Toda arte é também outra arte

Toda arte contém, em sua composição, partículas de outra arte – seja resíduo, seja manancial. Quando não, ela, uma certa arte, é conjunção de outras, líquidos de coração miscível, água com água formando rios singulares. Rios que têm suas próprias águas molhadas com as da chuva (vindas de outros céus) e das grotas fluviais (vindas de subterrâneas nascentes). Pois a vocação de toda arte é a sua impureza, o seu escoamento pluridimensional. Toda arte contamina com sua mina oculta, um dia relevada até suas profundezas, outras tantas artes. Sua matriz é o remix. De si mesma ela tem somente a alma, o corpo nem sempre é só seu. A arte compartilha os trilhos com quem não é unicamente ela, mas nela também se palmilha. A arte é, sozinha, múltiplas alternativas. Autêntica ela tem apenas o seu ser, porque o seu existir é parte de outras teias. Ela é originalmente combinatória. Daí porque, igualmente, encantatória. Um canto é canto pela convergência de linhas, de vozes, de silêncios.

E eis que aqui, nesta edição da revista Z Cultural, a arte mostra mesmo o que é ela, além de ser outra, em artigos de importantes pesquisadores, nos quais a poesia se imbrica com as artes plásticas, a literatura com a filosofia, o cinema com a narrativa urbana e interativa, a prosa com a publicidade, a pintura com a poesia. Há também o que não é artigo, mas ficção, depoimento ou a escrita de uma fala. Porque o texto também é o que ultrapassa os gêneros, flui entre fala e escrita, entre academia e vivência, entre ensaio e ficção.

O leitor é também o fazedor de sentidos, o consumidor produz e ganha o status de prossumidor – e o resultado dessa geleia geral lembra a matéria da qual toda arte é feita: mesclas. Por mais rudes que sejam os seus ingredientes, o que sobra é delicadeza. Mistura fina.

Boa leitura!

Os organizadores desta edição
Beatriz Resende, João Anzanelo Carrascoza e Ieda Magri

Criações espaciais em imagens performáticas | Aline Couri*

É possível pensar em obras de arte como criações espaciais a partir de basicamente dois sentidos principais. O mais imediato é aquele no qual o espaço criado ou proposto é experimentado no momento da presença do corpo de quem experimenta a obra. Outro, que pode ou não incluir este primeiro sentido, propõe criações espaciais em esferas mais amplas, que buscam modificar ou ativar alguns aspectos do ambiente coletivo de vida. Aqui observamos mais acentuadamente o parentesco com movimentos que contestavam a autonomia do campo da prática artística e sua independência quanto a outros aspectos da vida social, política e econômica.  Esses movimentos, ou grupos, eram contrários à separação entre arte e cotidiano; as formas pelas quais contestavam essa separação são múltiplas e um estudo sobre essas práticas e formalizações fogem ao escopo do presente texto. Entretanto, é importante apontar alguns desses movimentos: Arts & Crafts, Art Nouveau, Neoimpressionismo, Cubismo, Futurismo, Dada, Surrealismo, Construtivismo, Fluxus, Pop Art, Internacional Situacionista, Punk, Neoísmo, Arte Conceitual.

Dentro de um recorte centrado nas criações que envolvem interfaces interativas, essas criações espaciais vão desde um espaço imediato ao corpo do visitante-performador da imagem à proposição de outras formas de ação e criação no espaço existente.

Cabe, ainda, enfatizar que não entendemos por “arte interativa” apenas aquela realizada com recursos tecnológicos. Basta pensar em toda pesquisa e obras realizadas pelos artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark, dentre outros.

*

O presente texto faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem por objeto certas obras de arte interativa que podem ser compreendidas como construções espaciais. Nela identificamos alguns recursos de criação de interfaces processuais que são utilizados na realização dessas obras. Tais recursos constituem, de modo geral, dois grande grupos nos quais alguns elementos podem apresentar características híbridas. Num extremo, encontramos obras formadas por loops de imagens fixadas (nos quais a repetição e exibição de algo já registrado constitui o espaço) (Couri, 2006) e do outro, um certo tipo de imagem processual que poderíamos chamar de “cinema sem filme”, por não possuírem um registro prévio a ser projetado.

Nos espaços criados por loops de imagens fixadas, geralmente a imagem projetada é simplificada de tal modo que sua projeção é superada (em importância em relação à obra) pela atenção solicitada ao ato de projetar. Mesmo que envolva a projeção de uma imagem já concluída, esta configura um espaço tridimensional, no qual a imagem projetada deixa de ser o foco principal de atenção. Podemos citar, como exemplos, Line Describing a Cone (1973, 16mm) e Long Film for Four Projectors (1974, 16mm) de Anthony Mccall, que criam um espaço tridimensional, aberto às interações e movimentos dos corpos dos participantes.[1]

Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031
Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031

Consideramos o cinema numa perspectiva expandida.[2] Os artistas que atuam nesta área questionam a forma hegemônica do cinema e seus dispositivos, seu modo de projetar. Agregam referências da performance e do happening, envolvendo os corpos dos observadores.[3] Questionam o espaço perspectivo e enquadrado, o formato narrativo, os elementos do cinema tradicional, a passividade dos espectadores. Essa perspectiva está relacionada ao processo de desocultamento do dispositivo do cinema e à produção de uma imagem processual, aberta, que envolve o espectador (Parente, 2008). Machado também considera o conceito de “cinema” de modo expandido. Para o autor:

muitas das experiências anteriores ou posteriores a isso que chamamos de cinema podem ser muito mais cinematográficas (no sentido etimológico do termo) do que a prática regular da arte que leva este nome. Ou seja, pode haver uma representação mais eloquente do movimento, da duração, do trabalho modelador do tempo e do sincronismo audiovisual nas formas pré e pós-cinematográficas do que nos exemplos “oficiais” da performance cinematográfica” (Machado, 2002, p. 9).

Tais autores fazem parte de um grupo de pesquisadores que tem se dedicado às formas não hegemônicas, desviantes, de cinema. Dentre eles, podemos destacar: G. Youngblood, J. C. Royoux, R. Bellour, D. Païni, P. Dubois, A. M. Duguet, J. P. Fargier, S. Lischi, P. Weibel, J. La Ferla, L. Canongia, K. Maciel, L. Flores e outros. Os estudos desenvolvidos nesta área apontam tanto os diferentes processos dessa transposição (segundo Dubois: cinema exposto, cinema decomposto/recomposto, cinema reconstituído, cinema materializado) quanto as diferenças existentes no sistema de valor, economia, visualização, temporalidade e plasticidade nessas transposições.[4]

Vale lembrar que mesmo que venhamos a tratar de muitas obras que utilizam o vídeo, ainda é válido nos referirmos a elas como sendo um certo tipo de cinema, seja “cinema expandido” ou “cinema sem filme”. Machado, assim como Dubois, vê necessidade de

afirmar o cinema como uma espécie de referência fundante para todo o audiovisual, sem a consideração da qual o discurso sobre as imagens e os sons contemporâneos afrouxa e perde a densidade que levou tanto tempo para sedimentar (Machado in Dubois, 2004, p. 12).

Além disso, “o imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa maneira de falar ou de ser” (Dubois, 2004, p. 25).

Feitas essas ressalvas, nos resta definir nosso objeto, que, além de constituírem criações espaciais, não apresentam

imagem prévia (pré-gravada), nenhuma fita magnética com uma “obra” registrada, nenhum videocassete para “rodá-la”: há nelas apenas um circuito fechado, em que o espectador, ao deixar-se incorporar ao dispositivo, vê sua própria imagem desdobrar-se no espaço perceptivo (Machado in Dubois, 2004, p. 13).

Lembramos que as obras-objetos de nossa pesquisa podem apresentar também outros recursos tecnológicos além dos circuitos fechados (que basicamente envolvem câmeras e projetores): sensores, patchs, softwares, códigos digitais etc.

Este artigo trata, portanto, de uma vertente específica do que podemos entender como cinema expandido: certos desdobramentos do cinema nas artes plásticas nos quais a imagem visualizada e experimentada é processual. Uma imagem-processo que exibe seu próprio modo de constituição, incluindo os espectadores e seus corpos em sua produção. O fenômeno da projeção passa a ser desocultado; é quebrada a tradicional separação entre espectador e performance; são construídos espaços que aceitam e incentivam diversos pontos de vistas e o próprio movimento. As imagens processuais nos permitem avançar no estudo da performalidade da imagem, da participação do espectador na obra e do caráter de obra aberta e inacabada que se opõe ao objeto de arte como algo definido e concluído.

As videoinstalações que envolvem imagens processuais agem na contramão de uma arte unidirecional, que encontra no objeto sua culminância. Ao contrário, são identificadas com a efemeridade e a descontinuidade, remetem ao questionamento do ato de contemplar e do conceito de autoria. Exploram a experiência vivida, a ideia do trabalho in progress, as ações em tempo real, provocando e fomentando a fusão entre arte e vida, já proclamada pelos situacionistas.[5] Anne-Marie Duguet (2002), como Dubois, já notou a efemeridade do vídeo, que se configuraria mais como ação, acontecimento, gesto ou processo de comunicação, ou seja, como obra de relacionamento momentâneo, sem traços materiais. A obra é o próprio processo de experiência da obra.

