse que também tinha um filho. Acariciou os cabelos de Jan e sorriu. Há tanto tempo eu não via um sorriso. Na mais profunda escuridão é que se pode ver a luz de uma estrela.

Chegamos em São Paulo há dois meses. Chove o dia todo, uma garoa fina, o céu encortinado de cinza. Mas há sol no meu coração. Moramos no bairro do Bom Retiro. Aqui existe uma grande comunidade de judeus. Kurt arranjou emprego numa fábrica de roupas. A vida caminha, mas as lembranças continuam. Não há como parar o fluxo delas. Passaram-se apenas dois anos, desde que tudo começou, e parece a minha vida inteira. A dor não pode ser represada em palavras. A dor é uma mina, o tempo todo extraímos dela mais dor. Não sei ainda falar a língua nativa, mas vou aprender. Essa será a nossa pátria para sempre.

Sinto-me só, apesar do bairro ser totalmente de judeus, com exceção de algumas famílias italianas que vivem ao nosso redor. Tenho dificuldade em entender o português e mesmo para falar com os judeus. Eles vieram há muitos anos para cá, a maioria do Shtetl, dos povoados da Lituânia, da Espanha, da Bessarábia. Os pioneiros estão velhos, os filhos e netos não aprenderam o iídiche. Há também muitos polacos, mas poucos sabem falar alemão.

Levo Jan ao Jardim da Luz para brincar com outras crianças. Às vezes vamos até o rio Tietê. Sem garoa, a paisagem é bonita, o verde estala, faz um calor tropical. Os homens nadam, disputam corridas de barco a remo. Outro dia, um menino se aproximou de Jan e perguntou seu nome. Logo os dois se entenderam e saíram a correr no gramado, brincando, ruidosos. Jan. Que nome eu lhe daria hoje?

Apesar da paz, da posição neutra do Brasil na guerra, tenho medo do que possa nos acontecer. Vejo movimentações estranhas aqui. Há faixas, cartazes e murais nas ruas, anunciando um Brasil Novo. O país se arma. De que lado estará? Vi um cartaz que me lembra os de Hitler. A foto do presidente Getúlio Vargas rodeado de bandeiras brasileiras, aviões, tanques de guerra. Kurt diz que a mensagem é sobre a renovação das Forças Armadas nacionais. Quo vadis?

Uma recordação, boa, reluz agora nas trevas de minha memória, uma surpresa que Kurt nos proporcionou. Fomos no domingo, de trem, com outros judeus, a Santos, para ver o mar. O mar. O sal. O gosto das lágrimas. Dessa vez, lágrimas de encantamento, de gratidão. A felicidade me sofrendo. A Estação da Luz, tão imponente, o vaivém alegre das pessoas, o cartaz com o desenho de uma criança e uma mensagem que não entendi direito. Depois, a vista da serra, de um verde de doer, de tão bonito. E o mar. E Jan correndo pela praia. A vida nele, livre, acenando para o sol.

Queria trabalhar, vender tecido em alguma das lojas da rua José Paulino, ou em alguma tecelagem, para ajudar Kurt nas despesas da casa. Nos Estados Unidos, as mulheres estão indo para as fábricas, ocupando o espaço dos homens que vão para a guerra. É preciso aumentar a produção de armamentos. A guerra traz a miséria para uns, a riqueza para outros. Eu queria ter um emprego: quem sabe costurar, atender no balcão como antes. Talvez assim acalmasse um pouco a minha tormenta.

O Brasil enfim declarou guerra contra o Eixo, depois que navios brasileiros foram destruídos por submarinos alemães. Os racionamentos começaram, principalmente de petróleo e energia elétrica. O medo maior é dos bombardeios aéreos. Em minha mente, já dispara o alarme de novas ameaças. Estarei algum dia em paz?

Pedem que poupemos luz. O governo ordenou que se fizesse black-out na costa do país. Já não quero mais ir a Santos. Vivendo aqui, nos livramos da perseguição antissemita, mas a guerra veio atrás de nós, como uma maldição. As sombras não morrem nunca. Black-out, black-out. Sinto que as sombras existem para brilhar no mais fundo de mim.

O presidente faz grandes comícios pelo país afora, reunindo sempre enorme contingente de populares. O rádio traz notícias de suas realizações todos os dias. As inaugurações de pontes, estradas, escolas, enfim, de qualquer obra pública, são sempre eventos que juntam multidões. Fala-se de um novo Brasil o tempo todo, uma República nova. Um país novo. O nacionalismo é enfatizado nos pronunciamentos do presidente, no discurso de outras autoridades, nos jornais, nas rádios, nas faixas de rua. O receio de que se repita aqui o que vivemos em Hamburgo não me abandona. A águia sempre gera novos filhotes.

Todas as cartas que enviei, nos últimos seis meses, para Berta e Alexander, voltaram. A Cruz Vermelha diz que eles foram embarcados num dos trens com destino a Auschwitz.

Kurt soube pelo jornal que Aracy – a chefe de vistos do consulado brasileiro que nos ajudou a sair da Alemanha –, voltou ao Brasil, com o marido, o diplomata Guimarães Rosa. Gostaria de ter o seu endereço para enviar uma carta. Agradecer. Falar do meu Jan. Perguntar do menino dela.

Kurt trouxe uma revista chamada O Cruzeiro para eu ler. As notícias são otimistas. Afirmam que os Aliados estão prestes a ganhar a guerra. Mas e o que perdemos? O mundo que tínhamos, a nossa terra, os nossos amigos. O que ganhamos sem eles?

Um anúncio de Coca-Cola traz um pequeno mapa das Américas e os dizeres, Unidos hoje, unidos sempre.

Outro anúncio nos lembra que o rádio, a mais eficiente arma da guerra, é invisível. A vitória chegará por meio dele e resultará numa nova era em que os homens serão mais livres. Será?, eu me pergunto, observando Jan fazer a lição escolar, distraído, as pernas balançando.

Quando fizemos o passeio a Santos, ficamos amigos de uns polacos que vivem aqui perto, ao lado da Escola de Farmácia. Issac e Margot viveram no gueto de Varsóvia e conseguiram fugir de um dos trens de transporte de gado que levavam prisioneiros para os campos de Treblinka, onde seriam tratados como cobaias pelos nazistas.

Margot conta que não sabe como sobreviveu à epidemia de tifo, à carnificina dos soldados das SS, dos lituanos e ucranianos que, depois, vieram fazer a vigilância do muro entre o gueto e a zona ariana da cidade. Perdeu toda a família. Era enfermeira num berçário judaico, quando, um dia, agentes da Gestapo entraram em tropelia, pegaram os recém-nascidos e os jogaram numa carroça abarrotada de cadáveres. O grito das mães e o choro desesperado das crianças continuam ecoando nos meus ouvidos, Margot diz. E se cala. Issac era tipógrafo e sabia um pouco de alemão. Conseguira emprego num jornal que os nazistas editavam lá, fabricando falsas notícias sobre a guerra. Às vezes, ouvia disparos na rua e ia até a janela: eram judeus sendo fuzilados por nada.

Nas noites de sábado, vamos ouvir rádio na casa de Margot e Issac. Como se anestesiados pelas músicas e os programas, esquecemos nossa história. Rimos e cantamos os versos de uma  propaganda de um remédio para dor de cabeça, Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Então vêm as notícias da guerra. Morte, destruição, escombros. Escombros, destruição, mortes. Mas há também histórias de prisioneiros salvos por tropas aliadas. Histórias de fugas como a nossa. Histórias de vidas ressuscitadas.

Hoje é o Purim. Dia de comemorar a salvação do massacre de Assucro. E da nossa própria salvação. Se estivéssemos em Hamburgo, certamente teriam nos enviado para um campo de extermínio. Penso em Bertha, em Lore, em Fanny, amigas com quem estudei no colégio. Penso no rabino que mataram. Penso no mundo que começou a submergir na Kristallnacht.

Os jornais falam que os ingleses inventaram um equipamento, chamado radar, que localiza os aviões inimigos escondidos atrás das nuvens. Assim podem atacá-los de surpresa e eliminá-los. O americanos também o fabricam.

Não mais localizo o mal dentro de mim. Ele se misturou ao meu sangue. Não há radar que o encontre. Parece que nunca mais serei uma mulher inteira. Sou um vaso quebrado. Vejo Jan aprendendo português com facilidade, brincando com as outras crianças, e tento me reanimar.

Posso dizer que estamos bem. Mas a realidade vaza para os sonhos que não poderão jamais ser apenas sonhos. A memória sangra. As lembranças continuam fluindo, intermitentes, e me esvaziam de confiança. A felicidade em mim sempre terá uma gota de tristeza que, espero, não vá envenená-la. Jan vai crescendo saudável. É um menino alegre. Joga futebol com os góis. Seu pequeno passado de turbulências pode ser esquecido. O meu não.

Chegam notícias de que aviões aliados bombardeiam a Alemanha incessantemente. Emoções se mesclam no meu coração, como duas águas. A queda de Hitler. Mas ao mesmo tempo o nosso solo sagrado destruído. As cidades, os campos, as fábricas. Tudo pode ser reconstruído. Menos a minha alma.

Passei essa manhã pela rua Três Rios. Fiquei pensando. O passado, um rio. O presente, outro. E, para mim, ambos são águas misturadas.

Não há como limpar da água a sua impureza de ser um elemento vivo, que se recicla. A água não nasce. Ela é. Tudo que é vivo dói. O terceiro rio. O futuro. O que me promete? E se ele tiver uma terceira margem, como será a minha? Conseguirei me livrar de sua correnteza?

* João Anzanelo Carrascoza é doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP).

** Christiane Santarelli é doutora em Ciência da Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.


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Nota
[1] Uma versão deste texto foi publicada no livro Tramas publicitárias – Narrativas ilustradas de momentos marcantes da publicidade (Ática, 2009), no qual os autores completam a trilogia constituída de histórias de três épocas distintas do capitalismo, que mostram uma perspectiva histórica do impacto da comunicação de massa na sociedade. Para cada história foram criados personagens, que incorporam valores da época e de sua cultura. A primeira tematiza o “nascimento” da sociedade de consumo. Ambientada na Paris da Belle-Époque, revela a capital da vanguarda europeia – auge da modernidade, ocupada com sua intensa vida cultural, problemas sociais e um capitalismo de produção –, que utilizava a arte publicitária para estimular o consumo de bebidas, remédios, alimentos e diversão. Ao longo de um dia em Paris, um turista estrangeiro, passeando pela cidade, como um flâneur, vê os cartazes de Murcha, Chéret e Lautrec que divulgavam os produtos e serviços da época. A terceira história, situada no período contemporâneo, está contaminada pelo espírito pós-moderno. O protagonista é um cidadão sem pátria, conhecedor das mais modernas tecnologias de comunicação e as usa para atingir seus objetivos publicitários. A narrativa faz uso da estética pós-moderna, do pastiche e da bricolagem de gêneros.


Fruição da arte em tempos de entretenimento

Ieda Magri*

Em 1970, sai a público, postumamente, a Teoria estética de Adorno. Nela o filósofo questiona o “direito de existência” da arte. Diante do desencantamento do mundo, após Auschwitz, e frente ao indomável crescimento tecnológico, Adorno expõe toda a negatividade que cerca o lugar da obra de arte no mundo moderno. A principal crítica de Adorno, ou a que causou – e causa até hoje – mais polêmicas, é a do prazer artístico. “Numa sociedade onde a arte já não tem nenhum lugar e que está  abalada em toda a reação contra ela, a arte cinde-se em propriedade cultural coisificada e entorpecida, e em obtenção de prazer que o cliente recupera e que, na maior parte dos casos, pouco tem a ver com o objeto” (Adorno, 1970, p. 27).

Para Adorno, “a experiência artística só é autônoma quando se desembaraça do gosto da fruição” (p. 20). Em sua crítica ao psicologismo e à doutrina Kantiana, chega à afirmação da necessidade de se extirpar qualquer vestígio de deleite e à consequente questão da finalidade da obra da arte. Dela deve ser afastado o caráter de práxis real.

Tornado irreconhecível, o deleite disfarça-se no desinteresse Kantiano. O que a consciência universal e uma estética condescendente concebem,  segundo o modelo do prazer real, sob o “prazer artístico” de nenhum modo existe provavelmente. O sujeito empírico não participa senão de um modo muito limitado e modificado na experiência  artística telle quelle; deveria reduzir-se à medida que a obra  adquire uma qualidade cada vez maior. Quem saboreia concretamente as obras de arte é um filistino; expressões como “festim para o ouvido” bastam para o convencer (p. 24).

Colocado o problema do prazer e a proposta de uma estética que o negue, o próprio Adorno lança, em seguida, a questão: “Mas, se se extirpasse todo o vestígio de prazer, levantar-se-ia então a questão embaraçosa de saber porque é que as obras de arte ali estão. Na realidade, quanto mais se compreendem as obras de arte, tanto menos se saboreiam”. Como contraponto, evoca o comportamento tradicional: o da admiração. Ao contrário do “prazer de ordem superior”, o sentimento de admiração faria com que o “contemplador desaparecesse na  coisa e não  se incorporasse a ela.  Para Adorno, só quem tem “uma relação genuína, na qual ele mesmo desaparece” não toma a arte como objeto. Ou seja, só é digno da arte aquele que a conhece a fundo: o artista e o crítico ou filósofo: “A espiritualização da arte estimulou o rancor dos excluídos da cultura, iniciou o gênero da arte de consumo, enquanto, inversamente, a aversão contra a última impeliu os artistas para uma espiritualização cada vez mais radical… O conceito de deleite artístico foi um compromisso infeliz entre a essência social da obra de arte e a sua natureza antitética a respeito da sociedade” (p. 25).

Theodor Adorno
Theodor Adorno

Se, para Adorno, o objeto estético exige da parte do contemplador o conhecimento (exige que se penetre na sua verdade e na sua não verdade) fica, como tarefa da sociedade a educação estética daquele que contempla. Adorno mostra duas opções ao produtor cultural: conceber a arte como naturalmente maior do que o sujeito que a contempla e, portanto, inacessível a ele de modo que apenas aqueles que têm competência cultural possam participar da experiência estética; ou iniciar (não aponta meios) uma educação estética baseada na reflexão sobre a arte, dissociada de um uso prático referente à cotidianidade e não baseada no desejo ou no prazer.

Com uma clara intenção polêmica, em 1972, Hans Robert Jauss escreve a sua  Pequeña apologia de la experiência estética. Apenas dois anos depois da Teoria Estética de Adorno, Jauss faz uma conferência pública no XIII Congresso Alemão de História da Arte em Constanza e esta é publicada em seguida, apenas acrescida da última parte, dedicada à função comunicativa da  experiência estética. Segundo o que escreve Daniel Innerarity, o tradutor do livro para o espanhol, “és una defensa apasionada del arte, del gozo estético frente a las estéticas de la negatividad y la seriedad  intelectualista del arte ascético, desde Platón hasta Adorno. Contra la oposición entre gozo y trabajo, arte y conocimiento, en ella se afirma que gozar es la experiencia estética primordial” (Jauss, 2002, p. 10). Segundo ele, Jauss se situa  entre os que consideram que a arte possui  um caráter  cognitivo  de modo que  a percepção estética não é nem o conhecimento máximo nem a pura recepção do indizível.

Hans Robert Jauss
Hans Robert Jauss

Jauss descreve a experiência estética privilegiando o ponto de vista da recepção[1] e critica Adorno especialmente por pensar a obra separadamente do seu receptor até o ponto de considerar apenas negativa a forma de pensamento que pressupõe um receptor que interfere na obra:

…Adorno desconfía tanto de la experiencia practica del arte en la era de la industria cultural que le niega toda función comunicativa en la sociedad, y destierra al público a la soledad de una experiencia en la que “el receptor se olvida de sí mismo y desaparece en la obra”. No se ve, sin embargo, cómo el solitario espectador, al que Adorno niega todo goce artístico y sólo concede “sorpresa” o “sacudida”, puede llegar desde la recepción contemplativa a la interacción dialógica. En esta medida la estética de la negatividad, que Adorno desarrolla como terapia frente a la industria cultural, deja abierta la pregunta acerca de cómo se franquea el abismo entre la praxis presente y el arte como promesse de bonheur para la experiencia estética, y como ha de ser conducido el solitario y sorprendido espectador, mediante la experiencia comunicativa del arte, a una nueva solidaridad de la acción (p. 50-51).

A experiência estética, para Jauss, proporciona um espaço de jogo frente à própria experiência, na medida em que as obras de arte não tiram o receptor de seu mundo da vida prática, mas abrem espaço à liberdade necessária  para perceber e modificar essa experiência cotidiana:

Do ponto de vista de la recepción, la experiencia estética se distingue  de otras funciones del mundo de la vida  por su peculiar temporalidad: hace ver las cosas de nuevo y proporciona mediante esta función descubridora el goce de un presente más pleno; conduce a otros mundos de fantasía y suprime en el tiempo la construcción del tiempo; anticipa experiencias futuras y abre así el campo de juego de acciones posibles; permite conocer lo pasado o lo reprimido, conservando de este modo el tiempo perdido. […] La percepción estética modifica a quien percibe, aunque sólo sea porque hace nuevamente eficaz la peculiaridad del contenido estético frente a una  rutinaria hacia los objetos (p. 18).

Hoje o termo gozo, desfrute – “tener uso o provecho de una cosa” – perdeu seu significado primeiro como modo de apropriação do mundo e autoconsciência, que legitimou, em outros tempos, o trato com a arte. Na atualidade a atitude de prazer  se enreda antes,  numa falsa consciência da cultura de consumo. O prazer para os que querem as coisas mais fáceis para desfrutar sem pensar. Assim, quando o receptor é pensado na teoria da arte, é concebido como alguém a ser educado contra sua inclinação ao prazer, transformando a sua empatia em reflexão e crítica. Só é objeto de estudo aquela atitude que ultrapassa a primeira relação de identificação do receptor com o objeto ou com o espetáculo. A experiência estética considerada genuína é somente aquela que se dá quando extirpa de si todo o prazer e  o eleva ao cunho de reflexão.

O que Jauss propõe, ao recuperar o direito do receptor ao gozo como experiência primordial é que se ultrapasse o pressuposto de que a reflexão estética seja o fundamento de toda a recepção. O gozo estético, então, pode ser associado ao conhecer e ao atuar: o receptor sai de uma atitude passiva e de entrega ao prazer, para a liberação da consciência produtiva, receptiva e intersubjetiva ou comunicativa. Assim, a experiência estética é sempre liberação de e liberação para, como, já podemos adivinhar, está posto na teoria aristotélica da catharsis.

Jauss afirma que a tradição ocidental da reflexão teórica da arte está totalmente voltada ao conceito platônico do belo e que seria interessante, senão necessário, descobrir ou redescobrir a práxis produtiva, receptiva e comunicativa da arte na história da cultura europeia. Ele assim o faz, pela retomada  dos conceitos de poiesis, aisthesis e catharsis. O termo poiesis – capacidade poética –  designa a experiência estética fundamental do homem, em sua produção artística, se familiarizar com o mundo, obtendo nessa atividade um saber que se distingue do conhecimento conceitual da ciência e também do fazer instrumental. A capacidade poética presente na construção do objeto artístico marca a separação entre o trabalho comum do cotidiano e o trabalho artístico. A aisthesis designa a  experiência estética fundamental, dada pela obra de arte, de renovar a percepção das coisas, embotada pelo costume. A catharsis, termo que mereceu maior reflexão por parte de Jauss nesse texto, designa a experiência estética fundamental de que o contemplador, na recepção da arte, se desliga da vida cotidiana  através da satisfação estética e retorna a uma identificação comunicativa ou orientadora da  ação.

A oposição entre experiência estética e  práxis moral, segundo Jauss, não é um efeito necessário da arte. Passou-se a pensar sobre ela quando qualquer modelo didático ou exemplar ou qualquer identificação ou simpatia pelo herói foi considerado uma banalidade e uma blasfêmia contra a arte autônoma. Para responder à questão de como  se poderia  superar a oposição entre experiência estética e  práxis moral, Jauss recupera a  catharsis, conforme a descreve Aristóteles, como  propriedade essencial da experiência estética.

Para Jauss, a estética da negatividade está presa na contradição de pressupor  a consciência emancipada de um espectador já formado no trato com a  arte e  que haveria de se liberar mediante o processo comunicativo ou consensual da experiência estética.

É somente a partir  da identificação espontânea, e não a partir das reflexões que suscitam, que a arte pode transmitir normas de ação. É também a partir delas  que se abre a possibilidade de identificação com o herói que, no entanto, é ambígua no sentido de que enquanto espaço comunicativo pode modificar comportamentos na quebra de normas e na reconfiguração que orienta a ação, mas o espectador tem também o direito de liberar-se para um prazer puramente individual. Esta ambivalência fundamental é o preço a ser pago pela catharsis pela mediação do imaginário.

Contudo, a experiência estética não se esgota na alternativa entre um efeito emancipador e um efeito conservador da arte na sociedade. Jauss sustenta que entre  os extremos  de uma função  transgressora de normas e outra cumpridora de normas, há uma outra opção no campo da função comunicativa da arte, que é a  configuradora de normas.[2]

Do ponto de vista da comunicação, a experiência estética se dá, quando ao espectador/receptor é dado o direito de aprovação, de “aceitação na liberdade” como já apontou Kant no juízo do gosto. Jauss recupera Kant, como o pensador “que é uma autoridade indiscutível”, único que apresenta a “receita” de como pode a arte afirmar sua negatividade  frente à realidade social mantendo a sua função configuradora de normas: “el juício estético puede proporcionar ejemplos tanto de um juício desinteresado, no condicionado por uma  necesidad, como de um consenso abierto, no determinado principalmente por conceptos y reglas” (p. 93). A remissão do juízo estético à aprovação dos demais possibilita a participação em uma norma constituinte e, ao mesmo tempo, constrói a sociedade no pluralismo estético. Jauss sustenta que a Crítica do juízo de Kant fez época pela subjetivação da estética, enquanto que seu conceito pluralista de juízo estético que remete a uma aprovação foi esquecido. E só ganhou atualidade agora, diante de uma indústria cultural dominante e dos efeitos dos meios de comunicação de massa. Assim, a tentativa de recuperar a função comunicativa da experiência estética resulta numa positivação dessa experiência. Diante de tal positivação a estética da negatividade não deve “retroceder assustada”  senão que traduzir  novamente as formas transgressoras de normas ou de identificação irônica numa função configuradora de normas. Se a experiência estética não se caracteriza apenas pela criação na liberdade, mas também pela aceitação, isto é, no âmbito da recepção na liberdade, o consenso  aberto, não determinado por conceitos e regras, mas pelo exemplar, dá ao comportamento estético uma significação mediada pela praxis da ação. O receptor joga com os valores preestabelecidos e os que a obra adquire no momento da recepção, portanto ele interfere na obra, faz uma escolha e acrescenta seu próprio julgamento.

Jauss aponta o problema de sua própria teorização da recepção como o problema do horizonte de expectativas do receptor e das concepções pré-recepção que se vinculam à identificação. Isso diz de uma recepção da arte condicionada por fatores externos que impedem o acesso e a identificação de certo público com certa arte.

Nesse sentido, torna-se relevante lembrar as reflexões de Pierre Bourdieu em As regras da arte, quando aponta para a cisão entre uma arte concebida para o grande público, fortemente marcada por sua inscrição na categoria que quer agradar o público, conferir ganhos financeiros imediatos e se legitimar justamente pelo gosto do maior número e outra, que busca sua legitimidade entre os pares, geralmente os próprios artistas, e cuja característica maior seria a busca da autonomia em relação ao mercado.

Na literatura, por exemplo, o prestígio de um gênero em relação a outro, depende muito da qualidade do público:

Os progressos do campo literário no sentido da autonomia são assinalados pelo fato de, em finais do século 19, a hierarquia entre os gêneros e os autores, segundo o critério específico do juízo dos pares ser quase exatamente a inversa da hierarquia segundo o sucesso comercial (Bourdieu, 1996, p. 133-34).

Ou seja, na hierarquia segundo o lucro comercial aparece em primeiro lugar o teatro, depois o romance e por último a poesia; na hierarquia segundo o prestígio, vem primeiro a poesia, depois o romance e por último o teatro. Os gêneros distinguem-se, portanto, por 3 aspectos: preço do produto (mais alto, mais prestígio); qualidade dos consumidores (mais consumidores, menos prestígio); e ciclo de produção (quanto mais rápido o lucro é obtido, menos prestígio).

O mesmo paradigma ainda permanece hoje, quando há uma obstinada aversão dos artistas ao que vende e um prestígio alto pelo que não vende, considerado cult. Ao mesmo tempo, há o fetiche do mercado, que aproxima os artistas do público na mesma medida em que diminui seu prestígio entre os pares. Esses valores são preconcebidos e orientam a aproximação entre obra e receptor, determinando a fruição da arte, num primeiro momento, nem pelo prazer estético, nem pelo conhecimento, mas sim pelo preconceito criado pelo mercado e pelos artistas.

Adorno e Horkheimer, ainda em 1947, chamavam a atenção para o problema da cultura de massa no livro Dialética do esclarecimento. A denúncia de Adorno de que a arte é tomada como mercadoria pela indústria cultural e adaptada ao consumo em larga escala, aponta para um receptor forjado no próprio sistema industrial. Apossando-se da “arte superior” e da “arte inferior”, a indústria cultural tira-lhes o sentido original para tornar uma acessível, no sentido de ser aceita, entendida e consumida e outra mais limpa, com um tratamento mais aceitável, fazendo perder “através de sua domesticação civilizadora o elemento de natureza resistente e rude”. Adorno deixa claro que  a massa  à qual a indústria cultural se dirige não é  “o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 26).

Contudo, a premissa de que, como indústria, os meios acabariam reduzindo os públicos ao padrão de consumidor ideal, produzindo um quadro de homogeneização, é refutada por Renato Ortiz, no seu livro Mundialização e cultura, entre outros autores que resistem ao pensamento que toma o receptor como “tolo cultural” completamente manipulado pela indústria. Esses autores operam mais com conceitos de “nivelamento”, “classes de consumo” e defendem que há, ao lado de uma produção homogeneizante, a diversidade de culturas e a democratização do acesso à arte chamada erudita.

Adorno e Horkheimer citam o cinema como prova da atrofia da atividade do espectador:

…para seguir o argumento do filme, o espectador deve ir tão rápido que não pode pensar, e como, além disso, tudo já está dado nas imagens, o filme não deixa à fantasia nem ao pensar dos espectadores dimensão alguma na qual possam mover-se por sua própria conta, com o que adestra suas vítimas para identificá-lo imediatamente com a realidade (p. 122).

Walter Benjamim aborda o espectador de cinema por outro ângulo e, conforme Susan Buck-Morss, “para Benjamim, a técnica da montagem tinha ‘direitos especiais, talvez mesmo totais’, como uma forma progressista, porque ela ‘interrompe o contexto em que se insere’ e assim ‘age contra a ilusão’” (Buck-Morss, 2003, p. 97).

Walter Benjamin
Walter Benjamin

Considerando o papel do receptor para pensar a arte, Benjamim apresenta uma visão menos pessimista do fenômeno das massas em relação ao pensamento de Adorno (cuja Dialética do esclarecimento é uma resposta ao ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Benjamin). Martin-Barbero sustenta que Benjamim “foi o pioneiro a vislumbrar a mediação fundamental que permite pensar historicamente a relação da transformação nas condições de produção com as mudanças no espaço da cultura, isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção, da experiência social”. Para Benjamim, “pensar a experiência é  o modo de alcançar o que irrompe na história com as massas e a técnica” (Martin-Barbero, 2003, p. 84).

Pensar a experiência é admitir que estamos cada vez mais pobres dela e que “essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade” (Benjamin, 1996, p. 192). Não há mais volta a uma riqueza de experiências, porque os tempos são outros e agora “surge uma existência que se basta a si mesma”.  Pensar a experiência é, ao mesmo tempo, conseguir entender as transformações que esse empobrecimento produz – na mesma medida em que é produzido – na e pela massa.

Uma das chaves para se entender a nova experiência, para Benjamin,  está na aproximação entre homem e arte operada a partir da reprodutibilidade técnica. Essa aproximação  que destruiu a aura das obras de arte produziu uma mudança nos modos de recepção: o valor da arte não é buscado numa atitude de recolhimento diante da obra, mas na percepção e no uso. Essa é a leitura de uma grande transformação social que coloca o homem, “qualquer homem”, inclusive o homem da massa próximo da arte.

É nesse sentido que Benjamin situa o cinema de modo oposto ao de Adorno: “o cinema corresponde a modificações de longo alcance no aparelho perceptivo, modificações hoje vivenciadas na escala de existência privada por qualquer transeunte no tráfego de uma grande urbe” (Martin-Barbero, 2003, p. 87). Martin-Barbero ainda cita Habermas para acentuar as diferenças do pensamento dos dois expoentes da Escola de Frankfurt: “a experiência que Adorno procura desesperadamente resguardar é a que vem ‘da leitura solitária e da escuta contemplativa, quer dizer, a via régia de uma formação burguesa do indivíduo”, e acrescenta que Benjamim deslocou-se a tempo “de uma experiência burguesa que tinha deixado de ser a única configuradora da realidade” (p. 91).

O apontamento dos novos dispositivos da recepção, cuja chave está na percepção e no uso, é feito por Benjamim no texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Segundo seu raciocínio “a história de toda forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos que só podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, numa nova forma de arte” (Benjamin, 1996, p. 192). Desse modo situa o surgimento da mudança na recepção operada de forma visível pelo cinema, no Dadaísmo: “o Dadaísmo tentou produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos que o público procura hoje no cinema” (p. 191). Os dadaístas operam uma ressignificação da contemplação artística: como estavam menos interessados em vender suas obras do que em agir de forma contrária, tornando-as impróprias para o consumo e para a contemplação, opõem ao recolhimento da burguesia a atitude de distração:

Ao recolhimento, que se transformou na fase da degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento antissocial, opõe-se a distração como uma variante do comportamento social. […] Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica (p. 191).

O Dadaísmo tem o mérito de  recuperar o caráter sensível da percepção, ou seja, a percepção onírica, e com isso preparou o espectador para o cinema, “cujo valor de distração é fundamentalmente tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos que golpeiam intermitentemente o espectador” (p. 192).

A atitude de recolhimento do indivíduo cuja disposição para a arte é cultivada inexiste naquele que acessa a nova arte através do choque, pela percepção tátil, produzido pelo cinema. A recepção tátil se efetua menos pela atenção do que pela exposição à arte, e desse modo acaba, pelo hábito, produzindo a disposição para a recepção ótica: “no que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada” (p. 193).

Paolo Virno, no livro Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporâneas propõe uma forma de ler o tempo histórico atual através do conceito de multidão, preservando como uma das características dessa coletividade a atitude distraída da qual falava Benjamim. Virno sustenta que a multidão  atual se caracteriza principalmente pela linguagem, pelo intelecto e situa no nascimento da indústria cultural o momento em que trabalho – poiésis – e política – práxis – deixam de ser conceitos separados para convergirem. O mesmo argumento, tomado pela via da recepção, conforma o texto de Jauss, como exposto antes.

É nesse momento que o trabalhador se torna um virtuoso (executante sem produto material) através da linguagem, porque a faculdade comunicativa torna-se um componente essencial de cooperação produtiva: “en la industria cultural, la actividad sin obra, es decir la actividad comunicativa que se cumple en sí misma, es un elemento central y necesario. Y justamente por este motivo es en la industria cultural donde la estructura del trabajo asalariado coincidió con la de la acción política” (p. 56).

Na indústria cultural não faltam amostras do trabalho material, resultado final da produção artística; no entanto, a produção material é automatizada enquanto não só  o trabalho artístico, mas todo aquele que é executado pelo homem, depende cada vez mais de sua performance linguística, comunicativa e de sua capacidade intelectual, que deve ser entendida como faculdade de pensar, potência e não conhecimento adquirido.

Sendo mais otimistas ou mais pessimistas, todos os autores abordados neste artigo partilham da premissa de que a indústria cultural e o surgimento de novos processos de tecnologia no campo da arte modificaram tanto sua produção como sua recepção e em maior ou menor grau insistem na necessidade de se acompanhar a “evolução” da técnica com um olhar crítico que também lance mão de categorias flexíveis capazes de dar conta dessas metamorfoses. Se está claro que a produção e a percepção da arte se modificaram com a reprodução técnica e com as mudanças profundas no mundo do trabalho, está ainda mais claro que o fruidor de arte hoje é sempre também um artista em potencial. Seu modo de perceber a arte é o ponto de vista daquele que é capaz de fazer também e não mais a do tolo que vê um gênio. As faculdades ditas artísticas, próprias do terreno da arte migraram para o mundo do trabalho, como aponta Virno, o mundo do trabalho exigindo o uso da linguagem e da imaginação mais do que o trabalho braçal, afastado do mundo da arte.

A arte, assim, passa a pertencer muito mais ao mundo do entretenimento (mesmo as exposições de artes plásticas, sempre antes mais restritas a um público conhecedor) do que ao mundo do conhecimento. Ou seja, aquilo que Jauss reivindicava, contra Adorno, é cada vez mais visível como real na recepção estética e, talvez, aquele receptor contemplativo que Adorno queria resguardar esteja hoje em extinção.

*Ieda Magri é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora substituta do Programa de Ciência da Literatura da mesma universidade, onde também desenvolve pesquisa de pós-doutorado sob supervisão de Beatriz Resende. É autora dos livros de ficção Tinha uma coisa aqui (7Letras) e Olhos de bicho (Rocco).


Referências

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

ADORNO Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura: obras escolhidas, volume 1. 10ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar – Walter Benjamim e o projeto das passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte; Chapecó: UFMG; Argos, 2003.

JAUSS, Hans Robert. Pequeña apologia de la experiencia estética. Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Trad. Teresa Cruz. 1ª ed. Lisboa: Passagens, 1993.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: editora da UFRJ, 2003.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Trad. Adriana Gomes, Juan Domingo Estop, Miguel Santucho. Traficantes de sueños: Madrid, 2003.

Notas

[1] “[Jauss é] conocido fundamentalmente por haber fundado la Escuela de Constanza y como cabeza visible de la llamada ‘estética de la recepción’, un enfoque hermeneutico de las artes y la literatura, es uno dos renovadores más radicales de la estética contemporánea” (p. 10).

[2] As diferentes funções são associadas ao tipo de identificação com o herói. Jauss apresenta uma tabela de tipos de identificação estética com o herói,  a sua relação com a disposição receptiva, e as normas de comportamento do espectador (p. 87 e 88).

Um procedimento de Nuno Ramos: a imagem moderna desobrada | Júlia Studart*

Há uma questão saliente no trabalho do escritor e artista visual Nuno Ramos: uma espécie de apropriação desapropriante (num movimento entre posse e despossessão) que ele desenvolve, como modo de uso e operação crítica, logo política, de fragmentos e destroços de algumas imagens da literatura e da arte modernas para tentar reposicioná-las com o seu trabalho numa discussão por dentro do circuito da literatura e da arte agora, no presente. São inúmeros os exemplos dessas intervenções disjuntivas e, mais ainda, são cortes, montagens e acessos extremamente convulsos e intermitentes, o que parece tornar o que faz muito mais interessante e pertinente ao justapor e disseminar essas imagens manifestas entre o que escreve nos seus livros e o que constrói como intervenção visual nas suas exposições. Nuno Ramos procura fazer usos variados da potência da imagem moderna, quase sempre colada a um manifesto, numa virtualização que tende a propor e desfazer toda ideia de programa, ordem ou hierarquia, compondo assim novas imagens numa inoperação do comum.

Importante, portanto, lembrar que é Jean-Luc Nancy quem aponta para um désouvrement nessa conjunção, nessa constituição de uma comunidade inoperante, que seria também, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensarmos a arte e a literatura  – como elaboração ficcional da história ou da história como uma invenção constitutiva – como aquilo que ainda pode impor alguma forma de vida contra o poder, como  aquilo que pode viver e, principalmente, sobreviver na intimidade de um ser estranho. Diz ele que é

porque há isto, este desobramento que reparte nosso ser em comum, há “a literatura”. Ou seja, o gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspenso de tocar o limite, de indicá-lo e de inscrevê-lo, mas sem franqueá-lo, sem aboli-lo na ficção de um corpo comum. Escrever para o outro significa na realidade escrever a causa do outro (Nancy, 2001, p. 124).[1]

É pensando nisso – há a literatura / há arte e, muito, no que é escrever para o outro, no que é escrever a causa do outro ao tocar o limite na ficção de um corpo comum – que podemos começar a ler os usos dessas imagens no trabalho de Nuno Ramos entre a literatura e as artes visuais como um désouvrement. Em 1995, por exemplo, ele se junta a Paulo Pasta e Fábio Miguez para realizar uma curadoria para o Conjunto Caixa Cultural, de São Paulo, de uma exposição do gravurista suíço-carioca Oswaldo Goeldi em comemoração ao seu centenário de nascimento. Realizaram também uma pequena publicação reunindo gravuras de Goeldi com alguns poemas de Manuel Bandeira, demarcando aquilo que, com Jacques Rancière em seu livro O destino das imagens, é possível chamar de uma composição seriada a partir dos usos da frase-imagem. A frase-imagem, diz Rancière, não é apenas a união de uma sequência verbal e de uma forma visual; mas sim uma potência de expressão que pode vir tanto nas frases de um romance quanto numa encenação teatral ou num filme ou ainda na relação do dito com o não-dito de uma fotografia. Para Rancière, uma frase não é apenas um dizível e uma imagem não é apenas um visível. E completa:

Pelo termo frase-imagem entendo a união de duas funções esteticamente por definir, isto é, pela maneira como desfazem a relação representativa da imagem pelo texto. No esquema representativo, a parte do texto era a do encadeamento ideal das ações, a parte da imagem era a do suplemento de presença que lhe dá carne e consistência. A frase-imagem derruba esta lógica. No seu seio, a função-frase é sempre a do encadeamento. Mas, doravante, a frase desencadeia-se, tanto que é ela que dá carne. E esta carne ou esta consistência é, paradoxalmente, a da grande passividade das coisas sem razão (Rancière, 2011, p. 65).

Temos aí uma espécie de quebra da lógica representativa, ou seja, uma queda da legenda. Isto pode ser também um procedimento evidente que passa a constituir a “carne passiva das coisas sem razão” nesse projeto da publicação que segue o modelo de um caderno de notas aleatórias, magro e com espaços brancos que desfaz, assim, qualquer possibilidade de leitura das imagens como legendas dos poemas e vice-versa, ou seja, dos poemas como legendas das imagens. O que se tem é uma conversa resoluta e política entre as gravuras e os poemas página a página, independentes, e desde o título do caderno, quase à modo de Dostoievski, uma das leituras obsessivas de Goeldi, para compor aí uma frase-imagem na conjunção de dois termos díspares: Noite morta.[2] E, nessa ambivalência de figurações da noite que morre, da noite que morreu, Goeldi e Manuel Bandeira traçam, trocam e montam uma espécie de impasse entre o que Nuno Ramos, no texto-posfácio do caderno, chama de “intervalo-eixo” entre o agouro e a libertação, o abandono e o esquecimento. Diz ele que os objetos preferidos de Goeldi – as latas derrubadas, os cães vadios, os móveis ao relento, por exemplo – são preservados apenas em sua mesquinhez, mantidos em seu mistério e, por isso, plenos de potência.

Há nas gravuras de Goeldi, diz Nuno Ramos, uma tristeza que resulta não como atributo, mas sim como condição. São coisas que foram deixadas de lado, como um urubu pousado (“que pertence ao chão”) ou uma ossada. Assim, ele entende que essa tristeza que vem dos trabalhos de Goeldi é “banhada, não encontro termo melhor, [diz ele] numa estranha calma” (Ramos, 1995, p. 37). Por isso, essa “espacialidade acentuada, algo metafísica, que isola os seres e torna os lugares profundos, maiores do que cada um” (Ramos, 1995, p. 37). E, ao mesmo tempo, são esses elementos dispostos ao abandono que acrescentam à “espacialidade desencarnada pequenos comentários lúgubres”, indicando que, “num primeiro momento, tudo no mundo de Goeldi parece triste, isolado e caminha para a morte” (Ramos, 1995, p. 38). Desse modo, é importante verificar nessa série de frases-imagens que se armam aí como, por exemplo, entre o poema de Bandeira intitulado Momento num café e a gravura de Goeldi intitulada Destino, o que se pode chamar também de intermitência, de imagens intermitentes, que oscilam entre a palavra e a imagem, entre a imagem e a palavra, criando uma aparente disposição diferida entre os dois trabalhos (procedimento muito próprio de Nuno Ramos e exercido nessa curadoria como um désouvrement do seu gesto como artista e escritor ao tomar posse da imagem moderna para tocar as questões da vida e da arte contemporâneas):

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Bandeira, 1993, p. 155)

Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.
Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.

O poema de Bandeira é de seu livro Estrela da manhã, de 1936, e na montagem do livro vem logo depois do poema Oração a Nossa Senhora da Boa Morte, quando alguém, sem escolha, pede ajuda às santas Teresinha e Rita dos Impossíveis. E indica que não quer glória, nem amores, nem dinheiro; quer pouco, quer apenas alegria. Adiante, desiste até da alegria, e pede ao menos uma boa morte. Este culto está vinculado ao final da oração da Ave-Maria quando o pedido que se faz à santa é que ela rogue “por nós na hora de nossa morte, amém”. No caso de Momento num café ficamos diante de um poema de observação das circunstâncias cotidianas – muito próprio do procedimento de Manuel Bandeira – entre uns homens distraídos, agarrados à vida num espaço de encontro, e um ritual de morte que se dá num cortejo que passa diante do café.

O descompasso armado pelo poema de Bandeira é, seguindo o que Nuno Ramos diz de Goeldi, praticamente o mesmo: ao mesmo tempo agouro e libertação (se pensarmos na ideia que é a morte que liberta o corpo definitivamente), e abandono e esquecimento (se pensarmos que, no olhar demorado de um único homem, isolado, há um saber do quanto a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, uma traição). E, ao que parece, a gravura de Goeldi segue esse mesmo empenho, basta reparar um pouco na flanagem do espectro, o fantasma, com o crânio à mostra, um oco ósseo, uma sobra humana da morte, a mão direita delicadamente colocada no bolso do casaco e, do outro lado, a mão esquerda que parece empunhar uma foice, um instrumento da Morte como figuração do que ela é. Importante perceber o contorno de um corpo insuspeito que pertence ao chão ao lado do espectro e, ao redor, como nos apresenta Nuno Ramos, temos uma

espacialidade acentuada, com indicações de profundidade bem marcadas, que aumentam a fantasmagoria e o isolamento e, de outro lado, numa intensa comunhão formal entre os elementos, […] movimento e solidez, vento e pausa, dilaceramento expressionista e calma oriental. Através dessa dupla raiz o expressionismo de origem é superado. Solidão e tristeza deixam de ser propriamente expressivas para elevarem-se a uma condição exemplar, a de atributos adormecidos porém essenciais da nossa natureza. Tudo em seu trabalho participa dessa qualidade, desde os homens [quase sempre pobres-diabos] até os cachorros humildes, as latas vazias, os paralelepípedos. Não há foco ou hierarquia e a presença humana espalha-se num entorno também ele vivo e movente. Esquecidos ali, sem finalidade prática, os seres esparramados se encontram. São restos, pedaços e detritos que um vento metafísico juntou (Ramos, 1995, p. 38).

Outro bom exemplo desse empenho da curadoria como um gesto de seu procedimento é o uso do poema Boi morto de Bandeira, que abre o livro OPUS 10, publicado em 1952, que na publicação para a exposição do Conjunto Caixa Cultural aparece ao lado da gravura de Goeldi intitulada Náufragos. E, mais uma vez, fica-se diante de uma espectralidade moderna, a do acaso, do acidente (é possível lembrar também de Mallarmé e seu Un coup de dés), quando o que se vê é uma cabeça em movimento com uma transparência fantasmagórica, um anúncio de morte, num paradoxo interessantíssimo: mesmo náufragos “os seres de Goeldi são sobreviventes”, avisa Nuno Ramos; “os seres perdem o rigor mortis e abrem seus contornos a similitudes e passagens insuspeitadas” e é a queda que oferece redenção a quem caiu (Ramos, 1995, p. XX). O poema de Bandeira também aponta para esse cenário de queda e para esses seres, os fora de prumo, os mensageiros da passagem, os desequilibrados:

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvore da paisagem calma,
Convosco – altas tão marginais!
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi desconhecido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.
(Bandeira, 1993, p. 213)

Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.
Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.

A repetição diferida – boi morto, boi morto, boi morto – desse corpo que se exibe como um restolho à deriva é também muito própria dos interesses de Nuno Ramos em seu trabalho – trabalhar com os destroços do presente, arrancar a pele das coisas –, por exemplo, tem a ver com uma temporalidade de quando a linguagem fala de si mesma, quando ela nos fala sempre da cegueira que a constitui (cecité), como aponta Derrida no livro Memórias de cego (2010, p. 22-23). Pensar o poema, se político, como um corpo animal exposto – figurado nesse boi morto – é armar uma proposição que ao mesmo tempo em que desfaz o caráter humano – “dividido, subdividido” – termina também por refazê-lo e reconduzi-lo a uma vertente deliberada de instinto e desejo – morto, sem forma ou sentido / ou significado –, mais ou menos quando o desejo de saber ver (uma indecidibilidade: vontade de saber – savoir / vontade de ver – voir) fica mais perto de uma natureza da vontade, de um estado natural, como sugeriu Montaigne (1972, p. 481). Basta reparar como Bandeira termina o poema: “O que foi / ninguém sabe. Agora é boi morto, / Boi morto, boi morto, boi morto.

Assim, é possível perceber algo dos modos de uso da imagem moderna por Nuno Ramos – esta, por exemplo, que vem e que surge entre Bandeira e Goeldi – quando a expande para as suas séries de intervenções plásticas ou por seus livros, invariavelmente trabalhos que buscam fincar-se no espaço como um crivo (este espaço informal, trançado, aberto e contingente), como escreve ele no seu primeiro livro, Cujo, publicado em 1993: “Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira, sem quebrar. Tive de descascar a pele dos tijolos aos poucos, com paciência. […] Fui retirando camadas sucessivas, cada vez mais onduladas e acidentadas” (Ramos, 1993, p. 30-31). Ele opta por imagens de corpos expostos quando refaz essas imagens em textos e objetos, também por exemplo, a partir de bichos mortos, corpos abandonados ou objetos descolocados, como aviões enfiados em galhos de árvores ou uma cama afundada na areia da praia.[3]

O seu livro de poemas intitulado Junco, de 2010, um verbete anfíbio e díspar, que tanto pode ser o nome de uma embarcação chinesa quanto o de uma planta de folhas quase soltas, é composto de imagens de corpos de cães (expostos à beira da estrada) engendradas com imagens de troncos soltos e apodrecidos (abandonados na praia). São fotografias, espalhadas pelo livro, que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas.

Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)

Uma pequena nota ao final do livro, diz que as fotografias foram feitas enquanto escrevia os poemas e que sempre os imaginou juntos, como rasuras feitas de pedaços, detritos, restos e palavras sempre com o cuidado extremo de que no intervalo entre palavra e objeto / objeto e palavra não se tenha aí apenas uma legenda entre um e outro. Tanto que em uma narrativa que está em seu livro Ó, de 2009, “Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?”, há uma pergunta definidora que rearma a dimensão da frase-imagem toda feita a partir de destroços: “Mas faz parte da indiferença meio humilde, meio vagabunda dos cachorros deixar-se atropelar sem sequer amassar a lataria, sem ameaçar nossa integridade física nem causar prejuízo a quem os assassina” e “Cachorros sonham?” (Ramos, 2008, p. 151-152) Imagem intermitente que, por exemplo, já está no seu trabalho de 2008, “Monólogo para um cachorro morto”, que, além de uma instalação com lâminas de mármore, um monitor de tela plana exibe um filme em que Nuno Ramos encosta o carro no acostamento da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, segue até o guard-rail onde há um cachorro morto e deixa um aparelho de som – com os alto-falantes voltados para o animal –  que reproduz o texto “Monólogo para um cachorro morto”. Segue um trecho do texto:

Entre nós dois poesia (Pausa). Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada. Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique assim, morto (Ramos, 2010a, p. 442).

São exemplares as exposições Para Goeldi 1, de 1996, na Galeria AS Studio, em São Paulo, com 2 séries de desenhos e 4 esculturas; e Para Goeldi 2, de 2000, na Casa Vermelha, em Curitiba, no Paraná, com móveis usados e lâminas de granito. As exposições parecem retomar uma anotação do seu livro Cujo, de que “A semelhança é o melhor disfarce”.

Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.

Na primeira, o uso do urubu, animal de agouro e libertação, exposto e impresso em areia e silicato; a mala, a cadeira e o cesto fundidos em bronze com restos de vidro derretidos sobre eles, coisas de abandono e esquecimento, até as reproduções de algumas gravuras de Goeldi que sofrem interdição de fumaça e carvão para criar um ambiente que indica uma transparência; e, na segunda, os usos dos móveis em simbiose com as lâminas, como se fossem paredes, e vice-versa e a gravura Tarde, de Goeldi, ampliada numa cava do chão de cimento enchida  com óleo queimado indicando agora um ambiente indefinido – “uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria uma espécie de ambiente” (Ramos, 1993, p. 65). Essas exposições de Nuno Ramos sugerem a mesma desierarquização proposta pelas imagens dos poemas de Bandeira entre vivos e mortos e pelas imagens das gravuras de Goeldi “entre seres e coisas, homens e animais, natureza e social” (Ramos, 1995, p. XX) com uma luz desmesurada e destrutiva em que a tristeza, a solidão e a noite se misturam formando um contorno de corpos e de vida sobreviventes (Ramos, 1995, p. XX).

Nuno Ramos radicaliza esse procedimento ao retomar a imagem que vem dos urubus de Goeldi ou do boi morto de Bandeira, por exemplo, no seu trabalho para a Bienal de São Paulo, em 2010: Bandeira branca. Trabalho composto de “três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções ‘Bandeira branca’ (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), ‘Boi da cara preta’ (do folclore, por Dona Inah) e ‘Carcará’ (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho” (Ramos, 2010b); ou seja, é a deliberação ponderada, sobrevivente e crítica do uso de algumas imagens intermitentes que retira da literatura e da arte modernas para provocar embaraçadas e embaraçosas discussões da crítica e do público de agora, o que só demonstra a força política de um trabalho ao apontar para o furo de várias imposições por dentro do circuito fechado da arte.

Por fim, uma última inferência que pode ser pensada como um gesto mais anacrônico ainda, no sentido de uma colisão dos tempos e de uma modulação entre posse e despossessão (uma apropriação desapropriante), é o seu último livro de pequenas narrativas publicado em 2010: O mau vidraceiro. O título é uma recuperação indicativa da imagem do poema homônimo de Charles Baudelaire publicado no pequeno conjunto chamado Spleen de Paris em 1869, dois anos depois de sua morte. Nesse livro Baudelaire desfaz a forma do poema e o contamina definitivamente com a prosa; e esse “poema em prosa” trata de uma natureza contemplativa em torno de um dos elementos mais fascinantes da nova arquitetura de seu tempo, o vidro. Ao mesmo tempo trata de uma natureza demoníaca própria do homem que explode diante das novas formas e circunstâncias da vida moderna. O narrador, pois, reclama com um vidraceiro que faz pregão em bairros pobres sem ter entre seus objetos de venda nenhum vidro colorido. Empurra-o para a escada e, numa explosão de fúria e ímpeto, grita que é preciso, de algum modo, “a vida com beleza! a vida com beleza!” (Baudelaire, 1991, p. 29) Nuno Ramos, por sua vez, desenha todo o seu livro a partir dessa ambivalência da natureza do homem moderno sugerida por Baudelaire em seu poema na imagem do mau vidraceiro. Na quinta narrativa de seu livro, por exemplo, Homem-bomba, fazendo uso de uma posse e de uma despossessão, amplia o impreciso dessa ambivalência da imagem moderna ao armar uma “desobra” e jogá-la ao mar mais impreciso ainda do mundo, da vida e da arte contemporâneas. Eis a pequena narrativa, na íntegra:

Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos [oitavas, quartas, terças] com um único eco, bum, da minha solidão – vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará (Ramos, 2010c, p. 17).


* Júlia Studart é poeta e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, sobre literatura e arte brasileiras (a partir do trabalho do Nuno Ramos). Publicou Arquivo debilitado, o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Editora Dobra, SP, 2012), Livro Segredo e Infâmia (Editora da Casa, SC, 2007), Marcoaurélio!, uma plaqueta com a artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, CE, 2006), entre outros.

Referências

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

BAUDELAIRE, Charles. “O mau vidraceiro” In: O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Trad. Antonio Pinheiro Guimarães. Lisboa, Relógio D’àgua, 1991.

DERRIDA, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas. Trad. Fernanda Bernardo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

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RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Luís Lima. Lisboa, Orfeu Negro, 2011.

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RAMOS, Nuno. “Bandeira branca, amor – Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”. Folha de São PauloIlustríssima. São Paulo. 17 de out. 2010b.

RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Ed. 34, 1993.

RAMOS, Nuno. “Goeldi: agouro e libertação” In: Noite morta. BANDEIRA, Manuel
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RAMOS, Nuno. Junco. Sao Paulo, Iluminuras, 2012.

RAMOS, Nuno. Ó. Sao Paulo, Iluminuras, 2008.

RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. Sao Paulo, Iluminuras, 2010c.

Notas
[1] Tradução minha a partir da edição espanhola de Pablo Perera: “Porque hay esto, este desobramiento que reparte nuestro ser en común, hay ‘la literatura’. Es decir, el gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspendido de tocar el límite, de indicarlo y de inscribirlo, pero sin franquearlo, sin abolirlo en la ficción de un cuerpo común. Escribir para el otro significa en realidad escribir a causa del otro.”

[2] Importante lembrar que Goeldi também compôs para as narrativas de Dostoievski uma série de gravuras. Assim é que alguns livros das novas edições do escritor russo feitas pela Editora 34, de São Paulo, têm, nas capas, algumas dessas gravuras. Caso, por exemplo, de Memórias do Subsolo e de A Dócil / O sonho de um homem ridículo.

[3] Faço referência, respectivamente, aos trabalhos Fruto estranho, de 2010, exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Marémobilia, de 2010, realizado em Nova Almeida, no Espírito Santo.

Poesia brasileira contemporânea: ações plásticas e performáticas | Renato Rezende*

Em seu influente artigo “A escultura no campo ampliado”, publicado em 1978, Rosalind Krauss apoia-se na então ainda incipiente evidência de uma lógica artística não mais modernista, e sim pós-modernista, para propor e justificar o conceito de “campo ampliado” para a escultura contemporânea. Definindo escultura como aquilo que se dá no espaço duplamente negativo de “não-monumento” e “não-arquitetura”, a crítica de arte norteamericana constrói sua argumentação problematizando a categorização modernista da escultura e concluindo, por fim, que a “escultura não é mais apenas um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes. Ganha-se, assim, ‘permissão’ para pensar essas outras formas” (Krauss, s/d, p. 91). Essas outras formas possíveis de pensar a escultura, contrariando a necessidade da pureza de mediums e da autonomia da obra de arte pregada pelo cânone modernista, situando-se no espaço aberto e maleável de uma troca dinâmica entre paisagem/arquitetura/escultura, abrem-se também para a prática artística de ocupação de vários lugares diferentes pelo artista dentro do campo da cultura e para o uso diversificado de suportes.[1]

Após estabelecer o campo ampliado da escultura, Rosalind Krauss indica que o mesmo procedimento pode ser tentado com outros gêneros artísticos e sugere, por exemplo, que a dilatação do par originalidade/reprodutibilidade possa revelar os contornos do campo ampliado da pintura. Isso é tentado por Gustavo Fares em seu artigo “Painting in the Expanded Field”. O que nos interessa no artigo de Fares é a sua conclusão de que a pintura tem, durante os séculos, perdido um território que era seu.[2] Pensando nesses termos – o da perda de um lugar e, portanto, como veremos, de uma denominação – uma observação semelhante poderia ser feita, e com maior justiça, em relação à poesia: durante os séculos de desenvolvimento da cultura ocidental ela tem perdido um território que era originalmente seu. Em uma rápida e abrangente genealogia da poesia na nossa cultura, desde suas origens gregas, onde ela ganhava contorno e status de arte total, vemos que a tradição épica, ou seja, a tradição homérica, que no correr dos anos gerou Virgílio, Ariosto, Tasso, entre muitos outros, se transformou, com a ascensão da burguesia, em romance e, com o século das imagens, em cinema.[3] Quase ninguém mais escreve longos poemas narrativos com centenas de páginas, muitos personagens e aventuras.[4] Da mesma forma, a tradição da poesia lírica inaugurada por Arquíloco (segundo Nietzsche em O nascimento da tragédia) teria se transformado, na era da cultura de massas e indústria cultural (com a facilidade da reprodução das gravações sonoras), em canção popular.[5] Hoje, são raros os poetas que se dedicam ao poema lírico (sem fazer uso da ironia) e do poema épico tradicionais.[6] Esses gêneros, naquela modelagem, foram, por assim dizer, “subtraídos” da tradição da poesia e transferidos para (e alterados em) os mediums da música, da prosa e do cinema.[7] A poesia, então, adentrou o século 20 com um trunfo que os poetas julgavam inalienável: o pensamento – justamente por ser o pensamento constituído por palavras (assim como poemas são feitos de palavras, segundo Mallarmé). Não é coincidência que muitos dos grandes poetas do século passado foram poetas do pensamento: Eliot, Pound, Pessoa, Valéry… Nas últimas décadas do século 20, no entanto, com o advento da arte conceitual, as artes visuais passaram igualmente a levar uma alta e inaudita carga de pensamento, aproximando-se da filosofia.[8] A irmandade entre poesia e filosofia tem acompanhado a cultura ocidental desde sua origem e tal aproximação tem sido objeto de estudo e debate entre poetas e filósofos há muitas gerações.[9] Restaria-nos pensar, portanto, seguindo essa trilha de pensamento, a relação entre poesia e arte contemporânea em sua confluência filosófica.

Em “Rumo a um mais novo Laocoonte”, publicado em 1940, Clement Greenberg afirma que “quando porventura se confere a uma arte o papel dominante, esta se torna o protótipo de toda arte: as outras tentam se despojar de suas próprias características e imitar-lhe os efeitos. A arte dominante, por sua vez, tenta ela própria absorver as funções das demais” (Greenberg, 1997, p. 46).[10] Ora, se há uma arte dominante hoje, ela se situa, sem dúvida, no reino das artes visuais, ou sua mais recente denominação generalizante, arte contemporânea. Para Rosalind Krauss, que foi discípula de Greenberg, o programa modernista procurou reduzir a pintura à essência de seu medium, ou seja, à planaridade. Tal processo se radicalizou de tal forma que, paradoxalmente, acabou se transformando em seu oposto: radicalizada a especificidade da pintura, ela foi esvaziada para assumir uma categoria genérica de Arte. As telas negras de Frank Stella apontaram para uma planaridade materializada,[11] abrindo caminho para os “Specific Objects” de Donald Judd – a pintura como qualquer outra coisa tridimensional (Krauss, 1999, p. 9-11).[12] Sendo como qualquer outra coisa, a pintura já não podia ser específica, e sim, geral. Desta forma, a pintura deixou de ser pintura para se tornar Arte em geral; e ser um artista passou a significar questionar a essência da Arte (em geral). Assim, o objeto físico deixou de ser necessário, cedendo lugar (ainda enquanto arte, por via da arte, e não da filosofia) à condição conceitual da linguagem.[13] Seguindo essa linha de raciocínio, Arthur Danto pode afirmar que já não há mais um critério possível que determine o que é e o que não é arte: todas as formas de mediums e estilos são legítimas. Isso significa que o artista contemporâneo, ao construir sua poética, tem à sua disposição não apenas as novas tecnologias, mas toda a arte do passado – tenha sido ela reconhecida ou não – e seus meios e estilos (com exceção do espírito em que esta arte foi realizada). “O pluralismo do mundo da arte atual define o artista ideal como um pluralista” (Danto, 1997, p. 114).

Desde logo, o “campo ampliado” pós-moderno pressupunha uma relação mais dinâmica e ambígua entre os mediums. Quase vinte anos depois da publicação de “A escultura no campo ampliado”, em 1999, num ensaio em que estuda a questão da condição pós-midiática da obra de arte contemporânea através de uma análise da obra do “(ex) poeta” belga Marcel Broodthaers, Krauss retorna criticamente à questão da crise do medium. Nessas alturas, seu desconforto com o termo “medium” é tão grande que ela tem a necessidade de abordar o assunto num prefácio:

A princípio pensei que poderia simplesmente traçar uma linha sob a palavra medium, enterrá-la como grande parte dos resíduos tóxicos, e livrar-me dela ao entrar num novo mundo de liberdades léxicas. “Medium” parecia ser por demais contaminado, por demais ideológico, por demais dogmático, por demais carregado de discurso (Krauss, 1999, p. 5).

Articulando três diferentes narrativas, Krauss traça uma genealogia da dissolução do conceito de especificidade do medium nos anos de passagem entre as décadas de 1960/1970. A primeira diz respeito ao trabalho Museu de arte moderna, Departamento das águias, uma sequência de obras que Marcel Broodthaers iniciou em 1968 e deu por encerrada em 1972, através da qual o artista destrói a ideia de um medium estético e transforma tudo em readymade, dissolvendo a distinção entre o estético e o mercantilizado e ficcionalizando a forma como esta perda de especificidade se dá. O segundo e independente ataque à especificidade do meio se dá com o advento da câmera de vídeo portátil (portapak) e o uso do vídeo entre os artistas ligados ao Anthology Film Archives, que funcionou no Soho, Nova York, no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Usando o portapak para criar, Richard Serra, que, no entanto, se considerava um artista modernista, logrou trabalhar e articular o novo medium como algo agregador, um aparato, e portanto como algo muito distinto das propriedades materiais de um mero suporte físico.[14] Tal percepção é concomitante ao surgimento da TV como meio de comunicação em massa. Segundo Krauss, assim como o princípio da Águia, de Broodthaers, a TV proclama o fim da especificidade dos mediums, inaugurando uma condição cultural pós-midiática, que foi compreendida e utilizada pelos artistas. Finalmente, a terceira narrativa que vinha se somar a essas práticas artísticas inovadoras, e que a elas dava credibilidade intelectual, era oriunda das argumentações de Foucault a favor de uma interdisciplinaridade acadêmica e das proposições pós-estruturalitas e desconstrucionistas de Jacques Derrida e outros pensadores franceses.

Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)
Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)

Para Krauss, todo medium é intrinsecamente plural e, desse modo, é impossível reduzir um gênero artístico ao seu medium. O próprio Greenberg teria percebido isso ao, mais tarde em sua carreira, abandonar a ênfase na planaridade e cunhar os conceitos de opticalidade e campo de cor. Um dos argumentos principais da autora, nesse ensaio, é que “a especificidade dos mediums, mesmo os modernistas, deve ser compreendida como um diferencial, auto-diferenciado, e, portanto, uma camada de convenções nunca simplesmente redutíveis à fisicalidade de seu suporte” (Krauss, 1999, p. 53). Segundo Krauss, Broodthaers representa a complexidade da condição pós-midiática pós-moderna, e sua genialidade reside no fato de ele ter, ao usar filmes antigos, alusões ao colecionismo, auto-détournments e outros procedimentos, revelado a condição auto-diferenciada (self-differential) dos próprios mediums, alegorizando-a, ficcionalizando-a e fazendo da própria ficção um medium.

Lamentando a irônica proliferação do princípio da Águia quase trinta anos depois do trabalho pioneiro e aberto de Broodthaers, presente em todas as bienais e feiras de arte do mundo globalizado na forma de infindáveis instalações e trabalhos multimídia, funcionando como uma nova academia a serviço do capital, Krauss clama por uma prática de differential specificity (capaz de reconhecer e articular as complexidades da condição pós-midiática através da contemplação e revelação das formas já ultrapassadas que ela encerra) e define medium como algo que, para sustentar uma prática artística, “deve ser uma estrutura de apoio, geradora de uma série de convenções, algumas das quais, ao assumir o próprio medium como seu tema, serão completamente ‘específicas’ a ela, produzindo assim a experiência de sua própria necessidade” (Krauss, 1999, p. 26).

A definição de Krauss parece ressoar com o pensamento do antropólogo brasileiro Antonio Risério, que, em seu Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, ataca o que ele percebe como um conservadorismo dentro do próprio ambiente de produção literária, e argumenta contra o confinamento da poesia no suporte livro:

Na verdade, os discursos que querem reduzir a poesia a um dos formatos que ela assumiu, ao longo de sua longa trajetória histórica, indicam para mim, nada mais que a crescente ansiedade de literatos conservadores diante das transmutações formais que presenciamos – e, em consequência, diante da impossibilidade de sustentar o caráter único ou mesmo a hegemonia do modelo gráfico que eles elegeram para o fazer poético. Mas o fato – simples – é que a arte da palavra é anterior ao espaço gráfico gutemberguiano. […] Só alguém completamente enceguecido pelo afã irracional de defender o seu sítio (ou a sua baia) escritural, frente à proliferação de signos e formas de nossa circunstância histórico-cultural, pode pretender que a materialização do poético somente seja viável através do medium gutemberguiano, pelo padrão/formato tipográfico que se estabeleceu com a impressão de textos compostos com versos livres. Os computadores, a holografia, o laser, o vídeo etc., estão aí, à nossa volta (Risério, 1998, p. 200).

Para o pensador baiano, “um poema existe quando se materializa num medium. E cada ‘meio’, além de oferecer um rol de recursos, abre um leque de exigências” (Risério, 1998, p. 46).[15] Mas o que exatamente se materializa num medium? O que é um poema? Agamben também debruçou-se, numa série de ensaios curtos, mas agudos e perfeitamente alinhados com sua proposta de crítica negativa, sobre essa questão (Agamben, 1998; 2002; 2008). Para o pensador italiano, são cinco os institutos poéticos, ou os elementos que diferem a poesia da prosa: o fim do poema (ou seja, o verso final, que se lança no silêncio), a versura (o ponto de suspensão da virada de um verso para outro – como o arado que sobe no final do campo, para retornar abrindo novo sulco – momento decisivo do enjambement), a cesura (pausa embutida no interior do verso), a rima e o enjambement, sendo este último o critério mais marcante, assim definido por ele: “a oposição entre um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica” (Agamben, 2002, p. 142).

Poético é o texto no qual essa oposição pode se dar. Partindo da famosa definição pendular de Valéry,[16] mas privilegiando não a harmonia entre som e sentido, mas justamente sua discrepância e irredutibilidade, Agamben afirma que “todos os institutos da poesia participam desta não coincidência, desse cisma entre som e sentido” (Agamben, 2002, p. 143). O poema se define, portanto, como a sobreposição simultânea entre duas séries – a série semiótica e a série semântica, expressão e impressão, presença e ausência, som e silêncio – em atrito e crise, revelando a linguagem em sua própria diferença, em seu lugar enquanto linguagem mesma, em curto-circuito, jamais acatando a unicidade própria do discurso prosaico mas, ao contrário, mantendo a tensão de um antagonismo essencial que aponta para um constante estado de abertura, necessariamente crítico. Jean-Luc Nancy, em seu ensaio A resistência da poesia, afirma: “a poesia é igualmente a negatividade, no sentido em que nega, no acesso ao sentido, aquilo que determinaria esse acesso como uma passagem, uma via ou um caminho, e o afirma como uma presença, uma invasão” (Nancy, 2005, p. 12). Ainda Nancy: “a palavra ‘poesia’ designa tanto uma espécie de discurso, um gênero no seio das artes, ou uma qualidade que pode apresentar-se fora dessa espécie ou desse gênero, como pode estar ausente nas obras dessa espécie ou desse gênero” (Nancy, 2005, p. 9).

Para o pensador brasileiro Adalberto Müller, não se trata mais de perguntar o que é a poesia, mas sim onde ela está. Nesse campo ampliado – ou fissura aberta – o poema – como objeto de linguagem, mas não obrigatoriamente linguagem verbal – desloca-se dos seus suportes tradicionais e requer uma “base epistemológica que possibilite o trânsito seguro de uma área do conhecimento para outra” (Müller, 2012).

Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)
Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)

Nesse lugar ou lugares fronteiriços ou híbridos (espécie de limbo; invisíveis para a crítica mainstream da poesia brasileira – vide, por exemplo, a quase ausência de estudos sobre um poeta seminal como Wladimir Dias-Pino), inserem-se não poucos poetas ou coletivos brasileiros contemporâneos que de formas variadas trabalham a poesia de uma maneira plástico-performática ou que, em outras palavras, têm criado poemas em um campo ampliado. Entendem-se como “plásticas” as ações poéticas que se inscrevem simultaneamente no campo das artes visuais, notadamente a pintura, a escultura e a fotografia. Embora a performance seja um elemento já constitutivo do universo da arte contemporânea (assim como a vídeoarte[17]), suas possíveis ações extrapolam uma definição que a reduz a esse universo,[18] e evidentemente abarcam a poesia. Entre muitos, podemos lembrar o caso de Alex Hamburger (parceiro de Márcia X em várias performances memoráveis), Alexandre Sá, André Sheik e Domingos de Guimaraens, membro do Grupo UM e do coletivo Os Sete Novos,[19] apenas para citar alguns dos que hoje se inserem no circuito das artes visuais. É o caso também de Michel Melamed, poeta, ator, músico e performer, do cineasta e vídeo-artista Felipe Nepomuceno, do vídeo-poeta e fotógrafo Alberto Saraiva e do artista multimídia Ricardo Aleixo.

Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)
Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)

Outros artistas procuram manter sua “identidade” como poetas, ao mesmo tempo em que exploram e atravessam tais zonas de fronteira, embora suas produções fora do campo da “literatura” sejam raramente abordadas pela crítica de poesia: é o caso das performances do coletivo Arranjos para Assobio, ligados a UFRJ, e de poetas que expuseram dentro do Projeto Poesia Visual, no Oi Futuro de Ipanema, Rio de Janeiro, sob a curadoria de Alberto Saraiva, como Roberto Corrêa dos Santos (“Últimas notas sobre o Grande Vidro”), Lenora de Barros (“isso é osso disso”) e Xico Chaves.

Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)
Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)

Menos raro ainda é a presença da palavra no trabalho de artistas visuais, seja no título (como chave para a obra); em textos em anexo inseparáveis do trabalho (vide as narrativas de Tunga, que, aliás, define-se como poeta[20]); ou no próprio corpo da obra, como, entre muitos exemplos, podemos apontar para algumas obras de Ricardo Basbaum, Leila Danziger, Adolfo Montejo Navas (na tradição de Joan Brossa) e Rosana Ricalde (Corrêa Dos Santos; Rezende, 2011). Há ainda aqueles trabalhos que promovem diálogos entre textos e imagens, como “Morte das casas”, de Nuno Ramos – também um excelente prosador e ensaísta[21] – em diálogo direto com Drummond, ou “4 Cantos”, de Nelson Felix, indissociável dos poemas de Sophia de Mello Brenner; além de performances que se utilizam da linguagem corporal e objetos que remetem à escrita (vide Paulo Bruscky e Gabriela Marcondes, entre outros). As ações plásticas e performáticas de poetas brasileiros contemporâneos obviamente não se esgotam nesses rápidos exemplos; no entanto seria interessante, e até mesmo urgente, estudar os rumos da poesia brasileira a partir da perspectiva que elas abrem.

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.


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Notas
[1] O movimento neoconcreto brasileiro, que incluía Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark e o poeta Ferreira Gullar, entre outros, foi pioneiro em práticas artísticas que exercem intervenções no campo social e interatividade e, referindo-se a tais práticas, o crítico Mário Pedrosa foi um dos primeiros intelectuais no mundo a cunhar o termo “pós-moderno”.

[2] “Gostaria de conjeturar que a ‘pintura’ tem ‘cedido’ através da história parte do território que conquistou para si cinco séculos atrás, se não antes, e que essa ‘expansão’ é testemunhada pelas diferentes formas e mídias que prevalecem hoje. A narrativa, por exemplo, foi apropriada pelo vídeo, enquanto que a importância de ‘ver’ e de ‘estar presente’ parecem ter passado para o reino da instalação e das artes performáticas, nas quais o espaço real é um componente importante do trabalho. A ‘mensagem’, se algum dia existiu, tem sido esvaziada da pintura e assumida pelos críticos, ou pelos próprios artistas, como uma atividade verbal, em paralelo e não necessariamente relacionada aos trabalhos de arte sendo produzidos…” (FARES, 2004, p. 477-487). Entre nós, um estudo que se dedica ao campo ampliado da pintura é Pintura em distensão, de Zalinda Cartaxo (2006).

[3] Para Susan Sontag, o cinema é um subgênero da literatura (Sontag, 1987, p. 21).

[4] Exceções, que provam a regra são Latinoamérica, de Marcus Accioly (2001) e o recente Uma viagem à Índia, de Gonçalo Tavares (2010).

[5] Francisco Bosco, poeta e letrista de música, além de ensaísta, possui um curto, mas definitivo ensaio sobre o assunto. Segundo ele (2007): “A poesia é uma potência, atualizada ou não, da letra. A letra, sem deixar de ser letra, pode ao mesmo tempo tornar-se poesia.”

[6] Segundo Paulo Henriques Britto, o poema épico, ligado à construção de uma nação, extingue-se com a construção do estado moderno, e a última epopeia incorporada ao cânone foi Os Lusíadas, que já contêm elementos poucos ortodoxos ao gênero (o não enaltecimento incondicional da pátria, por exemplo). O poeta lírico, por outro lado, afirma uma individualidade, ou melhor, uma subjetividade. O principal elemento da poesia lírica é a memória do poeta, com cujas experiências e vivências interiores o leitor se identifica. Para o tradutor e poeta brasileiro, vivemos no Brasil atual uma predominância de uma poesia pós-lírica, na qual o “eu lírico” é, acima de tudo, uma encruzilhada de textos: “Dois traços, porém, me parecem característicos da poesia pós-lírica: a tendência a dar mais importância à intertextualidade do que à experiência não literária; e a tendência a exigir do leitor um cabedal de conhecimentos de tal modo especializado que a leitura só se torna viável se for feita paralelamente com uma série de notas e explicações” (Britto, 2000, p. 124-131).

[7] “Boa parte da experiência humana de que tratavam a poesia lírica e a épica é eliminada de antemão; alguns poetas pós-líricos dão a impressão de que a condição humana – as contingências da carne, as paixões, a mortalidade – são temas que só devem ser tocados com as pontas dos dedos, se não evitados de todo e relegados à canção popular ou ao cinema” (Britto, 2000. p. 130).

[8] De acordo com Danto: “Os filósofos da arte e o mundo da arte agem como duas curvas opostas que se tangenciam em um único ponto e depois se desviam para sempre em direções diferentes. Isso acaba reforçando a hostilidade própria dos artistas, desde Íon… […] E assim as coisas teriam permanecido indefinidamente não tivesse a arte evoluído de tal forma que a questão filosófica de seu status quase se converteu em sua própria essência. […] Hoje em dia, às vezes é necessário fazer um esforço especial para distinguir a arte de sua própria filosofia. É quase como se a totalidade das obras de arte tivesse se condensado naquela parte delas mesmas que sempre foi do interesse dos filósofos…. A arte é praticamente uma confirmação da teoria da história de Hegel, segundo a qual o Espírito está destinado a tornar-se consciente de si” (Danto, 2005, p. 101-102).

[9] No contemporâneo, por exemplo, tal discussão é articulada por Giorgio Agamben de forma disseminada em vários de seus escritos, mas especialmente em A linguagem e a morte (2006). Entre nós, o poeta e filósofo Antonio Cícero tem se dedicado ao tema em livros como Poesia e filosofia (2012).

[10] Através de um entendimento e de uma prática das artes como mimese, é possível traçar um percurso de traduzibilidade entre elas (ou seja, as artes como tecné, e equiparáveis entre si em suas diferentes maneiras de imitar o mundo). A questão se problematiza e sofre uma guinada com o advento do modernismo e seu incessante estado de crise, quando as artes deixam de ser representativas e se voltam aos seus próprios mediums (perdendo, desta forma, sua capacidade de traduzibilidade mútua).

[11] Por planaridade materializada Krauss se refere às faixas brancas por onde, segundo Stella, a pintura respirava em telas como a série The Marriage of Reason and Squalor (1959). Tal procedimento é idêntico ao usado por Lygia Pape em sua série Tecelares (1958), e as palavras de Krauss para a obra de Stella poderiam ser integralmente usadas para a obra de Pape, como fica provado em Herkenhoff (2012).

[12] Seria interessante pensar tais conceitos em relação à teoria do não-objeto neoconcreto.

[13] Em A linguagem e a morte Giorgio Agamben pergunta: “Se a filosofia se apresenta desde o início como um “confronto”… e uma “diferença”… com a poesia […] qual é a extrema experiência de linguagem própria da tradição poética?” (Agamben, 2006, p. 91). Tal questão permeia boa parte da obra do filósofo italiano. Em Estâncias, Agamben parece apontar a solução dessa crise – “a urgência para que a nossa cultura volte a encontrar a unidade da própria palavra despedaçada” – na manutenção da abertura alcançada pela prática de uma crítica negativa, ou seja, uma crítica – que nasce no momento em que a cisão entre a poesia e a filosofia alcança seu ponto mais extremo – já não dedicada à análise de um objeto que lhe é exterior e que ela procura apreender, mas ao questionamento de sua própria presença: daí seu encontro com a arte – e com o pensamento filosófico. Neste sentido, a poesia seria uma abertura sempre mantida em aberto, a constante renovação de uma ferida enfim exposta (Agamben, 2007, p. 13).

[14] Novamente, traçando um paralelo com o que acontecia no Brasil, seria interessante pensar na produção dos pioneiros da videoarte no país, especialmente no Rio de Janeiro, como Sonia Andrade, Letícia Parente e Ana Vitória, entre outros, que, com uma câmera emprestada, produziram obras ainda contundentes, que não se filiam nem à dicotomia Concretismo/Neoconcretismo nem à Nova Figuração.

[15] Para Risério, o poema que desguarnece as fronteiras com outros mediums, formando produtos híbridos ou multimídia – sempre, para ele, a partir da palavra – pode ser chamado de ‘texto intersemiótico’: “A poesia é a arte da palavra também no sentido de que é, à sua maneira, arte da insatisfação humana diante dos limites da linguagem. À falta de expressão melhor, pode-se chamar ‘texto intersemiótico’ o poema que não se contenta com a permanência nos domínios incontestáveis da semiótica verbal. Ao apelar para outros códigos, ele se situa numa zona de fronteira” (p. 58).

[16] Em alguns estudos seminais (especialmente “Questões de poesia”, “Primeira aula do Curso de Poética” e “Poesia e pensamento abstrato”) Paul Valéry investiga com rigor a natureza da poesia. Para o autor de Cemitério marinho “um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras”, ou seja,  capaz de transportar o leitor à esfera do poético, torná-lo inspirado. Tal máquina (o poema), capaz de recriar no leitor a experiência do poeta, funciona na troca harmoniosa do movimento pendular entre som e sentido (Valéry, 1999, p. 169-210).

[17] Expando o tema específico da relação entre poesia e vídeoarte em Rezende, Renato. “Poesia e video-artes: algumas aproximações”. Revista Z Cultural, ano VII, n 2. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/poesia-e-video-arte-%E2%80%93-algumas-aproximacoes-de-renato-rezende/

[18] Como lembra Daniela Labra: “No campo artístico, o termo performance (ou performing arts) é abrangente, podendo ser aplicado a qualquer prática em que o corpo está presente, seja dança, artes cênicas, circo ou mesmo uma apresentação musical” (Labra, 2008).

[19] Para uma introdução ao fenômeno de coletivos na cena artística brasileira contemporânea, ver: Rezende; Scovino, 2010.

[20] “Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é e coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.” Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende (Tunga, 2008).

[21] Nuno foi incluído por Paulo Ferraz em sua antologia de poetas brasileiros surgidos nos anos 1990 (Ferraz, 2011).

Francisco Iglésias e a literatura | Silviano Santiago*

Francisco Iglésias é um rapaz alto, muito magro, que pega sempre o último bonde Horto. Não dança, não fuma, não bebe, não namora. Com vinte e dois anos de idade. Sua letra é quase ilegível. Apesar de sério, como acontece com as pessoas magras, não usa cartolas. Sua elegância vem mais do pensamento maledicente. Mesmo desafinado conhece quase todos os sambas e tangos que pululam pelos bairros. Embora ele anuncie constantemente seu desejo de deixar as montanhas, há alguma coisa na paisagem que nos segreda que ele ficará para sempre aqui. Há uma lenda a seu respeito que vale a pena ser contada: dizem que, manhãzinha ainda, quando vem do subúrbio para lecionar, o Iglésias vem conversando franciscamente [sic] com as aves e frutas (Anônimo, Edifício, número 2, fevereiro, 1946).

A relação de Francisco Iglésias com a literatura não é passageira, nem estritamente profissional ou disciplinar. Não é tampouco acidente tardio na sua vida nem consequência de viés inesperado na sua pesquisa historiográfica. A literatura faz parte da sua formação de historiador, ou, de maneira mais ampla, da sua “educação sentimental”, para retomar o título do famoso romance de Gustave Flaubert. Não terá sido por coincidência que, no ano seguinte ao em que se gradua em História pela Universidade (Federal) de Minas Gerais, em 1946, aproxima-se do grupo de jovens ficcionistas e poetas mineiros que idealiza e publica a revista Edifício, tornando-se presente nas páginas dos seus poucos e sucessivos números.

Com capa de Heitor Coutinho, a revista traz epígrafe ? “E agora José?” ?, tomada de empréstimo ao poema de Carlos Drummond de Andrade. O primeiro número da revista estampa a data de janeiro de 1946. No Índice, os nomes de jovens e promissores talentos estão associados aos de escritores já conhecidos. Citemos alguns: Valdomiro Autran Dourado, Vanessa Neto, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Wilson Figueiredo, Jacques do Prado Brandão, Otávio Alvarenga, J. Etiene Filho. O título de uma das colaborações se destaca pelo insólito: “Os pensamentos perigosos”. Autor: Francisco Iglésias. O nome da revista era também óbvia alusão a versos de outro poema de Drummond, “Edifício esplendor”. Ao final deste, podemos ler os seguintes versos: “ ? Que século, meu Deus! Diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De Drummond são ainda as palavras que abrem o primeiro número: “Esboço para apresentação de EDIFÍCIO”.

Tomada de um dos mais famosos poemas do itabirano, a epígrafe da revista, “E agora, José?”, constata e enumera as frustrações de uma geração diante do legado que recebem dos mais velhos e, pela interpelação à queima-roupa a cada um dos seus leitores, conclama-o à ação lúcida no presente: “o dia não veio,/ o bonde não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou,/ e agora, José?” Mais velhos e mais moços, os leitores do poema são todos artistas e intelectuais sobreviventes dos anos de chumbo do Estado Novo e, como tal, ainda podem caminhar. Insiste o poeta de A rosa do povo, transformando o tom pessimista em abertura para a esperança: “José, para onde?” Caminhos não há, há que inventá-los. Se o desesperançado Mário de Andrade foi o patrono dos jovens da revista Clima (maio de 1941 a novembro de 1944), o esperançoso Carlos Drummond o foi da revista mineira.

Os Josés mineiros, à semelhança do seu homônimo acariocado, tinham saído, na pátria, da repressão e da censura impostas pelo Estado Novo e, lá fora, dos horrores causados pela Segunda Grande Guerra. A luta contra o nazi-fascismo dentro e fora do país foi a tônica da revista. Drummond é o poeta que elegem como salvo-conduto para exercer o trabalho estético e político no difícil e lento processo de redemocratização por que deveria passar a nação. Amaro de Queiroz, tomando assento ao lado dos jovens autores brasileiros presentes na Plataforma da nova geração, conjunto de entrevistas publicadas por Mário Neme em 1945[1], escreve no número 2: “A novíssima geração, ao contrário da modernista, é muito mais política do que estética”. Não é de se estranhar que, no número da revista publicado em fevereiro do mesmo ano, Francisco Iglésias proclame: “Agora não tenho dúvidas em afirmar que foi a leitura dos autores marxistas o que mais me marcou no sentido de orientação”. Aquele “agora” era, ao mesmo tempo, sinal de alívio e afirmação tardia de um pensamento enfim liberto. O “sentido da orientação” no presente, suas leituras, era a resposta que o talentoso licenciado em História dava à indagação do poema e à epígrafe da revista.

Naquele momento histórico, Drummond foi unanimidade nacional. Em resposta à enquete feita por Mário Neme, o então jovem Antonio Candido se entusiasmava: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo. Por isso, Mário [Neme], eu acho que tem mais sentido a maturidade de um homem como Drummond do que o verdor quase sempre desnorteado e não raro faroleiro de todos nós”. Antes afirmara: “Carlos Drummond é um dos homens da ‘outra geração’, da tal que você quer que nós julguemos. No entanto, não há moço algum que possua e realize o sentido do momento como ele” (Neme, 1945, p. 31-32). A lua de mel de Drummond com a esquerda iria terminar durante o 2º Congresso Brasileiro de Escritores, iniciado no dia 12 de outubro de 1947, em Belo Horizonte. Segundo o testemunho do poeta, nas reuniões o “espírito sectário” levou de vencida o “espírito democrático”. Sobre o racha ideológico e a sua opção, informa Drummond em páginas do diário: “Nenhum de nós queria impedir o direito de os comunistas se manterem organizados em Partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário.”[2]

Diante do quadro sumariamente esquematizado, era de se esperar que Carlos Drummond fosse a figura literária que iria absorver a preocupação do jovem historiador, às voltas com o “sentido” ? para retomar um vocábulo caro a Caio Prado Jr. e aos seus discípulos ? do momento político e social. Basta lembrar poemas como “Nosso tempo”, ou “Os bens e o sangue”, para dar-se conta de que cairiam como a sopa no mel sobre as preocupações confessadas de Francisco Iglésias – a História econômica, a História de Minas Gerais, com algumas incursões na História do Brasil (Iglésias, 1971, p. 11). Possíveis e necessários ensaios sobre o poeta de A rosa do povo dariam continuidade às preocupações mais legítimas do historiador e, indiretamente, aos ensaios selecionados para a sua primeira grande coletânea.

Iglésias opta pela solução de continuidade. Confessa ele em prefácio de História e ideologia: “Não se veja, no caso dos autores [estudados], busca de identificação pessoal: com dois deles, por exemplo, temos mais distância que proximidade [grifo meu] – como se dá com Fernando Pessoa, ou, sobretudo, Jackson de Figueiredo, com os quais, ideologicamente, nada temos a ver” (1971, p. 11). No primeiro caso, sobressaem “o misticismo e o messianismo, modos irracionais, ainda que expressos por um poeta de gênio como Fernando Pessoa”. No segundo caso, “o pensamento reacionário, fruto da falta de sentido histórico – expresso por Jackson de Figueiredo” (1971, p. 14). Os dois autores estudados optam por temas e pela defesa de ideias que contrastam com o abecedário historiográfico marxista do autor e contra ele se chocam.

Francisco Iglésias
Francisco Iglésias

De onde o fascínio pela distância em relação ao objeto? De onde o interesse profundo pela face derrotada da moeda ideológica? Qual a razão para se escrever criticamente sobre o avesso do sentido da história?

A primeira resposta às perguntas foi enunciada, ainda que de maneira imprecisa, pelo próprio historiador. Em dado momento, diz que messianismo e irracionalismo políticos “são momentos para a compreensão do presente”; em outro, acrescenta que o pensamento reacionário de Jackson “exerceria influência em seus dias e mesmo depois” (1971, 14). O gosto pela atualidade, que ecoa em nota pessimista o Drummond do poema “Mãos dadas”[3], é a coordenada comum na resposta dada pelo historiador. Iglésias, no entanto, não tematiza a simpatia entre sujeito e objeto, antes a antipatia, ou seja, o alvo da sua escrita ensaística é a distância, ou seja, um entrelugar entre pontos de vista opostos. As exigências da atualidade se esbatem contra o legado de muitos dos melhores. Iglesias tematiza a memória do arcaico e a diferença, a fim de extrair delas tanto o sumo da dificuldade de análise, quanto as forças para transpor obstáculos concretos e instaurar a racionalidade histórica. A análise do presente em vias de transformação não prescinde do conhecimento e estudo da face derrotada da moeda política e do avesso político progressista. Tese incômoda, sem dúvida, para os simpáticos fogueteiros de plantão e, mais incômoda ainda, para os festivos esquerdistas que seriam legião no pós-64, como tão bem retratou Antônio Callado no romance Bar Don Juan.

Segundo o colega de geração e amigo Jacques do Prado Brandão, no mesmo ano em que Iglésias se insere no grupo Edifício, ele se aproxima do universo acadêmico paulista e nele tenta inserir-se. Por um golpe do acaso transfere-se para São Paulo e passa a trabalhar na prestigiosa Livraria Jaraguá, então de propriedade de Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática (EAD). Este, em texto memorialista, lembra os áureos tempos da livraria. Escreve Alfredo: “Durante a longa viagem aos Estados Unidos e à Europa, substituiu-me na direção [da Livraria] o amigo Francisco Iglésias, mineiro, bolsista da USP, posteriormente professor da Universidade de Minas, considerado por um dos seus Reitores como a maior cabeça daquela instituição” (Mesquita, 1979, p. 43). Os melhores amigos paulistas de Iglésias, segundo Jacques, são Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Sales Gomes. Trata-se de matéria ainda nebulosa, mas depreendemos das poucas informações que seus novos amigos são escritores, críticos e jovens professores, que fizeram parte da revista Clima.[4] Se a hipótese for verdadeira, teremos de dar conta, na formação intelectual de Iglésias, de outras relações perigosas, para usar adjetivo do seu agrado ? as que ele mantém com os jovens intelectuais e universitários paulistas e o seu ideário político.

Tomemos Antonio Candido como guia, já que antes o fora na compreensão do peso e valor da poesia de Drummond nos dois anos que se seguiram à derrocada da ditadura Vargas. Ele nos vai fornecer valiosa pista para mostrar como um quartel de século depois da formatura e da experiência Edifício, em dois ensaios da coletânea História e ideologia, Iglésias se apega às suas origens pelo viés paulista[5]. Responde Candido a Mário Neme:

Aliás, se você me perguntar qual ‘o’ dever específico de nossa geração, eu não saberei responder. Mas se me perguntar qual poderia ser, no meu modo de sentir, um rumo a seguir pela mocidade intelectual no terreno das ideias, eu lhe responderei, sem hesitar, que a nossa tarefa máxima deveria ser o combate a todas as formas do pensamento reacionário. Nos domínios da inteligência, Mário Neme, a Reação assume os aspectos mais díspares e mais cavilosos. Se insinua por todo canto. E, num trabalho monumental de obstrução, ? tanto mais monumental quanto exercido inconscientemente por muitos intelectuais,? breca em todas as curvas a expansão do progresso humano e da inteligência livre” (Neme, 1945, p. 37, grifos nossos).

Em seguida, Candido declina os três caminhos do pensamento que, no Brasil, são altamente tendenciosos: “as filosofias idealistas, a sociologia cultural e a literatura personalista”. Sobre a segunda, personificada pelas últimas obras de Gilberto Freyre, dirá uma das suas frases de maior efeito político: “aí está um caso em que o método cultural carrega água para o monjolo da Reação” (Neme, 1945, p. 39).

Para finalizar, isolemos o caso Fernando Pessoa (1888-1935) tal como visto por Iglésias. Tentaremos depreender do pioneiro ensaio escrito sobre o programa político do poeta luso uma metodologia de leitura da obra literária pelo historiador Francisco Iglésias.

A originalidade da abordagem do texto literário por Iglésias reside no fato de que, na análise e avaliação do fenômeno artístico, ele inverte os procedimentos tradicionalmente estabelecidos pelos cientistas sociais. O texto propriamente literário ? para nos restringir aos limites deste artigo ? é sempre lido por eles a partir do contexto econômico, social e político que o informa. É difícil encontrar um cientista social que, diante do levantamento e análise de um contexto retrógrado que, numa obra literária, alicerça ideologicamente o drama poético, julgue a esta digna de interesse para os contemporâneos e os pósteros. É dura e contundente ? muitas vezes definitiva ? a avaliação que fazem do autor e da obra. O adjetivo que apõem tanto a um quanto à outra é sempre o de reacionários. Romancistas e poetas de pensamento reacionário são dignos do desprezo da História e de todos.

Iglésias inverte os procedimentos. Ele contextualiza a leitura da História pelo texto literário para salvar a este de intromissão duvidosa. Em lugar de nos levar a concluir que Fernando Pessoa é apenas mais um moderno escritor reacionário, à semelhança do que foi dito e escrito, por exemplo, sobre o poeta Ezra Pound ou o romancista Louis-Ferdinand Céline, afirma que é ele “o maior poeta da língua portuguesa”. Ao inverter os procedimentos clássicos dos cientistas sociais, Iglésias pode ser impiedoso, e o é, na análise do reacionarismo de Fernando Pessoa sem, no entanto, arranhar ainda que de leve a alta qualidade da sua poesia[6]. A fim de operar a inversão metodológica, Iglésias assume, num primeiro momento, restrições que devem ser interpretadas com certo cuidado. A primeira restrição aparece sob a forma de exclusão. Diz ele que não vai abordar a poesia de Fernando Pessoa; tratará, antes, do seu pensamento político, ou melhor, corrige-se ele, vai tratar dos “estudos e anotações de natureza política que deixou ou [das] atitudes políticas que assumiu” (Iglésias, 1971, p. 236. Também p. 245 e p. 290)[7]. A segunda restrição aparece sob a forma de limite disciplinar. Diz ele que, diante da complexa e multifacetada obra de Fernando Pessoa, não trabalhará como crítico literário, mas como “estudioso da história das ideias”.

Ambas as restrições são em parte verdadeiras e em parte falsas, mas fazem parte de uma sofisticada estratégia de leitura do texto literário por um historiador. Tanto é verdade que as duas restrições não são totalmente verdadeiras, que começa a análise do seu objeto pela famosa heteronímia do grande poeta cuja origem, como se sabe, é de fundo histero-neurastênico. Iglésias afirma com tranquilidade que iniciará o seu estudo sobre o pensamento político de Pessoa por abordar a questão de maneira paradoxal, ou seja, pelo modo como o poeta encontrou na multiplicidade dos nomes a sua unidade. É, pois, pelo viés inusitado da produção literária que começa a “explicar as ideias e posições políticas” do pensador português. Em página posterior consignará de maneira definitiva o modo como encara a identidade do poeta: “Em vez de significar limitação – a falta do encontro da Unidade –, traduz riqueza – a multiplicidade coerente e autêntica. Na divisão é que [Fernando Pessoa] se encontrou e se afirmou” (1971, p. 242-3).

Antes de pôr as ideias políticas reacionárias de Pessoa contra a parede, Iglésias analisa a questão dos heterônimos, valendo-se da melhor bibliografia então à disposição do historiador. Dessa forma, pôde o historiador estabelecer com toda clareza o princípio da contradição entre discursos dogmáticos como traço fundamental para explicitar o contraste irremediável que existe entre os valores estéticos do discurso poético e os valores ideológicos do discurso político. São duas entidades discursivas que não se casam na obra de Fernando Pessoa e, pelo tom de cada uma delas, guardam autonomia ao mesmo tempo que se afirmam pela contradição[8]. A avaliação delas pelo historiador virá posteriormente. Aproveitando-se da famosa dicotomia estabelecida por Oscar Wilde, Iglésias concluirá que o gênio de Pessoa está na obra poética, já o talento e certa originalidade, no desenvolvimento das ideias sociais (1971, p. 246). Cita Iglésias trecho de carta que o poeta escreveu a Miguel Torga: “Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião […]”, para em seguida comentar: isso não impede que “o tom dogmático seja o que mais frequentemente usa, na prosa e até na poesia” (1971, p. 238)[9].

De posse desses dados conflituosos e com a ajuda de confissões do poeta e de leituras próprias, Iglésias desce ao profundo da crise existencial do autor moderno, cujas raízes se encontram em Shakespeare e ganham viço em poetas como Antero de Quental, cujo “mal era a histeria”, ou em prosadores como o suíço Amiel, que consignou em diário as tramas que “a impotência da vontade” maquina. A Amiel Pessoa dedicará significativo poema, onde se lê: “Inúteis dias que consumo lento/ No esforço de pensar na ação”. Interessava-lhe o político, mas não a vida partidária (1971, p. 252). Importante notar que, se no plano literário a “ansiedade de influência”, de acordo com a fórmula de Harold Bloom, é enorme, já no plano dos escritos econômicos, constata Iglésias, “não há citações ou apelos à autoridade de quem quer que seja” (1971, p. 266). “Meus autores, minhas autoridades”, afirmou Norman O. Brown. Sem autores citados, sem autoridades, o discurso político de Fernando Pessoa é autofágico. O mesmo não acontece com o discurso poético, que se apoia numa erudição monstruosa do legado lírico ocidental.