Quando existe transmissão de imagens simultaneamente à sua captação, o trabalho de arte se confunde com seu processo de elaboração. A obra se torna aberta ao acaso, à participação, à imprevisibilidade. Se a fotografia e o cinema se relacionam com a representação do tempo passado, o vídeo tem a “capacidade de registrar, transmitir e reproduzir quase instantaneamente uma imagem em movimento” (Couchot, 1993, p. 37). Foi com o vídeo que tomamos contato com imagens em tempo real, situação acentuada pela transmissão via satélite e, mais tarde, pela transmissão via internet. É com o vídeo que viemos a conhecer a “telepresenca”.[6]

Hoje, muitos trabalhos de arte são produzidos e apresentados como processos. O vídeo apresenta-se como uma importante ferramenta nos processos “em tempo real”, relacionando-se à efemeridade, aos meios digitais interativos e às tecnologias de comunicação. Como mostra Mello (2007, p. 141), o vídeo

é não apenas uma tecnologia representacional – mas também uma linguagem que associa estratégias de simultaneidade do tempo presente – constituindo um modo de investigá-lo em seus mecanismos de expansão, tanto em seu caráter processual e em suas potencialidades temporais quanto em sua característica de estar entre os diversos dispositivos e ambientes. […] Um meio instável, impermanente, transitório, que introduz a ideia de fluxo midiático no universo da arte e é capaz de dialogar com a ampla gama de procedimentos criativos relacionados à cultura digital.

Imagem processual e imagem performática

Entendemos como imagem processual aquela que não é definida ou finalizada previamente à sua visualização: é o produto de um processo que pode envolver variáveis distintas. Já tratamos desse tipo de imagem em um estudo anterior (Couri, 2006). As imagens fractais e as imagens em circuito fechado (hoje atualizadas em versões digitais) são alguns exemplos.

A produção de imagens processuais concentra-se em sua configuração, que depende de sujeitos participantes do processo. Esse tipo de imagem coloca em questão as relações entre espectador, artista e obra. Sem participantes, não existe imagem. A imagem está desprovida de seu caráter de registro.[7]

Muito mais que arte como produção de objetos, lidamos com a arte como produção e proposição de experiência. A obra se dá no modo como faz o público compartilhar e viver a experiência oferecida. O processo de criação da imagem (e da obra) é tornado visível e aberto.

Ao ressaltar a experiência, esse tipo de imagem também coloca ênfase no movimento, no tato, no corpo, questionando a supremacia da visualidade e do olho como único canal de apreensão sensorial. Obras que envolvem imagens sem registro prévio compreendem atualizações e variações do recurso conhecido como circuito fechado, muito explorado nas décadas de 1960 e 1970 por artistas como Peter Campus, Dan Graham, Bruce Nauman, dentre outros. Desde então, muitos artistas utilizam esse processo. O artista atua na criação do processo que criará a imagem a ser visualizada, e não diretamente na criação dos aspectos formais inerentes à imagem.

Por incluir o espectador na produção da imagem visualizada, esta possui um grande potencial de criação espacial. Daí advém nosso interesse por esse tipo de imagem: por incluírem e ressaltarem a materialidade dos corpos, da presença, do tato[8], obras com imagens processuais remetem às discussões conceituais e filosóficas sobre o espaço. Nos interessam principalmente aquelas que chamam a atenção para a presença, o corpo, o observador, numa perspectiva próxima às ideias de Leibniz, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, De Certeau, McLuhan; da geometria de Riemann e da teoria da relatividade de Einstein. Até mesmo Nietzsche chamou atenção para o corpo, que acabaria por ser considerado parte do próprio entendimento e concepção do espaço. Para ele, o mundo

não é algo desperdiçado, infinitamente extenso, mas sim estabelecido em um espaço definido como uma força definida, e não um espaço que pode estar “vazio” aqui ou ali. Uma força ubíqua, um jogo de forças e de ondas de forças, ao mesmo tempo um e muitos, aumentando aqui e ao mesmo tempo diminuindo lá (Nietzsche, 1968, p. 550).

Esta compreensão sobre o corpo e o espaço numa relação dinâmica acabou não sendo desenvolvida mais profundamente pelo filósofo e não teve repercussão comparável a outros conceitos por ele concebidos. Mas é interessante saber que Nietzsche faz parte dos autores que compreendem o espaço como algo essencialmente dinâmico e intrinsecamente relacionado ao corpo.

Câmera escura, origem das imagens processuais

Além das imagens em circuito fechado, é preciso citar a câmera escura, dispositivo que exerceu grande fascínio durante os séculos XVI e XVII. Crary (1992) a considera um dispositivo distinto e autônomo em relação à história da fotografia. Segundo o autor, a câmera escura e a câmera fotográfica pertencem a sistemas de representação e observação fundamentalmente distintas. A função principal da câmera escura não era produzir figuras. Crary (1992, p. 33) cita o verbete da Encyclopédie, que lista seus usos:

esclarece enormemente a natureza da visão; proporciona um divertido espetáculo, no qual são apresentadas imagens perfeitamente similares aos objetos; representa as cores e movimentos dos objetos melhor que qualquer outro tipo de representação.

Só tardiamente o verbete acrescenta que “através deste instrumento alguém que não sabe desenhar torna-se capaz de traçar um desenho com extrema precisão”. As imagens em movimento das câmeras escuras não podiam ser desvinculadas de seu processo de formação: resultam de procedimentos específicos que possibilitam a sua visualização.

Se a câmera escura se aproxima de nosso objeto por se tratar de uma imagem processual, por outro lado é um dispositivo no qual o observador não se sente inserido: aquilo que ele observa é um espaço exterior àquele contíguo à sua presença. “A câmera escura impede que o observador veja a sua posição como parte da representação” (Crary, 1992, p. 41). Crary  ainda acrescenta que a câmera escura “desconecta o ato de ver do corpo físico do observador, descorporifica a visão” (p. 39). Tem-se aí uma diferença fundamental entre a câmera escura e os espaços formados por interfaces interativas.

Imagem, corpo e espaço

a experiência do espaço é uma negociação na qual a co-criação toma lugar. Minha intenção é tentar isolar a negociação ou comprometimento, ou seja, olhar nem para a pessoa e nem para a rua, mas sim, ao invés disso, para o entre (Eliasson, 2009).

Parte-se do entendimento de espaço como lugar praticado (De Certeau, 1980), ou seja, de que existe espaço quando os sujeitos nele presentes estão realmente implicados em sua produção.

Nosso interesse por questões espaciais nos aproximaram do laboratório Life in Space, conduzido por Olafur Eliasson. Em uma palestra TED (2009) Eliasson coloca, dentre outras, as seguintes questões: como se configura a relação entre o nosso corpo e o espaço? Como sabemos que estar num espaço faz diferença? Eu faço diferença? Quais as implicações de minha presença e de meu corpo em determinado espaço?

Eliasson (2009, p. 3) afirma trabalhar para “aumentar o papel da arte como um participante na sociedade e afirmar que ela pode contribuir com reflexões de natureza espacial; ela pode ter impacto político, social e estético nas práticas não artísticas”. Veremos, mais tarde, como essa postura se aproxima dos situacionistas.

Fazer parte de um espaço implica fazer e exercer a diferença. As interfaces interativas colocam situações completamente diversas às colocadas por imagens fotográficas, pinturas, gravuras. O espaço, para ser espaço, precisa ser percorrido, vivido, percebido em suas dimensões. O espaço tende a ser entendido como algo que libera, abre terreno, dá lugar, abertura. Permite as distâncias, as vizinhanças, o próximo e o longínquo, as direções, fronteiras, as grandezas.

Para Heidegger, o espaço não é nem uma propriedade subjetiva da mente, nem existe previamente à existência de um sujeito no mundo (não existe espaço independentemente de sujeitos): “o espaço não é algo que encara o homem. Nem é um objeto externo ou uma experiência subjetiva. Não é que existam os homens, e além deles, o espaço”[9]: o próprio ser, se bem entendido ontologicamente, é espacial. Também Merleau-Ponty (2009) afirma a necessidade de reconhecer a espacialidade do corpo: “não existiria espaço, para mim, se eu não tivesse corpo” (2009, p. 119); “o corpo é o veículo do ser no mundo” (2009, p. 97).

Ou seja, enquanto a espacialidade é um dos aspectos principais do nosso encontro com as coisas do mundo, o espaço como tal não é algo que pode ser conhecido independentemente das coisas, mas somente por sua relação com elas. Obras de arte interativa com imagens processuais definem um campo enorme para experiências espaciais. Então uma questão se coloca: a questão tátil e espacial não estaria já colocada na imagem digital?

Mark Hansen vem desenvolvendo uma fenomenologia elaborada a partir da obra de W. Bejamin, H. Bergson e G. Deleuze, que enfatiza o papel do afeto, da propriocepção e das dimensões táteis da experiência na constituição do espaço. Questionando todo um conjunto de estudos que abordava a imagem digital numa perspectiva de virtualização do corpo, Hansen argumenta que no regime digital o corpo é um constituinte ativo da imagem: é a origem de ação num mundo de imagens. É através dele que selecionamos dentre as influências externas aquelas relevantes para nossos interesses. A vocação bergsoniana de Hansen diz que não existe informação (ou imagem) na falta de uma corporificação humana que lhe dá forma.

Para Hansen a convergência das mídias sob o digital aumenta a centralidade do corpo como um “editor” da informação: enquanto a mídia perde sua especificidade material, o corpo ganha o importante papel de processador seletivo na criação das imagens. Em contraste com um objeto estático, a imagem digital envolve o processamento da informação e a constante atualização da interpretação dessa informação através de uma imagem que pode parecer estática na tela, mas que no entanto é extremamente dinâmica, capaz de ser modificada a qualquer momento (Hansen, 2004, p. 23).

Esta característica da imagem digital pode aproximá-la, em certo sentido, ao espaço como o entendemos. Se o espaço deve ser entendido como um campo de forças estabelecido entre dadas dimensões (física, cultural, econômica, social, de interface, modos de interação e imagem) e atores atuantes, estes trazem a indeterminação de seus atos (diferentes modos de uso) na forma de inputs de ações que modificam o espaço em determinado momento, produzindo outras instâncias. Um espaço vivido sempre implicaria, portanto, um circuito de retroação.