Antes de ser portanto matéria de importância, antes de ser explicitação do contexto para a leitura dos textos poéticos de Fernando Pessoa, o levantamento feito por Francisco Iglésias extrapola o leito propriamente literário que o torna sedutor e abre as comportas da interpretação para a visualização de um fim mais meritório. A análise do contexto econômico, político e social conduz a ele, historiador, e a nós, leitores, ao melhor conhecimento da cultura em que se inserem Fernando Pessoa e a sua obra poética. Fecha-se o círculo hermenêutico sem se que ofenda o brilho literário, embora grande parte da produção discursiva de Fernando Pessoa tenha sido posta à mostra e explicada pelo historiador das ideias[10]. Fernando Pessoa nada mais seria do que um exemplo a mais na longa história da decadência econômica, política e social portuguesa. Escreve Iglésias: “A nação [portuguesa], que teve a sua plenitude no século XV, quando foi pioneira no mundo, mostrando os mais largos caminhos, não se preparou para aproveitar o que conquistara, não se adequou à nova realidade, mantendo-se presa a velhos padrões; regrediu mesmo, como assinalam os seus melhores intérpretes” (1971, p. 292). E continua: “Portugal e Espanha é que mais contribuíram para construir a riqueza do período conhecido por Mercantilismo, mas não tiraram da situação criada o devido proveito, que foi para outros – notadamente a Inglaterra e os Países Baixos. É esse um dos momentos e fatos mais importantes da História Moderna” (1971, p. 292).

Diante de tal realidade, é compreensível “o saudosismo [do poeta], como é explicável até que se apresentem doutrinas salvadoras fundadas em mitos, que têm acolhida pelo povo e são elaboradas por intelectuais” (1971, p. 293, grifo nosso). O reacionarismo do intelectual, transparente nas formas como elabora doutrinas salvadoras para a nação lusa, antes de ser motivo para a explicação e avaliação da sua obra poética é razão para o historiador investigar e denunciar o contexto retrógrado que paradoxalmente tornou possível aquela vida e aquela obra. Historiador brasileiro e pensadores portugueses se entregariam à mesma tarefa intelectual no plano ideológico: a de “desmistificar – e desmitificar – seu presente e sua História, dando-lhe acento de racionalidade, mas o êxito [da tarefa] ainda não foi obtido”. Daí o retorno à questão do pensamento reacionário em 1971, questão que ainda nos incomoda nos anos 2000, brecando a expansão do progresso humano e da inteligência livre, para retomar as palavras de Candido.

Iglésias nos diz que o discurso poético e o das ciências sociais coexistem como discursos dogmáticos em Fernando Pessoa, mas não se situam no mesmo plano. São autônomos e vivem separados. A obra poética não é a causa do reacionarismo, é antes a consequência acidental dos condicionamentos econômicos e sócio-políticos. Iglésias reconhece, como assinalamos, o valor do primeiro discurso pela alta voltagem lírico-sentimental que o poeta conseguiu imprimir aos versos. Quanto às ideias de Fernando Pessoa sobre as ciências sociais, elas “pouco ou nada representam. Se não chegam a existir para a ciência social, também não contam para Fernando Pessoa enquanto autor – a não ser no aspecto de esclarecimento de sua posição ante problemas sociais. Não lhe enriquecem a obra criadora, mas, para os que amam a sua poesia e se interessam por sua personalidade, a leitura é feita com paixão” (1971, p. 272). Fascínio pela distância, interesse pela face vencida da moeda ideológica e razão para escrever criticamente o avesso do sentido da História encontram o seu fundamento no amor do historiador pela extraordinária obra poética de Fernando Pessoa.

Como um poeta tão extraordinário pode ser tão reacionário nos seus escritos políticos? Eis o enigma Fernando Pessoa, que só um historiador apaixonado pela literatura pode começar a deslindar.

Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago
Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago

* Silviano Santiago (1936) é professor, romancista e crítico literário. Foi três vezes vencedor do Jabuti – com Em liberdade (romance, 1982), Uma história de família (romance, 1993) e Keith Jarrett no Blue Note (contos, 1997). Seu romance mais recente, Heranças, recebeu o Prêmio ABL de Ficção 2009. A coleção de ensaios O cosmopolitismo do pobre (2005) recebeu o prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É professor emérito da Universidade Federal Fluminense e escreve nos principais veículos da imprensa brasileira. Em 2013 lançou Aos sábados pela manhã, coleção das colunas publicadas em O Estado de São Paulo, recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, dado pela Academia Brasileira de Letras, e lhe foi outorgado pela Universidade do Chile o título de Doutor Honoris Causa. Livros seus estão traduzidos ao inglês, espanhol e francês.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio: Record, 1985.

ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo, Globo, 1991.

CANDIDO, Antonio. “Clima”, in Teresina, etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COSTA PINTO, Antônio. “Modernity versus Democracy? The mystical nationalism of Fernando Pessoa”, in: The intellectual revolt against liberal democracy 1870-1945. Jerusalém, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1996.

IGLESIAS, Francisco. História e ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1971.

MESQUITA. Alfredo. “No tempo da Jaraguá”, in Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas cidades, 1979.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo, Ática, 1977.

NEME, Mário (org.). Plataforma da nova geração. Porto Alegre, Globo, 1945.

PONTES, Heloisa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Notas

[1] Para uma leitura daquele momento histórico, no campo das artes, leia-se do autor: “Sobre plataformas e testamentos” (Andrade, 1991, p. 7-22).

[2] Continua Drummond: “A ideia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles [comunistas], que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da agremiação” (Andrade, 1985, p. 78).

[3] Os versos finais do poema, “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”, esclarecem os iniciais, “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. O poema se encontra no livro Sentimento do mundo.

[4] Para o melhor conhecimento da geração, consultem-se Candido, 1980 e Pontes, 1998. Numa primeira versão do seu depoimento, posteriormente corrigida, informa Candido: “Éramos ligados também com rapazes de Belo Horizonte [que depois constituíram o grupo da revista Edifício], tendo Fernando Sabino sido nosso colaborador” (p. 170). Entre uma versão e a outra, percebe-se o dedo zeloso de algum mineiro.

[5] Para o estudo da pista que Candido nos fornece, deve-se consultar o capítulo III Ideologia da cultura brasileira (Mota, 1977), em particular a seção “Antonio Candido e o combate às formas de pensamento reacionário”, p. 126-132.

[6] As últimas linhas do ensaio esclarecerão de vez a posição do historiador: “Fernando Pessoa foi poeta e por sua obra deve ser julgado. Tudo o mais é acidental e de importância secundária, comparado à poesia que deixou” (Iglésias, 1971, p. 298).

[7] Em datas posteriores ao trabalho de Iglésias, foram publicadas duas coletâneas com os artigos políticos de Fernando Pessoa. Uma em três volumes, sob a responsabilidade de Joel Serrão [1979-1980] e a outra, em dois volumes, sob a responsabilidade de Antônio Quadros [1986]. Para informações sobre estas e para uma leitura menos “literária” e menos contundente da problemática ideológica pessoana, consultar: Costa Pinto, 1996, p. 343-355.

[8] O tom dogmático no poema e na reflexão social se dobra em Fernando Pessoa pelo elogio da matemática como lógica superior e transitável por cima das diferenças discursivas. Segundo Iglésias, “um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidade de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba” (Para este e outros exemplos: 1971, p. 270).

[9] A contradição entre discursos dogmáticos, por sua vez, tornará pouco eficientes, ou inúteis, outras formas de discurso praticadas pelo poeta, por exemplo o jornalístico. Pessoa “não se definia, ou era contraditório e paradoxal, impróprio para o jornalismo, para o doutrinário ou proselitista” (1971, p. 250). O discurso jornalístico, acrescentamos, torna-se panfletário e o doutrinário, partidário.

[10] Ver, a propósito, a leitura que faz do livro Mensagem (1971, p. 287-291).

Representações do primitivo: cenas de pensamento | Vera Lins*

Uma forma, uma figura, talvez sirvam para pôr problemas, nunca para trazer conclusões.
Merleau-Ponty

Quando comecei a pensar sobre a representação do negro e do índio brasileiros, pensei na importância da questão do primitivo para as vanguardas históricas e a questão do modernismo brasileiro. E ao pensar,  me veio à tona a memória de dois quadros que trazem o negro à cena: um meio ícone do movimento, que é A Negra, de Tarsila do Amaral, de 1923, bem conhecido, e outro, que precisei ir a Viena para conhecê-lo e que me impressionou muito: Fascinação, de Pedro Peres, de 1902. Nunca o tinha visto, quando deparei com ele em Krems, vilarejo perto de Viena numa exposição muito interessante de arte brasileira, que durou de setembro de 2007 a fevereiro de 2008 e da qual trouxe o  catálogo. Fiquei fascinada.

A Negra, Tarsila do Amaral, 1923
A Negra, Tarsila do Amaral, 1923 Fonte: Catálogo da exposição Brasilien: Von Osterreich zur Neuen Welt. Org. Tayfun Belgin, Kunsthalle Krems, 2007

Estava em Viena para um congresso e via o cartaz dessa exposição por todo canto, o quadro Iracema de José Maria de Medeiros. Foi organizada por Carlos Martins, Mônica Xexéo e outros. Gostei tanto da exposição que escrevi uma resenha do catálogo para a revista da Casa de Rui Barbosa. Eu não conhecia vários quadros reunidos lá, como um de Abigail de Andrade, A hora do pão, e este de Pedro Peres.

Fascinação, Pedro Peres, 1902
Fascinação, Pedro Peres, 1902 Fonte: Catálogo da exposição Brasilien: Von Osterreich zur Neuen Welt. Org. Tayfun Belgin, Kunsthalle Krems, 2007

O foco era  a formação do povo brasileiro, apreendida não só nas telas de Almeida Junior, mas também vários outros. Embora um crítico alemão fale na introdução do catálogo da qualidade das pinturas, me parece que a intenção aqui ultrapassava as discussões sobre academicismo ou não, o que marca a leitura habitual do oitocentos pictórico brasileiro.

Os índios, os escravos negros, o branco bandeirante e o trabalhador rural se viam em quadros que vieram da Pinacoteca de São Paulo, do Museu Nacional de Belas Artes e da coleção Sérgio Fadel, dando uma perspectiva antropológica a quase um século de pintura. São três textos que compõem o catálogo, dois de curadores austríacos, e o terceiro, de Valéria Piccoli, que apresenta criticamente a produção brasileira do século 19, desde os viajantes, encantados com a natureza, que se torna o tema principal do projeto de nacionalidade que toma forma com Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre os viajantes faz a diferença entre Ender e Chamberlain que pintavam paisagens e cenas distanciadas e Rugendas e Debret que, ao contrário, apresentavam a escravidão mais de perto e sem a ordenação neoclássica. Ressalta a idealização do índio, que deixava de fora o negro na formação do povo brasileiro e vê o mito do embranquecimento no quadro de Modesto Brocos, A redenção de Caim, de 1895. Chega a Belmiro de Almeida e Rodolfo Amoedo como experimentadores que apoiavam os pintores que divergiam do estilo bombástico da Academia.

Mas o que me ficou gravado na memória foi o quadro Fascinação, de Pedro Peres, de 1902, que está na Pinacoteca de São Paulo. Longe dos quadros de batalhas ou históricos,  Pedro Peres fala das relações sociais com um quadro sutil e instigante em que uma menina negra olha fascinada uma boneca toda enfeitada, possivelmente da filha dos brancos donos da casa e talvez ex-proprietários de seus pais. Há um conflito visível na tela, estampado no rosto da menina, no vermelho do chão, no luxo da boneca branca – uma cena de interior que problematiza a questão do negro, levanta esteticamente uma questão político-social presente até hoje na sociedade brasileira.

E agora gostaria de trazer as reflexões de Jacques Rancière para me ajudar a olhar os dois quadros, o de Tarsila e o de Pedro Peres. Para Rancière a arte possibilita uma reconfiguração polêmica do sensível. E existiriam três regimes estéticos, o primeiro, o ético da imagem sagrada, o segundo, representativo, que chama de poético e o terceiro, o estético, que vigoraria desde o final do século 18 com a quebra dos gêneros e a atenção  ao banal, ao pequeno. Na pintura, o regime estético depunha os quadros históricos e trazia o banal à cena. Não é mais a representação da nacionalidade o que conta, mas as questões que afloram – possibilitando a reconfiguração polêmica do sensível. Passa-se dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificando os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária. O que acontece já no quadro Fascinação, que gera pensamento, o que se espera da arte.

Para Rancière, estaríamos hoje ainda dentro do regime estético. Com isso ultrapassa os conceitos de modernidade e pós-modernidade. E reavalia as vanguardas. Haveria uma vanguarda estratégica que, como um partido, toma a frente, como as vanguardas históricas e como o modernismo dos manifestos, diz como devem ser a obras, fazendo tábula rasa do passado. A vanguarda que ainda conta é a que traz uma antecipação estética do futuro na invenção de formas sensíveis. Para ele também o pulo pra fora da representação mimética não é a recusa da figuração. A figuração pode não ser mimética.

Rancière retoma Schiller para dizer que a revolução estética é a realização sensível de uma humanidade ainda latente no homem e que a arte é política quaisquer que sejam as intenções.

Creio que o quadro de Pedro Peres pode ser considerado uma cena de pensamento, há nele bastante conflito. O pintor apreende um instante e como diz Rancière, pode ver na coisa um objeto consagrado e uma cicatriz. A Negra, de Tarsila, é uma lição aprendida com a vanguarda europeia, com Léger e adaptada ao contexto nacional. Claro que A Negra, de 1923, que lembra as máscaras africanas das vanguardas, traz uma nova sensibilidade, na quebra da perspectiva, na planaridade do espaço, mas muitas das suas soluções formais ficam meio ornamentais e foram hoje absorvidas no cartaz, na publicidade. E nela há ainda um apelo ao exótico. Li há pouco uma crônica de Tarsila em que dizia que o cubismo era o serviço militar do artista.

O quadro de Peres toca, apenas sugerindo, numa questão social e política ainda não resolvida. Já está dentro do sonho modernista de uma arte capaz de dar ressonância infinita ao momento mais ínfimo da vida mais ordinária. Rancière, num livro recente, Aisthesis, (2011) vê em várias cenas da virada do século 19 para o 20 uma mutação das formas de experiência sensível, da maneira de perceber e de ser afetado que propiciam reconfigurações da experiência e um modo novo de sensibilidade. Fala de cenas de pensamento que acolhem o até ali impensável. “Pois o pensamento é sempre um pensamento do pensável, um pensamento que modifica o pensável acolhendo o que era impensável” (p. 12). E faz uma contra-história da modernidade artística, incorporando episódios que já deslocam a percepção em cenas de pensamento. Rancière vai de 1764 a 1941, de Théophile Gauthier a Ruskin e a James Agee.

Vista ainda hoje como a grande explosão vanguardista brasileira nas artes e na literatura, a Semana de 22 (de 11 a 18 de fevereiro de 1922) marca nosso modernismo como o estopim da ruptura entre passadismo e modernismo. Com o movimento que culmina aí, nos integrávamos ao concerto das nações modernas. Os manifestos tanto ecoavam os europeus, como afirmavam o nacionalismo tupiniquim, inaugurando uma modernização estética que acompanhava uma aposta na industrialização que nos possibilitaria sermos, simultaneamente, universais e nacionais. Numa visão linear exalta-se o novo desse modernismo de acordo com o projeto progressista ocidental.

Tarsila do Amaral - Operários
Tarsila do Amaral – Operários

Mas essa história pode ser contada de outra forma. É o presente que dá sentido ao passado, que vai sendo feito e refeito pelas gerações que se apropriam dele. Primeiro, que passadismo era esse? Os modernistas de 22 queriam romper com românticos, naturalistas e parnasianos e com estes identificavam todo o século 19 até eles. Mas, no seu impulso de romper com o tradicional, não distinguiam os “experimentais” do século passado –Machado, os simbolistas como Cruz e Souza, Sousândrade e outros, e ainda, românticos como, por exemplo, Bernardo Guimarães. Inauguravam, junto com as vanguardas europeias, uma tradição de ruptura, que arrasava o passado recente. Vanguarda é um termo militar, designa os que na frente avançam, numa guerra. Destrói-se o que veio antes, em nome do progresso. Ser moderno é ser atual e aceitar o progresso contra a repetição do passado. Tinham uma concepção de progresso também em arte, que não pode ser pensada em termos de evolução, mas de transformações.

E ainda, num segundo momento, depois do ataque ao passadismo estético, a antropofagia defendia uma deglutição do estrangeiro, mas não criticava a razão técnico-científica que vinha com ele e que pretendia assimilar, sem problematização. Buscava-se a convivência da selva com a escola, a colagem de uma paisagem nacional primitiva com um novo cotidiano, moderno, numa poética do objetivo e do concreto. Sua defesa do moderno era a defesa do atual, do novo imediato que prometia a industrialização. Acreditavam numa síntese da pureza do estado natural indígena com os traços positivos da contribuição da técnica avançada.

Tarsila do Amaral - Gare
Tarsila do Amaral – Gare

A conferência de Menotti del Picchia, de 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, intitulada “Arte moderna”, tem o tom de manifesto e suas afirmações a aproximam do futurismo de Marinetti: “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismo, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho na nossa arte” (Del Picchia, 2002, p. 289).

Hoje, quando podemos ver os desastres da modernização e sua falência em construir um mundo melhor, podemos ver os limites do modernismo das vanguardas históricas e, olhando as ruínas que ficaram de sua marcha pelo progresso, identificar práticas críticas e experimentais, antes das vanguardas, pensando um  modernismo desde a virada do século, pois já se colocava em questão o academismo, a “representação fotográfica”, tanto nas artes plásticas quanto na literatura. Pintores como Castagneto, Helios Seelinger, Visconti e Belmiro de Almeida buscam mais do que imitar qualquer modelo ou representar as coisas “tais como são” e se identificam com impressionistas e simbolistas de todo o mundo. Descontentes com o que existe, seu desejo é tornar visível, algo ainda invisível, mesmo trabalhando com uma figuração. Estão dentro do paradigma estético da nova comunidade, a dos homens livres e iguais na sua própria vida sensível (Rancière, 2005, p. 16).

Pode-se ver, a partir de uma releitura do século 19, um modernismo carioca, desde fins do século, com João do Rio, Gonzaga Duque, Lima Barreto, Benjamim Costallat, Álvaro Moreyra e outros. Capital da República, cidade cosmopolita, pelo Rio de Janeiro passavam as companhias artísticas europeias. E esses escritores, muitos da roda boêmia, eram ambivalentes quanto à ordem que se impunha com a modernização e, às vezes, extremamente críticos. Suas revistas mostram isto: subjetividades errantes, que se disfarçavam sob vários pseudônimos e se articulavam nos cafés e cabarés, dissidentes das iniciativas oficiais, numa cidade em transformação, em que construção trazia também destruição.

A Semana de 22, na então próspera e provinciana São Paulo, apontada como um marco, no entanto, faz esquecer uma fermentação de ideias que se atualizaram em linguagens inquietas e críticas também antes dela. É importante lembrar 22, o grupo de Oswald e Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, e outros, mas não enquanto monumentos. Seu papel foi importante ao ampliar as possibilidades de linguagem trazendo as propostas das vanguardas históricas europeias. Mas não só eles problematizaram. Mesmo no movimento há escritores e artistas ainda pouco lembrados como Flávio de Carvalho, por exemplo.  E antes e depois das vanguardas estamos dentro do regime estético das artes que, segundo Rancière, incorpora o realismo de Flaubert, por trazer o banal à cena.

Em O cacto e as ruínas, Arrigucci compara o poema “O Cacto” (1925) de Manuel Bandeira com “Pobre alimária” de Oswald de Andrade (comentado por Roberto Schwarz, em “A carroça, o bonde e o poeta modernista”). Enquanto em Oswald, a modernização, apresentada pelo bonde e os trilhos, complica, mas não impede uma solução do conflito, tudo se resolve otimisticamente – a convivência entre a carroça e o bonde é possível; no poema de Bandeira, o conflito é trágico e o cacto, natureza indomável, resiste, áspero e intratável.

pobre alimária
Oswald de Andrade

O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lento carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote

Manuel Bandeira mora no Rio, não vai à Semana paulista, onde, no entanto, lêem seu poema “Os Sapos”, uma crítica aos poetas parnasianos. Bandeira começa simbolista com A cinza das horas (1917) e já como simbolista queria mais do que os versos cinzelados e frios que os parnasianos podiam apresentar.

O cacto
Manuel Bandeira

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia, um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua.
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de
iluminação e energia:
– Era belo, áspero, intratável.

O progresso foi o mito fundador do século 20, com seu elogio da máquina. Hoje, no século 21, vemos que a modernização se mostrou catastrófica, a razão da técnica e da ciência não só não domina a natureza, o sonho iluminista, mas leva a novos problemas. O Holocausto superou em horror o genocídio dos índios, pelo cálculo, a objetividade e a frieza que a técnica permitiu e incentivou. E colocou em questão a vontade de ordem da modernidade e sua incapacidade de suportar a diferença e a ambivalência. Os “aeroplanos, motores e chaminés de fábricas” não se impõem sem a violência de uma ordem intolerante com o selvagem, o diferente, cuja forma de vida só pode identificar como ignorância e atraso.

Isso não puderam pensar os modernistas de 22. Hoje, como “modernistas tardios”, vemos seus limites e revemos nossas utopias – nenhum progressismo mais. Podemos recuperar a ousadia das vanguardas, mas exercendo nossas diferenças e singularidades, críticos à sociedade industrial moderna e contemporânea. E podemos reavaliar um quadro como Fascinação como uma cena de pensamento. O que aproxima os dois quadros é o sonho modernista, ou melhor, do regime estético das artes, de uma arte capaz de dar sua ressonância infinita ao momento, o mais ínfimo da vida, a mais ordinária.

Iracema, José Maria de Medeiros, 1884
Iracema, José Maria de Medeiros, 1884

* Vera Lins é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras, UFRJ, e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (1991) Poesia e crítica: uns e outros (2005), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (2009) e Desejo de escrita (2013), entre outros.

Referências

AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva-Edusp, 1972.

ARRIGUCCI, Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 1997.

ANDRADE, Mário. O Movimento Modernista. Rio: Casa do Estudante do Brasil, 1942.

BAUMAN, Z. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar, 1999.

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar, 2000.

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio: Civilização Brasileira, 1978.

COSTA LIMA, L. Pensando nos trópicos. Rio: Rocco, 1991.

DEL PICHIA, Menotti. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis, Editora Vozes, 17 ed., 2002.

JARDIM DE MORAES, Eduardo. A brasilidade modernista, sua dimensão filosófica. Rio: Graal, 1978.

LINS, V. Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador. Rio: Tempo brasileiro, 1991.

RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis. Paris: Éditions Galilée, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.

SCHWARZ, R. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Pré-histórias: uma arqueologia poética do presente | Veronica Stigger*

Em 2010, fui convidada a fazer uma intervenção na Mostra Sesc de Artes, em São Paulo. O espaço designado para o meu trabalho foram os tapumes da construção da futura unidade da Rua 24 de Maio, bem no centro da cidade. Já fazia tempo que eu vinha coletando fragmentos de conversas ouvidas na rua ou frases ditas por amigos e familiares. Nem todas as frases eu tinha anotadas. Algumas, sabia apenas de memória, outras, por sorte, havia postado no Twitter e, desse modo, tinha o registro delas. Quando surgiu o convite do Sesc, achei que era a oportunidade perfeita para trabalhar esses fragmentos. Ao expô-los nos tapumes da construção, era como se eu devolvesse à rua aquilo que havia extraído dela.

A quantidade de frases que recolhera até então não era suficiente para preencher os 375 metros quadrados de tapumes. Precisaria de muito mais, e tinha pouco tempo. A primeira providência foi passar para o computador todas aquelas frases que lembrava de memória. “As vacas só existem para me alimentar”, falou uma vez um amigo num almoço de domingo. “Fome é meu estado natural”, respondeu uma amiga quando perguntada se não era muito cedo para irmos jantar. “Um dia todos estarão mortos, você vai querer fazer um churrasco e não vai ter quem convidar”, disse um primo do Eduardo Sterzi, meu marido, para implicar com o caçula da família. O curioso é que as pessoas que pronunciaram essas frases não se lembravam de tê-las dito, enquanto eu nunca as esqueci.

Mas, como comentei, necessitava de mais frases. Apurei então os ouvidos. Na ocasião, estava em Porto Alegre. Enquanto passeava com os cachorros da minha mãe, prestava atenção a tudo o que diziam a minha volta. Num desses passeios matinais, com a vira-lata Dora na coleira, um sujeito, de uns cinquenta anos, se aproximou de mim e, olhando fixo para a Dora, saiu com esta pérola: “Quando morei na Ásia, comi muito cachorro. A carne é boa, bem boa”. À tarde, de posse do meu bloco de notas, pegava o ônibus que fazia o trajeto mais longo até o shopping mais distante da casa da minha mãe e passava horas lá, sentada numa confeitaria, bem no meio do corredor, em frente a uma loja da Swarovski, diante da qual ouvi uma senhora reclamando para a outra: “Não são joias. Não brilham. Não dá para tomar banho com elas”. Nunca entendi a parte sobre a falta de brilho… Eram cristais – como poderiam não brilhar?

Encarava essas idas ao shopping como uma espécie de trabalho de campo, como uma pesquisa, em certa medida, arqueológica e etnográfica. Dentre os tantos fragmentos que ouvi aqui e ali, no shopping, no ônibus, nos parques de Porto Alegre, descendo a Rua Augusta, em São Paulo, na fila do cinema etc., selecionei aqueles que possibilitavam as mais diferentes leituras e que chamaram a minha atenção pelo inusitado do assunto ou pela maneira especialmente significativa como foram ditos. Acredito que certo momento da nossa sociedade está inscrito nessa sequência de frases. Algumas delas são apenas engraçadas, como, por exemplo, aquela que diz: “Essa lagoa é ótima para quem quer casar. Basta dar três mergulhinhos”. Outras, no entanto, são obviamente terríveis, na medida em que colocam a nu aquilo que as pessoas gostariam que permanecesse escondido no âmbito privado. Minha intenção ao registrar e expor frases que foram ditas à boca pequena, como “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?” ou “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, era justamente expor o preconceito que impregna esses diálogos íntimos, preconceito que por vezes só fica claro quando é deslocado para a esfera pública. Meu plano era que o espectador, confrontado com frases que foram efetivamente ditas por outras pessoas, mas que talvez pudessem ser ditas por ele mesmo, fosse, ao menos idealmente, levado a refletir sobre seus próprios preconceitos. A ideia primeira era que as frases, que foram transpostas para placas propositalmente toscas, de madeira, feitas de modo artesanal pela artista plástica Edna Nogueira da Silva conforme minhas orientações, fossem vistas sobre um fundo metálico ou sobre um papel espelhado, a fim de que o espectador olhasse a si mesmo enquanto as lesse, ou seja, que ele também se incorporasse à obra. Mas o papel espelhado não resistiria à chuva e o metal extrapolava o orçamento.

Percebi, ao longo da coleta, que, em geral, os fragmentos giravam em torno da tríade mais frequentada nas conversas brasileiras (e talvez não só nestas, mas vivemos aqui…): sangue, sexo e grana. Esta tríade era o nome inicial do projeto para a Mostra Sesc de Artes, mas os textos que falavam abertamente de sexo foram censurados, já que se tratava de um espaço institucional em área pública. Cheguei a incorporar a esta instalação dois comentários irônicos ao corte sofrido: “Não imagina o que ficou de fora”, dizia o primeiro; “Não pode. Por que não pode? Porque não pode”, brincava o segundo, num diálogo imaginário que, para mim, já se tornou um clássico, virando até cartaz em algumas manifestações de que participei. Na falta de um dos elementos da tríade, precisava encontrar outro nome. Foi aí que me dei conta de que este projeto era, de certo modo, uma continuação de um conjunto de textos que compunha Os anões, livro lançado naquele mesmo ano.

Os anões é dividido em três partes: Pré-Histórias, Histórias e Histórias da Arte. Todas as partes são compostas de textos curtos – o maior deles, o conto que dá título ao volume, tem cerca de seis mil caracteres. Mas há uma seção, a das Pré-Histórias, em que esses textos são tão curtos e tão rápidos que me parecem funcionar como uma lufada inesperada de ar que golpeia o rosto do leitor e o deixa sem saber o que, afinal, acabou de acontecer. Menos que contos em miniatura, têm-se aí contos em germe, ficções embrionárias ou potenciais que, por sua própria incompletude, ficam ressoando na memória do leitor. As frases que vinha recolhendo eram dessa família. Elas contêm elementos que fazem o leitor pensar, imaginar o que pode estar ali por trás. Elas fornecem personagens e ações ainda não de todo formados, que pedem desdobramentos por parte de quem as ouve ou lê. O nome do projeto, pois, não poderia ser outro: Pré-Histórias. A este nome, acrescentei um 2, indicando a continuação de uma série.

E a série já teve segmento. No primeiro semestre de 2013, ao ser convidada para a mostra Tuiteratura, realizada no Sesc Santo Amaro, em São Paulo, elaborei o terceiro conjunto de Pré-Histórias. Dado que a mostra fazia referência direta ao Twitter, pensei que seria interessante desenvolver algum projeto relacionado a essa rede social, que não se limitasse a apresentar textos com até 140 caracteres, passíveis de serem publicados em qualquer lugar, mas que explorasse, de alguma forma, a própria lógica do meio. Lembrei-me imediatamente do aplicativo That can be my next tweet, que gera, a partir do que você escreveu nos últimos tempos, seus prováveis próximos tweets, e de como meus next tweets gerados por ele me divertiram muito durante toda uma noite. Recordei que, na ocasião, havia arquivado alguns dos melhores exemplares para algum trabalho futuro. Era chegada a hora de usá-los.

Nas Pré-Histórias anteriores trabalhei, de uma maneira geral, a partir da apropriação de frases de outras pessoas, captadas por aí. Em Next tweet (Pré-Histórias, 3), o procedimento era quase o mesmo, mas as frases não eram mais alheias; eram, supostamente, minhas: readymades meus gerados por uma máquina. Pretendo, em breve, reunir em livro não apenas os meus next tweets, mas também os de amigos e conhecidos.

Em 2012, o projeto das Pré-Histórias, 2 virou livro. Delírio de Damasco (nome da torta que comia em meu trabalho de campo no shopping de Porto Alegre), editado pela Cultura e Barbárie, de Florianópolis, reúne as frases apresentadas na Mostra Sesc de Artes mais as censuradas e outras colhidas depois. Meus editores, Alexandre Nodari e Flávia Cera, me contaram que há leitores que aproveitam os espaços em branco do volume para desenvolver as histórias que as frases sugerem ou para anotar fragmentos que chegaram a eles. O projeto, virtualmente, não tem fim. Eu mesma recebo mensagens com frases que poderiam estar no Delírio. É como se o livro despertasse o arqueólogo poético do presente que se esconde em cada um de nós.

O Delírio de Damasco não pretendia ser um catálogo da intervenção do Sesc. Desde o princípio foi pensado como livro independente. Todas as frases estão organizadas em tercetos, uma forma com a qual eu vinha trabalhando em textos ainda inéditos, como o longo poema “O coração dos homens”, que integra o livro Sul, lançado agora em agosto em Buenos Aires, e num poema que faz parte de um dos capítulos do meu primeiro romance, Opisanie ?wiata. Um dos meus planos para o futuro é fazer uma espécie de catalogue raisonné das frases reunidas em Delírio de Damasco, contando as histórias por trás de cada um dos fragmentos, onde foram colhidos, quem os disse etc.

Em função desse trabalho que resultou no Delírio de Damasco fui convidada a realizar uma exposição na Embaixada do Brasil em Bruxelas. Parte das placas foi refeita, agora em três línguas: português, francês e flamengo. Além das placas, transpus alguns dos meus contos para o espaço expositivo e apresentei um trabalho inédito, pensado já para outro suporte que não o livro, Minha novela, que pode ser visto no Youtube, mas sem, é claro, a ambientação da mostra. Esse texto também deve sair em livro pela Cultura e Barbárie, mesma editora que publicou o Delírio.

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Estou trabalhando atualmente num projeto para as Pré-Histórias, 4, que reunirá frases ouvidas em galerias e museus de arte. O título completo do trabalho deverá ser Quadras de uma exposição (Pré-Histórias, 4). Minha ideia é que seja exibido numa galeria ou num museu: devolver ao espaço expositivo o que ouvi nele. Assim, a sala se povoará não propriamente de trabalhos artísticos, como esperado, mas de vozes, as mais diversas e dissonantes, que falam sobre aquilo que, naquele momento, se acha ausente: as obras. Desta vez, não trabalharei com tercetos, mas com quadras, num jogo com a denominação quadros.

Por fim, para encerrar este longo depoimento, tenho pensado em, no futuro, realizar um outro livro, nos moldes do Delírio de Damasco, só com as frases que ouvi por aí e incorporei a textos meus já publicados, como por exemplo, “É noite no corredor”, dita pela filha de uma colega de Mestrado e que virou a primeira frase do conto “No corredor”, de O trágico e outras comédias, e “As pessoas da nossa classe social não deveriam passar por isso”, dita pela minha irmã e incorporada a “Tristeza e Isidoro”, de Gran Cabaret Demenzial. Será mais um modo de insistir numa das dominantes do meu trabalho, que é o questionamento da realidade pela ficção ao mesmo tempo que se questiona a ficção pela irrupção do real nos limites do texto. Curtos-circuitos, em mais de um sentido.

* Verônica Stigger é escritora, crítica de arte e professora universitária. Tem doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorados pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). É professora das Pós-Graduações em Fotografia e em História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC). Entre seus livros publicados, estão Gran Cabaret Demenzial (Cosac Naify, 2007), Os anões (Cosac Naify, 2010), Delírio de Damasco (Cultura e Barbárie, 2012) e Opisanie ?wiata (Cosac Naify, 2013).

QUESTÕES NEGRAS

Quando fomos convidadas por Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende para organizar um número da revista Z Cultural sobre “Questões negras”, pensamos nas diversas dimensões que o tema poderia sugerir. E entendemos que, para além daquilo que afeta direta e especificamente os afro-brasileiros na contemporaneidade, “Questões negras” são também os questionamentos que a “comunidade negra” levanta para gente de todas as cores. Questões de justiça e desigualdade, certamente, mas também questões de produção cultural e valor. Elas são de interesse para brancos e negros, negras e brancas.

Assim, nossas discussões nos levaram a querer fazer uma revista que falasse do trânsito destas questões no cinema, na educação, na filosofia, na música popular, nas cidades. Trânsito de bola de bilhar que muda trajetórias, muda de trajetória. É neste sentido que trazemos textos de grandes pensadores da identidade negra, como Milton Santos, que em entrevista rememorou sua formação inicial, e Stuart Hall, em uma conferência em que investiga por que não conseguimos nos livrar do suposto fundamento biológico de “raça”.

Também estão aqui textos de pessoas que observam a paisagem em que as questões negras aparecem: Renato Noguera, conectando o drible à filosofia; Katia Santos, sobre a negritude do mundo do carnaval; Marcia Contins sobre as religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro e sua trajetória de pesquisa; Maria Carolina Godoy sobre as qualidades da escritora negra Conceição Evaristo; Rosângela Araújo, a Mestre Janja, sobre a epistemologia da capoeira; e uma entrevista com o cineasta Joel Zito Araújo que discute sua experiência com o cinema, o racismo e o gênero. As questões negras nunca são estanques. Embora muitas vezes sua discussão se confina a especialistas, elas extravasam. O mesmo ocorre com questões feministas. Para tirar estas do gueto, publicamos um texto de Angela McRobbie, que conecta gênero e feminismo à raça, pós-colonialidade e valores “pós-feministas”.

Nós, as organizadoras, somos todas pesquisadoras ligadas ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ. Temos interesses, posições e visões diferentes sobre as questões negras. Só uma das quatro é negra. Nossas formações profissionais também não são as mesmas: há uma antropóloga, duas da área de Letras, uma de Comunicação. Mas trabalhamos em harmonia, cada uma fazendo o máximo para publicar textos que possam instigar o público leitor – o que esperamos ter conseguido. As hierarquias acadêmicas não nos serviram para decidir como assinar esta nota editorial, pois cada uma ocupou um papel diferente e fundamental. Por isso, preferimos assinar como se fôssemos um grupo vocal:

As organizadoras
(Liv Sovik, Katia Santos, Maria Carolina Godoy, Patrícia Farias)

Abrindo a roda: conhecimentos que gingam

Rosângela Costa Araújo*

Um corpo refletido, desbanalizado, aceito, amado. Um corpo que sutura temporalidades recursivas, ancestrais… que olha, escuta, percebe, contempla e a partir disto luta, em si, pelo momento seguinte…pelo amanhã. Um corpo angoleiro!
Um saber de alegre erudição, da escuta, da espera, da construção do desejo, da procura. Um saber saber-se no grupo, no mundo, pertencendo a redes de solidariedades, de conflitos, de transformações. Um saber pela participação, vivenciado. Um saber argumentado na holonomia das individuações, do mistério, da magia. Um saber angoleiro!
Um(a) mestre(a): o(a) mágico(a). O(a) catalisador(a). Um caminho de resignificação mitológica. Organizador do ritual. Elo palpável na cadeia de pertencimento. Um(a) formador(a) de discípulos(as), um(a) discípulo(a). Um(a) educador(a) angoleiro(a)!
O jogo. O mundo. O(a) companheiro(a). O(a) adversário(a). A roda.
Um círculo angoleiro! (Araújo, 1999).

Apresentar os múltiplos sentidos e o alcance da Capoeira Angola é um exercício de articulação dos elementos que a constituem: ancestralidade, corporeidade, processo de aprendizagem, o jogo, a arte, a roda e o mundo. Para satisfazer esse desafio, cabe retratar um campo de conhecimento, detentor de um sistema formativo peculiar e também educacional conhecido por capoeira.

Do lado de cá da capoeira, o(a) educador(a) é reconhecido como mestre(a); sendo que o grupo a que ele pertence — enquanto um espaço de trocas permanentes, dinâmico e maleável — também deve ser percebido enquanto tal. Do lado de cá, o(a) educando(a) é reconhecido enquanto discípulo(a) e, na relação com o(a) mestre(a) e seu grupo, simbioticamente constituem-se capoeiristas. Esse relacionamento, que se inicia com a vontade de aprender seguida pela identificação do(a) mestre(a) com quem se quer aprender, envolve sedução, entrega, confiança, sentimento de pertença e lealdade.

Os(as) que se permitem a essa iniciação, afirmam estar em busca da “filosofia de vida”. E, neste estágio, embora não compreendam todos os elementos que compõem a capoeira, já a reconhecem através da comunidade (grupo de capoeira) escolhida para o seu (des)envolvimento. Para além da filosofia da capoeira, a escolha do(a) mestre(a) e do grupo está atrelada tanto aos rigores disciplinares inerentes a sua prática, quanto aos aspectos relativos ao posicionamento social abrangente, seja na esfera individual, seja na coletiva.

Tendo em foco a relação mestre(a)-discípulo(a), pode-se dizer que nela são encontradas grandes e importantes proposições no campo da educação. Nesse sentido, sai da roda o conhecimento seriado e modular, em face de um processo que prima pelo conhecimento através do autoconhecimento. Compartilhando do pensamento junguiano de que “compreender é compreender-se diante do texto”, a capoeira estabelece e revela relações baseadas na construção e gestão coletiva do conhecimento e na ruptura com conceitos de temporalidade como requisito para sua compreensão.

Sobre essa questão, podemos afirmar que, por se tratar de um espaço de construções coletivas, o processo de aprendizagem de capoeira é permeado por distintas marcações do tempo, muito por conta do aspecto corporal que a compõe. Nele, tem-se consciência de que a relação de troca e de crescimento estabelecida é para a vida toda, não existindo etapa ou graduação que defina o seu término. Assim, em um grupo de capoeira todos aprendem, objetiva e subjetivamente, com um(a) mestre(a) que também ensina aprendendo: “cada qual é cada qual”, diz Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha (1988-1981).

É com base nesses (e em outros) fundamentos que a capoeira e os(as) capoeiristas definem e apresentam as suas formas de educar. Na roda, são elementares os vários caminhos, além dos limites da capoeira, sejam coletivos ou individuais: o domínio da técnica, que é baseada em uma complexa movimentação corporal, sustentada pelo respeito e pela relação com o outro no jogo; o estudo dos instrumentos essenciais à prática, sua fabricação, uso musical e manutenção; os significados e sentidos histórico-filosóficos da capoeira, que exprimem uma (sua) cosmovisão e sua forma de interagir com outros mundos.

Os estudos sobre capoeira vêm ganhando cada vez mais espaços nas pesquisas independentes e acadêmicas, em diversos países. Essa ampliação acompanha o surgimento e o desenvolvimento de uma “comunidade internacional da capoeira”, que também se manifesta através do que se conceitua como uma economia da capoeiragem, através da qual são ofertados e consumidos livros, revistas, filmes, discos, shows, instrumentos, moda-vestuário, calçados, dietas, adornos, tatuagens e, sobretudo, eventos. A economia da capoeira possibilita e colabora com o trânsito da capoeira no cenário internacional, agora em dimensões transcontinentais.

Apesar da ausência de fonte estatística atualizada, precisa e confiável, estima-se que, no Brasil, existam cerca de oito milhões de praticantes (ou iniciados), estando a capoeira em mais de 160 países, em todos os continentes[1]. A internet é uma ferramenta que demonstra e propagandeia a internacionalização da capoeira através dos milhares de sites, blogues, ou das informações compartilhadas pelas redes sociais. Por meio dela, pesquisas (sejam científicas ou não) tornam-se possíveis, onde os(as) interessados(as) podem encontrar informações sobre os grupos, seus feitos, “estilos” de capoeira[2], artigos, biografias, bibliografias, discografias, entre outras.

Outra importante questão em torno da capoeira diz respeito ao seu (aparente) enquadramento enquanto um novo campo de atuação profissional, no qual formação e trabalho aparecem de modo combinado. Num estudo anterior, questionamos como os estilos de capoeira se constituem enquanto campos de trabalho voltados para um novo tipo de trabalhador(a), nos quais se encontram interligadas, para fins de qualificação profissional, a questão racial, de gênero, o território e a formação escolar, como também questões relacionadas a cada um dos estilos de capoeira (Araújo, 1994). Para melhor dimensionar esse ponto, cabe recordar que a capoeira somente deixou de ser considerada uma contravenção a partir do Código Penal de 1940.

Numa perspectiva fenomenológica — a capoeira, ao ser informada pelos sentidos, sofre transformações nas experiências de consciência — a percepção acerca dos seus diversos sentidos (para além dos significados de cada movimento, de cada toque, de cada canto) e seu alcance vão sendo construídos ao longo do processo de amadurecimento da pessoa como capoeirista. Com isso, desvela-se a possibilidade de se compreender a capoeira enquanto um texto coletivo e público, o qual é escrito e reescrito cotidianamente. Por isso, reconhece-se o sentido da ginga muito além da sua compreensão de um movimento básico da capoeira. Ela é percebida como atitude e escolha diante das problematizações em torno das quais, muitas vezes, se evidencia a própria construção da identidade de ser angoleiro(a), tanto na sua forma narrativa (aceitação, acomodação), quanto no seu conteúdo do mito-poético, corpóreo, ritualizado frente à perspectiva de validação e atualização do mito fundante: a linhagem.

Reconheçamo-la também em sua função educativa, percebendo a capoeira como uma pedagogia articulada às identidades no contexto societário hegemônico. Nesse sentido, é possível identificar a existência de sujeitos que: a) ao se dizerem/perceberem educadores, organizam-se em torno de outros modelos “societais” (identitários) não hegemônicos; b) adotam, enquanto dimensões pedagógicas, a ancestralidade, a organização coletiva e a solidariedade, de modo a instituir e fortalecer o sentimento de pertença ao grupo com o qual se quer crescer; c) apontam para a inoperância do modelo oficial de ensino (redes públicas e particulares), que estigmatiza, silencia, distorce e se mantém apático a práticas excludentes e discriminatórias, fortalecendo, entre outros, o racismo, o sexismo e a homofobia; d) se relacionam com a ancestralidade, de forma a estabelecerem cadeias invisíveis de “presentificação” do passado e do futuro, geridas no trato da espiritualidade ou da espiritualização do cotidiano, em suas múltiplas formas; e) desenvolvem ações formativas baseadas nos debates sobre as representações, não apenas como prática cultural, mas como prática política, possibilitando uma maior visibilidade aos direitos específicos, bem como lutando para o seu cumprimento.

Os(as) mestres(as) de capoeira integram uma categoria de educadores culturais forjada no contexto das relações raciais e sociais mais amplas, que se estabelece sob as bases da (in)formalidade e permeia novas relações de produção, a qual serve para defini-los enquanto mestres(as).

Através de uma razão marginal, projetada nas interfaces das relações de poder, aberta e não contraditória (não isto ou aquilo, mas isto e aquilo), a capoeira institui uma lógica polivalente (ou polilógica) potencializada e inclusiva (Galeffi, 2011), rompendo com a razão fechada, contraditória à própria escolha do gingar.

Sob o paradigma do permanente movimento, a contradição não está na realidade, mas no pensamento sobre ela, indicando, muitas vezes, conflito entre duas proposições que são igualmente demonstráveis. Uma delas diz respeito à realidade, que possui elementos antagônicos e não contraditórios. De causalidade probabilística e não determinista/mecanicista, a própria ginga figura como representação dessa polilogicidade, incorporada através do acolhimento do corpo do outro diante do qual se ginga. Daí faz-se presente a recursividade do espelho que, sempre infiel, vai tecendo os infinitos trânsitos de aceitação e rejeição sobre as imagens projetadas e apreendidas.

Na roda, os(as) angoleiros(as)[3] ainda vivenciam sentimentos também antagônicos na sua relação com o outro — adversário(a) ou companheiro(a)? — e com o próprio jogo: luta-se com ou contra alguém? As respostas aqui produzidas também podem sinalizar para a maneira como pensam e lidam com o surgimento de um outro estilo de capoeira mais recente, conhecida como Capoeira Regional[4].

Para os(as) angoleiros(as), os critérios adotados pela Capoeira Regional produziram o deslocamento das bases de resistência cultural africana para a cultura hegemônica, assegurando à capoeira o status de esporte, como um tipo de luta marcial. Esta concepção está assentada no estabelecimento de um projeto de nacionalização (folclorização) e de embranquecimento cultural, cujas ações políticas mantiveram algumas características do modelo de racismo existente no Brasil, entre elas a cooptação e descaracterização da própria capoeira.

O mito fundante de cada estilo, seja na Capoeira Angola ou na Capoeira Regional, referencia as representações de si (sujeito/grupo), alimentando, no imaginário compartilhado da pertença coletiva, o entendimento sobre essas próprias representações, a despeito de estarem localizadas no domínio da fantasia ou do desenvolvimento intelectual, uma vez que entre um e outro se fixam espaços de recursividades. Isso torna possível, inclusive, a evidência do duelo de valores (colaboração versus competição, coletividade versus individualidade etc.), interno e externo aos estilos e mesmo nas disputas entre estes. A definição estética do próprio jogo evidencia a escolha política sobre tais valores. Esse imaginário, conector dessas representações não lineares da capoeira, é também o espaço de codificação dos dinamismos sociais, em que se pensam relacionados tanto a vida social quanto as manifestações culturais e suas relações de poder. Na Capoeira Angola, a figura e os ensinamentos do Mestre Pastinha têm peso relevante nas escolhas dos signos (e suas ritualizações) entre aqueles que se identificam enquanto seus(suas) seguidores(as), independentemente de o terem conhecido.

Isso mostra como o imaginário subjaz ao sentir, ao agir e ao ser, conduzindo a perenidade mitológica enquanto matriz do sistema filosófico da capoeira. Ao conceber o imaginário como um conjunto de imagens inter-relacionadas (constelações), que definem o “capital pensado”, fica perceptível a sua função organizadora no/do cotidiano, tido como espaço privilegiado de compreensão da sociedade abrangente (Durand, 1989).