A imagem-experiência em Peter Campus: dobras espaciais

Peter Campus se notabilizou principalmente por um conjunto de videoinstalações realizadas na primeira metade dos anos 1970, nas quais a participação do espectador é essencial para a formação da imagem. Tais obras envolvem circuitos fechados: Interface (1972), Mem (1974) e Dor (1975) são obras desse tipo. O trabalho de Campus convoca algumas das principais tendências da arte do pós-guerra: o minimalismo dos seus dispositivos, o caráter conceitual relacionado com a questão dos limites da representação imagética, o acento performático-processual, o papel do corpo e da presença do artista e/ou do observador.

Interface (1972) é talvez o trabalho mais conhecido de Campus, no qual o dispositivo torna-se o ponto nodal da articulação entre o meio empregado, o observador que o ativa e uma certa desconstrução de determinado regime de crenças e disposições da imagem enquanto representação.

A instalação é muito simples: numa sala há uma câmera, um projetor e um vidro. A câmera está no fundo da sala. Entre ela e o espectador, é colocado um vidro transparente que funciona como uma interface entre os dois espaços, separados por ele. Sobre o vidro, que mede 3 por 2,7 metros (proporção 4×3), é projetada a imagem em preto e branco captada pela câmera em tempo real: uma instalação em circuito fechado.

Ao entrar na sala e se posicionar no espaço captado pela câmera, o participante se vê projetado no vidro. Mas o vidro também o reflete, de forma que ele vê duas imagens: uma projetada (em preto e branco), e seu reflexo. As duas imagens sofrem variações de foco, tamanho, posição e iluminação em função do movimento do espectador no espaço. O espectador pode experimentar os campos limítrofes além dos quais as imagens desaparecem do vidro, se posicionar em um lugar onde as imagens se sobrepõem, fazê-las variar em seus movimentos de aproximação e afastamento, observar sua dissimetria – uma vez que a imagem refletida inverte os lados do objeto, ao contrário da projetada. Esta dissimetria é, na verdade, uma dobra, por meio da qual a interface, o vidro, se torna uma dimensão intermediária, topológica, invertendo as relações do que está do lado de cá ou de lá.

Interface dialoga com a tradição pictórica ao trazer para dentro da obra a figura do espectador. A obra não existe se não há espectador na sala, uma vez que o objeto da obra é a própria experiência do participante, que se vê vendo.

Antes mesmo da emergência das tecnologias digitais, a obra de Campus cria variações no regime estético, colocando em questão a ideia de que a obra de arte remete a uma realidade pré-existente, por meio do uso de uma imagem processual, que se cria durante a experiência sempre presente e singular de um espectador implicado.

Em Interface o que existe é a disposição espacial de vários elementos (projetor, câmera, ator) que variam em relação ao movimento do observador. Trata-se de uma obra aberta, “inacabada” e processual, cuja problemática principal remete à própria atividade perceptiva deslanchada pelo observador. Este tipo de instalação desconstrói a imagem como representação de algo já dado, na medida em que nos faz experimentar o próprio fundamento da percepção: “ver é ser visto” (Merleau-Ponty).

Interface nos é importante pelo caráter fundador de uma experiência espacial; mas é nas suas próximas obras em circuito fechado, Mem e Dor, que Campus parece ampliar a criação de espaços. Além de terem o caráter efêmero da imagem evidenciado, nelas a moldura retangular é distorcida, explodida. A imagem parece querer se livrar da moldura, da bidimensionalidade. Impossível não lembrar do percurso trilhado por Lygia Clark, no momento em que os Casulos se destacam da parede para se transformarem em Bichos.

Em Mem e Dor, Campus explora mais acentuadamente as relações entre o ponto de vista e o plano de projeção. Em Mem a câmera está localizada muito perto da parede e sua objetiva está orientada paralelamente a ela. A imagem é projetada obliquamente, criando uma forma trapezoidal e gerando diversas deformações no corpo projetado. Para entrar no restrito campo de visão da câmera, o visitante deve ficar tão perto da parede que ele não pode apreender globalmente sua imagem. Ao se afastar, numa tentativa de apreensão visual da imagem, a imagem se perde, desaparece. Duguet (2002) aponta que “o espectador se encontra de certa forma imobilizado dentro do virtual”. Ele é sujeito, objeto e plano de projeção da imagem.

Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/
Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/

Dor é organizada de tal modo que a imagem do visitante se forma exatamente no momento em que entra na sala. Este momento é a soleira da porta, um ponto situado num prolongamento da parede na qual a imagem está projetada. Assim, o visitante deve optar entre ser visto e não poder ver, ou tentar se ver, com o risco da imagem desaparecer. O lugar de observação da imagem é radicalmente dissociado do ponto de vista da câmera. Criar a imagem é estar impedido de vê-la, de contemplá-la totalmente. O ponto de criação da imagem se situa no mesmo plano de projeção dela mesma. O jogo acontece neste limite, nessa fronteira entre estar dentro ou fora da obra. O limite da sala, a porta, é exatamente o ponto ativador da imagem.

Dor remete às ideias de espaço como algo inerentemente coletivo: o espectador, sozinho, não consegue ver ou produzir imagem. Ele precisa de outros participantes. Pode funcionar como uma metáfora para a construção espacial: sozinhos, não construímos nada.

Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg
Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg

Os Sonacirema: um filme processual

Os Sonacirema (1978, 35mm) de André Parente é constituído de quadros pretos e brancos que se revezam. Não possui imagens figurativas, apenas pontas pretas e transparentes, além de transições em fade-in e fade-out. Nele, não foi usado câmera nem moviola. O filme usa a tela de cinema para fazer “refletir”, literalmente, os espectadores, verdadeiros objetos do filme.

O filme é baseado no texto The ritual body among Niacirema, do antropólogo  Horace Minner, publicado em 1956 na revista American Anthropologist. Descreve uma tribo que vive na América do Norte e desenvolveu uma série de obsessões em torno do corpo. As crenças e práticas mágicas dos Niacerema (anagrama de “americain”) apresentam aspectos tão inusitados que descrevê-los nos permite discutir os extremos a que pode chegar o comportamento humano[10]. Os Sonacirema é um documentário experimental sobre uma tribo que supostamente se estende do Oiapoque ao Chuí. O som do filme é constituído pela narração do texto que descreve essa tribo.

Em versão recente do filme, Parente criou o happening intitulado Cine-movido[11] que envolvia os espectadores. Simultaneamente à projeção do filme, uma câmera de vídeo capta as imagens dos espectadores na sala. Essa imagem é projetada sobre o filme. Quando a imagem é escura (quadros pretos) a imagem dos espectadores aparece. Aqui, surge um tipo de imagem-performática, que busca colocar como objeto os próprios sujeitos. O espaço tradicional de projeção da sala de cinema é rebatido, espelhado. Pouco a pouco, os espectadores se dão conta de que a imagem projetada é a sua própria imagem captada em tempo real.

Os Sonacirema cria um processo de frustação do espetáculo cinematográfico instituído, um desocultamento do dispositivo do cinema e do lugar do espectador. É criado um espaço especular, no qual o espectador se torna participante do filme. Quem vê se torna também aquilo que é visto.

Espaços digitais de ação encarnada

A obra de Myron Krueger chama nossa atenção pela importância dada ao corpo e ao espaço tridimensional. Para o artista, o desenvolvimento de simulações tridimensionais na forma de ambiente interativo nos coloca em contato com nossas capacidades perceptivas mais primitivas:

a interface humana está evoluindo para informações mais naturais. Espaço tridimensional é mais intuitivo do que o espaço bidimensional. Espaço tridimensional é aquilo para o que evoluímos para entender. É mais primitivo, não mais avançado (Krueger apud Hansen, 2006, p. 3).

O interesse de Krueger relaciona-se com as potencialidades enativas oferecidas pelas novas mídias, e não para suas capacidades de representação ou de simulação (Hansen, 2006, p. 26). Para ele, o “virtual” não compreende um espaço alternativo transcendente ao corpo, mas sim um novo domínio, aprimorado pelo computador, de extensão de nossa interface com o mundo.

Krueger procurou materializar sua convicção de que o foco da pesquisa em interface deve ser a natureza humana, não o computador. Construiu ambientes em bases digitais que privilegiam o corpo; neles, o computador é um veículo para explorar e expandir interações humanas encarnadas, onde a interface é pensada a colaborar nas relações interpessoais.

De 1970 a 1984 Krueger procurou ampliar as capacidades de interação entre pessoas e programas de computador. Numa época em que a maior parte das pesquisas em realidade virtual envolviam pesadas e desconfortáveis interfaces (como capacetes – Head Mounted Displays – e luvas), a pesquisa de Krueger se concentrou no próprio corpo como interface. Suas obras compreendem Metaplay (1970), Psychic Space (1971) e Videoplace (1974-1975).

Metaplay combinou tecnologia de circuito fechado com código digital para explorar as relações entre as ações do visitante e as reações do sistema. Cria-se um certo tipo de comunicação em tempo real entre seus participantes, que se deparam com projeções bidimensionais de seus corpos. Para similar a tecnologia interativa da qual não dispunha, o artista incluiu-se ao processo: ficava em um espaço distinto desenhando num tablet as respostas aos movimentos dos participantes. Por serem respostas do próprio artista, a obra ganhou em criatividade e indeterminação, incluindo um sentido de erro, de experiência, de brincadeira, que enriquece as respostas exatas dos computadores.