Na formação da Capoeira Angola, a pequena roda é definida como local de treino e prática de elementos diversos, que se fazem corporais numa leitura de simultâneos encantamento/desencantamento e rivalidade/aceitação. Essas questões são direcionadas para a grande roda, como sendo o lugar de trânsito desses conhecimentos, suturando, igualmente, a aceitação e a rejeição acerca da realidade vivida. É na pequena roda (grupo) que são aprendidos os elementos da capoeira e na grande roda (sociedade mais ampla) que esses conhecimentos os(as) constituem enquanto capoeiristas.

Como a atuação na pequena roda e na grande roda é orientada pela cosmovisão africana, ou seja, pelo fundamento do dendê, o compartilhamento do espaço de criação coletiva rompe com a lógica da competitividade produtivista, em benefício da celebração da vadiagem. Nesse sentido, a roda não deve ser compreendida tão somente como um espaço de decisões, mas também de riscos, testes e improvisos. E o jogo de capoeira também deve ser compreendido como um jogo infinito, que não acaba. Por se tratar de um “diálogo de corpos”, muitas vezes uma “resposta” a uma “pergunta” corpórea realizada pode levar anos para se concretizar.

Ousar um projeto político que integre qualidade de vida: este é o fio condutor das escolhas das pessoas que optaram pela Capoeira Angola e suas práticas de resistência e filosofia ladina[5].

Muitas das linguagens com as quais se tece o cotidiano da capoeira são marcadas por um alto grau de organicidade e hierarquização, os quais caracterizam seus ensinamentos. Na busca das conexões entre o figurado e o real, percebe-se uma obscuridade que ainda envolve o próprio tema, na medida em que se aproxima do caráter iniciático dessa tradição, sobretudo na relação que se estabelece entre mestre(a) e discípulo(a).

Algumas categorias de análise do cotidiano propostas por Maffesoli (1985), como “grandes formas” que privilegiam a experiência coletiva (sociabilidade), explicam alguns elementos da capoeira através dos quais se manifestam situações habituais que asseguram identidades de base e resistência. Na capoeira, a aceitação da vida conforma-se através da repetição de uma temporalidade circular, que relativiza os acontecimentos e fomenta a permanência no jogo, como busca constante pelo crescimento. Com isso, aprende-se a não fechar o jogo, de modo a não esgotar as possibilidades de “fala” com quem se joga. A espera por um novo momento, com outros capoeiristas e em uma roda diferente pode significar a continuidade do aprendizado em questão.

Pelo viés da duplicidade, consagram-se as máscaras e se posicionam os personagens do jogo. Eles envolvem os elementos importantes no processo da ritualização, da descontinuidade e da aceitação do presente na capoeira, através da teatralidade e do espetáculo, reestruturando uma espécie de jogo social em que se personifica a chamada “identidade de camaleão” (Goffman, 1975).

Na constância dessas reelaborações, o silêncio e a astúcia seguem produzindo as brechas em que novos nichos[6] são firmados como forma de resistência. Neles, os afrontamentos baseiam-se em laços sociais afetivos e na ambiguidade básica da estruturação simbólica, o que permite a coesão do grupo e a partilha fraterna de valores, lugares e ideias.

Agora tornam-se possíveis alguns questionamentos acerca do sistema formativo-educacional que a capoeira constitui: qual o sentido educativo desse sentimento de pertença e que transformações ele opera nos sujeitos capoeiristas? Como é possível a difusão dos aspectos formativos das tradições e dos saberes populares no âmbito dessas unidades sociais dinâmicas, uma vez que as pessoas envolvidas não são, necessariamente, o sujeito negro e pobre da capoeira de outros tempos? Como compreender a capoeira e suas formas de produção, apreensão e apropriação do conhecimento, através da dimensão corpórea dos modelos societais africanos ou afro-brasileiros?

A opção por identificar as insuficiências estruturais diante dos avanços tecnológicos e nos contextos das pluralidades culturais e identitárias pode nos aproximar daquilo que Morin (1996) chamou de “revolução na história do saber”, reconhecendo como insatisfatório tanto o conhecimento do especialista, marcado pela fragmentação e esoterização do conhecimento científico, como o do não-especialista, já que este renuncia, prematuramente, à tarefa de refletir (ou sistematizar sua reflexão) sobre seu mundo e sua vida.

Mestre Pastinha recusava-se a conceituar a Capoeira Angola, comportamento que se justificava frente à sua percepção ampliada sobre seus múltiplos sentidos e seu alcance, visto como incompatíveis com qualquer tipo de enquadramento. Sobre a questão, foi enfático: “Capoeira Angola, capoeira-mãe. Mandinga de escravo em ânsia de libertação. Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.”

Por não existir um consenso sobre o uso dado ao termo capoeira, somente ao desbanalizá-lo é que se torna possível percebê-la como uma potência, enquanto um espaço de poder. Seus fundamentos indicam que, tanto a rotina, quanto os acontecimentos são essenciais para a sua criação.

Dessa forma, por trás da recusa por tratá-la através de “outras” epistemologias, busca-se reafirmar saberes como os da capoeira que, ao serem reconhecidos no mundo em que foram formulados, exigem, minimamente, a descolonização das ideologias que incidem sobre a hierarquização destes saberes. A ação dos grupos sociais (a exemplo das organizações de Capoeira Angola) e os debates no interior da Universidade colaboram com esse propósito e necessitam ser ampliados. Carecem, ainda, de uma cumplicidade política em torno do entendimento desses campos formativos que, de acordo com o ensinamento de Paula Carvalho (1990), organizam o real e se constituem em práticas educativas; e, na medida em que a educação aparece como prática basal, promovem a sua interação com as demais práticas simbólicas. É assim que a Capoeira Angola, a partir dos seus elementos histórico-filosóficos, tem o desafio de repensar suas práticas simbólicas pelo prisma do antirracismo e, mais recentemente, também pelo não sexismo.

A ima(r)gem — imagem fora dos traçados hegemônicos (marginal), advinda das matrizes africanas do sujeito-capoeirista — permeia sua própria pertença e os aspectos tradicionais de suas escolhas, mais que distanciando os sujeitos, reposicionando-os em face do caráter subversivo dos valores hegemônicos. Sob esse prisma, o(a) sujeito-capoeirista é envolvido(a) numa perspectiva holonômica, integral, produtora de múltiplas linguagens poéticas, constitutivas de mitos individuais e coletivos e que podem conduzir a novas abordagens do próprio conhecimento científico. Entre elas, destaca-se a valorização da palavra falada (oralidade), que estabelece um complexo sistema de comunicação, transcendente-recursivo aos sentidos biopsíquico e socioculturais.

Na tentativa de inter-relacionar o privilegiado campo da tradição oral afro-brasileira com as áreas da comunicação e da educação, “suspeita-se” que os aspectos iniciáticos dessas tradições constituem o entorno do homo-symbolicus, base de uma hermenêutica criadora. No que tange à capoeira, pode-se afirmar que os cantos e os seus improvisos manifestados na roda, apresentam aspectos relevantes das relações sociais, denunciando desigualdades e apontando a necessidade de sua superação, acentuando sempre o poder e a força do grupo, da organização:

Quem nunca viu, venha ver
Licuri quebrar dendê.
Quem nunca viu, venha ver
Venha ver para aprender.

Na canção acima, exemplo típico do universo metafórico dos cantos da capoeira, observa-se uma tentativa de demonstrar as diversas possibilidades de intervenção sobre as instituições, produzindo-lhes fissuras e estabelecendo novos campos de negociação. De certo modo, essa postura associa novas formas de comunicação à prática dos(as) antigos(as) griôs e griôas africanos(as), presentes em vários registros das culturas africanas[7].

Independentemente do conteúdo real das construções ima(r)ginais narradas nos cantos da capoeira, suas reflexões e concepções transcendem o próprio enquadramento temporal e territorial, alargando-os. Com isso, percebe-se que o conteúdo ensinado é compreendido num universo de significações que é, no tempo/espaço, único para cada sujeito-capoeirista. No que tange às discordâncias entre mestre(as) e discípulos(as), na forma de pensar ou de agir, elas podem ser relegadas a um plano secundário, enquanto existir sentido e interesse na relação instituída. Se a escuta é o início de tudo, também o fim da relação dialógica de aprendizado pode advir por uma fala em momento indevido, o que não se deseja que aconteça:

Menino quem te matou?
Foi a língua meu senhor.
Eu te dava era conselho
Que pensava ser ruim
E eu sempre te dizendo
Inveja matou Caim, camarada…

Nas canções, também estão presentes os meios pelos quais os(as) mestres(as) orientam e apresentam os requisitos para a continuidade da relação com aquele que deseja aprender. No processo, mostra-se fundamental que o(a) discípulo(a) perceba as várias fases do aprendizado e o tempo de cada uma delas, as quais possuem um caráter individualizado, subjetivo, subversivo, misterioso:

Olha lá siri de mangue
Todo o tempo não é um,
A certeza que tu não “guenta”
Com a presa do guaiamum.
Maré de março,
Maré de guaiamum,
Entre grandes e pequenos,
Não me escapa um,
Siri tá se vendo doido
Nas garras do guaiamum, camaradinha…

Partindo da compreensão do mundo ima(r)ginal enquanto corporificação dos espíritos e espiritualização dos corpos, localiza-se, entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, a iniciação nos fundamentos da capoeira. Nesse processo, suas linguagens contemplam os elementos invariantes do comportamento humano (arquétipos), cujos desdobramento refazem o terreno desses seres capazes de simbolizar os sentidos de suas próprias existências através da vivência e da aceitação, individual e coletiva, de “quem é de dentro da roda”. Muitas vezes, essas construções se fizeram a partir da reapropriação (pelos negros, pelos capoeiras) de conteúdos jocosos e discriminatórios, transformando-os em poderosa arma através do uso de linguagem não disponível a todos e que, por isso, assusta, amedronta e afasta:

Queba la mi cumugê
Ê macá…

Os versos dessa canção espelham como a compreensão acerca da Capoeira Angola e seus enredos somente pode ser perfeitamente alcançada pelos “de dentro” da roda. Nos versos reside uma das estratégias de sustentação do mistério em torno do conhecimento angoleiro: o uso abreviado de palavras da língua portuguesa como forma própria de comunicação. No exemplo, a tradução da letra é “quebra milho como gente, ê macaco…”.

Voltando-se para o senso de sobrevivência dos povos negros no processo civilizatório brasileiro, a constituição de uma alma ladina, ardilosa, evidencia um plano de negociação entre o sujeito-capoeirista e os grupos sociais dominantes (Reis, 1989).

Nos cenários urbanos da sociedade brasileira contemporânea – palco singular de apreensão das margens como sumário de um conflito – onde o desemprego é (re)produzido de maneira implacável, assim como o desalento e a desesperança, frente ao mundo formalizado pelos avanços tecnológicos grande parte dos(as) jovens de extratos sociais mais vulneráveis busca encontrar na vivência em meio às organizações de capoeira não apenas um status que lhe assegure certo tipo de destaque junto às suas comunidades. Mais que isso, esses jovens buscam compartilhar prazeres, crenças, sentimentos, afetos, conquistas e dignidade:

Ó meu Deus, o que é que eu faço
Para viver neste mundo
Se ando limpo, sou malandro
Se ando sujo, sou imundo
Ó que mundo velho e grande
Ó que mundo enganador
Eu digo dessa maneira
Meu mestre que me ensinou
Se não falo, sou calado
Se falo, sou falador, camará…

Mais que afirmar ou negar, ser mestre(a) significa a própria aventura do aprender, transportando as linguagens da pequena roda para a grande roda. Daí, reforça-se uma pré-compreensão ontológica do imaginário, através da percepção da ima(r)ginalidade. Nesse sentido, autoidentificar-se (e também autodistinguir-se) aguça e dá sustentação às diversas oposições constitutivas do(a) capoeirista.

Iê, maior é Deus, pequeno sou eu,
O que eu tenho, foi deus que me deu
Na roda de capoeira
Grande e pequeno sou eu, camará…

Considerando o fato de os(as) mestres(as) atingirem elevada posição de respeito e credibilidade perante seus grupos e, muitas vezes, além dos limites de suas próprias comunidades, ganha relevância uma reflexão acerca dos sentimentos (muitas vezes conflituosos) e das seduções que os acompanham durante a sua trajetória.

Sobre essa questão, é importante considerar que os modelos de resistência dos povos negros no Brasil, os quais primaram pelo estabelecimento de planos de “negociação”, deram às organizações de caráter artístico e/ou religioso papeis de destaque na luta antirracista, alcançando, em sua relação com a sociedade abrangente, aceitação e repulsa. Os sujeitos e as coletividades envolvidos nesses modelos de sociabilidade obtiveram êxito em suas estratégias e conseguiram, a seu modo, desmistificar a existência de uma democracia racial, além de evidenciarem a precariedade da democracia política e a inexistência de uma democracia social no Brasil.

Em que pese todas as questões articuladas em torno da Capoeira Angola, ainda se evidencia a necessidade de sua compreensão para além da dimensão atlético-corporal. É preciso acentuar os aspectos do conhecimento estético dessa vivência e dos processos metodológicos das africanidades no Brasil, de modo a reconhecer no âmbito da sua prática, esse outro campo de conhecimento simbólico, em que também as relações da sociedade abrangente estão representadas, ainda que por outras gingas.

Como um campo de conhecimento, a Capoeira Angola aparece como uma das formas de resistência negra, caracterizada por uma prática inovadora de organização dos grupos, bem como por modelos diferenciados de atração e de garantia da permanência dos indivíduos[8] no processo de “iniciação”. O compartilhamento das tradições que a integram (seja no campo da espiritualidade ou no dos elementos corporais/musicais da sua prática), bem como as reflexões promovidas acerca delas, acentua a importância de se estabelecerem pontes com as inovações da modernidade. “Dendê” e “internet” mostram-se igualmente sedutores e essenciais, constituindo-se como elementos que contribuem com as estratégias de continuidade do sujeito-capoeirista e do próprio grupo, promovendo o fortalecimento de ambos.

Na Capoeira Angola, a ancestralidade e a individuação (ainda no pensar jungiano) ganham contornos mais nítidos, dialogando com a percepção simbólica que o sujeito tem de si, do mundo, de si no mundo, do mundo em si. Tudo isso ganha reforço no próprio corpo do capoeirista, dando-lhe originalidade e erudição.

A vivência da capoeira conforma-se através de um ritual que, ao mesmo tempo em que se caracteriza pela repetição dos fazeres cotidianos, também é marcado pelo desvelar constante de novos significados advindos do que aparenta ser uma mesma ação.

É certo que a cosmovisão africana — principalmente no campo da narrativa mitológica, no qual reside uma constelação de símbolos — possibilitou à capoeira que extrapolasse a condição do rito pelo rito e alcançasse, através do corpo e da corporeidade, múltiplas e polissêmicas linguagens, constituindo uma pedagogia marcada pelo desejo, pelo olhar e pela escuta. Assim é que o suporte corporal, expressado na ginga e nos vários movimentos da capoeira, promove um (re)encantamento das estórias individuais dos capoeiristas e do próprio grupo a que eles integram, em detrimento de aspectos da história hegemônica e da lógica bipolarizada, o que possibilita, no presente, que diversos mitos africanos sejam identificados e revividos, colaborando com o seu resgate e memória (Carvalho, 1980).

Através da capoeira e do seu jogo ainda é possível uma metamorfose do ego, através do processo de individuação (sujeito-capoeirista), acentuado pela sensibilidade mito-poética. Nesse sentido, ao se optar pela Capoeira Angola para os fins desta análise, além da apresentação de seus aspectos sociopolíticos, é demonstrado o seu potencial de esclarecer um mito coletivo que flui e é revelado no imaginário enquanto conjunto das imagens simbólicas, orientadoras da sociabilidade dos grupos.

Adeus, adeus, adeus, ah!
Vou me embora com as ondas do mar,
Vou me embora pelas ondas do mar
Vou me embora mas eu sei que vou voltar…

 


* Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é mestra fundadora do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil (INCAB). Graduada em História pela UFBA, fez mestrado e doutorado em Educação na Universidade de São Paulo (USP). Entre as suas publicações sobre capoeira, encontram-se: Bases filosóficas da “escola” pastiniana (2005); O brasileiro é tão angoleiro quanto eu (2005); A África e a afrodescendência: um debate sobre a cultura e o saber (2003).

[1] Dados estimados a partir dos números produzidos pelo Ministério dos Esportes quando da realização do Congresso Nacional Unitário da Capoeira, São Paulo, 2000.

[2] Refere-se à Capoeira Angola e Capoeira Regional. Particularmente, não reconheço outras denominações sobre os hibridismos a partir das “misturas” desses dois estilos.

[3] Forma de tratamento às pessoas iniciadas tanto na Capoeira Angola quanto no candomblé da nação Angola.

[4] Criada pelo baiano Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba), por volta de 1932.

[5] Termo muito comum na historiografia sobre a escravidão para se referir aos negros libertos, tidos como boçais e espertos.

[6] Espaços de refúgio implicados na existência de uma solidariedade orgânica.

[7] Griôs (do francês griot) e griôas (feminino aportugesado do griô) faz referência a antigos(as) mestres e mestras das tradições africanas e afro-brasileiras que pela oralidade garantem a existência de muitos conhecimentos e práticas desses saberes (Niane, 1982).

[8] Importante considerar que a vivência da capoeira não é mais uma exclusividade de homens e de negros.

Referências:

ARAÚJO, Rosângela C. Tradição e educação entre os angoleiros baianos (Anos 80-90). Dissertação de Mestrado. FEUSP. 1999

ARAÚJO, Rosângela C. Profissões Étnicas: A profissionalização da capoeira em Salvador. In: Bahia, análise & dados. Salvador, CEI/SEPLANTEC, vol. 3, no. 4, pp. 30-32, 1994.

CARVALHO, Paula, et al. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

DURAND. Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Lisboa: Editoria Presença, 1989.

GALEFFI, Dante A. Epistemologia do educar: um caminhar construtivo comum-pertencente. In: GALEFFI, Dante A., et al. Epistemologia, construção e difusão do conhecimento: perspectivas em ação. Salvador: EDUNEB, 2011.

GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.

MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Trad. Márcia S.  Cavalcante. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Edição revista e modificada pelo autor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

MORIN, Edgar. A cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Trad. Agenor Soares Santos. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1986.

NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a epopeia mandinga. Trad. Oswaldo Brito. São Paulo: Ática, 1982.

REIS, João J., et. al. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

TEIXEIRA, M.C.S. Imaginário, cultura e educação: um estudo sócio-antropológico de alunos de escolas de 1o grau. Tese de Livre Docência, FEUSP, 1994.

Raça, o significante flutuante

Stuart Hall
Tradução de Liv Sovik, em colaboração com Katia Santos*

Mesmo que alguns considerem um tanto tarde, quero voltar à questão do que queremos dizer, quais são as implicações de dizer — como fiz no título bastante provocador desta palestra — que raça é uma construção discursiva, um significante deslizante. Afirmações desse tipo já têm certo prestígio nos círculos avançados da crítica hoje em dia, mas está claro que críticos e teóricos nem sempre querem dizer a mesma coisa nem tiram as mesmas conclusões dessa afirmação. Além disso, a ideia de que raça possa ser entendida como significante não é, na minha experiência, algo que tenha atingido com profundidade, e nem tenha sido eficaz em desarticular ou desalojar, o que eu chamaria de pressupostos do senso comum e formas cotidianas de falar de raça e de produzir sentido sobre raça na sociedade de hoje. E estou falando, em parte, do mundo grande, bagunçado e sujo no qual raça importa, fora da Academia, e não só da luz que podemos, a partir da Academia, lançar sobre ela.

O mais sério é que não foram adequadamente mapeados ou avaliados os efeitos deslocadores de se pensar raça como significante, sobre o mundo da mobilização política em torno de questões de raça e racismo, ou sobre as estratégias da política e da educação antirracistas.  Bem, talvez vocês não estejam persuadidos ainda, mas essa é minha desculpa por voltar neste momento tardio a esse tópico, mesmo sabendo que muita gente acha que, afinal, tudo de útil que poderia ser dito sobre raça já foi dito.

A rejeição “formal” do racismo biológico

O que quero dizer com “significante flutuante”?  Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam em sociedades humanas. E dizer que raça é uma categoria discursiva é reconhecer que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na ciência, localizando as diferenças entre as raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram insustentáveis. Precisamos, portanto —  diz-se —  substituir a definição biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural[1]. Como resumiu o filósofo Anthony Appiah em algum momento: “…É hora do conceito biológico de raça ser afundado sem deixar rastro”. W. E. B. Du Bois, o grande pensador e escritor afro-americano, não tão conhecido no Reino Unido quanto deveria, escreveu sobre essas questões um texto maravilhoso e tocante intitulado As almas da gente negra [2]. Em outro texto, um ensaio intitulado A conservação das raças, fala do que chama de “… as diferenças de cor, cabelo e osso”  que — ainda comentou —, “embora sejam claramente definidas para o olhar de historiadores e sociólogos” —, coisa boa, porque existem muitas coisas que sociólogos não enxergam, mas ele achava que a diferença racial fosse algo que eles mais ou menos conseguiam distinguir —  “… que tais coisas são de maneira geral de baixa correlação com a diferença genética e, por outro lado, impossíveis de serem correlacionadas significativamente com as características culturais, intelectuais ou cognitivas de um povo.” Além da extraordinária variação existente dentro de uma mesma família, principalmente qualquer unidade chamada “família de raças”.

A sobrevivência do pensamento biológico

Quero pontuar quatro coisas simultaneamente, sobre essa posição geral.  Primeiro, ela representa o que já é de senso comum entre cientistas proeminentes nesse campo.

Em segundo lugar, esse fato nunca impediu que estudiosos consagrassem uma atividade intensa, por uma minoria de acadêmicos comprometidos, à tentativa de provar a correlação entre características genéticas vinculadas a racialidades e desempenho cultural. Noutras palavras, não estamos lidando com um campo no qual, digamos, o fato reconhecido científica e racionalmente impede os cientistas de continuarem tentando provar o oposto.

Em terceiro lugar, noto que, embora as implicações racializadas deste trabalho científico permanente sobre o tema, por exemplo, sobre raça e inteligência, sejam clamorosamente condenadas por grande número de pessoas, certamente pela maioria de profissionais liberais e sobretudo por grupos negros de todos os tipos, de fato, grande parte do que é dito por esses mesmos grupos entre si é baseado em premissas desse mesmo tipo, por exemplo, de que um fenômeno social, político ou cultural — como a correção de uma linha política, ou os méritos de uma produção literária ou musical, ou a adequação de uma atitude ou crença — pode ser atribuído ou explicado e sobretudo fixado e garantido em sua verdade pela identidade racial da pessoa envolvida.

Deduzo da intensa atividade de pesquisa a lição incômoda de que posições políticas opostas muitas vezes derivam do mesmo argumento filosófico. E embora a explicação genética do comportamento social e cultural seja frequentemente denunciada como racista, as definições genéticas, biológicas e fisiológicas de raça passam bem, obrigado, nos discursos de senso comum de todos nós. O fato é que a definição biológica, fisiológica e genética de raça, convidada a se retirar pela porta da frente, tende a dar a volta e retornar pela janela.

Esse é o paradoxo que quero explorar e discutir a seguir. Por que é assim?

O distintivo de raça

Em um artigo na revista Crisis de agosto de 1911, Du Bois muda decisivamente seu discurso para escrever sobre “civilizações onde hoje podemos falar de raças”, acrescentando que “mesmo as características físicas, incluindo a cor da pele, são resultado direto, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”, ele afirma, “para servirem como base para qualquer origem, classificação ou divisão de grupos humanos”. Agora, baseado nesse reconhecimento em Dusk of Dawn, sua autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum porque — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.”

Um distintivo, uma insígnia, um signo? Aqui está a ideia, preconizada no título de minha conferência, de que raça é um significante, e que o comportamento e a diferença racializados devem ser entendidos como fato discursivo e não necessariamente genético ou biológico.

Raça como linguagem, um “significante flutuante”

Não quero desviar de meu caminho e entediá-los com um longo tratado teórico sobre os termos que estou usando, mas simplesmente lembrá-los que o modelo que está sendo proposto aqui está mais próximo do funcionamento de uma linguagem do que do funcionamento de nossa biologia ou de nossas fisiologias. E que raça se assemelha mais a uma linguagem do que à nossa forma de constituição biológica. Talvez pensem que é uma coisa absurda e ridícula, talvez até estejam olhando em volta para terem certeza de que suas aparências estejam funcionando bem. Garanto que estão. As pessoas são meio esquisitas, algumas marrons, outras bastante pretas, algumas até, com esta luz, repugnantemente rosadas. Mas não há nada de errado com suas aparências. Mesmo assim, quero defender que raça funciona como uma linguagem. E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classificação de uma cultura, a suas práticas de produção de sentido. E essas coisas ganham sentido não por causa do que contêm em suas essências, mas por causa das relações mutáveis de diferença que estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de significação. Esse sentido, por ser relacional e não essencial, nunca pode ser fixado definitivamente, mas está sujeito a um processo constante de redefinição e apropriação. Está sujeito a um processo de perda de velhos sentidos, apropriação, acúmulo e contração de novos sentidos; a um processo infindável de constante resignificação, no propósito de sinalizar coisas diferentes em diferentes culturas, formações históricas e momentos.

Não é possível fixar o sentido de um significante para sempre ou trans-historicamente.  Ou seja, há sempre um certo deslizamento do sentido, há sempre uma margem ainda não encapsulada na linguagem e no sentido, sempre algo relacionado com raça que permanece não dito, alguém é sempre o lado externo constitutivo, de cuja existência a identidade de raça depende, e que tem como destino certo voltar de sua posição de expelido e abjeto, externo ao campo da significação, para perturbar os sonhos de quem está à vontade do lado de dentro.

Como dar conta da realidade da discriminação e da violência raciais?

Dirijo-me a essa questão diretamente porque acredito que é aqui que os mais céticos entre vocês estão começando a pensar: “Tudo bem, dá para dizer talvez que raça não seja, afinal, uma questão de fatores genéticos, biologia, características fisiológicas, morfologia do corpo, não é uma questão de cor, cabelo e osso”, esse trio pavoroso que Du Bois elenca tantas vezes. Entretanto, talvez digam: “Você está mesmo afirmando que raça é um simples significante, um signo vazio, que não está fixado em sua natureza interna, que seu sentido não pode ser assegurado, que flutua em um mar de diferenças relacionais? É esse o seu argumento? E não seria esta não só errada, mas também uma abordagem leviana[3] e” — ouço a palavra sendo murmurada no público — “idealista de fatos crus da história humana, que afinal de contas deformaram as vidas e aleijaram e constrangeram o potencial de literalmente milhões de despossuídos do mundo? E depois, por que não usar a evidência diante de nossos olhos? Se raça fosse um negócio tão complicado, por que ela estaria evidente de forma tão manifesta aonde quer que olhemos?”

Preciso dizê-lo novamente porque percebo o sentimento de alívio — depois de darmos umas voltas por essas diversas estruturas discursivas — ao chegarmos ao que todos nós sabemos sobre raça: sua realidade. Dá para ver seus efeitos, dá para vê-la nos rostos das pessoas à sua volta, dá para ver as pessoas se remexendo quando pessoas de um outro grupo racial entram na sala. Dá para ver a discriminação racial funcionando nas instituições, e assim por diante. Para que toda essa algazarra acadêmica sobre raça, quando você pode apenas voltar-se para a sua realidade?

Que caminho através da história é mais literalmente marcado pelo sangue e a violência, pelo genocídio da Middle Passage, os horrores da servidão nos engenhos e a forca improvisada?  Um significante, um discurso?  Sim, esse é o meu argumento.

Duas posições: a realista e a textual

Já que não estamos preocupados aqui com a crítica teórica abstrata e sim com uma tentativa de abrir os segredos do funcionamento de sistemas raciais de classificação na história moderna, permitam-me voltar à questão de como observamos esse funcionamento em torno da preocupante questão acerca das diferenças grosseiras de cor, osso e cabelo, que constituem o substrato material, o denominador comum absoluto e final dos sistemas raciais de classificação. Quando todos os demais refinamentos foram apagados, parece haver um resíduo de diferenças que são palpáveis nas pessoas, as quais chamamos de raça. De onde será que vieram, se são simplesmente, o que estou tentando afirmar, discursivas?

Em termos gerais, entendo que há três opções aqui. Primeiro, podemos alegar que as diferenças de tipo fisiológico ou de natureza realmente fornecem base para que classifiquemos as raças humanas em famílias. Quando se comprova que conseguem fazê-lo, podem ser representadas de forma adequada em nossos sistemas de pensamento e linguagem. Essa é uma posição realista: está aí, e só falta refletir de forma adequada sobre o que está lá fora no mundo, nos sistemas de linguagem e conhecimento que utilizamos para conduzir investigações sobre seus efeitos.

Uma segunda possibilidade é a posição chamada muitas vezes de puramente textual ou linguística. Raça é, aqui, um sistema autônomo de referência. Este não pode ser testado contra o mundo efetivo da diversidade humana, só dentro do jogo do texto e do jogo de diferenças que construímos na nossa própria linguagem.

Uma terceira posição: o discursivo

Existe uma terceira posição, à qual me filio. Essa terceira posição é a de que existem diferenças de todo tipo no mundo, e que a diferença é um tipo de existência anômala por aí, uma série randômica de todo tipo de coisa que a gente chama de mundo e não há motivo para negarmos essa realidade ou essa diversidade. Acho que é o que Foucault às vezes, mas nem sempre, chama de extra-discursivo. Mas estou em Goldsmiths e não quero provocar os foucaultianos… Apenas quando essas diferenças foram organizadas dentro da linguagem, dentro do discurso, dentro dos sistemas de sentido, é que podemos dizer que as diferenças adquiriram sentido e se tornaram fatores da cultura humana e da regulação de condutas — essa é a natureza do que estou chamando de conceito discursivo de raça. Não é que as diferenças não existam, mas sim que o que importa são os sistemas que utilizamos para dar sentido a elas, para tornar as sociedades humanas inteligíveis; os sistemas que cotejamos com as diferenças, a forma como organizamos essas diferenças em sistemas de sentido com os quais, de alguma maneira, fazemos com que o mundo nos seja inteligível. E isso nada tem a ver com negar que — como digo, o teste do público — se você olhar ao redor vai descobrir que, realmente, temos aparências diferentes uns dos outros.

Acho que esses sistemas são discursivos porque o jogo entre a representação da diferença racial, a escrita do poder e a produção do conhecimento é crucial para a maneira em que foram gerados e funcionam. E uso a palavra “discursivo” aqui para marcar teoricamente a transição de uma compreensão mais formal da diferença para uma compreensão de como as ideias e conhecimentos da diferença organizam as práticas humanas entre os indivíduos.

Religião: uma primeira tentativa de classificação radical

Os sistemas de classificação racial têm uma história. Sua história moderna emerge onde povos de tipos muito diferentes têm que fazer sentido como povos de uma outra cultura, significativamente diferente. Podemos datar o momento desse encontro histórico. Quando o Velho Mundo encontrou os povos do Novo Mundo, ele colocou uma questão, a famosa questão que Sepúlveda fez a Las Casas no debate no interior da igreja católica, a questão da “natureza dos povos que encontramos no Novo Mundo.” Não disseram, como os mais religiosos entre vocês gostariam de pensar, “São ou não são homens como nós e nossos irmãos? Não são elas mulheres como nós e nossas irmãs?” Não, não disseram isso, demorou muito para isso acontecer — dois ou três séculos antes do movimento abolicionista colocar essa questão. Não, o que disseram foi: “São homens verdadeiros?” Isto é, pertencem à mesma espécie que nós ou nasceram de outra criação? E aqui durante séculos não era a ciência, mas a religião o significante do conhecimento e da verdade, no lugar onde as ciências humanas, e depois a ciência como tal, estava destinada a ficar mais tarde, para fundamentar a verdade da diferença humana e da diversidade em um fato controlável, que definia que o lado deles era lá, e o nosso aqui; eles nos navios e nós no topo da civilização que conquistamos e etc.

Dormir melhor: a função cultural do conhecimento

Organizar pessoas em diversos grupos sociais, de acordo com suas diferenças, é para isso que serve o ato da classificação humana. É isso o que se procura — primeiro através de um discurso religioso, depois antropológico e, finalmente, em um discurso científico. Aqui, cada um desses conhecimentos está funcionando não como provimento da verdade, mas como aquilo que tranquiliza os homens e as mulheres e os deixa dormir melhor. São chupetas, chupetas de conhecimento que se coloca na boca; primeiro coloca-se a chupeta religiosa e espera-se que, no final das contas, Deus tenha criado dois tipos de homens, tenha feito duas tentativas — num fim de semana, depois noutro, e eles estavam lá e nós estávamos cá, e só muito tempo depois a gente acabou topando uns com os outros. Mas não há qualquer ideia de que viemos do mesmo lugar. E essa chupeta não funciona, você a tira e coloca outra: e em termos antropológicos, eles dizem: “Bem, são parecidos conosco, porque todo mundo vem dos macacos mas alguns são mais próximos dos macacos do que a gente” e embora não haja uma diferença absoluta, você sabe que isso é suficiente para encontrar diferenças, nos departamentos universitários, na publicação de artigos etc. E, finalmente, quando a própria antropologia por fim desiste, logo aparece James Clifford, que desiste desse tipo de conhecimento sobre o que a antropologia consegue fazer, separar as ovelhas das cabras. E aí vem a ciência e diz: “Eu consigo, eu sei fazer. Tente a genética.” Você não enxerga a genética, é um sistema maravilhoso, interno, não fazemos ideia do que seja, podemos vê-lo no laboratório — mas os seres humanos não o veem, o que veem são os efeitos da operação do código genético. Assim, é um código maravilhosamente secreto que apenas um número pequeno de pessoas têm ao seu dispor, que faz o que a religião[4] não conseguiu e a antropologia afinal acabou fracassando em fazer. Ele consegue dizer por que essas pessoas não são do mesmo campo, por que são diferentes umas das outras, e por que são realmente de outra espécie. E não seria bom saber que em vez de tentar descobrir se os que são seus amigos são mais próximos de você do que aqueles que não o são, todo aquele mapa complexo de alianças e etc. que constituem as relações humanas — não seria legal se você pudesse dizer algo simples como: “Vou dar um pulo no laboratório e depois lhe digo se eles são próximos ou não.” É isso que a genética consegue fazer.

Fixando a diferença: a função cultural da ciência

A ciência tem uma função, uma função cultural, em nossa sociedade. Vou parar antes que eu vá longe demais. Não estou sugerindo que a ciência não tem substância. Estou falando da função da ciência dentro dos sistemas culturais humanos. Estou falando da função cultural da ciência e que essa função, nas linguagens e discursos do racismo, tem sido precisamente a de dar garantia e certeza da diferença absoluta que nenhum outro sistema de conhecimento até então tinha conseguido prover. É por isso que o traço científico permanece um instrumento tão poderoso no pensamento humano, não só na Academia, mas em toda parte do discurso do senso comum das pessoas.  Durante séculos, se lutou para estabelecer uma diferença binária, entre dois tipos de pessoa. Mas quando chegamos ao Iluminismo, que diz ou reconhece que somos todos de uma mesma espécie, foi preciso encontrar uma maneira de marcar a diferença dentro dessa espécie e não entre duas espécies — porque uma parte da espécie é diferente: mais bárbara, atrasada ou civilizada do que a outra parte. E você se depara com uma marcação diferente da diferença, a diferença que é marcada dentro do sistema. Vejam como Edmund Burke escreveu para o historiador William Robertson em 1777: “Não precisamos mais recorrer à história”, afirmou, “para traçar o conhecimento da natureza humana em todas as suas fases e períodos. Por quê? Porque agora o grande mapa da humanidade está todo na estrada e não há estado ou gradação de barbárie ou modo de refinamento que não esteja simultaneamente sob nossa vista.” Este é o olhar panóptico do Iluminismo: tudo, toda a criação humana está, por assim dizer, sob o olho da ciência. E, neste âmbito, é possível marcar as diferenças que realmente importam. E quais são? “As civilidades muito diferentes da Europa e da China; a barbárie de Tartary e da Arábia; e o estado selvagem da América do Norte e da Nova Zelândia.” Meu argumento não diz respeito à ciência em si, mas ao que estiver no discurso de uma cultura que fundamenta a verdade sobre a diversidade humana, que abre o segredo das relações entre natureza e cultura, que desata o nó enigmático da diferença humana que importa. O que importa não é que contenham a verdade científica sobre a diferença, mas que funcionem como fundamento do discurso sobre a diferença racial. Fixam e estabilizam o que de outra maneira não haveria como ser fixado ou estabilizado. Asseguram e garantem a verdade das diferenças discursivamente construídas.

Natureza = cultura

Então, a relação aqui é que a cultura é feita para ser um ato contínuo da natureza, ela se apoia na natureza para se justificar. A natureza e a cultura operam como metáforas uma para a outra. Operam metonimicamente. É a função do discurso, e de raça como significante, fazer com que ambos os sistemas — natureza e cultura — correspondam um ao outro, de maneira que uma possa ser lida através da outra. Assim, uma vez que se saiba onde uma pessoa cabe na classificação das raças humanas naturais, é possível inferir daí o que provavelmente pensam, o que sentem ou produzem, a qualidade estética de suas produções, e assim por diante. A função de raça como significante é constituir um sistema de equivalências entre natureza e cultura.

Exige-se o traço biológico como sistema discursivo na medida em que os sistemas raciais tenham a função de essencializar, de naturalizar, essa maneira de tirar a diferença racial da história, da cultura, e localizá-la para fora do alcance da mudança.

Ver é crer

No entanto, esse não é, a meu ver, o único motivo pelo qual o raciocínio biológico, enquanto funciona como se fosse largamente falso, ainda permanece na conversa quando falamos de raça. Esse não é o único motivo. O ponto de partida de Du Bois era precisamente as diferenças mais grosseiras de cor, cabelo e osso.

Apesar do fato de que permanecem anômalos às populações, transcendem a definição científica, são os que, afinal, provêm o fundamento das linguagens que usamos no cotidiano para falar sobre raça: os fatos físicos grosseiros, que teimam em existir, de cor, cabelo e osso. Ora, a questão central sobre essas diferenças físicas grosseiras é que elas não estão baseadas na diferenciação genética, mas são claramente visíveis a olho nu. São absolutamente, evidentemente, indisputavelmente presentes. São a diferença visível. São, para o olho não científico, o que faz com que raça seja um assunto que continuamos discutindo. São os fatos brutos, físicos e biológicos que aparecem no campo de visão humano, onde ver é crer.

Frantz Fanon foi arrebatado por essa inscrição da diferença racial na superfície do corpo negro: o que ele chamou de evidência escura e inquestionável de sua própria negritude. Em Pele negra, máscaras brancas (2008[1952]) ele disse: “Sou um escravo não da ideia que outros têm de mim mas de minha própria aparência, sou fixado por ela.” Pois o que pode transfixar as pessoas mais do que aquilo que é poderoso, evidente e concretamente presente? Uma diferença racial que se inscreve indelevelmente na escritura de um corpo? Mesmo assim, quero argumentar que acontece aí um jogo de significantes.

Genética: produzindo sentido com a diferença

De onde surgem esses signos evidentes e visíveis de diferença racial? Cabelo crespo, nariz largo, lábios grossos, traseiros grandes. E, conforme o escritor francês Michel Cournot o expressou com delicadeza, “pênis do tamanho de catedrais”. O que dá origem a tudo isso, claro, é o código genético. Porque essas coisas não estão simplesmente presentes. Já tentaram fazer uma triagem de um conjunto de pessoas que apresentem algumas dessas diferenças, separando-as em dois grupos discretos e opostos? Isso é impossível de ser feito. É impossível. Algumas pessoas ficam em um polo, outras noutro, e depois há um grupo no meio que fica deslizando para dentro e para fora. Não é possível fixá-lo. Assim, embora raça seja claramente o que você vê, o que a fixa é o que todos sabemos, nós da área científica. O que lhe dá respaldo é o código genético, o qual lamentavelmente não se consegue enxergar. Mas é possível inferir sua existência a partir do fato de que algumas pessoas têm traseiros grandes e outras cabelos crespos, e alguns têm narizes largos e alguns, como dizem, têm o pênis do tamanho de uma catedral. Mas não dá para organizar a população — sabe, dizer “abaixe as calças” e lhe digo se você é isto ou aquilo — porque a coisa é anômala demais. Mas se pode ter certeza de que, geneticamente, um pedaço de código deu origem a essas diferenças no nível da superfície das aparências[5]. E nós, pobres mortais, temos que trabalhar com essa superfície das aparências porque não temos acesso ao código genético.

Ler o corpo

“Tudo bem”, vocês devem estar dizendo, “isso pode ser verdade, mas o que você está dizendo, de fato, é que essas coisas que são visíveis também são significantes! Você as está lendo como signos em um código que não dá para ser visto,  presumindo que é o código genético que produz essas diferenças grosseiras de cor, cabelo e osso. E que só por causa disso é que podemos usá-las como uma forma de fazer distinção entre um e outro grupo de pessoas.” Se eu disser, “aconteceu por acaso”, não é a resposta que procuramos. Procuramos entender o fato de que você consegue ler o corpo como se fosse um texto. Ele é um texto. Agora, meus amigos, sei que vocês vão dizer, “Se você me bater, me cortar, eu vou sangrar. Se me atropelar na rua, como acontece frequentemente aqui em New Cross, vou me machucar. Então, não me diga que sou um texto.” Talvez seja verdade, mas na medida em que estamos falando do sistema de classificação de diferenças, o corpo é um texto e somos todos leitores dele. E circulamos, olhando esse texto, inspecionando-o como críticos literários cada vez mais de perto para ver as diferenças mais refinadas, as tão sutis diferenças de metáfora. E quando isso não funciona começamos, como verdadeiros estruturalistas, a fazer uso das combinações. “Bem, com um permanente, sabe, um nariz não tão largo, com cabelos um pouco crespos, e se tenho um traseiro grandinho e sabe Deus mais o quê, talvez eu chegue a uma aproximação.” Somos leitores de raça, isso é o que está rolando. Somos leitores da diferença social. E o cabelo é citado como se fosse definitivo, como se pusesse fim à discussão. “Você diz que raça é um significante, mas não é, não. O pessoal lá é diferente, dá para perceber que são diferentes!” Bem, essa obviedade, a própria obviedade da visibilidade de raça, é o que me convence de que isso funciona, porque isso está significando algo: é um texto que conseguimos ler.

Por que precisamos ir além da “realidade”

E agora, então, essa noção de que até o código genético é impresso em nós através do corpo, e não sobre o corpo, e de que não se pode parar na superfície do próprio corpo negro como se isso desse um fim à discussão. Mas é exatamente por isso que o corpo é invocado no discurso dessa maneira: na esperança de que ele encerre o assunto, de que se você invocar a própria realidade, se você disser, “a pessoa mais preta nesta sala, venha comigo”, como se a possibilidade de apontar essa pessoa destruísse meu argumento. É só olhar: “Olhe, ali!” É exatamente essa a função de invocar o corpo como o último significante transcendental, como se ele fosse o marcador além do qual todos os argumentos são suspensos, toda linguagem cessa; como se todo discurso fosse derrubado diante dessa realidade. Acho que não podemos nos desviar da realidade de raça porque a própria realidade de raça é o obstáculo que nos separa de uma compreensão mais profunda do sentido de dizer que raça é um sistema cultural.

Analisar as histórias do corpo

Já disse que Fanon, no ensaio Pele negra, máscaras brancas, é arrebatado e obcecado pelo trauma de sua própria aparência e do que isso significa. Fica enlouquecido por estar preso e trancado em um corpo que o outro, o outro branco, conhece só de olhar para ele, que esse outro vê através dele ao ler o texto do corpo negro. Está obcecado com esse fato. E, no entanto, como vocês sabem, a potência e importância de Pele negra, máscaras brancas é que Fanon entendeu que por debaixo do que ele chamou de esquemas corpóreos está outro esquema. Um esquema composto de histórias e anedotas e metáforas e imagens que é o que na realidade constrói a relação entre o corpo e seu espaço social e cultural. São essas histórias e não o fato em si. O fato em si é precisamente a cilada da superfície, que nos permite descansar no que é óbvio, no que está presente de forma manifesta, o que nos é oferecido como sintoma da aparência. Aquilo que assume o lugar do que de fato é, um dos sistemas culturais mais profundos e complexos que nos permitem distinguir entre dentro e fora, entre nós e eles, entre quem pertence e quem não pertence.

Esse fato aparentemente simples, óbvio e banal requer a invocação de territórios de saber para que este seja produzido como fato simples, óbvio e banal. Nesse sentido, a diferença racial é mais parecida com a diferença sexual do que outros sistemas de diferença, precisamente porque a anatomia, a fisiologia, parece resolver a questão. O que sabemos e aprendemos, aos poucos, sobre a diferença sexual, isto é, a profundidade das questões por trás da produção dessa distinção, é o que precisamos começar a aprender sobre as  linguagens que usamos para falar de raça.

Por que importa? combatendo o racismo

Embora o conceito de raça não possa desempenhar a função que lhe é solicitada — prover a verdade fixando-a sem sombra da dúvidas — é difícil livrar-se dele porque é muito difícil para as linguagens sobre raça funcionarem sem qualquer tipo de garantia fundacional. O que estou dizendo aqui, sobre essa necessidade, não é um argumento teórico, ou não apenas. É um argumento político, porque tanto a política de raça quanto a de anti-raça estão fundadas na noção de que de alguma maneira, em algum lugar, seja através da biologia, ou da genética, ou da fisiologia, da cor, ou algo que não seja a história e cultura humanas, há uma garantia da verdade e autenticidade das coisas nas quais acreditamos e que queremos fazer. É a busca da garantia, tanto na política antirracista quanto na política racista, que nos vicia na preservação do traço biológico. É difícil abrir mão dele porque, no final das contas, não sabemos como seria tentar conduzir uma política, sobretudo uma política antirracista, sem garantias. Não sabemos como conduzir a política sem garantia.  Queremos de alguma maneira que algo nos diga que as opções políticas contingentes em aberto e usualmente erradas que fazemos podem, no final, ser lidas a partir de uma template mais científico-teórica que, se a tivéssemos conhecido de antemão, nos teria dito o que estava certo ou não. Precisamos de garantia, precisamos, no sono da razão, de algo que nos diga “Sim, façam-no”. Não só por nos dar a sensação de ser, e nos parecer ser, a coisa certa, até onde nossos cálculos alcançam, mas também porque ao final será a coisa certa, existirá algo que a tornará certa. Isso porque as pessoas que defendem as mesmas coisas, afinal, são as pessoas que você conhece, são boas pessoas. Como é que pessoas que se juntaram em torno dessa forma comum de identificação podem estar erradas? Mas a verdade é que podem, como todos os seres humanos comuns. Todos podemos estar errados, e muitas vezes estamos. De fato, normalmente estamos, e dá para afirmar que nossa política quase sempre o é. A única coisa que não somos é detentores de garantias da verdade do que fazemos.

De fato, acredito que sem esse tipo de garantia teríamos que recomeçar[6]. Recomeçar em um outro espaço, com um conjunto diferente de pressupostos para tentar nos perguntar o que é na identificação humana, na prática humana, na construção de alianças humanas que — sem as garantias e certezas da religião, ou da ciência, antropologia, genética, biologia, ou da aparência diante de nossos olhos —, sem qualquer garantia, poderia nos possibilitar a condução de um discurso e de uma prática humanos eticamente responsáveis sobre raça em nossa sociedade. Como seria conduzi-lo, sem ter às nossas costas um toque de certeza, mesmo que parecêssemos estar errados, se tivéssemos acesso ao código, algo que tivesse nos dito o que fazer, desde o início?

E esta é uma verdade incômoda. É incômodo, claro, para os que gostariam de poder invocar os traços biológicos ou genéticos como forma de suspender o debate. Mas também é uma verdade muito difícil de ser encarada pelas pessoas que sentem que a “realidade de raça” dá uma espécie de garantia ou sustentação a seus argumentos políticos, juízos estéticos e crenças sociais e culturais. Quando adentramos a política do fim da definição biológica de raça, mergulhamos de cabeça no único mundo que temos: o abismo do debate e da prática políticos permanentemente contingentes e sem garantias. Uma política crítica contra o racismo, que é sempre uma política da crítica.


* Este texto é uma conferência proferida por Stuart Hall em 1995 em Goldsmiths College — University of London e reproduzida em documentário por Sut Jhally © Media Education Foundation, 1996. Está disponível na íntegra, em inglês, ilustrada por fotos e diagramas, no YouTube. Começa no minuto 6’40” da parte 2 do documentário Race, the Floating Signifier, disponível em: www.youtube.com/watch?v=SIC8RrSLzOs&list=PL9DB8464B43CFAC14

* Stuart Hall, nascido na então colônia da Jamaica em 1932, migrou para a Inglaterra em 1951.  Preocupou-se desde cedo com questões pós-coloniais e questões ligadas ao racismo. Dirigiu o Centre for Contemporary Cultural Studies, da University of Birmingham, e o Departamento de Sociologia, da Open University, até se aposentar em 1997. Presidiu por muitos anos os conselhos do Institute of International Visual Art (www.iniva.org) e Autograph-ABP (anteriormente a Association of Black Photographers) www.autograph-abp.co.uk.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e organizadora da coletânea de Stuart Hall, Da diáspora (Editora UFMG, 2003).

Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Início da parte 3: www.youtube.com/watch?v=BI-CwR8pCcY&list=PL9DB8464B43CFAC14

[2] Du Bois, W.E.B.  As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

[3] Início da parte 4: www.youtube.com/watch?v=rYGeqryELXk&list=PL9DB8464B43CFAC14

[4] Início da parte 5: www.youtube.com/watch?v=OVjmbDbnJKo&list=PL9DB8464B43CFAC14

[5] Início da parte 6: www.youtube.com/watch?v=GeD6awgSHGU&list=PL9DB8464B43CFAC14

[6] Início da parte 7: www.youtube.com/watch?v=vRRQ2KSBeyA&list=PL9DB8464B43CFAC14

Duas entrevistas: Milton Santos e Joel Zito Araújo

Um intelectual brasileiro educado para o mando: uma conversa com Milton Santos

Entrevistadoras: Azoilda Loretto da Trindade e Katia Santos*
Introdução e edição: Katia Santos

No dia 23 de junho de 1998 fui com minha colega Azoilda Loretto da Trindade a São Paulo para entrevistar o intelectual Milton Santos. Queríamos ouvir o que ele teria a dizer sobre educação, pois à época pensávamos em organizar uma publicação sobre a trajetória educacional de pessoas negras famosas no Brasil. Acreditávamos que seria interessante saber como um cidadão tão singular no contexto brasileiro percebia sua própria trajetória educacional até vir a ser o intelectual que se tornara. Nós o encontraríamos na Universidade de São Paulo, seu local de trabalho.

Chegar à USP não foi uma tarefa simples. Aliás, nada que passa pela Rodoviária Novo Rio é simples. Ou melhor, as pessoas que a frequentam são na sua maioria simples, mas o ambiente é um tanto complexo. E assim, enquanto aguardávamos o horário do nosso ônibus, um senhor muito simples sentou-se ao meu lado e logo contou-me sua triste história. Ele estava há dias tentando chegar em casa, em outro município, mas não tinha dinheiro porque o patrão o enganara. Comovida com tão tocante caso, dei-lhe alguns trocados. Mas pensei que certamente ele precisava de mais ajuda. Cutuquei Azoilda, que estava sentada ao meu lado, e fiz com que ela também fizesse algo por aquele homem tão necessitado. Como não concordava com o valor que ela oferecia olhei-a com ar reprovador e a fiz aumentar o valor da ajuda. Até hoje não consigo lembrar do momento em que o homem recebeu a nossa doação. Ele desapareceu tão rápida e faceiramente que não deu nem para vê-lo rindo-se de nós. Duas mulheres simples, que ainda caem no conto do vigário das rodoviárias da vida. Essas mesmas mulheres estavam indo para a Universidade de São Paulo para entrevistar um renomado geógrafo que era também um intelectual consagrado. Conseguimos com isso aumentar nossa ansiedade. E demos boas gargalhadas também, claro.

Ao chegarmos à rodoviária de São Paulo, descobrimos que caíra como uma bomba no local a notícia de que o cantor de música sertaneja Leandro acabara de falecer. Havia muita gente paralisada e comovida diante da TV exposta na rodoviária. As pessoas estavam simplesmente comovidas, tristes. Não tivemos como não nos sentirmos tristes, também. Eram tão de verdade a tristeza e compaixão à nossa volta que acabamos nos deixando levar por aquela dor coletiva.

Mas ao chegarmos à USP percebemos logo que o mundo dos simples havia ficado para trás. Como boas persistentes, enrijecemos nossos estômagos e seguimos adiante. E assim também nos travestimos da couraça necessária à intimidante missão de tentar colher uma entrevista original com uma das pessoas mais entrevistadas do meio intelectual/acadêmico. Falamos primeiro com a secretária e logo em seguida fomos recebidas pelo Dr. Milton Santos. E assim voltamos ao mundo dos simples.

Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.
Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.

Ao longo de nossa conversa ficamos totalmente encantadas com o cidadão que nos falava de coisas tão sérias e doloridas de forma articuladamente simples. Foi comovente vê-lo falar, para a minha surpresa, do falecido pai da Azoilda com o afeto dos que falam dos saudosos amigos. Era a tradição familiar afro-baiana se encontrando na USP, e de forma muito inusitada. Parodiando o próprio Milton Santos, poderíamos dizer que era a África, uma vez mais, colorizando a Europa, só que agora por vontade própria e por uma necessidade premente.

Enquanto fazíamos a entrevista, bateu à porta uma senhora negra, bem simples, que tinha vindo esvaziar a lata de lixo. Ela entrou se desculpando por estar interrompendo. É mesmo interessante ouvi-la dizer, na gravação, “com licença, professor, desculpe incomodar, obrigada”; e o professor na sua educação de homem de boas maneiras e admirador das gentes simples responder naturalmente, como quem sabe que aquela mulher negra simples existe, apesar de ser ele uma pessoa importante e que estava sendo entrevistada em seu escritório na USP: “obrigado a você, não é incômodo algum”. Diante de tal quadro, mais uma vez, Azoilda e eu nos tornamos as simples do momento. Empolgamo-nos, emocionamo-nos, e calamo-nos para ouvi-lo. E sem as suas interlocutoras, só lhe restou nos incentivar: “Vamos, perguntem. Desafiem-me, eu gosto de ser desafiado.” Fizemos o melhor que a situação e o tempo permitiam e despedimo-nos do nosso entrevistado como quem se despede de um parente muito querido.

Infelizmente não conseguimos publicar a entrevista enquanto ele ainda vivia – Milton Santos faleceu em 24 de junho de 2001. Ouvir a gravação da entrevista anos depois de sua morte foi voltar àquele dia, àquele escritório, àquele sorriso de Zezé Mota. A sensação de perda foi ainda maior. Só nos restava, então, fazer uma edição do texto transcrito de forma que ficasse retratada a atmosfera do nosso encontro. O tempo dessa entrevista foi totalmente marcado pela presença dos simples, das coisas simples, que podem nos atirar em dilemas bastante complexos. É assim que o apresentamos aqui, em uma conversa amigável, sobre temas complexos, doloridos, polêmicos, e às vezes divertidos, também. Tudo muito simples e estimulante.

Katia Santos – Vamos começar falando de sua história de vida, e a partir daí o senhor conduz como achar melhor.

Azoilda Trindade – Nesta nossa conversa entra um pouco da minha própria história, da história do meu pai que, como o senhor sabe, teve uma morte bruta. E ele é um bom exemplo de que, mesmo tendo êxito, não é fácil ser negro no Brasil. Ele sabia que não era fácil. E ainda assim não aguentou as pressões.
Milton Santos – Você conheceu o Edson Nunes da Silva? O professor Edson Nunes?

Azoilda Trindade – Não.

Milton Santos – É um meu primo longínquo, possivelmente de seu pai também – não sabemos até que ponto somos primos. Ele é dez anos mais velho que eu, era muito amigo do seu pai, Ubaldino, também. E esse é um caso interessante porque é um homem de grande cultura. Foi, talvez, um dos primeiros negros de minha geração a ir com bolsa de estudos para o estrangeiro, mas que nunca decolou. Sempre foi conhecido como homem de valor, respeitado, mas nunca chegou a nenhum cimo. Eu, a essa altura da vida, acho que a história do fracasso é mais importante do que a história do sucesso. Eu dei uma entrevista para a revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que eu lhes recomendo ler. Gostei muito dessa entrevista porque foi muito bem feita, e lá eu falo nisso. Falo sempre para os meus alunos: são os fracassos que conduzem, porque o sucesso entorpece. A gente fica dominado pelo sucesso e imagina que já chegou. E a gente nunca chega. Então, não é a história do fracassado. É a história ao longo da vida do fracasso, como dor.

No meu caso, creio que o fato de ter tido que começar a minha vida várias vezes foi importante. Tive que várias vezes recomeçar, ainda que dentro da mesma coisa, porque a minha vida é essencialmente uma vida de um intelectual, apesar de eu ter sido político um pouquinho, jornalista um pouquinho… Mas o que é central mesmo na minha vida, o que me dá prazer e orgulho, e humildade ao mesmo tempo, é ser intelectual. E eu recomecei várias vezes. E começo todos os dias.

Katia Santos – Pelo que vi nas suas entrevistas, parece que o senhor teve uma situação na infância um pouco atípica para os negros da época. Como foi isso?

Milton Santos – Na Bahia não era tão atípica. E não ouso classificar sociologicamente, como hoje se faz, porque era outro mundo. A Bahia não era um mundo industrial, quando eu era menino jovem. Era uma cidade de comerciantes, de funcionários, e por conseguinte tudo isso girando em torno do mundo agrícola. Não havia essa classificação tão rígida como acontecia em São Paulo na mesma época, que já era o mundo da indústria.

Então, como os meus pais, havia um número razoável de negros que constituía uma espécie de elite negra, que cultivava as letras, que se reunia para recitar, para ouvir música, que se cultivava mutuamente, que se visitava, que ia às festas uns dos outros, que ficava feliz quando o filho de um terminava o ginásio, depois a faculdade, os casamentos, etc. Quer dizer, se você faz uma relação com a sociedade negra em geral, era limitado. Mas se você compara com outras cidades brasileiras, era relativamente melhor. Ou relativamente menos ruim. Com outro aspecto que é o fato de ser uma coisa familiar. Já havia uma descendência. Meus avós maternos, por exemplo, eram professores primários antes da Abolição. Eles eram professores primários diplomados no círculo operário. Ainda não havia sindicatos. Era no círculo operário do Pelourinho. Meus avós do lado do meu pai eram pobres. Eram agricultores urbanos. Tudo isso em Salvador. Então, essa geração nasce já num clima de gosto pela cultura, de obrigação pela cultura, de obrigação de estudar. Que era o caso do seu pai, Azoilda, o Ubaldino Barbosa, cujo pai também era… O pai do Ubaldino era o quê?

O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.
O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.

Azoilda Trindade – O meu avô era alfaiate.

Milton Santos – O alfaiate também fazia parte desses artesãos, que eram a burguesia. Que se frequentavam todos. O alfaiate era um centro porque não havia confecção. A confecção – roupa já feita – chega muito depois.

Katia Santos – Era uma forma de poder, também, ser alfaiate?

Milton Santos – Era forma de relacionamento, e relacionamento é poder.

Azoilda Trindade – E isso de educação era muito forte, porque quando eu era pequena meu pai sempre dizia: “Você vai ser professora”. Era um valor isso.

Milton Santos – Era mesmo um valor, porque o professor era considerado, não era como hoje. No interior o professor era notável. Era um dos notáveis, juntamente com o tabelião, com o juiz, com o promotor…

Katia Santos – Em uma de suas entrevistas, o senhor disse que no colégio que estudava havia judeus, espanhóis, etc. Pensei que de repente podia fazer diferença a sua presença nesse colégio. Mas dentro desse contexto, pelo que estou vendo, não era assim tão diferente para eles, tê-lo como colega de classe.

Milton Santos – Era. Era, porque há uma herança de casa. Quer dizer, tinha os apelidos… A mim chamavam, por exemplo, de “noite ilustrada”, entende? Era o apelido que eu tinha, e devia ter outros. Bem, a gente sabia navegar nesse oceano. Mas como fui interno – porque meus pais ensinavam no interior – então se criavam laços, que eram amplos. Crescemos juntos, de qualquer forma.

Katia Santos – Se frequentavam, apesar de tudo isso.

Milton Santos – Os internos se frequentavam. Não tinha jeito.

Azoilda Trindade – Como era a infância? Como foi o brincar?

Milton Santos – Minha infância foi protegida. Primeiro porque meus pais não me mandaram à escola, à escola primária. Eles me educaram em casa. Então, foi uma infância muito protegida até os dez anos, quando fui para Salvador, para ser interno. Os brinquedos eram em casa, já que os meus pais eram professores primários, então não era difícil ter camaradinhas, que eram alunos dos meus pais e que frequentavam a casa. E que eram, naturalmente, todos brancos. Ou quase, porque a minha infância foi no sul da Bahia, de brancos ou mestiços.

Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.
Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.

Azoilda Trindade – E quando o senhor sai dessa infância mais protegida e vai para um colégio interno. Como é essa passagem, como foi a adaptação?

Milton Santos – O dono do colégio, o diretor do colégio, era um colega de meu pai. O meu pai havia trabalhado com ele quando mais jovem. E repito, eu era um bom estudante, um bom aluno, e isso tinha valor. Tinha importância. Criava uma espécie de simpatia, de admiração mesmo. E o fato de a Bahia não ser uma sociedade industrial tem um papel. A cultura é mais valorizada numa sociedade civilizada, como a Bahia sempre foi, e não industrial. Porque a industrialização, a indústria, ela já põe na frente outros valores. Valores culturais são justapostos, eles não são superpostos. Então, a Bahia teve essa grande sorte – para nós negros, também – de entrar no século, e caminhar no século, sem indústria. Acho que isso tem um papel no tipo de sociedade que se estabelece na Bahia. E urbana. São Paulo vira cidade urbana muito depois. A Bahia é urbana desde o século XVII. Tinha uma vida urbana. Isso tem importância.

Katia Santos – Sua infância toda foi na Bahia?

Milton Santos – Toda.

Katia Santos – Adolescência também?

Milton Santos – Adolescência também. Estudei Direito lá.

Katia Santos – Então em 1964, quando o senhor vai para o exílio, o senhor ainda morava na Bahia.

Milton Santos – Em 1964, eu morava na Bahia. Eu já tinha saído antes, para fazer o Doutorado. Fiz o meu Doutorado na França, terminei em 1948.

Azoilda Trindade – Como foi isso? Como se constitui isso para o senhor, essa possibilidade?

Milton Santos – Fui um bom aluno. Eu terminei o primário com oito anos e fiquei dois anos em casa porque não podia entrar no ginásio antes de dez anos. E meu pai era um homem muito bem educado, muito fino. Ele me pôs para estudar francês, álgebra e boas maneiras.

Katia Santos – Boas maneiras?

Milton Santos – É, estudava. E ele mesmo, ele próprio fazia essas coisas.

Katia Santos – Como comer, como sentar-se…

Milton Santos – Como sentar-se, como sair na rua com a senhora, quem cumprimentar antes, o lado em que a senhora anda na calçada…

Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.
Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.

Katia Santos – E isso ficou no senhor? O senhor ainda carrega esses ensinamentos?

Milton Santos – Ah, continua. Continua. Mas as pessoas não entendem mais. As pessoas não sabem mais. Os gestos, que eram muito importantes, hoje, as pessoas não sabem o valor dos gestos. Eu vou lhe contar uma coisa, entre parênteses. Quando eu tinha uns seis anos, ou oito, estávamos eu, uma colega e um jovem. Então caiu uma coisa das mãos da moça, e eu abaixei para pegar. O outro jovem disse à moça: “Caiu o seu lápis”. E eu não sei se ela valorizou o meu gesto. Você veja, as duas coisas: ele não abaixou – e eu acho que tem que abaixar, não importa meus reumatismos, se eu não abaixo, peço desculpas – e ainda disse que caiu. Então não sei se ela entendeu meu gesto. Mas fui educado para o gestual, as palavras, e tudo isso faz parte de uma educação. Os gestos no lugar certo, as palavras no lugar certo…

Katia Santos – Percebe-se mesmo que o senhor é um homem fino. Eu achava que o senhor havia adquirido tais maneiras na França.

Milton Santos – Não, foi com meu pai. Meu pai não aparecia para ninguém sem paletó, em casa. Ele tinha esse gestual. Então, isso tinha um papel. Hoje eu posso dizer “eu quero”, que nada mais vai acontecer. Eu fui educado para mandar. Quer dizer, eu fui educado para o mando. Então, na sociedade dos brancos eu não chocava. A educação para o mando também supõe recato. Você tem um mandão tipo Antônio Carlos Magalhães, mas também tem outras formas de liderança política fina. A educação para o mando é uma característica dessa minha geração, não se aplica só a mim.

Azoilda Trindade – É uma postura.

Milton Santos – É uma postura. Meu pai, por exemplo, me ensinou a nunca olhar para o chão. Sempre assim [ergue a cabeça], a cabeça assim. A cabeça não cai. O corpo não cai para comer. Quem abaixa a cabeça para comer são os porcos.

Katia Santos – E eu acho que essa coisa da cabeça, assim [baixa], é muito a marca do negro brasileiro…

Milton Santos – Talvez seja uma marca não só do negro, mas também dos humilhados, de um modo geral. Tudo isso tem um papel, viu, minha filha. Eu creio. Hoje, olhando para trás. É evidente também que meu pai não discutia comigo a questão do preconceito. Podia aparecer em filigrana, mas não era um tema, e imagino que era uma coisa deliberada, para me dar armas. Quando digo hoje, filosoficamente, que olho para frente, não olho para trás, é possível que a raiz seja esta, de que ele me ensinou, sem me dizer nunca isto, que olhar é para frente, não é para trás. Eu não saberia fazer a interpretação científica, mas sei que tudo isso tem um papel. E o fato de eu ser educado não era ausente da comunidade negra, porque nós tínhamos a comunidade negra nossa (risos).

Azoilda Trindade – O senhor estava falando da entrada no doutorado, dessa influência.

Milton Santos – Fui para a faculdade de Direito, que era a elite. E eu era líder estudantil, também. Frequentava os colegas de famílias prestigiosas. Não os mais ricos, esses eu não frequentava. Mas as relações eram razoáveis. Vão fazer cinquenta anos, agora, da minha formatura.

Azoilda Trindade – De Advocacia?

Milton Santos – É, foi em 1948. E aí comecei a ensinar geografia. Fiz concurso com 22 anos, para um colégio de Ilhéus, e fui ser catedrático do colégio de Ilhéus. Depois fui para Salvador, comecei a trabalhar no jornal A Tarde, depois passei a ensinar na faculdade católica, e depois fui para a França me doutorar em geografia.

Katia Santos – Ser negro na França era muito diferente de ser negro no Brasil?

Milton Santos – É sempre diferente. Sobretudo, porque naquele momento, quando fui fazer doutorado, não havia muitos negros na França. Não havia essa invasão.

Katia Santos – “Agora nós os estamos colorizando” (risos).

Milton Santos – Colorizando. Você vê isso também?

Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.
Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.

Katia Santos – Eu estava lá no Planetário da Gávea quando o senhor disse isso.

Milton Santos – Nós os estamos colorizando (risos). Quando fui não era assim. Então, você tinha aquele montinho negro, que era identificado com o poder na África. Se você estava ali, era porque seu pai era príncipe, era ministro, era rico ou era culto, já.

Katia Santos – Para ter chegado até lá tinha que pertencer a uma dessas classes?

Milton Santos – No imaginário das pessoas. Enquanto que aqui o imaginário é outro. Há duas semanas, quando estava voltando da França, estava cansado, e então preferi tomar a classe executiva. A aeromoça era oriental, de descendência oriental, japonesa, talvez. Eu não sei. Elas falam apenas para encher a coisa. “O senhor fala português?”, ela disse. “Mas é claro que eu falo português, o que a senhora queria que eu falasse?” E aí ela disse assim: “Mas eu não podia imaginar que o senhor falasse português”. Se eu estava no avião, que já não é tão lugar para negro assim, e se eu estava na classe executiva, eu só podia ser americano (risos).

Sexta-feira, estava dando conferência em Campo Grande e fomos jantar em um restaurante. E o dono do restaurante veio, porque eram todas pessoas conhecidas, aí ele trouxe o menu e disse assim: “Ele fala português?” Quer dizer, é o oposto. A minha experiência lá e as experiências aqui. Naquele momento. Hoje é diferente.

Azoilda Trindade – Mais colorido.

Milton Santos – É, mais colorido (risos).

Azoilda Trindade – Eu quero fazer uma pergunta com relação à educação e à questão de ser negro. Porque a gente sempre ouve críticas justamente às boas maneiras, como sendo um valor europeu. E aí o senhor traz essa questão da educação, das boas maneiras, como um valor positivo. Então, o que o senhor acha, o fato de ter boas maneiras implica na anulação da sua qualidade de ser negro? É uma discussão.

Milton Santos – Talvez a gente tenha que colocar as coisas no tempo e no lugar. Quer dizer, como eu vivi muito, vivi várias épocas e vivi vários lugares. O que eu disse há pouco, primeiro se aplica a um tempo e um lugar, que é a Bahia, nos anos 1910, não é isso? Bom, então vamos por partes. Essas boas maneiras são as boas maneiras europeias que me foram ensinadas. Mas há outras boas maneiras. Há outros códigos. Não há um só. Os ingleses põem a mão debaixo da mesa, os franceses põem aqui, não podem pôr o cotovelo, podem pôr isto, e os ingleses põem aqui [mostra todos os gestos]. Qual é o mal educado? Qual é o bem educado? É relativo. Nesse sentido, pode-se dizer, “bom, seguir as boas maneiras é uma alienação”. Nesse sentido. As boas maneiras do outro. Não é isso? Mas quais são as nossas boas maneiras? Então seriam gestos, palavras, que são indutos da generosidade, da consideração com o outro, do respeito ao outro, e de respeito a mim mesmo. Tudo isso junto. O vestir são boas maneiras. Eu raramente ando sem gravata. Esse conjunto de gestos, palavras e tons de voz – músicas, né? – tem uma inspiração que tanto pode ser puramente formal, “tem que fazer o que eu faço”, mas que também tem um conteúdo íntimo. Aquilo que vem de dentro, e que é o bom, que é o belo. Acho que é isso. Mas a verdade é que as boas maneiras, como são códigos, elas facilitam a vida em comum. Porque elas estabelecem o que eu posso e o que eu não posso fazer. O respeito pelo outro passa pelas boas maneiras. Mas talvez isso é que tenha me ajudado. O fato de que eu sabia até aonde ir, a não invasão do outro. É a certeza do outro de que eu não o iria invadir, que cria, digamos, um diálogo. A possibilidade do diálogo vem também daí.

Outro dia apareceu um rapaz negro aqui, começou me chamando de “você”, que tenho horror, e eu lhe digo porque. Um grande amigo meu me disse há uns 50 anos, “Você será o que você quiser na vida: senador, presidente do Congresso, presidente da República, mas você não vai escapar, na rua, de ser chamado de você”. Me disse esse rapaz branco. E aí isso me marcou. Então, quando alguém me dirige “você” eu digo, “Olha!” É a falta de respeito compulsória, imediata.

Em Campo Grande, apareceu uma moça da televisão e começou a me dizer “você”. Eu disse, “como?”. Ela ficou… Um dia um rapaz da televisão me disse “você”. Eu disse, “Não, o tratamento vai ser senhor”. O Roberto D’Ávila me perguntou, “Como é que eu vou lhe tratar”. Eu lhe disse, “quem sabe, vamos ver…” Ele aí entendeu e disse “não, não é durante a entrevista. Durante a entrevista vou lhe chamar de senhor, mas na nossa relação, quem sabe”. Eu disse, “está bem”. Já imaginou se apareço na televisão com o sujeito me chamando de você? Não tinha o mesmo efeito. Quer dizer, tem essa atitude.

É possível que a minha educação meio francesa também tenha tido um papel nisso, porque na França tem uma gradação. Você chama o outro de vous, e depois de meses, anos, é que se decide, “agora vamos usar tu”. Porque não adianta você ficar dizendo que é íntimo sem ser. A intimidade é um processo. Assim como a amizade. A amizade é um processo, não se dá… Pode se dar à primeira vista. Mas isso não é frequente na vida.

Azoilda Trindade – Isso é importante até para apontar… É que a gente não valoriza essas coisas.

Milton Santos – Mas as pessoas vão dizer, “ele é muito besta, muito pedante”. Mas eu sei o que estou fazendo. Entendeu ? (risos)

Azoilda Trindade – Mas é uma forma de respeito. É importante, sabia, essa coisa? Olhar pro outro e … “Peraí!”

Milton Santos – “Calma!”, né?

Azoilda Trindade – Calma.

Katia Santos – Essa semana eu estava vendo uma entrevista num canal qualquer da TV a cabo, com um negro norte-americano em que ele dizia exatamente isso, que hoje em dia dá briga de quebrar bar, entre negros e brancos nos Estados Unidos, se um homem branco chamar um homem negro de boy.

Milton Santos – “Hey, boy!”

Katia Santos – Porque essa coisa do boy, pelo que entendi da entrevista, é essa questão do “você” que o amigo do senhor especificou.

Milton Santos – Esse homem evidentemente era um brilhante homem, brilhantíssimo. Preguiçoso. Escrevia melhor do que Rubem Braga, mas era preguiçoso. Então não saía nada. Só conversa (risos).

Katia Santos – O senhor tem irmãos?

Milton Santos – Eu tenho uma irmã. Na realidade, considero que tenho duas. Tenho uma que veio morar em casa quando eu tinha oito anos, e que está viva ainda. Tenho uma irmã, que é dez anos mais moça do que eu. E tinha, até janeiro [de 1998], um irmão oito anos mais novo do que eu, que morreu.

Katia Santos – Todos eles passaram pelo mesmo processo educacional que o senhor?

Milton Santos – Meu irmão estudou Direito, também, como eu, e virou meio economista, se tornou uma pessoa muito importante. Foi Secretário de Estado do governo de Miguel Arraes, foi diretor da Sudene com Celso Furtado, viveu vinte anos no estrangeiro. Se exilou também. Foi diretor da Unicef. E minha irmã estudou Medicina, mas não terminou, por razões de saúde.

Azoilda Trindade – Eu tenho uma curiosidade. A questão do trabalho. Como se dá a sua inserção nesse mercado de trabalho?

Milton Santos – Nos mercados. Porque eu passei por vários. Por exemplo, o meu primeiro emprego foi via concurso. Professor catedrático num colégio municipal de Ilhéus. Na escola de Direito, os professores empregavam os filhos deles, mas nos ensinavam que era feio ser funcionário. Então, quando terminei a faculdade o governador me ofereceu emprego. E eu não aceitei. E aí fiz concurso para ser professor porque o professor não era burocrata como ele é hoje. Então eu achava que era a maneira de ser livre. Vim a ser professor mediante concurso. As outras coisas eu conquistei. Na católica fui convidado para ensinar. Fiz o concurso para ser professor da Universidade Federal da Bahia. Depois de brigar, porque não queriam me deixar fazer o concurso. Mas ganhei na Justiça e fiz o concurso. Depois de ter ganho na justiça, decidi buscar o doutoramento, para não ser apenas por vitória judicial. Cheguei com um título que ninguém tinha, que era o título de doutor. Porque na Bahia não havia muita gente saindo para estudar no estrangeiro. Então, foi assim.

Quando eu era jovem não havia falta de emprego para quem terminava a faculdade. O que é uma outra coisa importante a mostrar. Quando conseguia sair da faculdade você estava empregado. Hoje é que o negro deixa a faculdade e não tem… O que é um problema diferente. E tem um papel, eu acho. Os negros se tornaram mais ativos. Porque descobriram que a educação não é a saída. Para nós podiam dizer, “está vendo ele estudou, triunfou”. Hoje os negros sabem que não é bem assim. Que isso não basta. Sobretudo porque você tem diversos tipos de ensino. Os  negros não vão para os melhores ensinos, não têm a melhor educação. Isso acontece muito raramente. Basta ver aqui, a USP, que é um deserto de negros. Então, acho que isso tem um papel na pugnacidade atual dos negros. São muito mais pugnazes, muito mais batalhadores do que nós éramos.

Katia Santos – A própria condição obriga.

Milton Santos – A própria condição, a própria dificuldade de inserção, que é maior.

Katia Santos – Acho que essa situação toda, ao mesmo tempo que obriga o negro a ser mais lutador, também assusta muito uma grande parcela que prefere nem tentar. Eu quero muito estar errada nisso, mas acho que a gente tem muito medo.

Milton Santos – É a pressão. Quando eu era jovem a solidariedade social era maior, e mais possível, do que hoje. Porque não havia tanto consumo. Então a gente podia ser mais ajudado pelos pais, pelos avós, pelos irmãos mais velhos. E ajudar depois. A minha formação intelectual se deve em boa parte ao fato de que minha mãe completava meu orçamento. Mesmo depois do meu primeiro casamento eu não dava muitas aulas. Isso me permitia estudar, ler, comprar livros. Hoje é impossível. Nesse tipo de classe média, quem é que pode ajudar o outro? E isso é um fantasma para todo mundo. O fato de vocês estarem falando comigo, fazendo essas perguntas para mim, é um complicador porque venho de diversos tempos. Vivi diferentes momentos. E agora quando vocês me forçam a reinterpretar, vocês me obrigam a rever, a fazer a teoria do que era simplesmente a vida. Explicar aquilo que era simplesmente vivido. Eu vejo um pouco isso. Quer dizer, para os mais jovens, você não pode ajudar tanto quanto a gente foi ajudado, o quanto os meus pais me ajudaram.

Katia Santos – Entendi. Porque se trata de uma situação bem específica. O senhor já era formado, trabalhava. E hoje estamos falando de pessoas que não conseguem nem chegar a isso.

Milton Santos – Isso. E que também não podem ser ajudadas. E vai ser pior ainda porque com essa coisa de não ter mais aposentadoria… porque não vai ter. Quando eu disse que os negros vão ficar numa situação pior, é isso. E que eles não vão ter acesso à melhor educação. Vão ter uma educação, na sua maioria, medíocre. E essa rede de ajuda vai ficar enfraquecida, porque os velhos não terão aposentadoria, ou terão uma aposentadoria irrisória. É outro mundo, né?

Azoilda Trindade – Essa coisa da perspectiva do futuro, a gente fica pensando… Eu trabalho com crianças e adolescentes em escola pública. É justamente isso. Vai a uma escola particular – não precisa nem ser de uma classe média alta – e vai a uma escola pública. É um choque.

Milton Santos – É sim.

Azoilda Trindade – E aí, o que eu vou propor? Isso me sensibiliza. O que eu, como educadora, como cidadã, posso oferecer para essas crianças?

Milton Santos – O caminho, eu acho, é político. Tem um curso de vestibular lá em Campo Grande que tem meu nome. E eles foram lá me ver, sexta-feira, sábado, e eu estava dizendo a eles, “o negócio é andar para frente”. A cultura negra é importante, ela é um cimento. Olhar para trás nos une, amplia esse amálgama, esse cimento. Mas não é ele que vai melhorar a nossa vida. O que vai melhorar a nossa vida é a política. É por isso que é olhar para frente. Quer dizer, desenhar o futuro e não ficar olhando apenas para trás.

Katia Santos – Ter uma meta, eu acho, é importantíssimo nesse nosso processo. Mas tendo muito claro que a passagem pelo mundo acadêmico, no caso, não nos…

Milton Santos – …abrirá todas as portas. Que tenha a meta e também tenha a consciência de que vai ter tropeços.

Azoilda Trindade – Uma outra pergunta: o pai do senhor foi uma pessoa marcante na sua vida?

Milton Santos – A minha mãe também. Cada um de um jeito.

Azoilda Trindade – Existiriam outras pessoas, assim, importantes que o senhor poderia destacar como influentes na sua trajetória?

Milton Santos – Olhe, eu vou dar um nome, que é Simões Filho. Ele foi Ministro da Educação do Getúlio Vargas e era o dono do jornal no qual trabalhei na Bahia. Ele me tinha muita estima e eu, também, olhava para ele com muita admiração. As maneiras dele, as boas maneiras, a forma de se vestir, que é uma coisa que eu até hoje gosto, de me apresentar bem.

Katia Santos – Aliás, a camisa que o senhor veste na foto do site do cantor Gilberto Gil é muito bonita.

Milton Santos – É uma bordô, né? (risos) Pois é, é a coragem intelectual. Um certo gosto pela ironia, que também vem do meu pai, mas que vem [de Simões Filho], também. E a relativização das coisas, a capacidade de relativizar. Hoje vejo que ele teve uma forte influência na minha vida pública. E o meu professor francês, meu diretor de tese, foi também uma grande influência. Pelo rigor, o gosto pelo trabalho, a filosofia de que o trabalho se faz todos os dias. Nunca o que a gente faz é perfeito. O rigor com os outros e consigo próprio. Tudo isso aprendi com ele. Afora outras pessoas. Você fala de pessoas com as quais eu tive comércio pessoal, não é isso? E não autores.

Azoilda Trindade – Isso. Por exemplo, Amílcar Cabral foi uma influência muito grande na minha vida, na militância.

Milton Santos – Mas é mais distante, né?

Azoilda Trindade – É isso. Mas, enfim, um parêntese: a gente prometeu não falar em militância para o senhor, e agora que eu falei…

Milton Santos – Eu fiz crítica à militância?

Azoilda Trindade – Não, é que lembro que uma vez assisti, pela primeira vez, num encontro de negros em Marília, uma conferência em que o senhor dizia, “eu não gosto dessa coisa de militância, me lembra militar, me lembra uma coisa… prisão…” E aquilo ficou na minha cabeça, me torturou, no sentido de que realmente pode ser uma prisão. O senhor falava agora há pouco da coragem intelectual…

Milton Santos – É incompatível com a militância.

Azoilda Trindade – Isso. Tem que ousar, tem que ser criativo, tem que estar atento.

Milton Santos – Mas as pessoas às vezes não entendem quando eu digo isso. Porque imaginam que sou contra. Eu não sou contra a militância. Tem que ser militante. Tem que ter militância. Mas se não tiver o sujeito livre, você não cria. Porque acho que o problema do Movimento Negro é que a gente tem que criar novos discursos, novas frases, novos slogans… Na entrevista com o Roberto D’Ávila falei no ressentimento de certos grupos brancos contra os negros. Eu não disse o contrário. Quer dizer, é outro discurso que a gente tem que produzir.

Azoilda Trindade – Brilhante. Aquela foi muito boa, sim. Bem, depois de passarmos pelas pessoas que foram influentes na sua vida, há algum outro fato importante ligado a sua história de vida que o senhor gostaria de comentar?

Katia Santos – Só uma curiosidade. O senhor conseguiu sair da Bahia antes de se casar?

Milton Santos – Casar? Não, eu  já estava descasado (risos).

Katia Santos – Então já tinha sido fisgado (risos).

Milton Santos – Já estava descasado. E depois casei de novo, lá no estrangeiro.

Katia Santos – O senhor teve filhos?

Milton Santos – Eu tive dois filhos. Agora só tenho um, o outro morreu há dois anos. Fatos importantes? A formatura, o dia em que recebi o diploma de bacharel em Direito…

Azoilda Trindade – Pode parecer que não mas a nossa formatura tem um peso. A minha, de professora primária, foi um negócio. Eu queria ser aquilo. Sou eu. Meu pai me chamava de professora. Então, a formatura era a conquista disso. Este gosto da profissão. Eu sou professora. Financeiramente é o caos, mas assim… A possibilidade de alguns exercícios…

Milton Santos – Mas havia a coisa simbólica, também. Quando entrei na faculdade, eu subi as escadas carregado. A maior ovação foi para mim. Era um sinal baiano, né? Quer dizer, “tem um negrinho aí, vamos aplaudi-lo”.

Azoilda Trindade –  Podemos tirar uma foto sua?

Milton Santos – Sim, é melhor que seja espontânea. Pelo menos aparentemente espontânea (risos).

Azoilda Trindade – Tem um assunto do qual queremos falar. O racismo no Brasil. Qual a sua opinião sobre essa questão?

Milton Santos – Ele é bem brasileiro, né? É bem brasileiro. Você não pode comparar. Teria que distinguir, talvez, entre discriminação e preconceito. O preconceito vem do fato de que se criam estereótipos, e você vai conviver com esses estereótipos o tempo todo. É aquela coisa que a gente distingue entre o cotidiano e o programado. Cada vez que eu, ou qualquer pessoa, estou em uma atividade programada, o preconceito tende a não se manifestar. A questão é a surpresa do outro.

Katia Santos – A situação que o senhor nos contou, no avião, por exemplo, não foi uma situação programada. Foi do cotidiano.

Milton Santos – É a surpresa do outro, que é o cotidiano. E daí o preconceito. Aí você pergunta, mas o preconceito não é obrigatoriamente uma discriminação? Será uma discriminação? E aí tem toda a questão sociológica. O sujeito que recebe e o sujeito que é alvo. É diferente, não é? Para você é. Para quem é objeto de preconceito, é uma discriminação. O Brasil naturaliza essa relação. Essa relação não é equilibrada. Essa relação…

Azoilda Trindade – É hierárquica.

Milton Santos – É hierárquica, mas não é bem isso, é outra palavra. Ela é naturalizada, é normal. O que é uma das coisas terríveis da sociedade brasileira. Essa rapidez com que a gente naturaliza. Passa a incorporar como um dado natural, e não histórico, o que conduz à ausência de culpa. As pessoas não se sentem culpadas. Eu imagino que os americanos, de alguma forma, alguns deles, se sentem culpados. Basta ver a atitude do presidente Clinton em relação aos negros e a do nosso presidente, Fernando Henrique, que diz que é interessado etc. Acho que é isso. Agora, isso faz com que, acho, ser negro no Brasil seja muito duro. Eu acho. Não vou comparar com outros países. Mas acho que é muito duro porque você não tem como… É muito difícil você exprimir sua indignação, ou esboçar sua defesa, sem ser tomado de forma ridícula.

Katia Santos – Ficamos sempre a um passo disso, né? Nos colocam sempre a um passo disso.

Milton Santos – Do ridículo. Eu creio que muita gente prefere emudecer ou esperar uma outra oportunidade, porque qualquer manifestação – estou generalizando – vem com a certeza de não ter solidariedade.

Katia Santos – A pessoa fica sozinha.

Milton Santos – Acaba sozinha.

Katia Santos – O preconceito é muito perverso, principalmente, quando o negro faz esse deslocamento, como no seu caso. Porque quando ele fica quietinho no lugar designado historicamente para ele na sociedade brasileira, ele não é fustigado por isso tudo. Mas quando ele faz esse deslocamento, aí ele já vira um alvo.

Milton Santos – Exato. Ele aparece como o diferente. O que já é desagradável,  esse negócio. Porque o que todos queremos é sermos iguais a todos. Então quando você é apontado, ou aceito, ou tratado como o diferente, é incômodo.

Azoilda Trindade – Deixa eu só perguntar uma coisa. O senhor estava falando da sua trajetória, fiquei curiosa. Eu, por exemplo, tinha muito medo de me envolver, de me apaixonar, porque queria concluir os meus estudos. E aí fiquei com a curiosidade: o senhor conseguiu isso? Se formou primeiro…

Milton Santos – Sim, consegui, sim (risos).

Azoilda Trindade – Outra coisa: como se davam as relações afetivas na Bahia quando o senhor era rapaz? Como era essa coisa do jovem baiano? Meu pai, por exemplo, era meio mulherengo, né?

Milton Santos – Não sei, não. Não sei disso, não (risos).

Katia Santos – “Não sei, não”, é ótimo (risos). Pode falar. Ele era baiano, ninguém vai estranhar.

Milton Santos – Era, sim (risos).

Katia Santos – É, imagino que sim. O meu pai era baiano também (risos).

 

 

 


Joel Zito Araújo: um cineasta e sua missão

Entrevistadora, introdução e edição: Patrícia Farias*

Nascido em Lajedão, na fronteira de Minas Gerais com a Bahia, formado em Psicologia, com mestrado em Sociologia da Educação, doutorado pela ECA/USP e pós-doutorado pela Universidade de Austin, Texas, onde frequentou tanto os cursos de rádio, cinema e TV como os do departamento de Antropologia (que diz adorar), o cineasta Joel Zito Araújo fez um percurso próprio dentro do audiovisual brasileiro. Diretor e roteirista, autor de 13 filmes na questão racial, além dos livros A negação do Brasil (de 2000, sua tese de doutorado) e O Negro na TV Pública (Org., 2010),  Joel lança este ano o documentário Raça, em parceria com a norte-americana Megan Mylan, no qual acompanha a trajetória de três personagens negros – um político, um artista e uma líder quilombola.

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Raça, 2013

 

Em conversa com Patrícia Farias, Joel Zito Araújo relembra a experiência de viver numa família inter-racial, fala sobre a descoberta de sua negritude, sobre cinema e sobre seus filmes, comenta a presença forte das mulheres em sua obra, celebra a nova geração de ativistas negros e indígenas, declara seu interesse renovado sobre a África, e afirma que seu trabalho tem uma missão: confrontar o racismo à brasileira.

Patrícia Farias – Como foi seu caminho até o cinema?

Joel Zito Araújo – Desde pequeno eu era encantado com cinema. Quando mudamos de Lajedão para Nanuque eu era criança, mas logo comecei a curtir as três salas de cinema que tinha lá. Tinha um tio que era ator de teatro e dono de uma sala de cinema e eu fui mascote da companhia de teatro dele. Lembro de ter visto em Nanuque um monte de filmes importantes para a história do cinema, desde Primeira noite de um homem até a obra de Fellini. É engraçado, porque, já em Belo Horizonte, aos 26 anos, redescobri um diário que mantive quando tinha 13 anos e, quando reli, vi que só tinha anotações dos filmes que tinha visto e pequenas críticas a respeito – nada de amor, angústia ou dramas, como seria de se esperar de um adolescente! Desde que me entendo por gente gosto de cinema.

Patrícia Farias – A preocupação com a questão racial, como surgiu?

Joel Zito Araújo – Minha família paterna é branca; a família materna, negra. Vim de uma família semialfabetizada. Meu pai havia sido saxofonista e dono de um bar clube, mas aos 30 anos desistiu, comprou um caminhão para trabalhar (chegou a ter sete caminhões), vendeu tudo e comprou um sítio. Meus pais se separaram quando eu tinha seis anos e isso me trouxe muito sofrimento. Minha mãe perdeu o que tinha e virou empregada doméstica, lavadeira; meu pai também não tinha muito, mas tinha o valor da educação, então me manteve num bom colégio em Nanuque mesmo, até que nos mudamos para Linhares, no Espírito Santo, e fui para um colégio estadual, fraco.

Na adolescência, eu tinha vergonha da mãe – nada melodramático, nada ostensivo. Era mais uma atitude de ocultá-la para meus amigos, não queria ser visto com ela. Em 1974, quando entrei numa universidade para cursar Psicologia, foi que a preocupação com a questão racial apareceu com força: percebi na universidade que não era somente minha mãe que era negra – eu também era negro. É claro, a angústia estava lá, desde antes, desde sempre, mas foi nesse momento que eu compreendi isso. Cursando a faculdade e fazendo terapia, comecei a resgatar a minha mãe. Até então tinha essa vergonha social, de mostrar a minha origem negra, esse distanciamento com relação a ela. Entendi que só a resgataria completamente se confrontasse o ideal de branqueamento que eu tinha internalizado. Era fundamental assumir minha negritude. E isso trouxe uma descoberta inesperada: foi o momento em que resgatei minha autoestima; perdi a vergonha que a sociedade brasileira internaliza no mulato e no negro. Eu reli minha mãe. Não foi lendo Fanon, nem nada disso – foi um processo pessoal. Uma parede foi rompida e explodiu em afeto; passei até a endeusar minha mãe. E minha postura mudou diante de meus colegas, de meus amigos, em todo lugar. Minha autoestima foi resgatada.

Patrícia FariasA negação do Brasil tem a ver com esse processo, não? Você já disse em entrevistas que esse filme resume sua própria trajetória e suas preocupações com a imagem e a participação dos negros no processo social brasileiro.

Joel Zito Araújo – É, nessa época da faculdade eu trabalhava como bancário e fazia parte do movimento cineclubista mineiro, isso já em Belo Horizonte. Passávamos filmes em bairros operários, tínhamos compromisso político ligado ao cinema. O meu cinema negro começou a ser gestado em 1984, quando fui para São Paulo. Fiz mestrado em Sociologia da Educação na UFMG e depois fui para lá. E foi em São Paulo que conheci muita gente, tive muitas trocas com intelectuais negros: Hédio Silva Jr., Cida Bento, Arnaldo Xavier, poeta concreto negro, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro…. Antes, em Belo Horizonte, eu tinha entrado para o PT, fui integrante do grupo de Criação do PT em Minas, e quando fui para São Paulo fui trabalhar no Dieese, coordenando a parte de audiovisual da entidade.

No meu primeiro trabalho, em 1989, o filme Memórias de classe, sobre o movimento operário paulista, já introduzo o questionamento: e o negro, onde está nesta história? Esse trabalho é um docudrama e já apontava para a participação do negro no movimento operário. Porque a visão que se tinha era que o movimento operário havia sido formado a partir dos imigrantes brancos, dos operários anarquistas vindos da Europa. Mas pesquisando, vendo fotos, eu via que havia líderes negros nas manifestações, atuando com liderança. Então passei a desconfiar dessa história: o resultado é esse docudrama.

Em 1988 deixei de ser militante do PT, queria ser um artista e intelectual independente, e virei sócio da produtora de Renato Tapajós e Olga Futema, a Tapiri Cinema e Vídeo. A partir de então, passei a me dedicar totalmente ao cinema.

Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”
Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”

Meu segundo trabalho, Retrato em preto e branco, foi na verdade produto do impacto de uma viagem que as lideranças negras brasileiras que eu conhecia fizeram aos Estados Unidos. Lá eles encontraram com ativistas negros americanos e voltaram chocados pois viram que os negros de lá achavam que aqui era realmente um grande exemplo de “democracia racial”. Lembro deles me dizendo: “Temos que fazer alguma coisa!”. Em resposta, eu fiz esse filme, que é um documentário com um personagem de ficção, um negro brasileiro que escreve uma carta para um amigo do exterior sobre sua vida, suas reflexões sobre o mito de nossa democracia racial.

Em 2004, ganhei uma bolsa da Fundação MacArthur para estudar a história do negro no cinema e na TV norte-americana, e fui pesquisar nos Estados Unidos. Lá, vi um documentário sobre esse tema, Color Adjusment, e fiquei bastante impressionado. Pensei em fazer o mesmo aqui para o Brasil. Escolhi a telenovela, pelo seu impacto na nossa cultura. De volta à USP, concluindo meu doutorado na ECA com Solange Martins Couceiro como orientadora, mudei o tema para fazer um filme e consegui apoio da Fapesp. Fiz um enorme levantamento sobre a história do negro na telenovela brasileira. Portanto, primeiro veio o projeto do filme, e enquanto eu pesquisava surgiu a ideia de transformar aquilo também na minha tese, o que fiz, e depois virou o meu livro A negação do Brasil.

Patrícia Farias – Você já disse que esse filme é quase que sua proposta de cinema, a de discutir a inserção do negro na sociedade brasileira.

Joel Zito Araújo – Exato. Ali está a plataforma que me orientou nos projetos futuros, já tem as duas questões a que eu sempre volto: discutir a participação do negro na sociedade, confrontando a ideologia do branqueamento, o racismo, o pensamento colonialista; além de estar atento à questão de gênero. Quanto ao lugar do negro sempre foi uma reflexão intencional, racional, e quanto ao gênero, não foi intencional; simplesmente é uma questão que me acompanha. Mesmo no filme Raça tem uma figura feminina forte, uma líder de uma comunidade quilombola. O longa de ficção que realizei, Filhas do vento (2004), é sobre isso, a relação de mães e filhas, de mulheres, assim como outro documentário meu, que tem o mesmo tema: Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009). Fiz também o documentário Eu, mulher negra, em 1994… E o curta ficcional Vista minha pele em que esse tema também aparece.

Patrícia Farias – Chico Buarque, em entrevista, perguntado pelas suas músicas compostas no feminino, e confrontado com a afirmação de que era um expert na alma feminina, respondeu que pelo contrário: ele escrevia muito sobre isso justamente porque era um ignorante no assunto, porque tinha curiosidade, porque queria saber mais sobre esse outro universo, o universo feminino.

Joel Zito Araújo – Exatamente isso. Tenho filhas, estou rodeado de mulheres, minhas ex-esposas, minha namorada…. Minha mãe, figura fortíssima em minha vida. Acho que vivo a mesma coisa ao retratar esse universo, é uma forma de saber mais sobre ele.