Já em Psychic Space o que está em jogo é a instauração da autonomia do ambiente, obtida através da incorporação de feedback. A origem da imprecisão passa dos desenhos para os movimentos dos corpos dos visitantes, captados por sensores. O visitante é colocado numa interação em tempo real com os dados gerados por seus movimentos.

O visitante é inicialmente convidado a se concentrar em um losango como símbolo de si mesmo. Logo a figura é cercada por um pequeno quadrado do qual o visitante busca se livrar. Em seguida o quadrado se torna um labirinto a ser explorado. Em contraste com os jogos de computador típicos, as possibilidades oferecidas em Psychic Space não são guiadas por objetivos previamente definidos e não culminam na realização de uma tarefa. O ambiente é concebido de forma a impedir o progresso do espectador em relação a qualquer objetivo que se tenha como meta. Por exemplo, o programa reconfigura o labirinto no momento em que o visitante se aproxima da saída, ou altera a direção do controle do losango pelo corpo, de horizontal para vertical.

O computador, nas obras de Krueger, funciona para perturbar a tendência natural do visitante de atingir certo objetivo. Trata-se de um feedback criativo, de adaptação à situações que mudam constantemente. O ambiente continuamente solicita que o visitante se adapte às características de cada novo espaço constituído.

Videoplace marca uma nova etapa na implementação da autonomia do ambiente interativo, que passa a envolver totalmente o visitante. Uma imagem do movimento do visitante, com o contorno de seu corpo, é capturada e processada pelo computador. O visitante pode, por exemplo, preencher o espaço com linhas de imagens coloridas de partes do corpo ou interagir com imagens capturadas, em diferentes tempos, de seus movimentos. Videoplace diferencia-se dos primeiros ambientes interativos de Krueger pela realização técnica e estética da sincronicidade completa entre ação e resposta. Aqui, a atividade do computador coincide absolutamente com o movimento do interator, se tornando (ou sendo experimentado como) uma parte indissociável de seu agenciamento. Cria-se um tipo de agenciamento expandido: devido à sincronicidade entre movimento e imagem, o sistema faz-se disponível como um instrumento a ser experimentado e utilizado. Krueger procurou fazer com que o ambiente “aprendesse com seus visitantes”, tornando o público, de certo modo, também programador do sistema. Ao invés de forçar o visitante a se adaptar ao computador e à sua linguagem, é o computador que é chamado a aprender com os gestos humanos.

Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/

O trabalho de Krueger cria espaços que misturam código com experiência humana: a atuação do corpo em movimento é claramente visível. Embora os códigos estejam subordinados aos movimentos, são também eles que acionam, expandem ou catalisam agenciamentos já encarnados.

Troca de pele: “todos juntos reunidos numa pessoa só”[12]

Nosso trabalho é dar às pessoas a possibilidade de não se identificarem com o meio ambiente e com as condutas-modelo (Kotányi; Vaneigem, 1961, p. 19).

É possível considerar que espaços criados pelas interfaces interativas podem ir além de uma construção física e material pontual. Ao sensibilizar indivíduos em relação aos espaços de vida talvez se possa trabalhar no sentido de lentamente contribuir, mesmo que pouco a pouco, na construção do espaço de vida futuro.

Cabeção, de Aline Couri, é uma obra de arte urbana interativa que coloca e fomenta a discussão sobre o espaço urbano. A interatividade foi implementada pelo live video somado à tecnologia de videomapping. A obra tirou partido do busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) que não é bem quista pela população local. A escultura, em bronze, tem 2,5 metros de altura e fica numa base de 3 metros. A população local a conhece como “Cabeção”.

A instalação envolve uma câmera que capta imagens ao vivo dos rostos do público participante e um projetor que projeta essa imagem sobre o rosto do busto. Um computador, com software de videomapping, faz com que a imagem seja projetada exatamente sobre o rosto da escultura. Cabeção é uma obra que tem um sentido lúdico, de brincadeira, mas que pode gerar discussões e reflexões políticas. Durante o período no qual esteve montada muitas pessoas interagiram, riram e inventaram modos de interação com o dispositivo.

Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri

Nesta obra a construção espacial se dá em várias escalas. A menor delas parece ser a imediata do entorno, na qual é criado o dispositivo que convida e envolve os transeuntes, criando algo como uma “troca de pele” entre as pessoas e a estátua, que parece “criar vida” com cada uma das performances-espontâneas realizadas. Numa perspectiva mais ampla, procurou-se colaborar – ainda que em uma pequena atuação, quase que imaterial – para a construção de um outro espaço urbano de vida. Acreditamos que, de certo modo, atualizamos o desejo situacionista de atuar no sentido de um urbanismo unitário. Este conceito foi resumidamente definido como “emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (IS n. 1, 1958, p. 13.).

O urbanismo unitário não é uma doutrina do urbanismo, mas sim uma crítica ao urbanismo (IS n. 3, 1959, p. 12). Idealiza a unificação do espaço construído com o corpo social e com o corpo individual, rejeitando a busca idealizada por formas fixas e soluções permanentes (bases do planejamento urbano tradicional). Para os situacionistas um genuíno progresso social não subordinaria o indivíduo, mas sim maximizaria sua liberdade e seu potencial. Buscavam criar, além do aspecto utilitário imediato, um ambiente funcional apaixonante, através da “crítica viva da manipulação das cidades e de seus habitantes” (IS n. 6, 1961, p. 17).

Os situacionistas buscavam restituir a criação e a reflexão crítica cotidianas em relação ao espaço, incorporar a arte na prática urbana. Entendiam a arte como ferramenta de transformação da realidade.

O urbanismo unitário foi um enorme exercício teórico sem realizações práticas. Mas está aí justamente sua potencialidade: ele pode ser entendido como um virtual, como uma meta. Tem-se os princípios, a intenção e, quem sabe, a estratégia; já a atualização dessas ideias, o “como fazer”, dependerá – e deve sempre depender – de cada situação particular, oportunidade, ocasião, meios disponíveis. O urbanismo unitário será sempre então um devir; cada ação será uma experiência: produto da questão, situação e do local específicos.

Cinemas sem filme, cidades sem projetos rígidos que se colocam como definitivos: é através da contestação, do pensar diferente, do se colocar constantemente em estado de perigo (como a etimologia da palavra “experimentar”[13]) que seguiremos fomentando pensamentos críticos e criativos.

* Aline Couri é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação ECO/UFRJ com bolsa Capes/Faperj. Arquiteta, mestre em Comunicação e Cultura, com doutorado em Urbanismo (Prourb/Fau/UFRJ).


Referências

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PARENTE, A. Cinema de exposição: o dispositivo em contracampo. Revista Poiésis, n. 12, p. 51-63, nov. 2008.

Notas

[1] McCall substitui o espaço perspectivo do cinema convencional por um espaço projetivo. A parede não mais sustenta uma janela; ela ganha o papel de superfície opaca, de limite espacial. A experiência da projeção ganha um caráter físico e táctil, que envolve o corpo. A obra acontece no espaço entre os projetores e a parede; o espectador está dentro do filme. A imagem torna-se o campo no qual a experiência se dá.

[2] Muito se discute sobre a migração do cinema dos espaços de projeção tradicionais para outros espaços. Numa perspectiva geral podemos citar os filmes digitais, visualizados em computadores, telefones, palmtops, tablets. Dentro do campo das artes, nota-se que os espaços de exposição (museus, galerias, mostras) vêm recebendo um número crescente de obras nas quais a imagem em movimento – projetada ou exibida em telas e monitores – tem lugar de destaque.

[3] O observador, ao contrário do espectador, constrói em parte o que vê.

[4] Aquilo que o senso comum compreende como cinema é apenas uma de suas formas, aquela que se desenvolveu a partir de cerca de 1908 de modo a se estabelecer como modelo hegemônico dominante: o modelo narrativo-representativo-industrial (N.R.I.).

[5] Segundo as “definições” publicadas no primeiro número da revista Internationale Situationniste, situacionista é “o que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações. Membro da internacional situacionista” (IS n. 1, 1958, p. 13). As referências aos textos situacionistas serão feitas de acordo com sua localização original nas revistas (IS n.), estando todas elas reunidas em INTERNATIONALE SITUATIONNISTE(1997).

[6] A possibilidade de atuar e experimentar ações em lugares distintos daquele no qual estamos presentes com nossos corpos físicos. Ver, por exemplo, Teleporting an Unknown State, de Eduardo Kac.

[7] Seja em filme, memória digital, disco ou outra mídia.

[8] No sentido mcluhaniano.

[9] Bauen Wohnen Denken, conferência proferida em 1951.

[10] O texto fala sobre a cultura ocidental como se ela fosse uma cultura “primitiva”. É sobretudo a objetividade da descrição dos nossos gestos do dia-a-dia que produz a nossa cegueira quanto ao objeto do texto, como se, ao olhar o espetáculo desta “tribo de bárbaros”, não nos reconhecêssemos.

[11] Happening-instalação realizado na Escola de Audiovisual de Fortaleza em 2007.

[12] Uma pessoa só, Arnaldo Baptista.

[13] “Experimentar” vem de experire: se colocar em perigo. Experimentar é arriscar: sem risco, nada é alcançado além  do já conhecido.

Três estudos sobre teatro e presença: Strip-tease, Ensaio.Hamlet, Formas breves | Inês Cardoso Martins Moreira*

Algumas das questões que atravessam a minha atual pesquisa, “Texto e presença: o personagem, o ator e a materialidade visual e sonora do texto teatral”, nortearão este artigo. A pesquisa se volta, simultaneamente, para questões cênicas suscitadas, por um lado, por textos que tendem a forçar os limites dos gêneros e modos discursivos, por dramaturgias que tendem a pôr certa concepção de drama em questão e, por outro lado, por encenações que desafiam os paradigmas que costumam orientar o trabalho do ator em cena e, em particular, sua relação com o texto dramático. Para discutir alguns destes pontos, vou desenvolver uma breve reflexão sob a forma de um triplo estudo de caso, tomando por base os exemplos de três espetáculos, encenados recentemente no Brasil, a saber: Strip-tease (2000), Ensaio.Hamlet (2004) e Formas breves (2009).

Uma das primeiras cenas do espetáculo Formas Breves de Bia Lessa e Maria Borba, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo em 2009, mostrava uma atriz sobre uma bicicleta cujas rodas eram presas ao chão por dois atores, que pareciam servir-lhe de pedestal. De frente para o público, a atriz guiava a bicicleta, por vezes pedalando em alta velocidade, e dizendo, também rapidamente, um texto. As rodas da bicicleta serviam de pernas para a atriz que pedalava sem, no entanto, sair do lugar. Ela se equilibrava sobre duas rodas, confiando o equilibro, todavia, à presteza dos dois atores que, por sua vez, aparentavam dar pouca ou nenhuma atenção à sua função de manter a atriz em equilíbrio fora do chão, segurando cada uma das rodas enquanto liam um livro ou fumavam um cigarro de maneira casual. Enquanto permanece pedalando, a atriz vai contando uma história. O relato (em primeira pessoa), recortado do livro Origem, de Thomas Bernhard, é, todo ele construído no pretérito, mas o tempo verbal se vê contrastado por sua presentificação em cena pela atriz-ciclista.[1]

O equilíbrio vacilante da atriz, cujos pés se mantêm fora do chão, faz lembrar a performance Duets on Ice (1974-75)[1] da artista norte-americana Laurie Anderson,  na qual ela se equilibra sobre patins de gelo, cujas lâminas estão presas em cubos de gelo. A performer vai tocando violino enquanto conta histórias e o gelo, que recobre as laminas dos patins, vai aos poucos derretendo. A performance termina quando o gelo derrete e a performer perde, então, o equilíbrio. Equilíbrio tenso que se assemelha ao da atriz sobre a bicicleta com as pernas suspensas. Nos dois casos, onde deveria haver movimento, não há. Nem a bicicleta se move no espaço, nem os patins de Anderson deslizam por uma pista de patinação. O movimento, que deveria estar nos pés suspensos pelas rodas ou pelas lâminas enfiadas no gelo, se desloca do corpo das duas performers para a voz, para a narração de histórias e para o contraste temporal entre o passado da narrativa e o presente da ação dramática. Movimento enfatizado pelo desequilíbrio provocado justamente pela imobilização (das lâminas e das rodas), agenciada pelo gelo ou pelas mãos dos atores displicentes, presentes na abertura do espetáculo de Bia Lessa e Maria Borba.

Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843
Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843

Nos dois exemplos, o de Laurie Anderson e o da atriz-ciclista, com a suspensão do corpo do performer, cujos pés se mantêm fora do chão, como se suspensos por espécies de máquinas, se atribui à imagem do corpo do ator certo descolamento da terra, certo caráter meio incorpóreo, desmaterializado, que chega a lembrar o das figuras de El Greco. Sempre a certa distância do solo. E marcados por certa insubstancialidade. Contrastada, porém, a forte presença. Distância e presença, de um lado, contraste entre pretérito narrativo e presente cênico, entre esforço e imobilidade, ficção e realidade, de outro – o que sugere a discussão sobre o estatuto do personagem, e sua figuração em cena, entre o imaterial e o fortemente corpóreo, como um lugar tenso, contrastivo, de entrada no espetáculo Formas breves.

Passando ao segundo exemplo, Strip-tease e teatro irregular, do poeta catalão Joan Brossa, chama a atenção o fato de, nas cenas de desnudamento do texto, o corpo ser quase que só matéria. A nudez, como questão central, já sublinha a matéria, a exposição de um corpo sem interior, despido de subjetividade psicológica. Gostaria de lembrar, a respeito, um dos primeiros números de strip-tease descritos pelo poeta, quando uma bailarina tira toda a roupa, os cílios postiços, a pinta do rosto, uma peruca, revelando outra peruca por debaixo daquela, até que tira finalmente a segunda peruca, revelando uma careca. Não se identifica nesse corpo nada de suspenso, de imaterial, de não substancial, nem algo capaz de se desfazer no ar, como os espíritos de A tempestade, ou como os personagens que “habitam” os corpos dos atores e que se desmancham ao término do espetáculo. Vislumbra-se, no texto de Brossa, ao contrário, um corpo que é bastante palpável, feito de carne e osso. E o que estaria dentro dele seria, ainda uma vez, matéria (numa das cenas, cai a face e revela-se uma caveira), sempre matéria e não alguma subjetividade ou revelação latente que se apresentaria ao término da cena.

Se há uma oposição nítida entre este exemplo do poeta e dramaturgo catalão e os exemplos citados anteriormente, há, porém, a possibilidade de uma aproximação entre os corpos suspensos criados por Bia Lessa e por Laurie Anderson e uma das cenas do espetáculo dirigido por Daniel Dantas com base nos textos de Joan Brossa.

No strip-tease Lua cheia, entra uma bailarina e se despe de quatro. Quando fica nua, entra um corcunda, bate palmas, desce uma corda, o corcunda amarra os pés da bailarina na corda, bate palmas novamente e a bailarina é suspensa até sumir no urdimento. Na encenação desse número, a luz esverdeada (na verdade uma projeção sobre o telão de fundo e o corpo da atriz) e a cenografia são trabalhados de modo a que o corpo suspenso no ar se confunda com o cenário. Se, por um lado, o corpo suspenso se assemelha a um corpo morto, reduzido à sua materialidade pura, como um pedaço de carne pendurado num açougue, por outro lado, o corpo, ao ser erguido do chão, ao perder o contato com o solo, parece de fato se fundir ao cenário, desaparecer contra o telão de fundo, como se não fosse matéria, como se pudesse, de fato, se desfazer no ar.

Uma tensão semelhante entre desmaterialização e presença física é possível observar numa outra cena do espetáculo Formas breves, em que um ator se despe inteiramente e permanece de pé sem dizer nenhuma palavra, sem executar nenhuma ação, apenas expondo o corpo nu enquanto matéria. Um longo texto é projetado no teto do teatro, nas paredes do teatro, nos corpos dos atores e no chão do palco. O corpo nu do ator se anula, então,  servindo de “tela” para a projeção do texto que não é dito por ele, mas exposto em seu corpo. Como no strip-tease brossiano referido acima, parecendo operar-se uma bidimensionalização desse corpo nu, neste caso servindo de suporte para a escrita.

Este texto que, se dito pelo ator, emprestaria ao corpo alguma possibilidade de fala, de externar possível interioridade, ao contrário, não sai dele, é um elemento que está fora do corpo, que se inscreve nele, mas não se fixa nele, que passa pelo corpo sem deixar qualquer marca ou rastro, e se espalha para além desse corpo, ocupando todo o espaço do teatro. Há aí uma separação entre texto e corpo, entre texto e voz, entre ator e personagem. Ator e personagem parecendo estar em planos diferentes, dissociados um do outro. E o espaço que se abre entre esses dois elementos é ocupado pelo texto projetado, cuja presença acaba por “ganhar” o centro e o foco da cena, atravessando o cenário, dançando pelas paredes do teatro, se movimentando, acariciando os corpos dos atores em cena.

Ainda pensando na tensão entre presença e ausência como forma de discussão do ator em sua relação com o personagem, passo agora brevemente ao espetáculo Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores, dirigido por Enrique Diaz. Nesse caso, essa tensão não se dá a partir da transformação dos corpos dos atores em tela ou em qualquer outro tipo de suporte para a palavra escrita, nem há suspensão de corpos – via gelo, bicicleta ou corda. Nesse espetáculo, o que chama atenção é o movimento de deslocamento dos personagens que vão sendo assumidos por corpos diversos. Quase todos os atores em algum momento fazem Hamlet; Ofélia também é representada por alguns dos participantes da peça. Mas não é só de um ator para outro que os personagens se deslocam. Também podem surgir como objetos. É o caso de Rosencrantz e Guildenstern que são apresentados como dois bonecos de plástico e que depois ressurgem, em carne e osso, na pele de dois atores vestidos exatamente como os bonecos. É o caso também de Ofélia que, a princípio, é apenas um vestido, sem nenhum corpo que o vista. Uma cena inteira é feita assim: uma Ofélia-vestido é manipulada por um ator que contracena com ela. Só ao final da cena, o ator veste o vestido e assume a personagem. No momento em que o vestido é “ocupado” pelo corpo de um ator, no entanto, a personagem ganha corpo e voz, mas logo sai de cena. Em seguida, uma atriz aparece e também não faz, inicialmente, a personagem. Enquanto se prepara para fazer Ofélia, ela reclama da personagem, diz que não gosta de adolescentes e que tem um problema com Ofélia. Só depois desse preâmbulo, a atriz vai aos poucos assumindo a personagem. Há como que uma espécie de recusa em dar corpo a esse personagem. Se nos Strip-teases de Brossa os corpos se despem das roupas, se livram delas e exibem a própria materialidade nua, no Hamlet da Cia dos Atores, aconteceria justo o oposto: um vestido é despido de qualquer corpo que dê forma à personagem Ofélia. É o vestido que se livra do corpo e não o corpo que se livra da roupa. Mas há, na ausência de uma Ofélia de carne e osso, nessa primeira aparição da personagem, no entanto, uma presença muda que se sobrepõe à presença dos atores em cena. O vestido “vazio”, sem qualquer tipo de enchimento que lhe dê forma, bidimensional, especialmente quando colocado no chão, parece querer sublinhar que é aquela roupa que se mostra capaz de presentificar a personagem clássica de Shakespeare com mais eficiência do que se houvesse dentro dela algum ator.