Patrícia Farias – Voltando ao cinema, eu vejo atualmente nos documentários uma oscilação pendular entre um polo, digamos, mais Eduardo Coutinho, mais de compor um retrato, de intervir menos, e outro, tipo Michael Moore, mais histriônico, de uma figura que intervém no que retrata, deixa sua opinião evidente. Como você vê o cenário do documentário hoje, e como você se vê nisso, como você enxerga seu próprio cinema nesse panorama geral?

Joel Zito Araújo – Gosto muito dos dois documentaristas que você citou, principalmente do Coutinho, acho Cabra marcado pra morrer, uma obra-prima. Mas um desses polos, o do Moore, é muito narcísico para meu gosto; e o outro às vezes peca por sacrificar o conteúdo ao método. E para mim o conteúdo é fundamental. O método é puxado pela necessidade narrativa de apresentar o conteúdo.

Viajando com os meus filmes, descobri que tenho um papel, incorporo uma necessidade que ultrapassa o Brasil, que vai além da interpelação sobre a inserção do negro na sociedade brasileira, simplesmente; esse papel é o de confrontar o racismo, a própria ideologia colonialista do branqueamento que é um problema de muitos países. Meus colegas brasileiros estão imobilizados por essas “categorias coloniais” que minimizam a consciência negra em nossa sociedade, essa separação de pretos, mulatos, pardos, mamelucos e etc. Os negros norte-americanos, por exemplo, inverteram a linha de cor, a ideologia racista, com o “black is beautiful”, por exemplo, e isso foi benéfico para eles. Temos uma hierarquia racial que nunca foi questionada. Todos os meus contemporâneos abraçam isso de uma maneira acrítica. Comecei a perceber que esse questionamento e esse conteúdo são mais importantes que o método.

Claro, gosto e tento me atualizar com novas formas narrativas, formas de contar próprias do cinema e do documentário. Por exemplo, no meu filme Raça, agora, o que tento captar é o debate nacional sobre a questão racial que está acontecendo neste momento, eu e a norte-americana Megan Mylan (que conheci num evento, aqui, em 1995) concordamos que a melhor maneira de fazer isso era acompanhar algumas trajetórias no método do cinema direto. Então, cada proposta, cada conteúdo, pede um método e estou ciente disso. Mas não sacrifico o conteúdo pelo método.

Gosto também, por exemplo, de uma outra experiência narrativa diferente dessa, inspirada no método e estilo do Coutinho, que foi a abordagem que fiz em Cinderelas. Para mim, uma das melhores partes é a reunião do cabelereiro e do travesti em que eles se sentiram tão à vontade pelas minhas perguntas e com a minha atenção ao ponto de se mostrarem racistas. Ali, eu como realizador deixava eles à vontade, tinha uma participação como estimulador, ao ponto deles não se constrangerem ao revelar o pior do ser humano.

Patrícia Farias – Vejo você como um tipo de meio termo entre esses dois polos que citei, justamente porque você intervém, dialoga, e no Cinderelas isso fica mais explícito, mas também em A negação do Brasil.

Joel Zito Araújo – Sim, isso acontece em minha carreira. Mas, claro, também me vejo como um cineasta de documentário e de ficção, embora tenha uma visão muito diferente do papel de um e do outro. Quero coisas diferentes de um e de outro. Na ficção acho que devemos mergulhar mais nas emoções, abandonar uma perspectiva mais racional e reflexiva como faço nos documentários.

Acho que o documentário é produto de e para reflexão; embora tenha determinadas regras de dramaturgia, em comum com a ficção, embora também flerte com a emoção, é um produto que deveria criar um distanciamento, que deveria provocar uma reflexão. A ficção, não: acho que devemos buscar mergulhar numa narrativa mais sensorial. Gostaria de fazer mais ficção, certamente farei assim que for possível. Minha questão central, porém, sempre está nos meus filmes, tanto nos documentários como na ficção, que é a busca de uma estética da diversidade brasileira, destacando a experiência de ser negro, rompendo com a invisibilidade dele. Lembro aqui de elementos estéticos que coloquei no Filhas, que nenhum crítico parece ter percebido, e que quero trazer em outras experiências de cinema: a estética e a dramaturgia por trás dos mitos dos orixás, os tipos psicológicos que encontramos no panteão africano e que inspiram a construção dos personagens. Em Filhas tem Oxum, tem Iansã, tem muitos orixás por trás de cada um daqueles personagens. A mitologia dos orixás traz muito das experiências e dramas humanos: sexualidade, amor, intrigas, inveja, ressentimento… Gostaria de explorar mais isso. É um outro olhar, é o que eu chamo de buscar uma estética da diversidade típica de um país multirracial como o nosso, cheio de outras narrativas e povos, além dos europeus.

Patrícia Farias – Você falou de uma história da presença negra na TV, nas novelas, até um determinado momento: o livro e o filme são de 2000. Você vê alguma mudança em relação a hoje?

Joel Zito Araújo – Em termos de novela, estamos vivendo um momento muito interessante: no horário das 18h, a novela Lado a Lado tem temática e estórias onde os negros jogam um papel muito importante. Inclusive com a novidade de se ter a novela conduzida por um casal branco e um casal negro, com espaço praticamente igual. A série Subúrbia tem também um enorme elenco com atores negros e Glória Perez já disse que a inspiração para Salve Jorge, a novela das 20h, vem das mulheres guerreiras das favelas pacificadas pelas UPPs.

Essa quantidade de atores e personagens negros é inédita. Temos que pensar nisso. Isso é fruto de uma luta longa, nossa, dos atores, dos militantes negros, mas também acho que tem um fator novo: a emergência da chamada classe C. Ela quer ver histórias de seu cotidiano, quer ver personagens iguais a ela na TV e está conquistando espaço. A Globo está apostando nisso, não é à toa que Lázaro Ramos vive o protagonista na novela das 18h. Claro que ele é grande ator, muito carismático, mas há um momento muito favorável também. Estou vendo isso como um novo momento, como um novo tempo em que finalmente o povo negro vai fazer parte das imagens do país que a TV representa.

Mas o cinema não está acompanhando isso. Não tenho uma reflexão tão apurada como tenho sobre a telenovela, confesso. Talvez porque minha atenção esteja sempre voltada para a TV como objeto de pesquisa. Mas de uma coisa tenho certeza: o cinema blockbuster brasileiro é fiel à ideologia do branqueamento: são as mesmas categorias calcadas no colonialismo, com os mocinhos e mocinhas quase arianos, não sai daquilo. O cinema de autor, sim, já está sinalizando outra coisa. Há uma nova geração de cineastas que está se descolando disso, que tem mais consciência da questão racial.

Patrícia Farias – Quando você aponta este momento como interessante, me parece que sim, há um “momento interessante” no que diz respeito a atores e personagens. Mas não sei até que ponto isso é verdade no que se refere a realizadores negros, autores, roteiristas…

Joel Zito Araújo – Acho que a iniciativa da ministra da Cultura, Martha Suplicy, de lançar no Dia da Consciência Negra um edital para artistas e criadores negros e com projetos que tematizem a matriz africana é bem interessante nesse sentido. Ela vai criar um grupo de autores e novos cineastas, que poderá ter outro olhar.

O cinema norte-americano que revela os problemas de sua cidade, por exemplo, demonstra um pessimismo em relação à linha de cor que os separam. Eles parecem acreditar que os brancos estão de um lado da linha, os negros de outro, e que não tem como mudar, vai ser sempre desse jeito. Os filmes de Spike Lee por exemplo têm muito disso. Nós, não; nós estamos buscando a diversidade, estamos preocupados em apresentar o Brasil como ele é: branco, negro, indígena, oriental e misturado. Acho, portanto, que essa iniciativa será positiva para a indústria do cinema e da TV como um todo, formando novos realizadores negros, com um novo olhar. Então estou otimista, sim, com este momento na TV, acho que é interessante. Mas você tem razão, faltam diretores, realizadores negros por trás das câmeras, com um olhar diferente, dando visibilidade ao negro como parte deste país tão diverso.

Vou dar um exemplo desta mudança que está se passando no Brasil. Fui ao congresso da Associação dos Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras, o Copene; sempre vou. Havia 2.500 pessoas: jovens, universitários, todos preocupados com a questão racial. Aí pensei: “o Brasil vai mudar”. Daqui a dez anos, teremos uma nova geração fora dessa ideologia do branqueamento, do racismo, com uma outra perspectiva sobre a autoestima, sem tanta vergonha de ser o que é. É uma geração que não é a minha. Esse pessoal vai ser o avatar de uma grande mudança. Hoje começo a acreditar que em um futuro não muito distante seremos uma democracia racial (risos) graças ao protagonismo negro.

Ah, e também indígena! Preciso falar disso. No ano passado, comecei a ter contato, descobri um novo foco, uma geração indígena de realizadores, pessoas comprometidas com seus grupos étnicos, que vão para as universidades e passam a dominar as técnicas e os saberes de um olhar de fora sobre eles. E já, já, isso vai gerar um impacto, uma presença. Já temos cidades com educação bilíngue, trilíngue. Estamos tendo essa experiência aqui. Tem um novo Brasil da diversidade sendo construído  por estes antigos atores que estão virando protagonistas, negros e indígenas.

Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”
Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”

Patrícia Farias – E como você se coloca nesse contexto que está desenhando?

Joel Zito Araújo – Dentro desse universo, tenho o desejo de que meu cinema seja apreciado e absorvido por militantes, que vejam nele um instrumento que possa ser usado nas universidades, nos sindicatos, nos movimentos, para discutir o papel do negro na sociedade brasileira, o racismo, a discriminação. E também quero falar para os não-militantes, quero tocar essas pessoas, quero convencê-los que viver na diversidade é muito melhor do que debaixo de uma visão colonial.

Patrícia Farias – Seu último filme, Raça, fala sobre três personagens, três trajetórias da chamada “vida real”. Como foi a escolha dessas pessoas? Por que o Netinho, por exemplo?

Joel Zito Araújo – Eu e Megan fizemos um filme não sobre personagens, mas sobre a ação de personagens. Então o Netinho entra pelo projeto dele, a sua tentativa de construir a TV da Gente, a primeira TV negra no Brasil. Foi o impasse desse projeto que o levou à política e eu queria retratar isso. Da mesma forma, o filme não é sobre o Paulo Paim, é sobre a luta dele em aprovar o Estatuto da Igualdade Racial. E também não é sobre a líder quilombola, é sobre o movimento do qual ela faz parte. Isto é o que eu quis mostrar: realidades diferentes, mas o mesmo problema.

Patrícia Farias – Dentro desses movimentos e fluxos transnacionais, vejo que você também tem uma participação e uma conversa com o cinema africano, por exemplo. Você dá cursos de cinema em países africanos de língua portuguesa, é curador de um festival de cinema na África do Sul… O historiador, sociólogo e Dj negro Paul Gilroy fala desses fluxos da diáspora africana, cunhando a expressão “Atlântico negro”. Qual a importância disso para você?

Joel Zito Araújo – Realmente, de uns seis, sete anos para cá, passei a circular nesse universo. Passei a viver um conhecimento ao qual não tinha acesso. Tenho procurado participar cada vez mais. Dei um curso de cinema em Cabo Verde em setembro passado, em julho vou participar de uma associação de realizadores e produtores negros da África e da Diáspora. Sou também amigo dos realizadores africanos de maior visibilidade no período atual, como Zezé Gamboa, de Angola, ou Abdahamane Sissako, do Mali. A África tem três realidades distintas, quando falamos de cinema, o cinema maghrebiano e o subsaariano francófono e anglófono que são muito produtivos. A África do Sul tem uma gramática cinematográfica muito parecida com a do cinema americano, o que é típico do cinema anglófono africano. É um cinema de temática mais urbana, mais preocupado com o desenvolvimento e a manutenção de um mercado interno para o cinema. Já o cinema da área francófona tem mais influência da vanguarda francesa, de um cinema que renega a gramática americana. Mas o cinema africano em geral ainda é muito dependente de recursos de fora, o que tem impedido de surgir narrativas mais originais. Nós temos dinheiro interno, e também temos o mesmo problema.

Patrícia Farias – No cenário afrodiaspórico, como você situa o atual cinema norte-americano?

Joel Zito Araújo – O cinema negro americano, aliás, o norte-americano, é muito autocentrado, então é um pouco distante do resto. Apesar dos meus vínculos com os Estados Unidos, estou muito encantado com a África; penso que uma hora dessas vou começar a fazer filmes por lá. O Brasil é também muito autocentrado, afastado da discussão mais geral do cinema negro, africano, sem projetos de coprodução com África ou Ásia. Então, as agências financiadoras e outros possíveis financiadores dos projetos de cinema não compreendem bem quando proponho filmes que deem visibilidade a esse fluxo tão rico e importante que é o da África e Brasil. Precisamos de filmes e novelas que nos aproximem. Temos de sair da postura de deslumbrados em filmar apenas na Europa ou nos Estados Unidos. Mas eu chego lá.

Patrícia Farias – Uma preocupação da gente na revista também é com a circulação digital, muito presente na vida das pessoas hoje. Nossa revista é on-line. E como estamos pensando esse número sobre o mote de constituir caminhos, de traçar e mapear alguns deles, ficamos com a ideia de perguntar a nossos entrevistados e colaboradores se eles navegam, e por onde. Enfim, por onde você navega?

Joel Zito Araújo – Sou um navegador. Perco tempo com bobagem, com Facebook – para mim é o correio do momento, é o retrato do dia a dia, são amizades virtuais que ultrapassam o espaço físico de uma cidade. É a notícia do primo, a foto do amigo cujo filho nasceu, mas também é a informação do novo amigo de outro canto do país, de outro lugar do mundo. Também sou leitor de jornais e sites, especialmente de Portugal e Espanha. Ah, e para sugerir um link de algo original, acho que tudo mundo deve dar uma olhada no www.buala.org. É uma revista de cultura editada por portuguesas super vinculadas à África e ao Brasil. É de cultura e de arte sobre África e sua diáspora.

Vou muito a Portugal, França e Estados Unidos e me impressiona essa nova geração, de 30, 35 anos, especialmente em Portugal, que é muito cosmopolita. Como as duas Martas editoras da revista Buala, que são muito atentas à África, que já não têm aquela nostalgia colonial, salazarista. Essa geração está fora desse mundinho universitário brasileiro, que infelizmente ainda é muito restrito e estruturado na branquitude, no desejo de parte das turmas de jovens ingleses ou norte-americanos. Já esse site das portuguesas expressa uma geração europeia que rompeu com a estrutura colonialista, que ainda persiste na cabeça de muito brasileiro de classe media que se acha moderno e metropolitano.


Joel Zito Araújo: filmografia negra

Raça (2012)

Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009) – Menção honrosa no Festival Internacional de Cinema de Brasília (2008), prêmios de melhor filme e melhor diretor (indicação do público) no Festival Ibero-Americano de Sergipe e no III Afro-Festival Film da Bahia (2010).

As filhas do vento (2004) – Prêmios de melhor filme, melhor ator (Milton Gonçalves), melhor diretor, melhor atriz (Ruth de Souza e Léa Garcia), melhor ator coadjuvante (Rocco Pitanga), melhor atriz coadjuvante (Thaís Araújo e Thalma de Freitas) na Mostra de Cinema de Tiradentes (2005).

Vista a minha pele (2003) – curta-metragem.

A negação do Brasil (2000) – Prêmio de melhor filme no Festival É Tudo Verdade (2001); Prêmio de melhor roteiro de documentário no V Festival de Cinema de Recife (2005).

A exceção e a regra (1997) – média metragem.

Ondas brancas nas pupilas negras (1995) – média metragem.

Eu, mulher negra (1994) – média metragem.

Retrato em preto e branco (1993) – média metragem.

Almerinda, uma mulher de trinta (1991) – média metragem.

São Paulo abraça Mandela (1991) – média metragem.

Alma negra da cidade (1990) – média metragem.

Memórias de classe (1989) – média metragem. Prêmio de melhor roteiro no Festival Ford/Anpocs, 1989.

Recontando histórias em Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo

Maria Carolina de Godoy*

Escritora, professora, ensaísta e pesquisadora, Conceição Evaristo despontou no cenário da Literatura Brasileira com o romance Ponciá Vicêncio (2003) cujo enredo se constitui das experiências vividas pela personagem que dá nome à obra, apresentadas em tempos sobrepostos: passado e presente se misturam nas fissuras da memória e “com habilidade ímpar, o romance entrelaça de forma descontínua vidas passadas e presentes, memória individual e coletiva” (Campos e Duarte, 2011, p. 209). Em Becos da memória (2006) a autora também elege o ponto de vista feminino para o relato, como ocorre no livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), que se funde às suas experiências de mulher negra e escritora, como ela mesma afirma em entrevista concedida a Eduardo Assis Duarte:

O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível (Duarte, 2011, p. 115).

A leitura do livro permite o contato não apenas com narrativas das experiências femininas, mas também com as peculiaridades do ouvir e do narrar. Uma voz presente em todas as narrativas alinhava os relatos e constrói a imagem do tecer enredos como quem costura experiências ao posicionar-se como ouvinte e tornar-se responsável por reunir os treze contos, exercendo a liberdade ficcional da contadora dos relatos coletados.

Desde sua infância, a autora diz ouvir histórias e a esse fato atribui seu gosto pela narrativa e conta sobre seu contato com a literatura, como nesta entrevista de Eduardo de Assis Duarte:

Como foram os seus primeiros contatos com a literatura?
Conceição Evaristo – Primeiro, foi com a literatura oral vivida no seio da família, nasci cercada de palavras. Cresci escutando histórias narradas por minha mãe, tias e tios. Histórias da escravidão, de princesas, de assombrações e outras. Os causos sobravam pelos cantos de minha casa (Duarte, 2011, p. 103-104).

Ela acrescenta, em outro momento da entrevista, comentários sobre sua relação com o conto e a poesia:

Sim, navego pelas águas do conto e da poesia e, apesar de ter um público leitor que aprecia meus versos e de ser mais conhecida como poetisa, gosto muito da prosa. Prefiro os meus contos aos meus poemas. Gosto de contar e de ouvir casos (Duarte, 2011, p. 108).

Desde o início dos relatos, é possível a identificação dessa relação entre as mulheres negras: a primeira, no presente da narração é caracterizada como ouvinte; a segunda, protagonista da história narrada, assume a narração de sua experiência em momentos especiais do conto. Na página de abertura do livro, encontra-se a exposição do processo de elaboração artística da autora, que fornece pistas quanto ao modo de organização das narrativas:

Gosto de ouvir, mas não sei se sou a hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. […] Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência (Evaristo, 2011, p. 9).

Ao relatar dores e alegrias simultâneas, as protagonistas rememoram descobertas da feminilidade e da maternidade, atos violentos contra seus corpos, reencontro com suas origens na infância ou na arte, ações permeadas por conflitos gerados em condições adversas da pobreza, do preconceito e do ser mulher e negra. Ao lado desses temas, a tentativa de preservação da memória é perceptível em uma narradora preocupada em ouvir e colher experiências a fim de registrá-las no texto escrito. Os treze contos do livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), em sua breve extensão, possibilita o entrecruzamento de vozes e resgata o narrador-ouvinte que, além de ceder a voz à experiência de personagens, esclarece de que maneira teceu os discursos das narradoras, como mostra o conto “Aramides Florença”: “Quando cheguei à casa de Aramides Florença, a minha igual estava assentada em uma pequena cadeira de balanço e trazia, no colo, um bebê que tinha a aparência de quase um ano” (Evaristo, 2011, p. 11).

Mudar o rumo de uma história de vida que parecia definida configura-se como eixo temático comum entre os relatos do livro em cujo título se encontra a pista para essa interpretação: “insubmissas lágrimas”. As mulheres dos contos de Conceição Evaristo negam o modelo do século XIX que se formulou a partir do século XVIII:

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição (Telles, 2004, p. 403, grifos da autora).

Foto: Katia Santos
Conceição Evaristo em encontro no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ).
Conceição Evaristo em encontro no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ).

Em seus contos, Conceição Evaristo não apenas coloca em evidência temas caros à condição feminina, como também preserva em sua forma resquícios da tradição africana, isto é, recria histórias como conhecedora de sua tradição de mulher negra.

Ouvir e contar são posturas narrativas que retomam os griots, guardiões das histórias orais de um povo que as transmitem ao longo do tempo. Para que haja essa troca quase ritualística entre a ouvinte e a narradora ocorre, inicialmente, a identificação e a empatia entre mulheres negras, como mostra o conto “Isaltina Campo Belo”:

Campo Belo, como gostava de ser chamada, dentre outros detalhes, tinha uma idade indefinida, a meu ver. Se os cabelos curtos, à moda black-power, estavam profundamente marcados por chumaços brancos, denunciando que a sua juventude já tinha ficado há um bom tempo para trás, seu rosto negro, sem qualquer vestígio de rugas, brincava de ser o de uma mulher que no máximo teria quarenta anos (Evaristo, 2011, p. 49).

Ou na narrativa de Mary Benedita:

Não imaginei, entretanto, que ela [Mary Benedita], mal sabendo que uma ouvinte de histórias de suas semelhantes havia chegado à cidade, tivesse vindo tão rapidamente à minha procura, para atender o meu afã de escuta. Tímida, porém determinada, foi logo dizendo que precisava me contar algo de sua vida. Viera para me oferecer o seu corpo/história (Evaristo, 2011, p. 59).

No conto contemporâneo, o simulacro do contar histórias nos moldes da tradição oral é uma de suas principais características:

Não é o narrador oral quem persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta. […] A presença de quem escuta o relato é uma espécie de estranho arcaísmo, mas o conto como forma sobrevive porque levou em consideração essa figura que vem do passado. […] Há um resquício da tradição oral nesse jogo com um interlocutor implícito; a situação de enunciação persiste cifrada e é o final que revela sua existência (Piglia, 2004, p. 101).

Além da recuperação da tradição oral, há presença dos mitos afro como a identificação entre a personagem Adelha Santana Limoeiro e Nanã, a sábia senhora dos primórdios:

Adelha Santana Limoeiro, negra, poderia sim, relembrar a santa branca, a Santana, pois a avó de Jesus aparece sincretizada com Nanã, mito nagô. Misturando a fé, fiz o amálgama possível. Pisei nos dois terrenos, já que Nanã é também velha. Adelha Santana Limoeiro é Nanã, aquela que conhece o limo, a lama, o lodo onde estão os mortos. Santana, Nanã, Limo (eiro). E depois desse reconhecimento, já é possível recontar a história que Santana me contou (Evaristo, 2011, p. 33).

O marido, que procurava constantemente outras mulheres, sentiu-se mal em uma dessas aventuras e precisou ser socorrido pela esposa. Adelha, em virtude do agravamento da saúde do esposo, resolve ficar morando na mesma casa onde ele passara mal até sua morte. Ela faz o inusitado ao se mudar para o lugar em que ele foi encontrado, atribuindo tal atitude à sabedoria advinda da velhice, como mostra o fragmento abaixo:

Eu quero viver a grandeza da minha velhice e estou conseguindo sem mentiras, sem falsos remédios. Não quero me iludir com a cruel promessa da devolução de um tempo que já passou. E assim fiquei com ele algumas semanas, na casa, do outro lado do córrego. Ele, as jovens mulheres e eu. Nos primeiros dias, envergonhado, ele não quis voltar para casa. Depois, o médico da cidade, que atendia ao meu chamado toda vez que ele desfalecia, achou melhor ficarmos por ali mesmo. […] Seu último gesto foi tentar levar as mãos no entremeio de suas pernas. Assim a história dele terminou – não a minha –, enfatizou Santana, no final desse relato (Evaristo, 2011, p. 37).

No conto intitulado “Aramides Florença” há intervenções da narradora-ouvinte que expõe suas impressões de observadora dos acontecimentos que narra, identificando-se com a mulher descrita:

Eu percebi intrigada que, tanto pelos sons, como pela expressão de rosto e movimentação de corpo do menininho, o melodioso balbucio infantil se assemelhava a uma alegre canção. Teria a criança, tão novinha – pensei mais tarde, quando ouvi a história de Aramides Florença – rejubilado também com a partida do pai? Só a mãe, só a mulher sozinha, lhe bastava?” (Evaristo, 2011, p. 12).

A protagonista conta ter planejado primeiro ter um filho e, depois, a escolha do pai, o que mostra o exercício da liberdade feminina no final do século XX: “Ter um filho havia sido uma escolha que ela fizera desde mocinha, mas que vinha adiando sempre. Vivia à espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2011, p. 13). Procurou realizar seus sonhos em condições econômicas satisfatórias.

A narradora, apesar do distanciamento temporal dos fatos, torna-se empática à experiência da gestação da personagem e procura transferir ao discurso a emoção da espera do primeiro filho: “E, durante os nove meses, vivenciaram as excitações dos parentes e amigos em seus prognósticos. […] Enquanto isso, a criança, exímia nadadora, bulia incessantemente na bolha d´água materna” (Evaristo, 2011, p. 13-14). O ato de violência sexual do marido contra Aramides, entretanto, é narrado pela própria protagonista:

Estava eu amamentando o meu filho – me disse Aramides, enfatizando o sentido da frase, ao pronunciar pausadamente cada palavra – quando o pai de Emildes chegou. […] Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca um dos meus seios que já estava descoberto, no ato de amamentação de meu filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. […]  E, inexplicavelmente, esse era o homem. Aquele que eu havia escolhido para ser meu e com quem eu havia compartilhado sonhos, desejos, segredos, prazeres… (Evaristo, 2011, p. 17-18).

Nesse momento, os tempos da narração e da história se entrecruzam sutilmente e a cena trazida do passado, pela voz daquela que viveu o acontecimento nuclear da narrativa, confere ao relato não apenas maior impressão de veracidade, como também é o modo pelo qual a narradora assinala a importância de ceder o espaço àquela voz que precisa realmente ser ouvida.

Outra narrativa que põe em evidência a violência masculina é a de Shirley Paixão: “Foi assim – me contou Shirley Paixão – quando vi caído o corpo ensanguentado daquele que tinha sido meu homem, nenhuma compaixão tive” (Evaristo, 2011, p. 25). Predomina a narração comovente da protagonista a partir da qual se conhece sua história e de suas cinco filhas: três do marido, concebidas em outra relação, e duas de sua relação com outro homem. Seni sofre abusos do pai e conta com o amor e a proteção de Shirley que, ao descobrir a violência contra a menina, agride o companheiro deixando-o quase morto: “Naquela noite, o animal estava tão furioso – afirma Shirley chorando – que Seni, para a sua salvação, fez do medo, do pavor, coragem. E se irrompeu em prantos e gritos” (Evaristo, 2011, p. 29).

As personagens passam a ser (re)criadoras de sua trajetória, ao negarem imposições características dessa construção histórica patriarcal em que seu espaço foi definido pelo outro. Nos contos, as protagonistas deslocam-se, transitam, mudam de lugar para se encontrarem com a realização de seus anseios. A negação de uma história e a afirmação de outra são marcas dessas narrativas e, simbolicamente, ao ceder voz às personagens, a narradora permite que elas sejam, pelo breve espaço de um conto, participantes da criação artística:

Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a autora. As representações literárias não são neutras, são encarnações “textuais” da cultura que as gera. […] Para poder tornar-se criadora, a mulher teria de matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência. O processo de matar o anjo ou o monstro refere-se à percepção das prescrições culturais e das imagens literárias que de tão ubíquas acabam também aparecendo no texto das escritoras (Telles, 2004, p. 408).

A relevância adquirida pela posição da ouvinte nas narrativas desses contos demonstra respeito à voz e à experiência alheias, aliadas à identificação com as dores vividas no corpo de mulher negra. Ao mesmo tempo, representa peculiaridades da construção narrativa de alguém que conhece suas tradições e traz a singularidade do encontro de duas histórias: a da ouvinte griot, desejosa de conhecer o relato, e da vivência da protagonista, ansiosa por compartilhar sua trajetória. Ambas condensadas na escrevivência de Conceição Evaristo.

A presença da mesma narradora que se dispõe a ouvir os relatos de mulheres e posiciona-se no papel de condutora, como um fio de Ariadne, possibilita o entrecruzamento de todas as vozes nos labirintos dessas lembranças revividas pelo narrar. As impressões da narradora e a perspectiva de análise do passado realizada pela protagonista ao assumir o relato e a história nuclear desencadeadora da curiosidade da ouvinte estão presentes, por exemplo, no conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”:

O sorriso dela foi tão encantador e respondeu ao meu boa tarde, de uma maneira tão efusiva, que, para quem busca histórias, aquela atitude afiançava o desejo dela de conversar comigo. E quando, embora brincando, revelou o seu descontentamento com o próprio nome, me lembrei da mulher que havia criado um nome para si própria. Tive vontade de contar a história de Natalina Soledad [outro conto do livro], mas, naquele momento, o meu prazer era o da escuta. Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de um pouco de sua vida (Evaristo, 2011, p. 39).

A estreita relação entre o saber ouvir e a memorização de experiências do outro, tão bem caracterizada por Benjamin como marca dos narradores orais, é resgatada nesses contos em que a narradora cede constantemente a palavra às personagens. Desse modo, adquire relevância o contar, a voz de quem viveu a experiência:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro (Benjamin, 1994, p. 204).

Em sua escrevivência, literatura e vida de mulheres negras se fundem numa voz que conta e canta, poeticamente, as experiências únicas e intransferíveis, registradas no espaço da escrita, da arte de outras vidas:

Asseguro que a minha condição étnica e de gênero, ainda acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada do homem branco, da mulher branca e mesmo do homem negro. A minha experiência pessoal influencia a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita meu texto (Conceição Evaristo in Duarte, 2011, p. 115).


* Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007) e professora adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas.

Referências:

BENJAMIN, W.  O narrador. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

CAMPOS, M. C. C. C. e DUARTE, E. A. Conceição Evaristo. In: DUARTE, E. A. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 207-226.

CORTÁZAR, J. Alguns aspectos do conto. In:____. Valise de cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 147-163.

DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 103-116.

EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

PIGLIA, R. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, M. D. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 401-442.

O povo negro do samba: invisibilidade e protagonismo

Katia Santos*

…de noite, vai ter cantoria
e está chegando o povo do samba
é a Vila, chão da poesia, celeiro de bamba
Vila, chão da poesia, celeiro de bamba…

Unidos de Vila Isabel, Carnaval 2013.

Sambódromo, Rio de Janeiro, primeiras horas da manhã do dia 12 de fevereiro. O dia começa a clarear. Há menos de uma hora terminou o desfile da última escola de samba da noite, no segundo dia de desfiles, a Unidos de Vila Isabel. A escola fez um desfile primoroso, beneficiada pelo samba enredo eleito pelos experts no assunto como o melhor da safra de 2013, composição de Martilho da Vila, Arlindo Cruz, Leonel, André Diniz e Tunico da Vila.

Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.
Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.

Começávamos a nos retirar da avenida, depois de passarmos exatas 12 horas instalados no duro concreto do setor 10, de onde podíamos acompanhar o recuo de cada bateria das escolas de samba da noite – R$ 200, redondos, foi o que pagamos pelo espetáculo. Prudentes, deixamos que a maioria afoita, formada por turistas nacionais e internacionais, se retirasse no primeiro segundo do fim do desfile da Vila Isabel e nos demoramos um pouco mais na arquibancada. Cantávamos ainda o contagiante samba. Acompanhávamos o carro de som que serviu à Vila, e que retornava à avenida tendo ainda três integrantes da escola no alto, sendo Arlindo Cruz uma delas. De longe, tínhamos a impressão de que eles foram esquecidos ali no alto. Mas tudo indicava que o carro com o equipamento que os traria ao chão não acompanhou a escola e, assim, o carro de som teve que voltar, vindo ao encontro do carro auxiliar. Gritamos “Arlindo”, berramos “é campeã!” e, enfim, decidimos nos retirar, de verdade dessa vez.

Quando descíamos a avenida em direção à Presidente Vargas, parecia que éramos os últimos. Mas logo, não lembro bem em que momento, estávamos andando ao lado de um pequeno grupo de integrantes da Vila Isabel. Apenas as duas mulheres do grupo não estavam com as cores e identificação da escola. Quando percebemos que eles conversavam sobre o fiasco da Mangueira, nem pedimos licença, juntamo-nos ao grupo nos comentários, enquanto todos andávamos na mesma direção. Além das mulheres, havia dois homens e seis rapazes, todos adolescentes e com jeito de profissionais do samba, da arte de cantar samba na avenida, talvez. Cheguei a interagir com um deles que me disse ali, com muita segurança, depois de saber que falava com uma das mangueirenses do grupo, quantos pontos/décimos a Mangueira perderia por ter utilizando seis minutos além do máximo permitido em seu desfile.

Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.
Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.

Não pareciam ter pressa, estavam mais interessados no debate, no qual nos metemos e do qual participamos ativamente. Enquanto isso, alguém gritou de longe: “Tinga! Hei, Tinga! Parabéns, cara! Vai dar Vila, tem que ser, foi 10!” E assim nos demos conta de que estávamos proseando com aquele que viria a ser o grande intérprete do Carnaval de 2013 – o grande porque vencedor do ano: Tinga (Anderson Antonio dos Santos), o intérprete da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel.

O grupo de Tinga parou por alguns minutos para falar com o outro grupo e nós seguimos, alguns de nós afirmando saber de antemão que conversávamos com o puxador Tinga, e outros assumíamos que não sabíamos se tratar de Tinga. E assim seguimos em frente e eles vieram depois, ficaram a uma pequena distância de nós. Nosso grupo se dispersou na altura da Central do Brasil, mas enquanto pudemos tentamos acompanhar à distância a caminhada do principal intérprete da Vila Isabel. Eles seguiam andando e conversando entre eles. Creio que foram além do ponto em que nos dispersamos, em direção talvez a algum estacionamento.

Comentávamos o fato de termos uma pessoa tão importante para a escola, provável campeã daquela noite, ali entre nós, naquela longa caminhada depois de uma noite tão glamourosa e exaustiva para ele. Evidentemente, logo passamos a teorizar sobre o lugar do “povo do samba” no espetáculo que virou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. No curto percurso – para tão complexa discussão – que nos restava até nossos destinos finais falamos da invisibilidade e fundamental presença e participação dos integrantes das comunidades de origem das escolas no corpo das escolas de samba, principalmente em dia de desfile. Falamos ainda da não coincidência de serem os negros, como Tinga e seu grupo, os “invisíveis e fundamentais” da questão.

E neste mesmo período de Carnaval carioca de 2013 houve um outro evento que despertou minha atenção. Aconteceu três dias depois do encontro com Tinga, na sexta-feira, quando já sabíamos que a Vila Isabel era a grande campeã.

Peguei o ônibus 348, Praça XV, no último ponto de Jacarepaguá antes que este siga pela Linha Amarela. É o ponto de ônibus na Estrada do Gabinal, em frente ao conjunto de apartamentos da Cidade de Deus. Quando entrei, uma senhora estava se posicionando em um assento próximo à porta, provavelmente por ter pego o ônibus um ponto antes de mim – no último ponto do conjunto de casas da Cidade de Deus, também. Reparei logo nesta senhora porque ela trazia no pescoço um pesado colar de contas azuis que davam um contraste interessante com o seu tom de pele tão negro. Fiquei tentando adivinhar qual seria o orixá representado por aquele colar. Minutos depois sentei-me próxima a esta senhora só que do lado oposto ao dela. E quando o ônibus ficou mais vazio ela começou a resmungar olhando ao redor: “Sempre que a gente está atrasado tudo acontece! Olha esse engarrafamento! E ainda com um motorista ruim desse…”

Sorri para ela solidária com sua queixa e me predispondo a uma interação qualquer. Ela então prosseguiu reclamando do trânsito, do motorista, do calor, da empresa de ônibus… E não sei bem em que momento, começou também a reclamar da colocação de sua escola de samba na apuração do carnaval, a Mocidade Unida de Jacarepaguá. Disse-me – parecia pensar em voz alta – que sua escola, do grupo de acesso D, ficara em quarto lugar, e que a culpa era de alguém que não entendi bem quem seria. De qualquer forma, tudo era culpa dessa pessoa. Eu estava sentada à sua direita, do outro lado do corredor, na mesma direção, mas ela falava olhando para a frente e gesticulando muito, olhando-me apenas de vez em quando. Mas o melhor de sua fala aconteceu quando ela parecia ainda mais irada, e falava alto, olhando para as mãos, para a frente, para fora do ônibus e quase nunca para mim: “E ela ainda vem me dizer, ‘tem que escolher, ou a nossa escola ou a Mangueira’. Quem é ela?! Quem é ela pra querer me fazer escolher. Ela fica lá, ocupando a quadra com funk. Nunca vi isso. E ainda quer ser campeã e me dizer o que fazer. Quem é ela?! Enquanto eu já desfilei em mais de vinte escolas, já fui Estandarte de Ouro pela escola tal, já fiquei em segundo com a escola tal, já dei campeonato a três escolas, já…” E aí tive que interrompe-la para saber em que setor dessas escolas ela desfilava: ala das baianas. E tentando dar sequência à conversa comentei que o Bloco Coroado de Jacarepaguá, bloco vizinho a sua escola, tinha ficado em segundo lugar, e ela foi rápida: “Não interessa! O Coroado é bloco, não é escola. Nós somos escola!” Resolvi, então, apenas ouvi-la.

Disse-me depois que estava indo para um evento pós-Carnaval na Cidade do Samba, “fazer apresentação pros gringos e ganhar um dim-dim”. E que, inclusive, ia também para assinar um certo documento que confirmaria sua ida à Argentina este ano para apresentações de Carnaval. Mostrei-me impressionada e ela logo adiantou que sempre vai nessas apresentações na Argentina – falou bem orgulhosa e ainda mais alto.

De repente seu celular começou a tocar, eram as amigas. Orientou-as: “Se vocês chegarem antes de mim, pedem ao pessoal da Império da Tijuca [escola primeira colocada do grupo de acesso] pra colocar vocês pra dentro, diz que vocês são baianas novas”. Quando acabou a ligação, olhou para mim, deu uma piscadela e emendou, “Chamei umas amigas. Não vou comer sozinha, né. Quem come sozinho só come uma vez.” Concordei, e o telefone dela tocou outra vez. Como já estava perto de seu destino, despediu-se de mim enquanto estava ainda atendendo a ligação, e foi-se. Fiquei para trás pensando: qual seria a ligação entre a baiana viajada e o intérprete Tinga e seus meninos – descobri depois – puxadores mirins? Isto porque o encontro com esta senhora, no mesmo instante, trouxe-me à lembrança o encontro e diálogo, na madrugada do desfile do grupo especial das escolas de samba, com o intérprete Tinga. E este interesse e link têm um contexto, evidentemente.

Terreirão do samba no raiar do dia
Terreirão do samba no raiar do dia

Em 2004, quando comecei a conversar com a sambista Dona Ivone Lara[1] sobre o samba em sua vida, foi quando descobri que existe no Rio de Janeiro uma cidade paralela à cidade oficial. Um tipo de Cidade do Samba que só existe na memória e na narrativa das pessoas. E essa cidade do povo do samba é pulsante, forte, movimentada, festeira e negra, sim. Desde então, passei a olhar o Carnaval carioca e as comunidades de samba com outros olhos. Aprendi a enxergar as várias camadas que formam a população que todo ano invade a Marquês de Sapucaí, tanto na avenida quanto nas arquibancadas, camarotes, frisas, cadeiras etc. Logo, não haveria melhor lugar para conduzir, como desejava, uma pesquisa sobre as dinâmicas culturais dos negros no Rio de Janeiro desde o período pós-abolição[2]. Apesar de o desfile das escolas do Rio ser, sim, tudo o que sabemos dele (covardemente excludente, caro, um tanto repetitivo, plástico demais etc.) há ainda um povo negro do samba que acredita de coração na sua escola, na escola de sua comunidade, nas cores que defende. Acreditam que “samba é coisa de preto”, que “se não tiver crioulo não tem samba”, que “quem faz aquilo lá é a gente!” – todas declarações feitas nas entrevistas que venho conduzindo. O compositor Altay Veloso vai mais longe. Na canção “Rio Nilo”, sobre a comunidade de samba da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, ele permite que a cantora Leny Andrade nos informe:

Quem ajuda esse povo a cruzar o deserto é o samba
Quem faz esse povo virar bailarino é o samba
Nas margens do Nilo quem
tira os meninos da rua é o samba…
Pois esse é o primeiro dos dez
mandamentos do samba…
Abre o mar que eu vou passar
Com uma procissão de passistas da Beija-Flor

Assim, a partir de entrevistas com pessoas que vivem e/ou viveram o samba, fui levada a uma outra esfera cultural da cidade, um lugar idílico, onde sambistas, sambas, passistas, compositores, canções, mães de santo, terreiros, malandros, cantoras, cantores, puxadores de samba, carnavalescos, governantes, patronos e artistas de outra linha possuem sólidas histórias de vida. Estas podem variar um pouco na sua gênese – dependendo do narrador – mas a memória que as abriga é sólida, fiel e reverenciadora, na grande maioria das vezes. A cada nova conversa, sou apresentada a um personagem, um evento, uma canção, que habitam quase que tão somente as memórias (afetivas, muitas vezes) comum a essas pessoas. Nesse lugar preservado e de preservação, de cuidado, há dinastias familiares, versadores imaculados, compositores reverenciados, patronos temidos, mulheres e homens de belezas incontestes, passistas, dançarinas e dançarinos de grande prestígio, cozinheiras “de mão cheia”, e músicos e letristas que, uma vez ali, jamais morrerão. E na fala das pessoas toda essa dinâmica apresenta-se indubitavelmente como um relato de um mundo negro, de ontem e de hoje, sem apologéticas – o que não acontece na avenida.

São questões negras que temos que ver de perto. O que assistimos na TV e vemos na superfície da avenida em dia de desfile – ou até mesmo nas quadras de algumas escolas – não é o único retrato fidedigno do Carnaval da avenida. Aproximando-nos, vemos as outras camadas, aquelas que na grande maioria das vezes não atraem as câmeras de televisão ou qualquer outra mídia. Mas que nem por isso deixam de estar por lá, com legitimidade e pertencimento e bastante protagonismo, ainda que emboladas pelas pernas congeladas do gringo de ocasião.

Devemos evocar todos os saberes e memórias que habitam esta Cidade Negra do Samba para que venham nos ensinar como retirar a negritude local, brasileira, das sombras do olimpo da cultura oficial e estabelecê-la aqui, em terra firme, em todas as avenidas do país. Seria um ato quase reparador do último país do planeta a abolir a escravidão. E este mesmo Brasil seria, assim, o modelo de preservação, multiplicação e expertise do legado cultural dos indivíduos que formam a produtiva e inventiva Diáspora Negra.

E em caso dúvidas acerca deste legado, Brasil, “pergunte ao criador / quem pintou essa aquarela”.

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/] Samba enredo da Vila Isabel 2013.

* Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Nossas conversas resultaram no livro Ivone Lara, a dona da melodia, publicado em 2010.

[2] Pesquisa em andamento.

As religiões afro-brasileiras e a cidade

Marcia Contins*

Comparando experiências religiosas

As imagens da cidade não somente permitem como suscitam um trânsito e trocas intensas entre seguidores de diferentes religiões e segmentos sociais. O fluxo e o diálogo entre fronteiras religiosas e étnicas permitem novas representações em termos de categorias espaciais e sociais. Este artigo pretende refletir sobre a presença das religiões afro-brasileiras no espaço urbano contemporâneo. As estreitas, tensas e ambíguas relações entre a igreja católica, os neopentecostais e as religiões afro-brasileiras, tais como o candomblé e a umbanda no Rio de Janeiro, tornam possível uma rica discussão. Minha pesquisa atualmente está voltada para descrever as diversas formas de enquadramentos religiosos no espaço urbano realizados por diferentes grupos religiosos, especialmente aqueles relacionados às religiões afro-brasileiras. Darei ênfase, principalmente, às mudanças na forma de viver a religião na contemporaneidade e à maneira como essas mudanças se expressam nesses diversos universos religiosos.

O foco dessas reflexões são as relações entre religião e contexto urbano, analisando o fato de que determinados grupos religiosos distinguem-se a partir de sua modalidade de inserção no espaço da grande cidade moderna, no caso a cidade do Rio de Janeiro. Exploro os vínculos de natureza social e cultural na experiência desses grupos, sobretudo nos processos de apropriação do espaço da cidade, assim como os vínculos de natureza cosmológica expressos por categorias mágico-religiosas, valorizando, desse modo, o ponto de vista nativo para o entendimento de suas experiências (Contins, 2005, 2009; Contins e Gomes, 2007, 2008).

Este último aspecto desempenha papel relevante na comparação entre essas experiências religiosas, principalmente no que se refere às religiões afro-brasileiras e à relação de oposição entre estas e os grupos pentecostais e carismáticos católicos. Localizados em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro e associados a distintas identidades religiosas, esses grupos partilham a experiência de terem suas práticas e representações moldadas pela sua participação em determinados circuitos religiosos e de sociabilidade.

Tais grupos elaboram representações dessa experiência em função mesmo de estarem inseridos em distintas tradições religiosas e étnicas. Nesse sentido, ofereceram um campo metodologicamente privilegiado para a comparação. É importante destacar as relações sociais a partir das quais são construídas essas concepções enquanto matrizes de identidades socioculturais e étnicas, centrando a atenção nas funções sociais e simbólicas que desempenham essas representações nos processos de construção de distintas modalidades de autoconsciência individual e coletiva. As discussões sobre as relações e as experiências desses grupos religiosos passam, necessariamente, pelo  seu permanente deslocamento e circulação no espaço da grande cidade e pelo aprofundamento da noção de “circuitos urbanos”[1]. Esses estudos também exploram as repercussões que tais deslocamentos e circulação exercem sobre as autorrepresentações desses grupos.

Antes de analisar essas experiências, com alguns exemplos do meu trabalho de campo atual, gostaria de tratar aqui da minha trajetória como pesquisadora dessa área de estudos e como cheguei a trabalhar com a discussão sobre religiões afro-brasileiras e a cidade. Exploro também as transformações dentro desse campo de estudo.

As religiões afro-brasileiras e o espaço da cidade na década de 1970 e 1980: o trabalho de campo do antropólogo

Durante as décadas de 1970 e 1980, realizei pesquisas sobre umbanda e candomblé no Rio de Janeiro, especificamente na Baixada Fluminense. Naquele tempo eram poucas as igrejas pentecostais existentes naquela área e por outro lado havia inúmeros terreiros de umbanda e candomblé. Eram todos terreiros locais, ou seja, com clientela basicamente do próprio bairro, apesar de receberem eventualmente pessoas de outros locais.

O lugar desses centros de umbanda para a vida do bairro foi analisado em um artigo que produzimos na época, “Gueto cultural ou a umbanda como modo de vida” (Maggie e Contins, 1980). Naquela ocasião realizávamos um trabalho de campo em locais considerados mais distantes do centro da cidade. Quanto mais distante socialmente e geograficamente de nós pesquisadores, mais “autêntico” o campo. Em geral eram locais menos urbanizados, com ruas sem asfalto e também com poucos meios de transporte. O trajeto para esses locais da Baixada Fluminense passava necessariamente pela Via Dutra e depois por caminhos estreitos, geralmente de terra, até chegarmos nas casas que abrigavam os terreiros. Era frequente dormirmos nos locais de pesquisa, já que as sessões de umbanda e candomblé duravam a noite toda e só pela manhã terminavam. Pensávamos, naquele tempo, que havia uma distância social e psicológica significativa entre nós e o grupo que iríamos estudar.

A experiência de campo era muito marcante e toda a interpretação que construímos parecia diminuir e simplificar a realidade vivida pelas pessoas. O importante, naquele momento, era trabalhar a partir do ponto de vista nativo, ou seja, perceber o significado da religião para suas vidas como um todo. Percebemos que, nesse tipo de situação religiosa, na umbanda principalmente, havia uma relação profundamente estreita e imbricada entre o cotidiano e o universo ou domínio religioso.

Esses terreiros funcionavam como um centro criador de relações simbólicas, sociais e econômicas. Tratar a umbanda apenas como uma religião seria deixar de perceber uma dimensão mais ampla desse fenômeno, já que toda a vida das pessoas do bairro estava relacionada com o que se passava e se formava a partir dos terreiros. Chamamos de “modo de vida da umbanda” esse tipo específico de relação social, econômica e ideológica criada a partir dos terreiros (Maggie e Contins, 1980).

A Baixada Fluminense, naquele momento, e o bairro que estudamos em particular, viviam uma situação de isolamento social e espacial. Partimos de um estudo de caso a partir da descrição do bairro, da história do terreiro, de sua organização social e econômica. O terreiro, neste caso estudado, era o centro de onde era gerada grande parte das relações sociais, econômicas e simbólicas vividas pelo grupo. Enquanto “guetos culturais”, esses terreiros estavam distantes dos centros de decisão, de emprego, do poder público e centralizavam a produção cultural desses grupos.