A encenação segue trabalhando com essa tensão entre vazios e cheios, presenças e ausências. Se Ofélia é apresentada como um vestido vazio, como uma personagem de vento, o monólogo “ser ou não ser”, de Hamlet, é construído em cena por três atores que enchem o espaço com as palavras de Shakespeare. Ao invés de fazer do monólogo um solo, a cena oferece um coro de vozes, o que já conferiria ao texto uma presença sonora significativa. As palavras que compõem o primeiro verso do texto são ditas mais de uma vez pelos atores, que, ao repetirem desordenadamente os vocábulos não-ser-ser-não ser-ser-não ser, e assim por diante, retiram as palavras da frase, descontextualizam momentaneamente cada uma, quebrando o período, fazendo com que o verso soe de forma imprevista e trazendo assim o verso, já tantas vezes descontextualizado, de volta para o contexto da peça e do personagem.

Em contraste então, numa mesma encenação, o vazio (de corpo e de voz) que ocupa o vestido-Ofélia e o cheio (de corpos e de vozes) que ocupam a cena do ser ou não ser de Hamlet. Em ambos os momentos há presença e há ausência. Há a presença da personagem clássica na ausência de corpo e voz na Ofélia-vestido e há ausência de um ator soberano da cena, enunciador do famoso solilóquio shakesperiano, para que haja uma presentificação do texto multiplicado em três vozes.

Nas três encenações aqui brevemente comentadas, foi possível observar a presença tanto material (na projeção do texto em Formas breves) quanto sonora (no coro de três vozes para o solilóquio de Hamlet) do texto na cena. E modos diversos de essa presença problematizar a relação entre ator e personagem. E permitir que se observem algumas possibilidades de configuração do corpo na cena contemporânea: os corpos sem matéria, efêmeros, “feitos de sonho”, como a Ofélia-vestido de Ensaio.Hamlet, os corpos-matéria, despidos de roupas e de interioridades, como o corpo pendurado do Strip-tease de Brossa ou o corpo nu de Formas breves, e os corpos suspensos, presos num lugar intermediário entre a presentificação cênica e a narração, como o da menina que se equilibra sobre as rodas da bicicleta em Formas breves.

*Inês Cardoso Martins Moreira é doutora em Artes Cênicas e professora adjunta do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da Unirio.


[1] A performance Duets on Ice foi reencenada por Laurie Anderson no Brasil, no CCBB de São Paulo em outubro de 2010 e no CCBB do Rio de Janeiro em março de 2011, por ocasião da abertura de sua exposição Eu em Tu / I in U.

Dois textos: A memória sangra e Fruição em tempos de entretenimento

A memória sangra: literatura e propaganda na segunda guerra mundial

João Anzanello Carrascoza* e Christiane Santarelli**

…quando tento me lembrar de tudo que passei (…), as lembranças se fundem numa só imagem, como se tudo tivesse durado apenas um dia. Por mais que tente, não consigo desdobrá-las em partes e arrumá-las em ordem cronológica, como normalmente se faz quando se escreve um diário.
Wladislaw Szpilman

Prelúdio

Este artigo é o segundo “conto ilustrado” de uma trilogia sobre a evolução da publicidade com o advento do espírito moderno, o incremento das estratégias e táticas da propaganda durante a Segunda Grande Guerra e suas novas conformações no cenário midiático da pós-modernidade. Inspirado no romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, que reproduz imagens culturais como elementos narrativos (anúncios, cartazes, rótulos etc.), o presente texto adota a forma de relato ficcional. Por meio das anotações de uma judia, a narrativa traz o drama de sua família na Alemanha, a partir de 1938, sua emigração para o Brasil em 1942, e seu cotidiano até o fim da guerra em 1945. Na trama, os personagens tomam contato com as técnicas de propaganda usadas por Hitler e, em seguida, com a propaganda nacionalista de Getúlio Vargas e a publicidade impressa brasileira.[1]

O caderno de anotações

Lembro de ter visto a gravura num livro de mitologia. Prometeu está lá, acorrentado, e as aves de rapina bicam seu fígado eternamente. Agora ocupo o seu lugar nessa cena e vejo a águia ariana descer dos céus, a toda velocidade, e bicar com avidez a minha memória. Em seguida, ela alça vôo de novo e, quando chega às alturas, volta para me bicar impiedosamente outra vez. E outra. E mais outra. E cada investida sua é como o arrancar de um dente a sangue-frio: a memória sangra, sangra, sangra, e não há como estancar a hemorragia.

O que podemos fazer com as recordações? O que podemos aprender a cada tiro, a cada lembrança de dor disparada no pensamento? O pior de lembrar é que os momentos já passados, sobretudo os cruéis, não cessam de ser revividos.

Aquela noite foi da mais profunda escuridão. A primeira. Em que tudo se partiu. Em que o “j” vermelho passou a nos identificar em todos os documentos. A noite do pogrom, quando a perseguição começou de fato. Kristallnacht. Em hordas, eles atacaram as sinagogas, as nossas escolas, as nossas lojas. O armarinho de Berta e Alexander, nossos vizinhos, ficou totalmente destruído. Ruínas, ruínas, esse é o novo compasso do meu coração.

Não me esquecerei enquanto viver. Vi pela janela de casa a sinagoga queimando, as labaredas subindo, vorazes, e o povo assistindo, pacífico, como se fosse um espetáculo inocente. Meus olhos represam cada segundo dessa cena, enquanto a minha angústia vai desaguando sem parar, infiltrando-se em todos os cantos de meu ser para afogar qualquer átomo de resignação que porventura ainda reste. Meus olhos, como se fossem de vidro, vão me estilhaçando um pouco mais a cada manhã, quando, ao abri-los, vejo que o sol ilumina toda a cidade lá fora. Um novo dia. Mas só em sua pele é um dia bonito. As suas horas, negras, se acumulam, em grossas camadas, no fundo de mim.

Berta chora, chora, os olhos como duas brasas que parecem queimarão para sempre. Conta que viu judeus sendo presos pelos nazistas, dezenas deles. Dezenas. Viu policiais baterem num velho rabino até ele desmaiar. Um homem, ao seu lado, disse que não podiam tratar assim os mais velhos, fossem de que origem fossem. Então um policial gritou que ia mostrar como tratavam os judeus, para que ninguém ali se esquecesse, e espancaram o homem até a morte. Berta o conhecia. Havia estudado com ela, quando menino, no mesmo colégio judaico. Ela treme, soluça. Vejo o susto e o terror em seu rosto desfeito: como um espelho, seu rosto é o meu também.

Por todos os lados, destroços. Os vidros quebrados são cacos de um passado íntegro e honesto. São vidas despedaçadas. Somos gravetos partidos e macerados pelos agentes covardes do Terceiro Reich.

Fomos proibidos de ir aos parques, às pracas, às escolas, aos teatros. Não tenho mais onde passear com Jan. Ensino a ele, às ocultas, canções judaicas. Agarro-me à Torá. Agarro-me à esperança de que ainda há humanidade. Kurt diz que há filas imensas de judeus no consulado americano, buscando uma chance de escapar. Alguns estão conseguindo vistos de emigração para a Argentina, o Uruguai, a Venezuela. Todos, todos, pensamos em sair daqui. Da terra onde nasceram nossos avós e nossos pais. Da terra onde vivíamos livres e agora nos aprisionam, nos desintegram, nos humilham.

Os dias são tão sombrios quanto as noites. Nos jornais, nas revistas, nos cartazes de rua, nos selos, as mensagens nacionalistas e promotoras da “raça pura”. Hitler, seu armamento, seus soldados, seus discursos, o Deutsches Reich. As trevas reinam por todos os cantos. O inferno vai se tornando ubíquo.

Hoje é aniversário de Kurt. Não há o que comemorar, senão que estamos vivos. Mas por quanto tempo? E para quê? Os soldados do Führer estão em todas as ruas. A cidade está cheia de cartazes com propaganda nazista. A maioria deles nos maldizem, mas há os que também acusam os cristãos. Alguns trazem palavras de ordem do ministro Goebbels. Se uma mentira é repetida suficientemente, ela acaba por se converter em verdade. Sim, há um deus aqui: Adolph Hitler.

O frio aumenta à noite. Jan dorme no meio de nós. Não sei como consigo aquecê-lo. Neva dentro de mim.

O Rosh Hashanah se aproxima. O que podemos esperar do ano-novo, senão a paz e a decência dos velhos tempos? Os tempos em que podíamos ainda planejar a nossa vida e sonhar em envelhecer com dignidade…

As deportações começaram. Kurt teme que nos enviem em breve para algum campo de trabalhadores. Sugeriu que Jan vá para a Inglaterra no kindertransport. Muitas crianças judias estão indo para lá. É uma longa viagem de trem até a Holanda, Depois, em barcos, as crianças seguem para Londres. Os pais, desolados, tentam convencer os filhos que vão logo depois reencontrá-los. Mas sabem, como nós sabemos, que não haverá depois. Às vezes, no auge da aflição, hesito, o sim e o não me atormentando como agulhas de mil pontas. O kindertransport pode ser a única chance para Jan.

A guerra estourou com a invasão da Alemanha na Polônia. Não sabemos se vão nos dar alguma trégua, enquanto combatem fora do país, ou se vão semear ainda mais o terror.

Hoje aviões sobrevoaram Hamburgo várias vezes. Explodem o silêncio com seus motores, rasgam a nossa calma como uma folha de papel, acendem o pânico em cada um de nós. Cortam o céu cinzento de inverno e, somem, nervosos. Minutos depois, retornam, ainda mais barulhentos. Na última vez, lançaram uma chuva de folhetos sobre a cidade. Berta pegou um na rua. São mensagens do Führer, repetindo seus dizeres megalomaníacos, seus delírios expansionistas.

Nos murais, nos cartazes, nas faixas estendidas pela cidade, nos jornais, em meio às fileiras de bandeiras nazistas, proliferam as propagandas contra nós. Ou contra os cristãos. Contra todos os que não têm sangue ariano.

Hermann, irmão de Berta, conseguiu um emprego de carregador. Vigiado por homens da Geheime Staatspolizei, transporta para a casa dos burgueses arianos o que foi confiscado dos judeus. Móveis, roupas, cofres, mercadorias, tudo. Uma manhã, os soldados comentavam que a Alemanha atacara os Países Baixos. E, de repente, resolveram descarregar suas armas num casal de judeus que passava na rua conversando. Pra comemorar, disseram. Os corpos ficaram estendidos ali, na mesma posição, durante dois dias. Então obrigaram Hermann e outros carregadores a colocá-los num caminhão e os enterrar. A cada dia estamos mais pobres, doentes e amedrontados.

Mas existe alguma esperança. Uma revista americana, passada de mão em mão, chegou até nós. Kurt, que sabe um pouco de inglês, mostrou nela a imagem de uma águia: era uma propaganda que convocava o povo americano a se alistar no exército. Quase chorei, confusa, pensando na águia ariana. A águia que nos meus sonhos vem me bicar a memória, me arrancando lembranças dolorosas que, infelizmente, voltam a se regenerar.

Kurt mostrou-me outra propaganda na revista: a imagem trazia pequenos desenhos de bombas sendo lançadas por um avião. Pacotes de presente que os americanos mandam para Hitler, ele disse. E para nós, também, eu penso. Afinal, aqui estamos, sem direito a abrigos antiaéreos.

A humilhação é cada dia maior. Agora temos de levar presa à roupa, ou ao redor do braço, sempre visível, como uma nódoa, a estrela de davi, para que todos saibam que somos judeus.

Já os nazistas, orgulhosos, levam a suástia, como sua insígnia. A suástica é sua bandeira, seu cálice do Graal.

A estrela de davi é a nossa cruz, o nosso calvário cotidiano. Jan, que fez seis anos, já é obrigado a usar uma também. Nas ruas, espalharam cartazes com fotos de um adolescente, tendo Hitler ao fundo. A juventude serve o líder, diz o título. E, a seguir, a convocação: Todos os meninos de dez anos para as Juventudes Hitlerianas. Kurt diz que as fotografias, como imagens sagradas, ajudam a ampliar o fanatismo dos alemães pelo Führer.

Não nos tratam só como inferiores, julgam que somos seres perigosos. São obcecados pela ideia de que o nosso povo detém o poder em todo o mundo e pretendemos aniquilar a “raça” ariana, que tem neles a representação máxima. É justamente o contrário o que sucede. Estamos sendo perseguidos à luz do dia, sem nenhuma misericórdia.

Kurt conseguiu um exemplar do Der Sturmer, um jornal antissemita. Uma reportagem informava que havia mais de 16 mil pessoas na manifestação contra os judeus em Berlim. O editor, Julius Steicher, diz que somos uma ameaça. Na seção de cartas, nos xingam, dizem que nós somos a desgraça e a perdição da Alemanha. Morro a cada uma das linhas que leio. Os meus olhos me doem. Choro para dentro, como quem engole um pedaço de pano.

Os homens da Gestapo cruzam a cidade de um lado para o outro, o tempo inteiro. Reprimem, maltratam, espancam, torturam. As tropas das SA também vão e vêm, para proteger os membros do partido, as autoridades. Aprendemos a distinguir quem é quem. Uma moeda com duas faces iguais. Eles estão por toda a parte, como se nos vigiassem até a consciência. Nem temos mais os olhos baixos. Nossos olhos estão no fundo da terra, em meio à matéria de que são feitos os pesadelos. Ao despertar, não me lembro mais dos sonhos que tenho. Quando a realidade é um naufrágo cercado de perigos por todos os lados, os sonhos nos afundam em angústias iguais as da vigília. Não há uma linha divisória: o mal se derramou, apagando as fronteiras, como a moeda de faces iguais. De tanto ver o Führer nas fotos dos cartazes, nas faixas, nos murais, sonhei com ele. Minha vida é uma moeda de duas faces iguais. Duas faces dantescas.

Não há mais dignidade. Levas de judeus vivem feitos molambos, pedindo esmolas, roubando e pilhando como os soldados da Gestapo. Racionamos a comida. Por vezes, passamos o dia todo apenas com umas torradas. Deixamos os legumes para a sopa de Jan. Procuramos emprego nos classificados dos jornais, mas ninguém dá trabalho a judeus, senão para nos imolar ainda mais.

Hermann conseguiu emprego para Kurt numa marcenaria. Ele sai cedo de casa, ainda no escuro, e volta ao anoitecer, moído, as mãos feridas, as unhas sujas, às vezes cheias de lascas e estrepes, que depois eu tento extirpar com uma pinça. O pó da madeira lhe dá alergia. Levanta de madrugada se coçando e vai à janela mirar a cidade onde um dia podíamos andar de mãos dadas, caminhando, sem medo de ser ultrajados ou fuzilados de forma injustiçadas, a qualquer hora.

Deus não nos abandonou. Milagres estão ocorrendo. Kurt soube que a chefe do serviço de vistos do consulado do Brasil tem emitido vistos para judeus. Alguns conseguiram fugir para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sei se lá existem índios, mas se houver, não serão tão selvagens quanto os nazistas. Kurt disse que amanhã vai procurá-la. Quem sabe ela não nos livre desse martírio…

Entramos no carro do consulado brasileiro. Não me atenho a esses detalhes, mas Kurt sussurrou, é um Opel Olympia. Nunca mais me esqueci desse seu comentário. Não sei por quê. No banco da frente, o motorista e, à direita, a chefe de serviços de vistos. Eu não sabia que anjos tinham rosto e nome. Aracy, ela se chamava. Pediu a Kurt que lhe desse as jóias e o dinheiro. Iria levá-los na bolsa, para que não fossem confiscados, se a Gestapo nos prendesse. Acompanhou-nos até o interior do navio para ter certeza de que estávamos a salvo e lá nos devolveu nossos pertences. Agradeci-lhe com um abraço forte. Ela disse que também tinha um filho. Acariciou os cabelos de Jan e sorriu. Há tanto tempo eu não via um sorriso. Na mais profunda escuridão é que se pode ver a luz de uma estrela.

Chegamos em São Paulo há dois meses. Chove o dia todo, uma garoa fina, o céu encortinado de cinza. Mas há sol no meu coração. Moramos no bairro do Bom Retiro. Aqui existe uma grande comunidade de judeus. Kurt arranjou emprego numa fábrica de roupas. A vida caminha, mas as lembranças continuam. Não há como parar o fluxo delas. Passaram-se apenas dois anos, desde que tudo começou, e parece a minha vida inteira. A dor não pode ser represada em palavras. A dor é uma mina, o tempo todo extraímos dela mais dor. Não sei ainda falar a língua nativa, mas vou aprender. Essa será a nossa pátria para sempre.

Sinto-me só, apesar do bairro ser totalmente de judeus, com exceção de algumas famílias italianas que vivem ao nosso redor. Tenho dificuldade em entender o português e mesmo para falar com os judeus. Eles vieram há muitos anos para cá, a maioria do Shtetl, dos povoados da Lituânia, da Espanha, da Bessarábia. Os pioneiros estão velhos, os filhos e netos não aprenderam o iídiche. Há também muitos polacos, mas poucos sabem falar alemão.

Levo Jan ao Jardim da Luz para brincar com outras crianças. Às vezes vamos até o rio Tietê. Sem garoa, a paisagem é bonita, o verde estala, faz um calor tropical. Os homens nadam, disputam corridas de barco a remo. Outro dia, um menino se aproximou de Jan e perguntou seu nome. Logo os dois se entenderam e saíram a correr no gramado, brincando, ruidosos. Jan. Que nome eu lhe daria hoje?

Apesar da paz, da posição neutra do Brasil na guerra, tenho medo do que possa nos acontecer. Vejo movimentações estranhas aqui. Há faixas, cartazes e murais nas ruas, anunciando um Brasil Novo. O país se arma. De que lado estará? Vi um cartaz que me lembra os de Hitler. A foto do presidente Getúlio Vargas rodeado de bandeiras brasileiras, aviões, tanques de guerra. Kurt diz que a mensagem é sobre a renovação das Forças Armadas nacionais. Quo vadis?

Uma recordação, boa, reluz agora nas trevas de minha memória, uma surpresa que Kurt nos proporcionou. Fomos no domingo, de trem, com outros judeus, a Santos, para ver o mar. O mar. O sal. O gosto das lágrimas. Dessa vez, lágrimas de encantamento, de gratidão. A felicidade me sofrendo. A Estação da Luz, tão imponente, o vaivém alegre das pessoas, o cartaz com o desenho de uma criança e uma mensagem que não entendi direito. Depois, a vista da serra, de um verde de doer, de tão bonito. E o mar. E Jan correndo pela praia. A vida nele, livre, acenando para o sol.

Queria trabalhar, vender tecido em alguma das lojas da rua José Paulino, ou em alguma tecelagem, para ajudar Kurt nas despesas da casa. Nos Estados Unidos, as mulheres estão indo para as fábricas, ocupando o espaço dos homens que vão para a guerra. É preciso aumentar a produção de armamentos. A guerra traz a miséria para uns, a riqueza para outros. Eu queria ter um emprego: quem sabe costurar, atender no balcão como antes. Talvez assim acalmasse um pouco a minha tormenta.