O trabalho de campo e as análises  realizadas em situações específicas, em um único terreiro ou grupo, durante as década de 1970 e 1980, faziam um contraste significativo com relação às análises de desenvolvimento econômico e social realizadas nas décadas anteriores, estudos estes com enfoque mais generalizantes. Havia um debate também, nesse momento, com os autores que trataram a umbanda como sintoma de um processo de urbanização da cidade.

O livro Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito, por exemplo, inaugura essa mudança no fazer antropológico, escrito, segundo a autora, “em meio a um turbilhão de mudanças no país e na antropologia brasileira” (Maggie, 2001, p. 7). Ainda de acordo com ela, a sua geração, que ficou impedida de se expressar por meios políticos nas décadas de 1960 e 1970, tentou por meios menos ortodoxos uma outra descrição do país. Em termos da antropologia das religiões afro-brasileiras, os enfoques ficaram mais centrados em campos específicos, em estudos de caso, e dessa forma rompem com os estudos sobre a busca da origem dessas religiões, relacionada a uma autenticidade africana. O lugar da África estava agora nos próprios terreiros.

Na década de 1980, vários autores discutiam o papel da autoridade etnográfica e as pesquisas buscaram trabalhar com narrativas dos próprios “informantes”, agora também como autores. Pesquisando comparativamente os negros pentecostais norte-americanos e brasileiros na década de 1980 e no começo de 1990 (Contins, 1995), tentei não privilegiar apenas a minha interpretação e análise dos grupos estudados, mas iluminar o fato de que a minha voz era apenas uma das muitas vozes que iriam aparecer na pesquisa.

As minhas dúvidas com relação ao modo tradicional de interpretação etnográfica foram surgindo a partir do momento em que eu não estava mais satisfeita com a discussão antropológica de olhar o “nativo” como um “outro”, separado do etnógrafo e principalmente possuidor de uma verdade intrínseca que precisava ser desvendada por mim ou por outros pesquisadores. Minhas interpretações só foram possíveis a partir do momento em que eles também, não apenas enquanto objetos de estudo, mas enquanto interlocutores num diálogo, possibilitaram diversas interpretações de suas vidas e de suas crenças religiosas.

Os chamados “nativos” não estão lá apenas para serem observados e analisados; se fazem presentes enquanto participantes ativos que falam sobre si mesmos e são, até certo ponto, coautores do texto final. Essas questões, colocadas por alguns antropólogos norte-americanos na década de 1980, levam em conta as condições de coleta de dados de campo que envolvem dimensões intersubjetivas, jogando luz nas relações de poder que se estabelecem entre antropólogos e o grupo pesquisado, afetando assim as interpretações elaboradas no texto etnográfico.

Silva (2005) aponta para o que chama de “diálogo etnográfico”. Ele relatou, a partir de sua própria experiência de campo como pesquisador, como adepto do candomblé, e por meio das entrevistas com os outros pesquisadores, a relação de diálogo mantida com os observados. Nesse sentido, o entendimento da observação participante vai muito além de uma simples técnica ou de um procedimento metodológico adotado pelo pesquisador para conhecer a comunidade estudada.

O livro discute, na perspectiva do diálogo etnográfico, a participação ativa dos antropólogos nos rituais de iniciação das religiões afro-brasileiras e, em alguns casos mais extremos, a própria conversão destes a essas religiões. É possível, do ponto de vista do antropólogo, ter acesso ao grupo religioso apenas como observador ou é preciso observar de dentro, tornando-se nativo? O autor não traz, enfim, uma discussão ingênua da problemática do trabalho de campo, mas situa essa discussão dentro da questão do diálogo que o etnógrafo mantém com os seus pesquisados.

Esses estudos levam em conta a perspectiva dos observados, a maneira pela qual os grupos religiosos se apropriam tanto do texto escrito pelos antropólogos, quanto dos possíveis resultados da pesquisa para a comunidade estudada. Nessa perspectiva, os diálogos entre observados e etnógrafo são intensos. Os próprios pesquisados descrevem o processo de pesquisa do qual participaram, centrando a atenção na presença do antropólogo no grupo religioso, na relação que este mantém com eles e suas participações nos resultados da pesquisa.

As religiões afro-brasileiras e os movimentos sociais: diálogo entre a academia e o movimento negro

Desde a década de 1970 e principalmente a partir de 1988, a relação das religiões afro-brasileiras com a sociedade foi intensificada e diversificada a partir dos vários movimentos e de suas redes sociais. Diversos pesquisadores analisaram em alguns artigos os efeitos dessas redes para a realização de diferentes eventos relacionados aos 100 anos da abolição da escravatura. Em 1988 se realizou um estudo desenvolvido a partir da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (ECO/UFRJ) em conjunto com o Núcleo da Cor da UFRJ, com apoio da Fundação Ford. Esse estudo foi realizado a partir de um mapeamento das muitas visões da abolição, tendo como perspectiva surpreender as relações raciais no Brasil cem anos depois da abolição (Contins, Strozenberg e Maggie, 1997).

Um dos resultados desse levantamento foi a produção de uma valiosa coleção de documentos a respeito de tudo o que se fez no ano do centenário. O interessante desse trabalho foi o diálogo entre os discursos produzidos pela academia e aqueles produzidos por militantes dos movimentos negros e também por pessoas que não estavam engajadas em nenhum dos dois mundos. Militantes e acadêmicos, mesmo ocupando posições diferenciadas quanto ao engajamento na luta contra a discriminação, conversam entre si e compartilham visões semelhantes de nação, de indivíduo e de cidadania.

Ainda repercutindo as comemorações dos cem anos da abolição, em 1988, meu livro Lideranças negras (Contins, 2005) voltava-se para aqueles que foram os promotores de parte significativa daqueles eventos. Nosso propósito era ouvir lideranças femininas e masculinas dos movimentos negros no Rio de Janeiro, principalmente sobre sua experiência de militância na década de 1970. Esses anos foram bastante significativos, na medida em que os movimentos negros intensificaram sua luta contra a discriminação tanto de cor quanto social.

Vale ressaltar ainda que os depoimentos reunidos apresentam um caráter que ultrapassa o aspecto propriamente político ou doutrinário dos movimentos negros. As entrevistas trazem uma notável riqueza existencial percebida através das diversas narrativas que enquadram as experiências biográficas e políticas dos entrevistados. São histórias de vida de indivíduos, de famílias, de relações de parentesco, de experiências religiosas, de vizinhança em diversos lugares do Brasil mas principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Essas narrativas desempenham um papel fundamental nos processos de construção de imagens da experiência de ser negro no Brasil em uma determinada época.

Outros estudos também foram realizados durante as décadas de 1990 e 2000 sobre a circulação e os efeitos de noções como as de “ação afirmativa”. Aproximadamente com trinta anos de diferença em relação às primeiras iniciativas de ação afirmativa nos Estados Unidos, essa discussão pode ser vista em parte como um dos resultados do chamado “ressurgimento do movimento negro no Brasil”, que se verifica a partir da década de 1970, para movimentos negros no Rio de Janeiro e em São Paulo. As organizações que discutem a questão racial desenvolveram um trabalho significativo, pondo em perspectiva as desigualdades existentes entre brancos e negros. Apesar das diversas tentativas de conscientização da sociedade para o problema, propostas mais eficazes que atendessem à população negra se mostraram pouco aceitas. Assim, o movimento negro chegou na década de 1990 buscando reformular suas iniciativas, também no que se refere à relação entre militância e academia.

Setores desses movimentos concluem que é necessário garantir a realização de políticas públicas, governamentais ou não, que atendam à população negra. Posições contra e a favor da ação afirmativa, nas suas diversas modalidades – política de cotas, ação compensatória e outras estratégias visando favorecer um maior acesso dos grupos discriminados à educação e ao mercado de trabalho –  integram uma discussão atual e revitalizada no centro dos movimentos negros. Esses debates levam em conta a conjuntura nacional e internacional, a situação da população negra brasileira, os mecanismos de discriminação e a política da “democracia racial” para avaliar a eficácia da ação afirmativa como instrumento de combate à discriminação. As religiões afro-brasileiras são citadas como peça fundamental para esses movimentos sociais, especificamente para os movimentos negros. Elas emergem, nesse momento, como personagens no espaço público. Se antes as religiões afro-brasileiras estavam restritas a espaços privados, elas agora adquirem visibilidade no espaço público. Isso se realiza principalmente por meio do discurso e das práticas dos movimentos negros. Nesse momento, para parte dos movimentos negros, “ser negro” é uma categoria definida primordialmente pelas religiões de origem africana. É preciso assinalar, no entanto, que esse quadro merece uma qualificação. Para muitos esse vínculo religioso não é exclusivamente mediado pelas religiões africanas. Muitos assinalam a presença significativa de negros nas religiões evangélicas.

Registro dos terreiros de umbanda como patrimônio cultural: a relação com as outras religiões na cidade

As pesquisas voltam-se também, neste momento, para a discussão sobre o espaço da cidade. O trânsito entre as religiões configura um novo espaço em que os pesquisadores realizam suas pesquisas. A presença atual de pesquisadores e de entidades oficiais que procuram esses grupos para realizarem o registro de seus terreiros como “patrimônio imaterial” também intensifica o diálogo. “Virar patrimônio” já faz parte de seus horizontes (Bitar, 2011). Do ponto de vista desses grupos, essa experiência não necessariamente os congela como algo do passado, mas permite que sejam reconhecidos publicamente como grupos atuantes e com possibilidades de mudança.

Nas últimas décadas, como vários autores já vêm assinalando, o espaço religioso vem se modificando no contexto das grandes cidades (Maggie e Contins, 1980; Silva, 1992, 2005; Mariz e Machado, 1998; Contins, 2003; Contins e Gomes, 2007, 2008). Uma das características desse processo é o crescimento e a visibilidade alcançados pelas denominações evangélicas pentecostais, em especial das chamadas neopentecostais, além do aumento de igrejas católicas com características carismáticas como o Movimento de Renovação Carismática Católica (MRCC). Ressalte-se que as mudanças não se dão apenas externamente na relação que estabelecem com e no espaço público, mas também internamente às confissões religiosas envolvidas. Os terreiros de umbanda e candomblé tiveram que dividir seu espaço, nessas áreas, com as igrejas pentecostais e neopentecostais. O ponto que quero frisar é como esses grupos afro-brasileiros se colocam diante do fato do crescimento dessas religiões na cidade.

Enquanto as igrejas evangélicas mais antigas, que já atuavam em locais onde havia predominância da Igreja Católica e de terreiros de Candomblé e Umbanda (como na Baixada Fluminense), privilegiam atividades religiosas voltadas à congregação e à população local, as igrejas neopentecostais apresentam características distintas. Essas são igrejas voltadas para receber um grande público, diferente das igrejas pentecostais mais tradicionais, como a Assembleia de Deus, além de disporem de um público fixo, investindo em uma clientela difusa e móvel.

Sua arquitetura também se distingue das construções das pequenas igrejas de bairro, que ainda existiam nas décadas de 1970 e começo de 1980. Uma das características importantes está em sua localização, geralmente no entroncamento de grandes avenidas, expostas aos permanentes deslocamentos da população. O grupo reconhecido como  “renovação carismática”, apesar de atuar na esfera da própria Igreja Católica, também realiza missas e eventos voltados para um grande público. Essa característica reflete-se na escolha do local que será utilizado para a realização dos eventos e na própria relação que se estabelece com o espaço da cidade. Os grupos afro-brasileiros tiveram que conviver com o aumento do número de igrejas neopentecostais e carismáticas e também com a arquitetura monumental de suas igrejas, possibilitando receber, de uma só vez, uma quantidade enorme de fiéis. No espaço da cidade, desenha-se um contexto de pluralidade em que a prática religiosa tem sido mais transitiva, e a procura por novas experiências ultrapassa seus espaços originais. Um dos pontos relevantes que percebemos a partir dessa nova configuração religiosa no espaço urbano, foi o lugar das religiões afro-brasileiras.

Os terreiros voltados para o grande público

Verifiquei, em pesquisas recentes, algumas iniciativas ligadas às casas de candomblé e umbanda voltadas para o grande público: uma aproximação com a mídia, por meio de programas em rádios locais e na televisão e a produção de cursos sobre história da África realizados em barracões de candomblé na Baixada Fluminense, além de cursos de línguas africanas, produção e divulgação de CDs e vídeos sobre seus rituais, tendo em vista diferentes entidades do candomblé. É uma espécie de diálogo que se estabelece com o grande público, que não fica mais restrito às pequenas casas ou terreiros situados na Baixada Fluminense. O que se observa hoje são as diferentes casas de candomblé e umbanda no Rio de Janeiro que privilegiam a relação com o mercado, com a universidade e com os movimentos negros.

Comparamos alguns grupos relacionados às religiões afro-brasileiras no subúrbio e na zona Oeste do Rio de Janeiro como exemplo de diferentes grupos afro-brasileiros que inovaram seus rituais, com a construção de terreiros maiores e que têm como meta aproximar-se de um público mais amplo. São eles um barracão de candomblé localizado em Vila Valqueire, um em Irajá e um terceiro em Anchieta. Analisamos, a partir da discussão sobre ritual e performance, a importância desses barracões para a comunidade local e também para além desses bairros. Comparando os dois primeiros terreiros, que possuem uma importância local bastante forte, ou seja, durante os rituais há uma enorme troca e participação de diversos terreiros da região, com o barracão de Anchieta, verificamos que a diferença com relação aos dois primeiros estava justamente na forma de “espetáculo” que este último assumia durante os seus rituais.

As festas realizadas no barracão de Anchieta para as entidades do candomblé eram feitas em um grande salão com a participação de uma grande audiência de fora do bairro. Os rituais são filmados e gravados em CDs que depois são vendidos no Mercadão de Madureira. Esse pai de santo tem um programa semanal numa rádio e se apresenta em programas de televisão. Ao mesmo tempo, percebemos que os rituais internos (só para as pessoas do próprio candomblé) tem importância fundamental para a continuidade desse barracão, enquanto que o ritual como espetáculo, no entanto, faz parte dessa relação com o grande público. A sua forma arquitetônica é também bastante significativa na relação que se estabelece entre as religiões afro-brasileiras e as outras religiões, já que ela se aproxima da forma de arquitetura das igreja neopentecostais. Em lugar de ser um terreiro tradicional, a casa onde fica o terreiro se assemelha a uma igreja com três andares. No primeiro andar fica o salão onde o ritual para as entidades são realizados. Neste salão, pessoas de diversas partes da cidade comparecem. Um membro da comunidade filma o espetáculo e depois esse CD é colocado à venda. Ao lado da casa há uma entrada para a parte de baixo do terreiro, onde ficam as obrigações de santo, e é também o local onde os membros do terreiro se vestem e se preparam para os rituais. É uma espécie de bastidor da casa, onde somente as pessoas de dentro podem ficar; os convidados assistem tudo no salão que tem a forma de um teatro, com bancos ao redor do palco. Atualmente, o pai de santo de Anchieta já produziu mais de 20 CDs das suas festas, cada uma dedicada a uma entidade específica. A circulação desse objeto material religioso, que não se restringe a apenas um CD de vídeo, fica exposto no Mercadão de Madureira em várias prateleiras das lojas. A questão da autenticidade relacionada à africanidade dos terreiros baianos, neste caso, é construída a partir das imagens que são distribuídas nos mercados pelo próprio autor. Esse pai de santo e alguns membros do terreiro elaboram um ritual específico para uma plateia, ensaiam os participantes, filmam em DVD e os distribuem no mercado para venda.

Em outro estudo de caso, destaco a questão da crescente importância das procissões religiosas de umbanda realizadas pelo Centro Espírita São Miguel Arcanjo em Magé, na Baixada Fluminense. O Centro Espírita São Miguel Arcanjo fica localizado no centro de uma área correspondente a três terrenos de aproximadamente 360 m2, cada um. O terreiro tem a denominação do santo que é o protetor do líder religioso, São Miguel Arcanjo, e Ogum-Megê como Orixá chefe da Casa. O centro espírita conta com aproximadamente 300 integrantes. No entanto, contando aqueles que já passaram pela casa de culto, tendo agora os seus próprios centros espíritas, tem-se um número maior ainda, de mais ou menos três mil integrantes.

Existem, estimativamente, 70 terreiros filiados ao Cesma, oriundos de filhos, filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas-de-santo. A maioria dos centros fica localizada no Estado do Rio de Janeiro, havendo um em Brasília e outro em São Vicente, São Paulo, e um em fase de abertura no Rio Grande do Sul; todos foram espalhados a partir do Cesma. Os médiuns ou filhos e filhas-de-santos e frequentadores, consulentes, são de vários bairros, cidades, inclusive de outros estados, também de camadas sociais diversas da população e de diferentes grupos étnicos, desde empregadas domésticas, donas de casa, garis, até promotores de justiça, prefeitos e políticos locais.

A procissão de São Miguel Arcanjo, ou de Ogum Megê, é realizada sempre no mês de setembro, no qual todos os filhos de santo participam, além dos terreiros filiados com os seus filhos e filhas de santo, netos e netas de santo. A procissão percorre todo o centro do município de Magé, com saída e retorno ao centro, cantando músicas em homenagem ao seu padroeiro e o Hino da umbanda, alternados. Nas ruas por onde a procissão passa, as pessoas aguardam em seus portões ou janelas, com velas acesas e copos de água; na praça principal, um aglomerado de pessoas a espera.

A procissão, ao mesmo tempo em que é um ato religioso, além dos limites do seu terreiro, é um ato social. Faz parte não só do calendário religioso, como também do profano, já que a cidade fica receptiva a sua passagem. Há uma relação direta com o calendário religioso católico. As pessoas que assistem à procissão não necessariamente são umbandistas e na passagem pelas igrejas pentecostais e mesmo católicas não há nenhuma restrição, pelo menos mais recentemente. Segundo o pai de santo, no início, quando começou a realizar a procissão, eles não eram bem recebidos pela igreja católica e muito menos pelos pentecostais.

No depoimento que o pai de santo nos deu, ele descreveu a mudança do comportamento das outras religiões com relação à procissão. Antes, havia muita reclamação e disputa, as igrejas neopentecostais fechavam as suas portas e eram contra a procissão. A igreja católica local também mantinha as portas fechadas nesse dia. Atualmente, há uma clara receptividade da igreja católica e as pentecostais não se manifestam. Isso, no entanto, não quer dizer que não haja, no dia a dia, disputas em torno da eficácia de cada religião e na administração do espaço de cada uma. Uma entrevistada, também filha de santo desse centro e com seu próprio terreiro bem próximo do dele, disse que montou seu terreiro na própria casa.

Há também, nesse contexto da Baixada Fluminense, um forte trânsito religioso entre os membros pertencentes a várias religiões. Entrevistando essa mesma filha de santo, soube que por questões de família e doença deixou de se filiar ao centro espírita de umbanda e se tornou evangélica. Durante alguns anos passou a frequentar uma igreja neopentecostal, e mais tarde voltou a procurar o pai de santo. Agora tem seu próprio terreiro.

No final, depois de darem a volta por toda a cidade e serem vistos por todos que estão à espera da procissão, os participantes retornam ao centro espírita. Na procissão, o centro espírita traz para a rua seus objetos rituais, suas crenças, e a relação com a cidade se torna mais visível e mais próxima.

Considerações finais

No trabalho de campo que venho realizando com esses grupos religiosos, percebi a enorme proximidade social e cultural entre eles. Há um grande fluxo entre pessoas que saem das religiões afro-brasileiras e se tornam evangélicas, geralmente para igrejas próximas ao seu terreiro de origem ou para locais que já conheciam, perto de suas casas. Do mesmo modo, existe também um trânsito religioso de pessoas que retornam às religiões afro-brasileiras. Foi fundamental perceber, nos relatos biográficos dos entrevistados, de suas histórias de vida pessoal e religiosa, as interpretações que realizam sobre suas experiências religiosas, sobre os objetos e rituais religiosos e de que maneira convivem com distintas interpretações, ora pela umbanda e pelo candomblé, ora pelo neopentecostalismo.

O momento de crise em suas vidas religiosa e pessoal possibilita a mudança de religião. Nesse sentido, na medida em que esse acesso ao sagrado se dá no universo de uma grande metrópole moderna (Rio de Janeiro), essas práticas tendem a assumir, além de sua forma ritual, o caráter de “espetáculos”, em razão mesmo de atender a uma clientela que se caracteriza por seu elevado índice demográfico. As narrativas sobre a memória coletiva também são fundamentais  para entender as formas de apropriação dos espaços e dos objetos nas construções de identidades individuais e coletivas. As diferentes narrativas sobre subjetividade, encontradas nos grupos acima selecionados, apontam para a importância das  religiões afro-brasileiras no contexto da grande cidade.

O movimento permanente de incorporação e diferenciação de estilos de vida e visões de mundo distintas é característico da grande cidade (Simmel 1971, 1968; Velho, 1980, 1994, 2010). No mesmo sentido, a vida cosmopolita oferece possibilidades e alternativas ao indivíduo por meio das redes de pertencimento, sistemas de troca, mediações e trocas contínuas inscritas no contexto da cidade. O fluxo entre fronteiras religiosas e reinterpretações das orientações institucionais admitem novas representações em termos de categorias espaciais, sociais e étnicas. A utilização do espaço da cidade pelas diferentes religiões proporciona novas formas de percepção sobre o fenômeno religioso, redefinindo as diversas formas de apropriação desse espaço por meio da experiência religiosa.

Os atores sociais estabelecem múltiplos vínculos e elaboram diferentes e criativos arranjos coletivos nos usos da cidade. Terreiros que antes pareciam muito distantes, hoje parecem bem próximos. No trabalho de campo que realizávamos na década de 1970 e 1980 havia uma distância muito grande entre pesquisadores e pesquisados, distância física e social. Hoje, a ida a algum terreiro da Baixada Fluminense não parece tão distante. A cidade era imaginada como espacialmente distante e diversa. A questão da autenticidade estava nesse “outro” distante. Mas hoje talvez ela não esteja precisamente em lugar algum. A fonte da autenticidade pode estar ligada aos registros dos terreiros; mas pode ser construída também pelos próprios participantes das religiões e de sua rede de sociabilidade.

Como procurei demonstrar, as diferenças entre as várias religiões na cidade podem ser percebidas tanto no aspecto da arquitetura de suas igrejas, templos ou terreiros, quanto no aspecto de suas performances e rituais, e nas formas de autorrepresentação desses grupos. As imagens que cada grupo religioso tem de si mesmo e dos outros acompanham as transformações da cidade.


* Marcia Contins é professora associada de Antropologia do PPCIS/Uerj e pesquisadora do CNPq. Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), mestre em Antropologia Social (MN/UFRJ), publicou Lideranças negras (Aeroplano, 2005) e “O caso da pomba gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina” (Ideias e Letras, 2009).

[1] Aproximo a definição de “circuitos urbanos”  da noção de “fluxos” em Hannerz (1980), e com isso  pretendo destacar os aspectos de permanente deslocamento e circulação desses indivíduos e grupos.

Referências:

BITAR, Nina Pinheiro. Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011.

CONTINS, Marcia. “Estratégias de combate à discriminação racial no contexto da educação universitária no Rio de Janeiro”. In: PAIVA, Ângela (org). Ação afirmativa na universidade: reflexões sobre experiências concretas Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Desiderata, 2003.

CONTINS, Marcia. Lideranças Negras. Rio de Janeiro: Aeroplano/Faperj, 2005.

CONTINS, Marcia. “O caso da Pomba–Gira: reflexões  sobre crime, possessão e imagem feminina”. In: GOMES, Edlaine (org). Dinâmicas contemporâneas do fenômeno religioso na sociedade brasileira. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

CONTINS, Marcia. Tornando-se pentecostal: um estudo comparativo sobre pentecostais negros nos Estados Unidos e no Brasil. Tese de Doutorado, ECO/UFRJ, 1995.

CONTINS, Marcia; GOMES, Edlaine de Campos. “Os percursos da fé: uma análise comparativa sobre as apropriações religiosas do espaço urbano entre pentecostais e carismáticos”. In: PONTOURBE – Revista eletrônica do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, n.1. 2007. www.n-a-u.org/revistadonau.html.

CONTINS, Marcia; GOMES, Edlaine de Campos. “Autenticidade e Edificações Religiosas: comparando carismáticos católicos e neopentecostais”. In: Anthropológicas. Recife: UFP. v. 19, n. 1, 2008, p. 169-200.

CONTINS, Márcia; Strozenberg, Ilana; Maggie, Yvonne (orgs.). Quase catálogo: Visões da Abolição 1988. Rio de Janeiro: CIEC-ECO/UFRJ/Museu da Imagem e do Som, 1997.

HANNERZ, Ulf. Exploring the city: inquiries toward an urban anthropology. New York: Columbia University Press, 1980.

MAGGIE, Yvonne. Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.

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SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp, 2005.

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VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

VELHO, Gilberto.“Metrópole, cosmopolitismo e mediação”. In: Horizontes Antropológicos, v. 33. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2010, p. 15-24.

O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a história do negro no futebol brasileiro e do epistemicídio na filosofia

Renato Noguera*

Em quase toda a produção sobre a história do futebol brasileiro encontram-se três momentos narrativos integrados ou amalgamados que falam da chegada do futebol inglês e elitista ao Brasil, da sua popularização e do papel central do negro nesse processo. O primeiro momento narra a chegada do futebol e enfatiza a segregação dos negros e dos pobres, o segundo relata suas lutas e resistências e o terceiro descreve a democratização, ascensão e afirmação do negro no futebol (Soares, 1999, p.119).

Pré-jogo: apresentando o problema

Convido leitoras e leitores para um ensaio. Ou ainda, para um treino numa alusão explícita ao futebol. Por meio de uma genealogia do drible, este trabalho vai apresentar as linhas mestras da filosofia afroperspectivista. Em outras palavras, a relevância do conceito de drible para habilitar a legitimidade da produção filosófica africana e afrodiaspórica  a partir de uma genealogia do drible no futebol brasileiro. Na história do futebol brasileiro os jogadores negros sofreram inúmeras restrições por parte dos clubes, das regras de jogo e das associações oficiais de futebol, o que teria, segundo diversas hipóteses, gerado o drible brasileiro. Por outro lado, nos manuais e compêndios de história da filosofia, a produção fora do que se denomina Ocidente tem tido pouco ou nenhum reconhecimento. Com efeito, para uma significativa parcela de historiadores(as) da filosofia, a produção filosófica africana praticamente inexiste. Ou ainda, os povos negro-africanos sequer seriam capazes de filosofar. O filósofo alemão Hegel é, entre outros, tais como Kant, um exemplo dessa mentalidade racialista do século XIX:

A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis […] negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável […]. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano […]. Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistentes (Hegel, 1999, p. 83-84).

A epígrafe de Antônio Jorge Soares afirma que a literatura acadêmica e jornalística, assim como a oralitura[1], sobre a história do futebol convergem para a ideia de que jogadores negros (pretos e pardos)[2] não tinham espaço nos times de futebol até a década de 1930 e, mesmo quando foram “aceitos”, a arbitragem tinha regras diferentes de tratamento para negros e brancos. Uma fonte maravilhosa de piso antropológico, sociológico e histórico da situação de jogadores negros é o livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Esse vigoroso trabalho foi publicado pela primeira vez em 1947 e recebeu mais dois capítulos em 1964. Existem outros trabalhos a respeito e todos parecem concordar com um aspecto: os árbitros não marcavam faltas de jogadores brancos em jogadores negros, mas o inverso era rigorosamente punido. “Quando começaram a jogar o futebol por aqui, os negros não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo esbarrar nos adversários brancos, sob pena de severa punição: os outros jogadores e até os policiais podiam bater no infrator” (Soares, 1999, p. 134-135). Pois bem, diante desse cenário a hipótese que se popularizou foi simples, jogadores negros precisaram encontrar novos espaços e maneiras de conduzir a bola que evitassem que eles esbarrassem nos brancos e fossem punidos. Como os jogadores negros não podiam tocar nos jogadores brancos, a hipótese foi o surgimento do drible como alternativa para que os jogadores negros pudessem se movimentar em campo. O drible, neste caso, é uma invenção negra. No entendimento de Mário Prata (1998), o drible é uma determinada transposição dos passes e ginga do samba para o interior das quatro linhas do jogo de futebol.

Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Robinho pedalando para cima dos adversários.
Robinho pedalando para cima dos adversários.

A primeira partida de futebol em terras brasileiras data de 1874, o jogo foi uma exibição para a Princesa Isabel. Em 1916, começa a efetiva profissionalização com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a respectiva filiação à Confederação Sul-Americana de Futebol (Comembol) e à Fifa (Federação Internacional de Futebol). Nessa ocasião, apenas sócios de clubes, ou seja, membros da alta sociedade podiam jogar, o que fazia do futebol um esporte muito elitista. Gordon Jr. (1995) comenta que até 1918 era formalmente vedada pela Federação Brasileira de Sports a inscrição de negros nos clubes de futebol.

O caso de homens brancos de classe média e classe popular era bem diferente dos negros. Caso aqueles tivessem um “padrinho” o acesso ao clube era possível porque bastaria seguir as normas do clube, passando-se como um homem de “boa família”. Isso era impossível para os negros interessados em jogar nos clubes de futebol. Somente a partir de 1919 e 1920, alguns clubes começaram a aceitar jogadores negros. As restrições impostas aos jogadores negros diferiam muito das que eram colocadas aos brancos pobres. Com efeito, brancos trajados com uniformes não tinham nada que atestasse suas origens, o que conferia sua aceitação era o fenótipo étnico-racial. Sem dúvida, os sócios em geral não aceitavam negros no time de futebol, muito menos circulando livremente pelos clubes. Isso foi uma das motivações dos sócios (brancos) para profissionalizar o esporte na década de 1930 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, pois era mais confortável pagar salários e torná-los funcionários.

O 1º tempo do jogo: a genealogia do drible no futebol brasileiro

Na década de 1920, as restrições impostas aos jogadores negros eram maiores nos clubes mais elitistas. Por exemplo, o Fluminense no Rio de Janeiro aceitou o jogador Carlos Alberto com a condição de que a maquiagem o tornasse “branco”; no Rio Grande do Sul, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, fundado em 1903, só aceitou um jogador negro em 1952, com a entrada do consagrado Tesourinha, ex-jogador do Vasco da Gama e do Internacional. Não são raras as notícias referentes às maquiagens que procuravam embranquecer os jogadores negros. Por outro lado, a popularidade de clubes como o Bangu, o Vasco da Gama e o Botafogo, todos do Rio de Janeiro, fortaleceu-se pela inclusão de jogadores negros. Na década de 1920, o Vasco da Gama se notabilizou por ter sido vitorioso num campeonato no qual o seu elenco era assumidamente multiétnico e plurirracial.

O clube do Vasco da Gama foi o primeiro time campeão com jogadores negros. Negrito e Cleuci — dois jogadores negros — marcaram os gols na final do Campeonato de 1923. Para Mário Filho (1964), a conquista vascaína do campeonato da cidade do Rio de Janeiro de 1923 foi um motivo decisivo para o seu desligamento do clube da Liga de Futebol. Existem outros exemplos de restrições de cunho racial. Em 13 de maio de 1914, num jogo entre o Fluminense e o América, Carlos Alberto Fonseca, ex-jogador do América, estava no elenco do tricolor. As restrições aos jogadores negros era regra no Fluminense. Por isso, Carlos Alberto passava um bom tempo fazendo uma maquiagem que servia de disfarce para deixá-lo “branco”; mas, como era de se esperar, no decorrer da partida o suor fazia a maquiagem ceder e ele aparecia como era: negro. O que fez a torcida do América gritar em tom provocativo que o referido jogador era pó de arroz!

Arthur Friedenreich é outro bom exemplo dos disfarces que todos os afrodescendentes empreendiam dentro dos clubes na década de 1910. Friedenreich era paulistano, filho de uma mulher negra brasileira e um estrangeiro branco alemão, jogou em vários clubes de São Paulo, no Flamengo e fez 23 partidas pela seleção brasileira. O seu ritual incluía alisar o cabelo, além de fazer uma maquiagem que contava com muito pó de arroz. Com efeito, todas essas situações, a desfiliação do Vasco, a restrição do Grêmio aos jogadores negros até 1952, a maquiagem dos jogadores Carlos Alberto e Friedenreich, são exemplos de um ideal dos clubes em manter o futebol como “coisa de branco”.

Arthur Friedendreich (1892-1969)
Arthur Friedendreich (1892-1969)

Conforme Mário Filho, as décadas de 1930 e 1940 foram o início da “naturalização” da inclusão de jogadores negros nos clubes brasileiros, embora por acordo tácito, a arbitragem continuasse usando “dois pesos e duas medidas”. O racismo, que antes impedia que negros jogassem e que depois já “aceitava” jogadores negros desde que parecessem brancos, nas duas décadas seguintes se organizou mais em torno da arbitragem. As faltas dos brancos em negros não eram punidas, enquanto as faltas de negros em brancos recebiam sanções severas. Pois bem, aqui surge o momento para dar curso à nossa articulação chave. O que consta na oralitura sobre futebol e relações étnico-raciais, tal como os relatos gravados de Domingos da Guia[3], e se tornou objeto de pesquisa do documentarista moçambicano Victor Lopes, é que a restrição informal imposta aos jogadores negros provocou os usos dos passes do samba dentro de campo. O documentarista retoma e explicita a hipótese que teria começado com Mário Filho.

A defesa aqui impetrada não recusa que o drible existisse fora do Brasil; mas reivindica que a invenção do drible no Brasil inaugura um modo distinto de driblar, o que pode ser entendido como a efetiva “invenção do drible”, e que isso se deve à regra informal dentro de campo que retratava as restrições étnico-raciais da sociedade brasileira. A hipótese é de que o drible rateado, a mudança de ritmos com que a bola é conduzida “presa” e volta a ser colocada em movimento, foi uma invenção de jogadores negros brasileiros. É interessante notar que existem duas perspectivas acerca da etimologia da palavra “drible”. Por um lado, dribble, que em inglês significa babar e por extensão gotejar ou pingar, já aparecia no futebol em 1863. Ao mesmo tempo, existe a palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear. A minha interpretação é que o drible derivado de dibo tem vários sentidos, tanto dançar quanto palavrear. Sendo assim, podemos interpretar que o sentido de discursar em Kikongo remete a dançar com as palavras, rodopiar com as letras ou ter molejo com o que se diz para conduzir quem ouve para onde se deseja.

Num programa feito pelo jornalista Pedro Bial[4], o filme de Victor Lopes foi contestado por vários jornalistas. A tese mais corrente é de que o drible teria nascido com o próprio futebol. Conforme vários relatos, o jogador Charles Miller já driblava na Inglaterra. Mas uma reportagem da imprensa na Copa do Mundo realizada na França em 1938 parece reforçar a hipótese de Victor Lopes. O jornal Le Miroir de Sports disse que os jogadores brasileiros pareciam malabaristas; sobre Leônidas da Silva foram elencadas uma série de expressões como: “diabo preto”, “acrobata”, “dado a fazer piruetas”, capaz de “plantar bananeira”, capaz de “saltar como carpa”. Todo esse repertório se referia aos dribles de Leônidas, também conhecido como Diamante Negro, o inventor da “bicicleta”[5]. Ou seja, ainda que o drible existisse no futebol, um jogador negro brasileiro  surpreendia. Nós acreditamos que a surpresa se deve ao tipo de drible made in Black Brazil.

Com efeito, nossa defesa é que o drible no Brasil feito pelos jogadores negros nasceu com uma singularidade, ainda que o jogador branco brasileiro Charles Miller também driblasse, devido à regra informal que permitia punição aos jogadores negros que cometessem faltas contra os jogadores brancos e, por isso, tornava importante não tocá-los. Domingos da Guia, exímio jogador da seleção brasileira de 1938, foi eleito o melhor zagueiro da competição naquele ano e numa entrevista foi categórico. Conforme arquivos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[6], Domingos disse que tinha medo de jogar futebol porque assistia aos jogadores negros serem agredidos por faltas ostensivas dos brancos sem restrições da arbitragem. O relato de Domingos que segue elucida bastante o cenário do futebol nesse período:

Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes (…) Meu irmão mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé… Tu não é bom de baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo… Eu gingava muito… O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba (Domingos da Guia, vídeo Núcleo/UERJ, 1995).

Domingos da Guia (1912-2000)
Domingos da Guia (1912-2000)

O ex-zagueiro da seleção disse que levou o samba miudinho para dentro de campo, relatando que seus dribles eram a transposição dos passos de sambista para dentro de campo. Em outras palavras, o corpo passou a ser usado integralmente nas jogadas. Mesmo que a palavra tenha origem na língua inglesa, o drible cunhado pelos pés (negros) brasileiros é mais herdeiro do dibo do que do dribble.

Vale a pena recapitular os dois aspectos gerais da genealogia do drible no Brasil. O primeiro é a regra informal, tácita e não registrada que foi a bússola da arbitragem. O segundo aspecto, os usos dos passes do samba e quiçá da capoeira dentro de campo como forma de finta, defesa e, ao mesmo tempo, tática de ataque diante das limitações impostas pelas regras do futebol.

O 2º tempo: o conceito de drible na filosofia afroperspectivista

Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.

A parte final deste trabalho é a transposição do drible como quesito do futebol para um terreno filosófico. Por que razões tomar o conceito de drible emprestado? Cabe explicitar de início o que entendemos por filosofia afroperspectivista. A expressão conceitual — filosofia afroperspectivista — surgiu a partir da dinâmica de pesquisa do Grupo de Estudos de Filosofia Africana que integra o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e sediado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Desde 2010, esse grupo tem se reunido para realizar pesquisas que buscam recensear, conhecer e dar visibilidade às produções filosóficas africanas e afrodiaspóricas no cenário mundial. O termo afroperspectivista funciona de dois modos: 1) Um conceito guarda-chuva que indica o conjunto de trabalhos realizados por filósofas(os) africanas(os) e afrodiaspóricas(os), sobretudo, pesquisas que partem dos universos culturais africanos ou têm esses universos como referências-chave; 2) Um projeto de pesquisa na grande área de conhecimento da filosofia, que opera de modo intercultural e é organizado por princípios que levam em conta a riqueza cultural e a herança dos povos africanos no Brasil e no mundo da afrodiáspora. Nessa segunda definição surge um trabalho de pesquisa que tem operado com algumas questões específicas, entre elas, a do surgimento da filosofia.

Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.
Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.

A orientação deste trabalho está na comparação das restrições sofridas pelos jogadores negros dentro do futebol brasileiro nas primeiras décadas do século XX com a postura da historiografia filosófica “oficial” — dos manuais e compêndios — que desconsidera a produção negro-africana. Nesse sentido, a filosofia afroperspectivista é uma crítica à colonialidade do poder[7], ao epistemicídio[8], ao processo de invisibilidade das vozes que não são ocidentais. O drible é o exercício de encontrar canais para a visibilidade do pensamento filosófico africano, assim como da filosofia afrodiaspórica. Um traço do drible é desvincular a filosofia dos seus modos de preservação e transmissão. Omorogme recomenda: “nós devemos distinguir entre filosofia e os modos de transmiti-la e preservá-la. Reflexões filosóficas podem ser preservadas e transmitidas de diversas maneiras” (Omoregbe, 1998, p. 70). O drible é um modo de encontrar saídas, alternativas para a interdição de espaço. É, nesse caso, a possibilidade de adentrarmos no exercício filosófico, encontrando e legitimando a existência de modos de circulação de ideias filosóficas africanas:

Nós temos fragmentos de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram preservadas e transmitidas por meio de outros registros como mitos, aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente, através da religião […] Além das mitologias, máximas de sabedoria e visões de mundo, o conhecimento (filosófico) também pode ser preservado e reconhecido na organização político-social elaborada por um povo (Omoregbe, 1998, p. 74).

Ao invés de submeter o pensamento filosófico africano, assim como o afrodiaspórico, as mesmas formas da filosofia ocidental, podemos operar com outras plataformas. Dito de outro modo, se antes entendíamos que a filosofia só pode ser reconhecida em textos que obedecem a uma determinada estrutura, diante das estratégias do drible é plausível considerar que a filosofia pode estar registrada em formas diferentes que não se organizam pelas normas de um texto de filosofia ocidental.

Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).
Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).

Pois bem, qual seria o primeiro argumento de uma filósofa ou filósofo ocidental que acredita que a filosofia nasceu na Grécia? Sem dúvida, diria: então por que chamar esse pensamento de filosofia? Aqui outro aspecto do drible. Numa sociedade marcada pela colonialidade, a recusa da filosofia a alguns povos precisa ser revisitada criticamente. Nós estamos de acordo com o filósofo sul-africano Mogobe Ramose: a dúvida sobre a filosofia africana “é, fundamentalmente, um questionamento sobre o estatuto ontológico acerca do estatuto ontológico da humanidade de africanos” (Ramose, 2011, p.8). Para Ramose (2011), a escravização negro-africana foi o resultado de um imperativo prático que passou a satisfazer “logicamente” as necessidades psicológicas e materiais dos colonizadores europeus. Em outros termos, a humanidade negro-africana seria menor, inferior, inclusive (ou, sobretudo?), porque os africanos não seriam capazes de produzir filosofia. Afinal, o filósofo ganense Anthony Kwame Appiah acerta em suas considerações ao dizer que: “‘Filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente” (Appiah, 1997, p. 131).

Na historiografia filosófica hegemônica da antiguidade, os trabalhos africanos são terminantemente desconhecidos ou “esquecidos”. Então, se faz necessário um esforço de ruptura com esse esquecimento. O drible é a problematização da filosofia como uma atividade exclusivamente ocidental, um exercício de justificação da filosofia como atividade pluriversal. Vale explicitar melhor o que denominamos, na esteira do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, de pluriversal. Para Ramose (2011), o conceito de universo coube na ciência moderna, a saber: um paradigma que tinha como referencial o cosmos dotado de um centro e periferias. Em seu ensaio ele diz: “optamos por adotar esta mudança de paradigma e falar de pluriverso, ao invés de universo” (2011, p. 10). Afinal, se a pluriversalidade (Ramose, 2011) rompe com a dicotomia, podemos compreender que o universalismo (europeu) não dá conta de todas as formas de fazer filosofia, tal como nós não podemos reduzir a música enquanto expressão pluriversal a um gênero como o jazz, a música erudita ou o samba. Em suma, o pluriversal é um paradigma que inclui o universal, entendendo-o como um sistema local entre outros. O pluriversal é a reunião das universalidades, dos sistemas locais que se pretendem únicos, mas coabitam e coexistem com outros. É equívoco tomar a filosofia como sinônimo de sua versão ocidental.

O conceito de drible, por sua vez, é uma objeção com caráter propositivo. Primeiro, objeta e recusa a invisibilidade da filosofia afroperspectivista — africana e afrodiaspórica — e propõe o reconhecimento de outras plataformas para formulação e circulação da filosofia. Se, por um lado, o futebol foi um palco de restrições aos jogadores negros no início do século XX, por outro, o mundo acadêmico, o circuito em rede de produção de conhecimento (filosófico) tem permanecido blindado, seja em maior ou menor grau, para o que não é ocidental. A filosofia afroperspectivista tem sido negada pela história oficial da filosofia. O passe do miudinho foi tirado das rodas de samba por Domingos da Guia para evitar a violência consentida que jogadores negros sofriam. Do mesmo modo, a violência do racismo epistêmico pode ser driblada através do reconhecimento das máximas africanas de sabedoria de vida que existem há aproximadamente 3.000, 4.000 anos como enunciados filosóficos que em nada devem às formulações ocidentais.

Como exemplo e conclusão, trazemos um trecho das Máximas de Ptah-Hotep compiladas por Jacq (2004). O filósofo egípcio, ignorado pelos manuais e compêndios de filosofia, viveu por volta de 2200 anos antes da Era Comum e deixou, antes dos primeiros filósofos gregos, um conjunto de máximas filosóficas pouco conhecidas. Ele se ocupava de temas como a liberdade e definia o coração como lugar dos pensamentos e das emoções, como o filósofo Epicuro de Samos (314 a.E.C – 270 a.E.C) se ocupava de reflexões sobre a arte de uma vida feliz e deixou a Carta a Meneceu também chamada de Carta sobre a felicidade. Disse Ptah-Hotep: “As palavras sábias são mais raras do que as pedras preciosas e podem provir até de jovens escravas” (Jacq, 2004, p. 53). Reconhece que a sabedoria, a capacidade de pensar adequadamente é rara; mas, acessível a todas as pessoas. O mesmo foi dito séculos mais tarde no Mênon de Platão, quando Sócrates demonstra que um escravo consegue resolver um teorema. O ligeiro exemplo está longe de solucionar o debate, mas dá inicio a um novo encaminhamento.

Por fim, num futuro próximo, em outros jogos, novas jogadas aparecerão. O esquema tático do jogo permanecerá sendo considerar a pluriversalidade e os dribles que são inerentes à atividade filosófica. Ptah-Hotep e outros filósofos antigos surgirão detidamente comentados.


* Renato Noguera é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade (DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório “Práxis filosófica” de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ.

[1] Conforme Juan José Prat Ferrer, “o conceito de oralitura se contrapõe ao de literatura ao se referir a expressão oral (recitação, dramatização ou atuação) das produções artísticas verbais” (FERRER, 2010, p. 26). As primeiras pessoas a trabalharem com o conceito de oratura ou oralitura foram o linguista ugandense Pio Zirimu, além de uma dupla nascida no Quênia, o escritor keniano Ng?g? Wa Thiong, professor de literatura comparada da Universidade da Califórnia, e a professora de Artes Micere Mugo. “Se a escrita é a ação e efeito de escrever, a oralidade é ação e efeito de falar, se a literatura é a arte e a teoria da composição escrita assim como o conjunto de obras produzidas de acordo com esta arte, a oralitura é a arte e teoria da composição oral assim como o repertório de obras produzidas de acordo com esta arte” (Ferrer, 2010, p. 27).

[2] O IBGE aplica estas duas categorias em suas pesquisas (pretos e pardos), o conceito negro é usado como a soma de pretos e pardos. Para fins de elucidação, a “distinção” entre pretos e pardos é a pigmentação, ambos são afrodescentes. Esta explicação é necessária para que leitoras e leitores entendam que não usamos aqui termos como mestiços e mulatos. Essas categorias (mulatos e mestiços) aparecem em muitas referências bibliográficas sobre o assunto. Porém, a nossa opção teórica e metodológica faz uso de três categorias: pardos (negros menos pigmentados), pretos (negros mais pigmentados) e negros — o somatório de pretos e pardos. Pretos e pardos são as categorias oficiais do Estado. Negros é uma categoria que foi construída politicamente pelos movimentos sociais e pesquisas acadêmicas antirracistas. Por isso, por jogadores negros se deve entender a soma de pretos e pardos — as duas categorias oficiais do Estado brasileiro.

[3] Domingos da Guia nasceu em 19 de novembro de 1912 e faleceu em 18 de maio de 2000. Revelado pelo Bangu — seu nome integra o hino do Clube —, ele jogou em times como Vasco, Nacional (Uruguai), Boca Juniors (Argentina), Flamengo e foi zagueiro da Seleção Brasileira de Futebol. O relato foi recolhido em um trabalho feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disponível em www.ludopedio.com.br/rc/upload/files/052346_1233.pdf / www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.

[4] http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news/v/qual-a-origem-do-drible-no-futebol/1278014/ acessado em 20 de julho de 2012.

[5] Bicicleta no futebol é uma jogada em que o atleta fica de costas para o gol adversário, gira o corpo e chuta a bola por cima da cabeça.

[6] www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.

[7] A colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza e a cultura ocidental, o capitalismo e os seus dispositivos como “civilização” normativa e centro.

[8] Epistemicídio aqui é entendido como injustiça cognitiva que destrói territórios epistêmicos não hegemônicos.

Referências:

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Quatro tecnologias da identidade juvenil feminina

Angela McRobbie*
Tradução: Liv Sovik*
Revisão: Patrícia Farias e Eneida Leal Cunha

O patriarcado ressurgente e o cerceamento de gênero

Um novo contrato sexual mais cultural do que jurídico está disponível para mulheres jovens, sobretudo no Ocidente, que as incentiva a assumirem um lugar e a aproveitarem oportunidades de trabalho, de qualificação, de controle da fertilidade e de renda para participarem da cultura de consumo que, por sua vez, torna-se uma definidora dos modos contemporâneos de cidadania feminina. Uma série de tecnologias é ativada para que esses incentivos surtam efeito. Essas tecnologias incluem diversas práticas sociais e culturais que se caracterizam pela experiência de movimento combinada com a exposição da jovem subjetividade feminina aos holofotes, tornando-a visível de uma forma específica. Por isso, utilizo o termo “luminosidade”, de Deleuze. A ideia de um holofote móvel é adequada porque reflete algo do panóptico de Foucault, mas em lugar da vigilância produz-se um efeito teatral ou cinematográfico. Utilizo o termo “espaços de atenção” para examinar como essas luminosidades operam na vida cotidiana.

A partir daí, pergunto: como dar conta da gama de transformações sociais, culturais e econômicas que trouxeram à tona novas categorias de feminilidade jovem? Considerando que tais mudanças se consolidaram no Reino Unido (e em outros lugares) nos últimos dez ou quinze anos, como devemos interpretar as implicações desse decisivo reposicionamento das jovens mulheres? Tais transformações tendem a ser vistas como positivas. Da esquerda à direita, os aparentes ganhos das jovens mulheres são interpretados como indicações saudáveis de democracia. Mas a perspectiva feminista que apresento aqui está consciente dos perigos que surgem quando um conjunto de valores e ideais feministas parece estar inscrito em uma tentativa mais profunda e deliberada de remodelar noções de feminilidade, empreendida por uma série de forças políticas e culturais,  para que estas se adequem a arranjos sociais e econômicos novos ou emergentes (neo-liberalizantes).

A menina ou jovem mulher emerge em uma gama de espaços sociais e culturais como um sujeito em que vale a pena investir. Dentro da linguagem do governo britânico do New Labour (Novo Trabalhismo), essa menina, que se beneficiou da igualdade de oportunidades hoje disponível, pode ser mobilizada como a própria personificação [embodiment] dos valores da nova meritocracia. Este termo se tornou uma expressão abreviada dos valores individualistas e competitivos promovidos pelo New Labour, sobretudo no âmbito da educação. Hoje, o sucesso da jovem mulher parece lhe prometer uma prosperidade proporcional a seu entusiasmo pelo trabalho e a carreira. A liberdade e o sucesso atribuídos às jovens assumem formas diversas, que atravessam as fronteiras de classe social, etnia e sexualidade, produzindo uma gama de configurações de feminilidade jovem marcadas pelo enredamento de raça e classe. Depois de se postular que seu destino deveria ser o casamento, a maternidade e a participação econômica limitada, a esta menina hoje é atribuída potencialidade econômica. Mulheres jovens de origens étnicas e sociais diferentes, cada vez mais instruídas, atualmente enfrentam a exigência e a responsabilidade de um desempenho econômico ativo. São convidadas a se reconhecerem como sujeitos privilegiados de transformação social; talvez se espere delas até que sintam gratidão pelo que receberam. A mulher jovem negra, branca ou asiática, agradável, viva e capaz, é hoje um sinal atraente da transformação social.

Examino o novo estatuto da nova mulher considerando quatro “espaços de atenção”, cada um deles funcionando para sustentar e revitalizar o que Butler chamou a “matriz heterossexual”, que simultaneamente estabelece e confirma, sutilmente, tanto normas de hierarquia racial, quanto divisões de classe reconfiguradas, as quais assumem formas mais autônomas das dimensão de gênero. Definindo tais “espaços de atenção” como luminosidades, proponho que consistam, primeiro, do complexo de moda e beleza, do qual emerge a mascarada[1] pós-feminista como modalidade distinta de agência feminina. Em segundo lugar, há o espaço luminoso da educação e do emprego, dentro do qual se encontra a figura da working girl. Terceiro, o espaço hipervisível da sexualidade, fertilidade e reprodução, do qual emerge a garota fálica. O quarto é o espaço da globalização e especialmente a produção de feminilidades comerciais no mundo em desenvolvimento. O contrato sexual no palco global é claramente delineado nas edições mundiais de revistas de moda para jovens como Elle, Marie Claire, Grazia e Vogue, de cujas páginas emerge a menina global amigável, nada ameaçadora, linda e maleável, ansiosa por agradar e nem um pouco rancorosa.

Brilhando na luz: a mascarada pós-feminista

Jovens mulheres têm sido alocadas no contexto de uma gama ampla de mudanças sociais, políticas e econômicas, nas quais elas parecem ser protagonistas. (Isso também marca uma mudança: as mulheres figuram agora no discurso governamental tanto pelas suas capacidades produtivas quanto reprodutivas.) Elas são, assim, um sujeito intensamente monitorado pelas práticas biopolíticas pós-feministas da nova governamentabilidade, atentas às questões de gênero. Como entender essa atenção? Deleuze, quando escreveu sobre o que Foucault quis dizer com “visibilidades”, sugeriu que estas não são “formas ou objetos, nem mesmo formas que aparecem sob a luz, mas formas de luminosidade criadas pela própria luz e que permitem que a coisa ou objeto exista somente como um lampejo, cintilação ou reflexo” (Deleuze, 1986, p. 52). Essa luminosidade captura como as jovens mulheres estão se tornando visíveis hoje. O poder que elas parecem possuir coletivamente “é criado pela própria luz”. Essas luminosidades insinuam uma igualdade pós-feminista ao mesmo tempo em que definem e circunscrevem as condições desse status. São nuvens de luz que dão às jovens mulheres uma presença resplandescente, delimitam o terreno do que é perfeitamente feminino e, por isso mesmo, tranquilizador. Essa luminosidade funciona baseada na ilusão de movimento e de protagonismo; assim parece que as jovens mulheres estão se destacando por escolha e porque todos os impedimentos foram retirados. A luz identifica e traça esses movimentos enquanto os dota de um efeito cinematográfico espetacular.

Judith Butler já sugeriu que o poder patriarcal (ou o Simbólico) foi confrontado em anos recentes pelo feminismo enquanto antagonismo político (Butler, 2000).  A análise de Butler pode ser usada para afirmar que o confronto feminista forçou alguns ajustes no Simbólico. A questão é que o trabalho e a capacidade de ganho chegam a dominar, ao invés de estarem subordinados à identidade das mulheres, e isso reverberou dentro do campo do poder. O Simbólico enfrenta o problema de manter a dominância do falocentrismo quando a lógica do capitalismo global é a de desamarrar as mulheres de seus papéis antes prescritos e lhes dar diferentes graus de independência econômica.

O Simbólico, portanto, enfrenta uma dupla ameaça: primeiro, a de um feminismo ultrapassado e por isso meramente espectral; e, segundo, a do reposicionamente agressivo de mulheres através de processos econômicos de individualização feminina. As luminosidades da feminilidade proporcionam espaços para o renovado exercício de autoridade. O Simbólico repassa suas demandas para o domínio comercial (beleza, moda, revistas, cultura do corpo etc.), que se torna a fonte de autoridade e julgamento para as jovens mulheres. Já que o domínio comercial é hoje tão dominante e como as instituições sociais têm uma esfera de influência reduzida, podemos detectar uma intensificação das suas demandas disciplinadoras e também perceber novas dinâmicas de agressão, violência e autopunição. Proponho que uma estratégia-chave de contenção, de parte do Simbólico, é a de delegar boa parte de seu poder ao complexo de moda e beleza onde, como “grande luminosidade”, uma mascarada pós-feminista emerge como novo dominante cultural. A mascarada, conforme foi definida primeiro por Riviere em 1929, à qual Butler recorre em Gender Trouble (1999), reaparece como meio altamente autoconsciente de incentivar as jovens mulheres a colaborarem com a re-estabilização de normas de gênero, de tal forma a desfazer os ganhos do feminismo e a se desassociarem dessa identidade política agora desautorizada. O famoso ensaio de 1929 de Riviere é um texto ao qual feministas voltam com frequência. Como psicanalista, Riviere se interessa em como “mulheres que desejam a masculinidade podem vestir uma máscara de feminilidade para evitar a ansiedade e a retribuição temida dos homens” (Riviere apud Butler, 1999, p. 65). Riviere entende que a feminilidade e a máscara são indistinguíveis, e que não há uma mulher naturalmente feminina à espreita, atrás da máscara.

Quero apresentar a mascarada pós-feminista como reordenamento da matriz heterossexual para assegurar, mais uma vez, a existência da lei patriarcal e a hegemonia masculina. Existe um deslizamento útil no relato de Riviere entre a atualidade da mascarada como fenômeno reconhecível, que ela percebe em suas pacientes mulheres e seus encontros, e as imagens da feminilidade encontradas no âmbito da cultura. Essa interseção entre os estilos de feminilidade observados por Riviere na vida cotidiana e aqueles retratados na cultura de massa feminina me permite aqui propor que a mascarada pós-feminista é um modo de inscrição feminina. Como refrão de feminilidade, atravessa a superfície do corpo feminino enquanto dispositivo interpelativo, trabalha e é visibilíssima no âmbito comercial como feminilidade familiar (até saudosista ou “retrô”) e alegre. Recentemente este “refrão” foi reinstituído ironicamente no repertório da feminilidade. Ele sinaliza que a hiperfeminilidade da mascarada, que parece devolver as mulheres aos termos das hierarquias tradicionais de gênero, ao fazer com que ela vista sapatos salto agulha e saias tubo, por exemplo, não significa de fato que ela está presa (como as feministas teriam entendido, no passado), já que hoje isto é questão de escolha, e não uma imposição.

Esta nova mascarada se refere sempre a seus artifícios, ela é adotada pelas próprias mulheres como uma atitude consciente, um statement: as mulheres fantasiadas estão afirmando que escolheram livremente um look. A mascarada pós-feminista não teme a desforra masculina. Ao invés disso, é a estrutura de reprimenda do sistema de moda e beleza que funciona como regime de autoridade. (Daí o aparente desprezo da aprovação masculina, sobretudo se o traje e look forem amplamente admirados no meio da moda. Este é um tema recorrente na série de televisão Sex and the City, por exemplo.) Essa mascarada resgata as mulheres da ameaça dessas configurações ao reinstituir triunfalmente o espetáculo da feminilidade excessiva (baseada na condição de assalariada independente), enquanto reforça a masculinidade hegemônica, ao endossar a feminilidade pública que parece minar, ou pelo menos estorvar, o novo poder que as mulheres acumulam com base em sua capacidade econômica.

Existem muitas variantes da mascarada pós-feminista, mas essencialmente ela consiste no reordenamento da feminilidade, para que os estilos antigos (regras sobre chapéus, bolsas, sapatos etc.), que sinalizavam a submissão a uma autoridade invisível ou a um conjunto opaco de instruções, sejam reinstituídos. (Por exemplo, a minissaia de Bridget Jones, seu hábito de flertar no local de trabalho e suas autorreprimendas.)

A mascarada pós-feminista resgata a mocinha como um retorno ao passado e ela adota esse estilo (assumindo, por exemplo, uma cara de “tola e sem noção” – Riviere, ibid. p. 29) para ajudá-la a navegar no terreno da masculinidade hegemônica sem colocar em perigo sua identidade sexual que, já que está inserida legitimamente no mundo institucional do trabalho do qual foi excluída ou teve acesso restrito, pode se tornar um locus de vulnerabilidade. Ou simplesmente ela teme ser considerada agressivamente antifeminina ao se destacar como mulher poderosa, e passa a adotar o ar de distração, meio afobada, de uma menina supercarregada de bolsas, sapatos, pulseiras e outros itens decorativos que precisam de atenção constante. O chapéu bobinho, a saia curta demais, os saltos altíssimos são todas formas de enfatizar, como o faziam as comédias hollywoodianas, a vulnerabilidade, a fragilidade, a incerteza e a ansiedade da mulher acerca da possibilidade de sua condição lhe custar o desejo masculino.

Ambas, Riviere e Butler, se referem à agressão sublimada dirigida à masculinidade e à dominação masculina na forma da mascarada. Riviere utiliza palavras como triunfo, supremacia e hostilidade para descrever a cólera feminina que escora a fachada de excesso de adornos femininos; aponta a fúria das mulheres profissionais que percebem sua própria subjugação ao comportamento de seus pares homens. Tudo isso é transformado de forma grotesca em uma máscara de maquiagem e um look estilizadíssimo.

Essa estratégia reaparece hoje em circunstâncias muito variadas. As mulheres habitam rotineiramente as esferas masculinas e competem com homens cotidianamente. Assumem seus lugares ao lado de homens graças a políticas antidiscriminatórias e mais recentemente devido a sistemas de recompensa meritocráticos propostos pelo governo New Labour. A mulher fantasiada deseja ter uma posição como “sujeito na linguagem”, isto é, participar na vida pública, em lugar de existir simplesmente como “mulher como signo” (Butler, 1999).

É precisamente porque as mulheres hoje são capazes de funcionar como sujeitos na linguagem (isto é, elas participam da vida do trabalho) que a nova mascarada existe, para gerenciar o campo de antagonismos sexuais e reconstituir a mulher como signo. A mascarada funciona para tranquilizar as estruturas masculinas do poder, ao neutralizar a presença e as ações agressivas e competitivas de mulheres quando ocupam posições de autoridade. Ela re-estabiliza as relações de gênero e a matriz heterossexual, conforme definida por Butler, ao interpelar as mulheres reiterada e ritualisticamente, e trazê-las para dentro dos termos de uma feminilidade sagaz, autorreflexiva e altamente estilizada. A mascarada pós-feminista age em nome do Simbólico, prevenindo eventuais distúrbios apresentados pelo novo regime de gênero. Ela opera em um movimento duplo – sua estrutura voluntarista oculta o fato de que o patriarcado ainda é vigente, enquanto as demandas do sistema de beleza e moda garantem que as mulheres ainda sejam sujeitos medrosos, impulsionados pela necessidade de “perfeição completa” (Riviere, 1986 p. 42).

A educação e o emprego como locais de capacidade: a visibilidade da working girl instruída

As luminosidades da mascarada pós-feminista e as nuvens de luz que recaem na figura da mulher jovem pelo sistema de moda e beleza se equiparam, quando não são superadas (e frequentemente atravessadas), às visibilidades que produzem a jovem mulher instruída ou trabalhadora. Grandes investimentos governamentais são feitos para preparar a jovem mulher para o trabalho e esses estímulos instam a jovem mulher ao protagonismo através de uma ampla gama de talentos e habilidades (Rose, 1999).

A mulher jovem passa a ser entendida como portadora em potencial de qualificações; ela é um sujeito ativo das aspirações do sistema educacional e incorpora o sucesso dos novos valores que o governo New Labour tem procurado instituir nas escolas. Esse reposicionamento é um fator decisivo no novo contrato sexual. A aquisição (ou não) de qualificações começa a funcionar como marca da nova divisão de gênero. As mulheres jovens são ranqueadas de acordo com sua capacidade de ganhar as qualificações, que é o que lhes dará uma identidade como sujeitos femininos capazes. (Neste sentido, podem, por exemplo, ser obcecadas por obterem as melhores notas.)

A jovem mulher se apresenta como alguém capaz de transcender barreiras de sexo, raça e classe. Destaca-se como jovem negra ou asiática exemplar, com base em seu entusiasmo pelo aprendizado, gosto pelo trabalho duro e desejo de perseguir recompensa econômica. As mulheres jovens que não realizam seu potencial ou não têm a motivação e ambição de se aprimorarem em grau suficiente são condenadas mais enfaticamente do que teriam sido no passado, por sua falta de status e outras falhas.

No entanto, existe um deslocamento na transição para o trabalho, no sentido de que o movimento de avanço dessas jovens se defronta com a ideia da harmonização ou compromisso social. E aí o trabalho dos “espaços de atenção” é o de administrar processos de negociação e compromisso. Utilizo o termo “compromisso social” para dar conta da forma com que o novo contrato social funciona no local de trabalho, estabelecendo limites nos padrões de participação e igualdade de gênero (as formas de cerceamento) (Crompton, 1982).

Rosemary Crompton focaliza em sua análise as mulheres que também são mães e sua volta ao mercado de trabalho, depois do nascimento de seus filhos. A pertinência de seu trabalho para a discussão que desenvolvo se refere ao abandono implícito da crítica à hegemonia masculina, em favor do compromisso. Jovens mães trabalhadoras, ao que parece, recuam de qualquer ideia de um debate sobre a desigualdade em casa e procuram formas, com a ajuda do governo, de administrar sua dupla responsabilidade.

Isso se conecta à questão anterior, a da mascarada pós-feminista, como sendo uma estratégia de retrocesso, de reconfiguração da feminilidade normativa, neste caso incorporando a maternidade de tal maneira a não perturbar o masculino. Nesse compromisso social, existe mais uma vez um processo de re-estabilização de gênero. […] Tal compromisso requer que as mulheres desempenhem um duplo papel, que atuem no local de trabalho e também como responsáveis principais pelos filhos e a vida doméstica (Crompton, 2002). Em lugar de questionar a expectativa tradicional de que as mulheres assumam a responsabilidade principal pela casa, há um movimento de abandono da crítica ao patriarcado e a tentativa heróica de “fazer tudo”, enquanto se espera apoio do governo nessa tarefa hercúlea. A transição para esse modo feminino de atividade se realiza através de uma série de luminosidades (a mãe glamourosa que trabalha, a mãe sexy, yummy mummy”, a mulher que transita nos altos escalões e ainda é mãe etc.), imagens e textos que são acompanhados por formas de ficção populares, inclusive best-sellers como Não sei como ela consegue, de Allison Pearson (2004).

O governo do Reino Unido assume o lugar da feminista, desloca seu vocabulário e intervém para ajudar as mães trabalhadoras que avançam e evitar a possibilidade de uma crítica, por parte das mulheres, de sua dupla responsabilidade e, portanto, de uma possível crise na matriz heterossexual. O governo, ao apoiar as mulheres em seu duplo papel, atua para proteger a hegemonia masculina, enquanto a cultura popular massiva tenta reglamourizar as esposas e mães trabalhadoras através de estilos pós-feministas de autoajuda, hipersexualidade e capacidade. Esse aspecto do novo contrato sexual requer compromisso no trabalho e em casa. Apesar da retórica do heroísmo que combina a responsabilidade primária pelos filhos com a carreira profissional, na prática, a ênfase, por parte de vários órgãos governamentais cujo público alvo são as jovens mulheres trabalhadoras, está na diminuição da escala da ambição em favor de um discurso sobre a administração das dificuldades com o advento da maternidade. À luz dessas novas responsabilidades, a mulher jovem é aconselhada a solicitar flexibilidade de seu empregador. O governo britânico não está estimulando as mulheres a voltarem para casa depois de ter filhos. O novo contrato sexual oferece apoio e conselhos para que a volta ao emprego (muitas vezes em tempo parcial) seja facilitada na forma de um equilíbrio trabalho/vida. […] Esse equilíbrio, para as mulheres, tem sustentação hoje na forma de melhores salvaguardas legais para trabalhadores de tempo parcial e direitos à aposentadoria. Ao mesmo tempo, o Estado possibilita, através dessas disposições, que o marido continue na sua carreira sem reclamações femininas […].

Garotas fálicas: sexo recreativo, sexo reprodutivo

A mascarada pós-feminista e a figura da jovem mulher trabalhadora são dois dos meios pelos quais o novo contrato sexual é disponibilizado às jovens mulheres. Aqui introduzo uma terceira figura, a garota fálica, e na seção final, a garotal global. Butler imagina a “lésbica fálica” como figura política que extrai algo do todo-poderoso Simbólico. Em uma entrevista, perguntam a Butler se as mulheres heterossexuais também poderiam assumir o falo dessa maneira, e ela responde que talvez seja importante fazê-lo (Butler et al, 1996).  Mas agora, mais recentemente, e no terreno da cultura ocidental pós-feminista, o Simbólico reage rapidamente ao antagonismo que não só o feminismo, mas também o falo lésbico de Butler e a teoria queer em si apresentam, ao fornecer previamente às mulheres jovens a capacidade de se tornarem portadoras de falos, em uma espécie de mimese autorizada de sua contraparte masculina. Isso impede qualquer rearranjo radical das hierarquias de gênero apesar ou até por causa dessa “pretensa” igualdade, que permite espetáculos de agressão e comportamentos antifemininos por parte das mulheres jovens, aparentemente sem levar às punições de praxe.

A garota fálica dá a impressão de haver conquistado a igualdade com os homens, ao se assemelhar a seus parceiros. Mas na adoção do falo não há crítica à hegemonia masculina. Essa menina é uma jovem mulher para quem as liberdades associadas aos prazeres sexuais masculinos não estão só disponíveis, são estimulados e festejados. A ela se solicita estar de acordo com a definição do sexo como um prazer alegre, uma atividade recreativa, como hedonismo, esporte, recompensa e status. A luminosidade recai sobre a menina que adota os hábitos associados à masculinidade, inclusive beber muito, falar palavrão, fumar, se envolver em brigas, participar de sexo casual, ser detida pela polícia, consumir pornografia e ir a boates com shows eróticos etc., mas sem abrir mão de ser desejável para os homens; de fato, essa aparente masculinidade potencializa o desejo por ela na economia visual da heterossexualidade […].

O falicismo feminino é uma alternativa mais assertiva do que a da mascarada, mas faz o mesmo serviço de re-estabilizar as relações de gênero. Temerosa da ameaça à heterossexualidade dominante, constituída pelo enfraquecimento dos vínculos de dependência através do acesso ao trabalho e ao emprego, a garota fálica que parece quebrar tabus emerge também como um desafio não só à feminista mas também à lésbica repudiadas. Capaz de assumir alguns dos instrumentos da masculinidade, a menina embriagada, que fala palavrão, olha lubricamente e não tem aversão a fazer sexo com outras meninas, demonstra que dentro do domínio da autoridade Simbólica, tudo parece possível. A cultura de consumo, a imprensa marrom, o setor de revistas de meninas e mulheres, as revistas masculinas e também a televisão popularesca, todos estimulam as jovens mulheres, pretensamente em nome da igualdade sexual, a reverterem os antigos costumes e imitarem os estilos de sexualidade assertivos e hedonistas dos homens jovens. A presunção do falicismo também dá vazão a novas dimensões do pânico moral e excitação voyeurista na forma do espetáculo noticioso e do entretenimento.

Sob essa pretensa igualdade promovida pela cultura de consumo, esse falicismo feminino é de fato uma provocação ao feminismo, um gesto triunfante de parte do patriarcado ressurgente. A violência que sustenta o reconhecimento da liberdade da garota fálica demanda uma análise mais detalhada. Ao emergir e se mostrar “sempre disposta”, a garota fálica como luminosidade permite certos modos de retrocesso do que se tornou senso comum feminista, e que se torna então objeto de revisão. Assim, seu comportamento antifeminino permite a volta aos debates sobre a violência sexual e o estupro, quando se tratar, por exemplo, de uma garota que estava tão bêbada que não tem ideia do que realmente aconteceu, ou de outra que concordou em ter sexo com vários homens, mas não esperava ser tratada com violência ou brutalidade. Ao endossar normas de conduta masculinas no campo da sexualidade, ela remove qualquer obrigação, por parte dos homens, de refletir sobre seu próprio comportamento e sobre o tratamento dado às mulheres. A garota fálica por exemplo, a modelo glamourosa que está envelhecendo –, deve aguentar a hostilidade masculina, agora que já não é tão desejável. A hostilidade do homem jovem para com as mulheres reaparece sem reprovação, sobretudo na comédia e na cultura de massa.

A menina global

As figurações da mascarada pós-feminista e da garota fálica também desenham, por meios sutis, processos de exclusão e recolonização. Existem padrões de cerceamento racializados, embutidos nesses espaços reconfigurados de feminilidade. A primeira faz isso ao enaltecer as virtudes da fraqueza feminina disfarçada e a fragilidade. Ao se voltar para a tradição dessa maneira, adotando um estilo de feminilidade que convida mais uma vez a demonstrações de cavalheirismo, galanteios, poder e controle masculinos, revivifica normas de heterossexualidade branca das quais mulheres e homens negros foram histórica e violentamente excluídos.

A mascarada pós-feminista como estratégia cultural para re-estabilizar as relações de gênero dentro da hegemonia heterossexual produz uma nova interface entre a vida de trabalho e a sexualidade que é implicitamente branca, e que presume normas de parentesco associadas com a família nuclear ocidental. Em acordo com o novo ethos de assimilação e integração, ao invés do multiculturalismo aparentemente fracassado dos anos 1980 e 1990, as jovens mulheres negras são convidadas, como leitoras de revistas como Grazia, ou espectadoras de programas de televisão como Friends, ou filmes como Diário de Bridget Jones, a emular esse modelo, a se inscrever nesses roteiros, sem modificação e sem a opção de questionar ou contestá-los.

A menina global emerge, sobretudo, nas imagens de empresas de moda como a Benetton, e também nas diversas edições de revistas como Elle, Marie Claire, Vogue e Grazia, adaptadas para cada país, como emblemáticas do poder e sucesso do multiculturalismo empresarial. Este encara as jovens mulheres, sobretudo as de países do Terceiro Mundo, como entusiastas da participação e do pertencimento a uma espécie de feminilidade global. A modernidade da menina global manifesta-se em suas novas liberdades, capacidade de ganho, a forma com que desfruta e está imersa na cultura da beleza e de massa. Ela é graciosa e bonita e não porta ironicamente sua feminilidade através de seus acessórios, como a jovem que se integra à mascarada pós-feminista ocidental, nem apresenta a mesma agressão e bravata sexual que as garotas fálicas. As meninas globais são a construção fantasiosa de uma masculinidade ocidental ameaçada. Combinam o natural e o autêntico com um gosto – expressamente feminino – por se enfeitar, a sedução lúdica com a inocência, de forma a sugerir uma sexualidade que é juvenil, latente e à espera de ser liberada.

Não há nada de novo nessa fantasia racial, mas essas jovens hoje são vistas como mais ativas do que passivas, e isso marca um reposicionamento sutil, uma reelaboração da hierarquia racial dentro do campo da feminilidade normativa. A ideia de um contrato sexual como convergência de atenções, atravessando uma gama de atividades corporais e permitindo modos de avanço sob a condição de que o resíduo da política sexual se esvaneça, é também uma formulação ocidental dirigida àquelas que se presumem terem direito à plena cidadania e o direito de permanecerem no país de residência. Nesse contrato, a atividade econômica está em foco e a política é empurrada para as margens, para favorecer uma cidadania do consumo.

As mulheres excluídas do modelo de liberdade baseado na educação estatal, seguido da participação em cursos de formação e no mercado de trabalho, são sujeitas a modalidades diferentes de preocupação, que levam ao desenvolvimento de tecnologias mais convencionais de vigilância. O espaço de atenção que dá vazão à nova figura da menina global espera que ela “compre” estilos ocidentais de feminilidade espetacular como forma de potencializar sua posição na divisão internacional de trabalho e mostrar sua vontade de ter sucesso, que é acrítica e “sem rancor”. Poderíamos dizer que a jovem solteira originária de uma parte empobrecida do mundo tem se tornado, nos últimos vinte anos, um sujeito redesenhado através do que Spivak chama de “planejamento de gênero”, como tendo capacidade de trabalho maior ainda do que no passado. Por isso, presta-se uma atenção crescente a sua educação e treinamento que, Spivak nota também, hoje envolve diversas versões da pedagogia neoliberal de influência americana baseada na ideia do empreendedorismo […].

Concluindo, mapeei aqui o processo pelo qual o feminismo foi dissolvido através de altos níveis de intervenção e atenção dirigidas à mulher jovem, cujo significado em termos de capacidade de ganho não pode ser desprezado. Um novo contrato sexual é oferecido a essas jovens, que estimula sua atuação na educação e no emprego de forma a assegurar altas taxas de participação no mercado de trabalho, na cultura de consumo e na esfera da sexualidade. Nesse processo de emergência das jovens mulheres, no entanto, oculta-se a inquietação do governo com um eventual protagonismo das mulheres na esfera política. Isso se compensa com a ideia de cidadania do consumo.

Essas diversas luminosidades têm uma espécie de efeito teatral, comunicam a impressão de que as jovens mulheres hoje podem emergir desimpedidas e fazer escolhas sobre como querem viver suas vidas; fazem parecer que as jovens mulheres têm de fato poder. As culturas de consumo que sustentam o vocabulário da “escolha” permitem o eclipse e a fragmentação do campo social. Esse efeito teatral festeja o apetite da jovem pelo trabalho e estimula o consumo espetacular, justificado pela ideia de que ela trabalhou para merecer essas recompensas. Há uma re-estabilização de papéis de gênero nessa orquestração de luminosidades. As jovens mulheres podem se destacar, mas sob a condição de que a política feminista se esvaneça e de que a ilusão de movimento e sucesso mascare a reinstalação sutil – e nem tão sutil – de hierarquias sexuais.


* Texto original: “Four Technologies of Young Womanhood”. Palestra proferida em 31 de outubro de 2006, no Zentrum fur Interdisziplinare Frauen und Geschlecterforschung em Berlim.

* Angela McRobbie é professora de Comunicação em Goldsmiths College – University of London e autora de obras sobre feminismo, moda e arte. Entre seus livros se destacam Postmodernism and Popular Culture (1994), In the Culture Society: Art, Fashion and Popular Music (1999) e The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change (2009).

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e autora de Aqui ninguém é branco (Aeroplano, 2009), sobre representações de relações raciais e de gênero no Brasil.

[1] O termo “mascarade” que traduzi por “mascarada” significa, no contexto da teoria feminista, uma forma de encenação.

Referências:

DELEUZE, Gilles.  Foucault.  Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.

BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: Kinship between Life and Death. New York: Columbia University Press, 2000.

BUTLER, Judith; OSBORNE, Peter; SEGAL, Lynne. “Gender as Performance: An Interview with Judith Butler”. In: Peter OSBORNE (org.). A Critical Sense: Interviews with Intellectuals. New York: Routledge, 1996, p. 108-125.

BUTLER, Judith.  Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (2a ed.). New York: Routledge, 1999.

CROMPTON, Rosemary. “Employment, Flexible Working, and the Family”. British Journal of Sociology. v. 53, n. 4, 2002, p. 537-558.

PEARSON, Allison. Não sei como ela consegue. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

RIVIERE, Joan. “Womanliness as a Masquerade”. In: Victor BURGIN, James DONALD e Cora KAPLAN (orgs.). Formations of Fantasy. London: Methuen, 1986, p. 35-44.  Disponível em português em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/307/30716902.pdf. Acessado em 9/12/2012.

ROSE, Nikolas. “Inventiveness in Politics”. Economy and Society, v. 28, n. 3, p. 467-493, 1999.

Cinema x Futuro – uma tomada de posição | de Rita Lima

Cinema x Futuro tiveram sempre uma relação recorrente. Seja pela sua ligação mais concreta com a tecnologia (que propõe novas formas de fazer, estar, ligar etc.), seja pelo apelo de projetar o que ainda não sabemos (na nossa mente e também na tela), porque não entramos ainda na sala escura e desvendamos afinal o que está por acontecer. É sabido que Lumière, um dos inventores do cinematógrafo e também criador de algumas das primeiras imagens do que chamamos cinema (1895), não via futuro para sua invenção senão como curiosidade científica. A criação de uma linguagem sedutora e instigante, construída no tempo, desmentiu seu inventor. A imagem do futuro talvez esteja ligada mais à capacidade de invenção continuada, a um vir a ser, do que a um momento de parada, onde coisas e nomes adquirem por um tempo solidez. A imagem do futuro é movimento, bem como a do cinema.

É certo que o cinema vem sendo reconhecido, por mais de cem anos, de forma coletiva, como aquela experiência de entrar na sala escura e passar um par de horas em frente a uma grande tela onde imagens e sons vão aos poucos nos contando uma história. Esse sólido dispositivo do cinema está mais uma vez se transformando, pela relação com as novas tecnologias computadorizadas de produção da imagem. E mais ainda pela manipulação desse dispositivo através de softwares que vêm tornando possível deslocar imagens e sons para fora do ambiente tradicional de recepção, reconfigurando as estratégias de linguagem na produção de sentido, criando assim novos cenários para a experiência do cinema.

Essa relação entre tecnologia x estética tem sido central para fomentar padrões de mudança na forma como o cinema é experimentado, ou ao menos para entender historicamente como essa experiência é reconfigurada pelos cinéfilos, pela crítica e mesmo pela indústria do entretenimento ou do mundo da arte. A relação de visibilidade/ invisibilidade entre técnica e estética tem sido central para criar movimentos poderosos e, quase sempre em conflito, como aqueles entre o chamado cinema narrativo ilusionista e as vanguardas estéticas. A produção do novo sempre se alimenta dessa disjunção. Uma disjunção que produz movimento, um movimento no tempo que faz valer formas que duram, que se desfazem, que se misturam, e vão construindo uma tapeçaria de possibilidades que exigem, por sua vez, uma subjetividade cada vez mais complexa para dar sentido às escolhas em um cenário com tantas camadas de informações.

Talvez possamos pensar que essas estratégias entre tecnologia x estética se repetem de forma mais ou menos dissimulada, e a experiência do novo se revele não tão nova assim. Mesmo que a repetição revele padrões recorrentes na relação entre tecnologia e estética, a experiência do cinema nos leva a responder aqui e agora a questões referentes às formas atuais de imersão, à linguagem, às definições e experimentações, ao ambiente etc. São esses cenários da experiência do cinema hoje que queremos discutir aqui, sem a pretensão de abranger um campo total, ou mesmo um panorama completo.

Muitas experimentações e investigações vão ficar de fora, mas algumas delas vêm reafirmar esse cenário múltiplo, experimental e que dialoga de forma mais ou menos evidente com a própria história do cinema e das artes. E dessa forma nos posicionamos aqui nessa onda de investigação que quer saber: para aonde vai o cinema?

Começamos esse número com algumas reflexões de Sandra Kogut, algumas notas, sobre como ela entende essa projeção do cinema no futuro. Achei interessante vincular a essa discussão temática sobre cinema e futuro o ponto de vista de uma artista que tem trânsito nacional e internacional em diferentes campos da produção audiovisual (cinema, TV, videoarte, instalações etc.) e que escreve em primeira pessoa as suas impressões.

Seguindo o texto de Kogut temos o de Arlindo Machado, que nos coloca no contexto da discussão sobre o dispositivo do cinema e questiona as escolhas estéticas da relação entre arte e cinema na criação desses mesmos dispositivos. O centro da discussão de Machado está na relação atual entre arte e cinema e mostra como essa discussão passa pela compreensão e criação de novos dispositivos de experimentação estética, bem como pelo cruzamento de definições e conceitos entre esses campos.

Roberto Moreira registra as experiências pioneiras do chamado “cinema expandido” nos situando nas experimentações de projeções múltiplas, desde a década de 1960 até a atualidade. Moreira apresenta um panorama das questões estéticas e tecnológicas mais recorrentes do momento histórico em que o cinema começou a expandir seus formatos, relação com a audiência, com os lugares de recepção e também com o mundo da arte, acompanhando esse movimento até os atuais cinema de museu, de artista etc. A discussão sobre projeções e formatos de exibição é significativa para estabelecer novas formas de visibilidade e padrões de interação com as imagens projetadas.

Brigitta Zics faz uma reflexão sobre formas de cognição e leitura do olhar a partir de experimentações com um novo dispositivo, chamado Cúpula, idealizado e projetado por ela e uma equipe multidisciplinar de engenheiros, filósofos e técnicos em computação da Universidade de Newcastle, na Inglaterra. Na Cúpula os usuários podem interagir com as imagens fazendo escolhas a partir da forma como seu olhar e sistema de respostas são afetados, apostando em possibilidades de interação menos automatizadas e que dialogam com nosso sistema mental de forma mais espontânea, afetiva e inteligente. Esses experimentos sugerem possibilidades de imersão bem mais expandidas, apontando para a ampliação dos ambientes e formas de recepção de imagens e sons, no mesmo caminho das pesquisas de Hugo Munstenberg com cinema e psicologia no início do século passado, quando publica o livro The Photoplay (1916), que dá conta da forma como o cinema acessa nosso psiquismo a partir do envolvimento de aspectos da sensação, da imaginação e da memória para a leitura e elaboração dos significados das narrativas fílmicas. A pesquisa de Zics se insere nessa linhagem investigativa, trabalhando agora com novos elementos que causam impacto na experiência com as formas expandidas do cinema.

Marcus Bastos introduz de forma diferente da tradicional a questão da narratividade a partir de um dispositivo estético e tecnológico envolvendo espaço público, interação com o público passante e o uso de celulares e internet. O artigo de Bastos constrói uma lógica de interrogação entre os conceitos de acontecimento, agenciamento e narrativa, fazendo um elogio à arte da performance do subtlemob como uma nova forma audiovisual que rompe o limiar entre ficção e realidade.

Ainda no terreno da performance e do audiovisual, Ivani Santana introduz a dança nesse campo expandido do cinema e do espetáculo. Fazendo um histórico dos registros da dança na sua relação com o audiovisual, com a tecnologia e com as novas estratégias estéticas computadorizadas, Santana apresenta sua pesquisa do corpo expandido na dança telemática. E dessa forma propõe uma dramaturgia telemática, interligando espaços e corpos em propostas estéticas que transcendem o tempo e o espaço linear. A dança telemática está fortemente apoiada em softwares que redistribuem imagens e sons, e reconectam bancos de dados atualizados em tempo real para a criação de uma proposta estética que, do mesmo modo que o cinema, trabalha com montagem de imagens e sons em movimento na produção de sentido.

Patrícia Moran discute os deslocamentos de estratégias discursivas envolvendo diversos gêneros do audiovisual contemporâneo, como documentário, games e animação, a partir do trabalho realizado por Gabriel Mascaro sobre Paulo Bruscky. Esses deslocamentos passam também pelos pontos de vista do diretor e do protagonista, ampliando os conceitos de sujeito e objeto nas narrativas fílmicas. Na primeira parte do artigo Moran faz ainda uma revisão crítica de alguns aspectos das teorias do cinema, apontando a necessidade de repensarmos nossa classificação conceitual dos pertencimentos e oposições das formas do cinema nesse novo cenário interdisciplinar das poéticas tecnológicas.

Fernando Rabello encerra nosso número com uma discussão sobre formas de composição e montagem, envolvendo a produção do curta-metragem Bloqueio, realizado por ele. As passagens entre imagens de vídeo, cinema e animação envolvem uma discussão sobre montagem fílmica, que acompanha as mais recentes discussões sobre estética fílmica e de banco de dados na composição narrativa.

Como já sinalizei antes, esse número temático sobre cinema e futuro não tem a pretensão de abarcar todas as discussões e experimentações nesse campo, nem mesmo produzir um panorama do campo como um todo. Nossa proposta aqui foi reunir alguns pontos de vista que levantassem questões sobre o tema e nos ajudassem a prosseguir na investigação sobre as novas formas de cinema. Feito isso, agradeço a todos os autores que nos brindaram com seus textos e reflexões e também, muito especialmente, a Heloísa Buarque, que aceitou e incentivou a sugestão desse tema sob minha curadoria e a Beatriz Rezende, que acolheu a proposta para publicação na Z Cultural.


Rita Lima é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no Curso de Cinema e Audiovisual, com o Projeto de Pesquisa Cinema Expandido, experimentação e novas formas de cinema: um diálogo com o Recôncavo Baiano. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde desenvolveu trabalho sobre a autoria na produção independente de vídeo no Brasil na década de 1980, e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com trabalho sobre a artista multimídia Sandra Kogut e reflexão sobre o lugar do artista no mundo atual. Tem experiência acadêmica nas áreas de Artes e Tecnologia, com ênfase em Cinema, novas tecnologias digitais. É também pesquisadora do PACC/UFRJ no grupo de pesquisa Polo Digital.

Cinema / futuro / passado | de Sandra Kogut

Berlim, novembro de 2011.

Estou em Berlim, passando alguns meses graças a uma bolsa muito generosa, que me permite fazer o que quiser (no meu caso escrever um roteiro e experimentar com imagens, sons, ideias, tudo sem compromisso) numa cidade tão rica, complexa, fascinante. Um luxo. Recebo esse convite para escrever sobre o Futuro e o Cinema. Engraçado. De uns tempos pra cá só ouço falar de cinema como algo do passado, em vias de extinção, assim como os jornais impressos, os livros, os correios, o euro, e quem sabe até mesmo o mundo ocidental. Aqui, porém, se trata de cinema no futuro. Mas o que é mesmo cinema? Será que também virou um luxo? Hoje tantos mundos se encaixam dentro dessa palavra.

Há duas semanas fui ver um filme francês que tinha acabado de ser lançado aqui com relativo destaque, filme premiado em Cannes, um dos maiores festivais de cinema do mundo. Na sala – surpreendentemente pequena – só eu. Uma sessão privada, na primeira semana de lançamento! Será que eles vão manter a sessão mesmo assim? – pensei preocupada. E mais preocupada ainda com essa sensação recorrente de que o cinema está acabando (mesmo que secretamente desfrutando do luxo da sala vazia). Cresci numa época na qual a visão de um lugar vazio não dava automaticamente a sensação de que aquilo ia acabar. Mas aprendemos a pensar de modo maximizado. Se um avião está vazio o voo é cancelado. No cinema parece que ainda não é assim. Depois da luz apagada entrou mais alguém. No final da sessão, embalados pela situação tão estranha de sermos só nós, embarcamos numa conversa animada sobre o filme, o desconhecido e eu. Devia ser assim na época dos cineclubes, pensei.

Claro, existem os blockbusters, as salas lotadas, os sucessos de massa. Cada vez mais eles se parecem na linguagem (e muitas vezes são) com séries de televisão. Muitos closes, edição picotada, roteiro montado no liquidificador e um túnel, em linha reta, aonde a gente avança sentado num carrinho de montanha russa, e nem precisa de cinto, porque riscos não há. Nada que pareça pedir uma tela grande pela maneira como foi filmado, a não ser pela dimensão do marketing e pela amplitude que o termo “cinema” ainda parece trazer. Então hoje seria isso cinema?

Desde garota eu sonhava em fazer cinema. Adoro estórias, mas adoro também uma coisa que, acredito, só o cinema permite: uma percepção mais sensorial, intuitiva, pós (ou pré) verbal, feita dessa proximidade gigantesca com a imagem ampliada, como se estivéssemos entrando num mundo de muitos mundos, internos e externos. Misteriosos. Entrarmos no inconsciente dos personagens e no nosso próprio – aquele friozinho na barriga de empolgação na hora que as luzes se apagam e, pronto, vai começar.

Na época que eu comecei as escolas eram poucas, mal equipadas, tudo era difícil. Por acaso – sem saber bem o que isso queria dizer – fui fazer vídeo. Me via como alguém que se movia no mundo audiovisual, o que estava longe de ser uma linha reta e menos ainda um plano de carreira. Não tinha a menor ideia do que aconteceria depois de alguns anos. A mídia utilizada para cada trabalho dependia do projeto e podia ir de uma caneta a diferentes tipos de câmeras (de vídeo, película, super 8, 16, fotográfica). Um projeto pedia apenas sons, outro seria melhor sob a forma de instalação. E assim por diante. A escolha era uma questão artística, não de produção. O grande desafio era estar criando uma obra audiovisual que tivesse uma razão de existir, uma necessidade, pelo menos pra mim, e que eu reconhecesse nela um olhar que eu acreditasse ser o meu. O vídeo me encantou porque parecia um terreno onde tudo era possível, sem muita história pra trás, um pouco como o momento de vida que eu vivia. Um dia eu ainda faço cinema, pensava, sem pressa.

Eram os hoje históricos anos 1980. Gostávamos de enfatizar: eu faço vídeo, não é cinema, não é televisão. O que era então? Ninguém sabia muito bem, mas numa coisa todos concordavam – vídeo era uma espécie de terreno virgem, terra de ninguém, lugar de todas as experimentações. O vídeo ainda não tinha entrado no Mundo das Artes pela porta da frente. Era preciso afirmar para existir. Tudo era fruto de uma escolha, questionado: como mostrar, onde projetar, por que a tela é grande, pequena, por que precisamos de uma tela. Ainda lembro a primeira vez que fui a um Festival – da Fotóptica Vídeo Brasil, em São Paulo – o alívio que senti em ver que existiam outras pessoas, em outros lugares, interessadas nas mesmas coisas que eu. Era bem solitário.

Hoje, mais de 20 anos depois, a minha maneira de estar no mundo basicamente não mudou. Mas o mundo sim, mudou completamente. Só de pensar nas diferentes tecnologias que já fizeram parte da minha vida e do meu trabalho, fico exausta. E o meu dia de fazer cinema acabou chegando também. Mas é engraçado que hoje, quando as pessoas falam dos meus vídeos antigos, os chamam de filmes. Tudo o que eu fiz no início – os vídeos experimentais, as experiências digitais e eletrônicas – tudo agora se chama filme. Tudo se chama cinema. Cinema de artista, de museu, de arte. É uma questão de mercado, não mais uma questão artística.

Nos anos 1990 uma palavra mágica começou a circular – o digital. O que era isso exatamente? Ninguém sabia dizer muito bem, mas quando se usava essa palavra, portas se abriam, mundos se cruzavam. O pessoal do cinema se misturava com o do vídeo (casamento até então improvável) e ambos penetravam no terreno proibido da televisão. Antigas hierarquias caíam da noite pro dia. O digital foi uma palavra coringa, e permitiu cruzamentos até então impensáveis. Mas num mundo onde tudo está apenas um mero click adiante, como avançar?

Semana passada fui de novo ao cinema, dessa vez para a abertura de um festival. O filme parecia um programa de televisão, um telefilme. Por que estava no cinema então, abrindo um festival? Será que a palavra cinema também virou uma palavra dessas, como “político”, “orgânico”, “autêntico”, uma dessas palavras que a gente quase não pode usar mais? Hoje em dia, colocar a palavra cinema em alguma coisa implica dar a ela algum tipo de legitimidade, tal uma etiqueta de marca, um selo, que talvez não queira dizer mais nada. Pode ser que não seja o cinema que esteja acabando, mas que tudo passou a se chamar cinema. Cinema faz referência a uma roupagem chique, uma respeitabilidade. Cinema virou uma palavra relíquia, um golpe de marketing. Mas e a profundidade de foco, o tempo narrativo, tudo aquilo que só funcionava na tela grande? Será que não deveríamos estar falando das mudanças na linguagem?

No início do cinema ele tinha muitas formas, muitas possiblidades. Filmetes passavam em praça pública em maquininhas movidas a moedas, ou então eram projetados em cabines, em feiras. As experiências eram muitas. A sala escura, a tela grande, o filme narrativo, as sessões de aproximadamente duas horas de duração – tudo isso era apenas mais uma possibilidade daquela mídia. Não a única e, por um momento, talvez nem claramente a mais importante. Mas logo essa forma passou a dominar, e o cinema virou o grande acontecimento cultural do século 20. A outra via, mais incerta, fragmentada, múltipla, se transformou no cinema experimental, nas instalações, nas formas mais mutantes. Existia lugar para tudo – lugares diferentes, com certeza, mas igualmente possíveis, cada um a sua maneira. Isso permanece, de alguma forma. Talvez estejamos inclusive retornando a isso.

Mas o que parece ter mudado é a discussão sobre a linguagem. Para onde ela foi? Quem sabe o mais fascinante seria resgatar essa conversa que foi sequestrada pelo marketing. Esquecer por um minuto a palavra cinema e tentar pensar no desconhecido, no porquê do tamanho da tela, que podem ser muitos, nas condições de projeção, que podem ser únicas para cada trabalho, no desafio artístico que é circular num mundo no qual todos são produtores potenciais de imagens e sons. Essa discussão, sim, está engatinhando. Vai ser uma festa quando ela se espalhar, porque não temos a menor ideia de aonde ela vai nos levar. Isso é no mínimo tão empolgante quanto sentar numa sala de cinema esperando que as luzes se apaguem.


* Fez seus primeiros trabalhos em 1984 e desde então vem utilizando diferentes mídias e formatos: ficções, documentários, filmes experimentais, instalações. Seus trabalhos receberam vários prêmios internacionais (em Festivais como Rio, Berlin, Oberhausen, Kiev, Leipzig, Locarno, Havana, Rotterdam e muitos outros) e foram exibidos no MoMA (NY), Guggenheim Museum, Forum des Images (Paris), Harvard Film Archives (EUA) entre outros. “Mutum” seu primeiro longa-metragem de ficção – baseado no livro Campo geral de João Guimarães Rosa – teve sua estreia mundial no Festival de Cannes 2007, na Quinzena dos Realizadores, recebendo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Em 2011/2012 passou um ano em Berlim como convidada da DAAD Berliner Künstlerprogramm. Foi também professora na Escola Superior de Belas Artes em Strasbourg (França) e nas universidades americanas de Princeton, Columbia (film program) e University of California San Diego / UCSD. É atualmente Visiting Scholar na New York University.