O Brasil enfim declarou guerra contra o Eixo, depois que navios brasileiros foram destruídos por submarinos alemães. Os racionamentos começaram, principalmente de petróleo e energia elétrica. O medo maior é dos bombardeios aéreos. Em minha mente, já dispara o alarme de novas ameaças. Estarei algum dia em paz?

Pedem que poupemos luz. O governo ordenou que se fizesse black-out na costa do país. Já não quero mais ir a Santos. Vivendo aqui, nos livramos da perseguição antissemita, mas a guerra veio atrás de nós, como uma maldição. As sombras não morrem nunca. Black-out, black-out. Sinto que as sombras existem para brilhar no mais fundo de mim.

O presidente faz grandes comícios pelo país afora, reunindo sempre enorme contingente de populares. O rádio traz notícias de suas realizações todos os dias. As inaugurações de pontes, estradas, escolas, enfim, de qualquer obra pública, são sempre eventos que juntam multidões. Fala-se de um novo Brasil o tempo todo, uma República nova. Um país novo. O nacionalismo é enfatizado nos pronunciamentos do presidente, no discurso de outras autoridades, nos jornais, nas rádios, nas faixas de rua. O receio de que se repita aqui o que vivemos em Hamburgo não me abandona. A águia sempre gera novos filhotes.

Todas as cartas que enviei, nos últimos seis meses, para Berta e Alexander, voltaram. A Cruz Vermelha diz que eles foram embarcados num dos trens com destino a Auschwitz.

Kurt soube pelo jornal que Aracy – a chefe de vistos do consulado brasileiro que nos ajudou a sair da Alemanha –, voltou ao Brasil, com o marido, o diplomata Guimarães Rosa. Gostaria de ter o seu endereço para enviar uma carta. Agradecer. Falar do meu Jan. Perguntar do menino dela.

Kurt trouxe uma revista chamada O Cruzeiro para eu ler. As notícias são otimistas. Afirmam que os Aliados estão prestes a ganhar a guerra. Mas e o que perdemos? O mundo que tínhamos, a nossa terra, os nossos amigos. O que ganhamos sem eles?

Um anúncio de Coca-Cola traz um pequeno mapa das Américas e os dizeres, Unidos hoje, unidos sempre.

Outro anúncio nos lembra que o rádio, a mais eficiente arma da guerra, é invisível. A vitória chegará por meio dele e resultará numa nova era em que os homens serão mais livres. Será?, eu me pergunto, observando Jan fazer a lição escolar, distraído, as pernas balançando.

Quando fizemos o passeio a Santos, ficamos amigos de uns polacos que vivem aqui perto, ao lado da Escola de Farmácia. Issac e Margot viveram no gueto de Varsóvia e conseguiram fugir de um dos trens de transporte de gado que levavam prisioneiros para os campos de Treblinka, onde seriam tratados como cobaias pelos nazistas.

Margot conta que não sabe como sobreviveu à epidemia de tifo, à carnificina dos soldados das SS, dos lituanos e ucranianos que, depois, vieram fazer a vigilância do muro entre o gueto e a zona ariana da cidade. Perdeu toda a família. Era enfermeira num berçário judaico, quando, um dia, agentes da Gestapo entraram em tropelia, pegaram os recém-nascidos e os jogaram numa carroça abarrotada de cadáveres. O grito das mães e o choro desesperado das crianças continuam ecoando nos meus ouvidos, Margot diz. E se cala. Issac era tipógrafo e sabia um pouco de alemão. Conseguira emprego num jornal que os nazistas editavam lá, fabricando falsas notícias sobre a guerra. Às vezes, ouvia disparos na rua e ia até a janela: eram judeus sendo fuzilados por nada.

Nas noites de sábado, vamos ouvir rádio na casa de Margot e Issac. Como se anestesiados pelas músicas e os programas, esquecemos nossa história. Rimos e cantamos os versos de uma  propaganda de um remédio para dor de cabeça, Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Então vêm as notícias da guerra. Morte, destruição, escombros. Escombros, destruição, mortes. Mas há também histórias de prisioneiros salvos por tropas aliadas. Histórias de fugas como a nossa. Histórias de vidas ressuscitadas.

Hoje é o Purim. Dia de comemorar a salvação do massacre de Assucro. E da nossa própria salvação. Se estivéssemos em Hamburgo, certamente teriam nos enviado para um campo de extermínio. Penso em Bertha, em Lore, em Fanny, amigas com quem estudei no colégio. Penso no rabino que mataram. Penso no mundo que começou a submergir na Kristallnacht.

Os jornais falam que os ingleses inventaram um equipamento, chamado radar, que localiza os aviões inimigos escondidos atrás das nuvens. Assim podem atacá-los de surpresa e eliminá-los. O americanos também o fabricam.

Não mais localizo o mal dentro de mim. Ele se misturou ao meu sangue. Não há radar que o encontre. Parece que nunca mais serei uma mulher inteira. Sou um vaso quebrado. Vejo Jan aprendendo português com facilidade, brincando com as outras crianças, e tento me reanimar.

Posso dizer que estamos bem. Mas a realidade vaza para os sonhos que não poderão jamais ser apenas sonhos. A memória sangra. As lembranças continuam fluindo, intermitentes, e me esvaziam de confiança. A felicidade em mim sempre terá uma gota de tristeza que, espero, não vá envenená-la. Jan vai crescendo saudável. É um menino alegre. Joga futebol com os góis. Seu pequeno passado de turbulências pode ser esquecido. O meu não.

Chegam notícias de que aviões aliados bombardeiam a Alemanha incessantemente. Emoções se mesclam no meu coração, como duas águas. A queda de Hitler. Mas ao mesmo tempo o nosso solo sagrado destruído. As cidades, os campos, as fábricas. Tudo pode ser reconstruído. Menos a minha alma.

Passei essa manhã pela rua Três Rios. Fiquei pensando. O passado, um rio. O presente, outro. E, para mim, ambos são águas misturadas.

Não há como limpar da água a sua impureza de ser um elemento vivo, que se recicla. A água não nasce. Ela é. Tudo que é vivo dói. O terceiro rio. O futuro. O que me promete? E se ele tiver uma terceira margem, como será a minha? Conseguirei me livrar de sua correnteza?

* João Anzanelo Carrascoza é doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP).

** Christiane Santarelli é doutora em Ciência da Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.


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Nota
[1] Uma versão deste texto foi publicada no livro Tramas publicitárias – Narrativas ilustradas de momentos marcantes da publicidade (Ática, 2009), no qual os autores completam a trilogia constituída de histórias de três épocas distintas do capitalismo, que mostram uma perspectiva histórica do impacto da comunicação de massa na sociedade. Para cada história foram criados personagens, que incorporam valores da época e de sua cultura. A primeira tematiza o “nascimento” da sociedade de consumo. Ambientada na Paris da Belle-Époque, revela a capital da vanguarda europeia – auge da modernidade, ocupada com sua intensa vida cultural, problemas sociais e um capitalismo de produção –, que utilizava a arte publicitária para estimular o consumo de bebidas, remédios, alimentos e diversão. Ao longo de um dia em Paris, um turista estrangeiro, passeando pela cidade, como um flâneur, vê os cartazes de Murcha, Chéret e Lautrec que divulgavam os produtos e serviços da época. A terceira história, situada no período contemporâneo, está contaminada pelo espírito pós-moderno. O protagonista é um cidadão sem pátria, conhecedor das mais modernas tecnologias de comunicação e as usa para atingir seus objetivos publicitários. A narrativa faz uso da estética pós-moderna, do pastiche e da bricolagem de gêneros.


Fruição da arte em tempos de entretenimento

Ieda Magri*

Em 1970, sai a público, postumamente, a Teoria estética de Adorno. Nela o filósofo questiona o “direito de existência” da arte. Diante do desencantamento do mundo, após Auschwitz, e frente ao indomável crescimento tecnológico, Adorno expõe toda a negatividade que cerca o lugar da obra de arte no mundo moderno. A principal crítica de Adorno, ou a que causou – e causa até hoje – mais polêmicas, é a do prazer artístico. “Numa sociedade onde a arte já não tem nenhum lugar e que está  abalada em toda a reação contra ela, a arte cinde-se em propriedade cultural coisificada e entorpecida, e em obtenção de prazer que o cliente recupera e que, na maior parte dos casos, pouco tem a ver com o objeto” (Adorno, 1970, p. 27).

Para Adorno, “a experiência artística só é autônoma quando se desembaraça do gosto da fruição” (p. 20). Em sua crítica ao psicologismo e à doutrina Kantiana, chega à afirmação da necessidade de se extirpar qualquer vestígio de deleite e à consequente questão da finalidade da obra da arte. Dela deve ser afastado o caráter de práxis real.

Tornado irreconhecível, o deleite disfarça-se no desinteresse Kantiano. O que a consciência universal e uma estética condescendente concebem,  segundo o modelo do prazer real, sob o “prazer artístico” de nenhum modo existe provavelmente. O sujeito empírico não participa senão de um modo muito limitado e modificado na experiência  artística telle quelle; deveria reduzir-se à medida que a obra  adquire uma qualidade cada vez maior. Quem saboreia concretamente as obras de arte é um filistino; expressões como “festim para o ouvido” bastam para o convencer (p. 24).

Colocado o problema do prazer e a proposta de uma estética que o negue, o próprio Adorno lança, em seguida, a questão: “Mas, se se extirpasse todo o vestígio de prazer, levantar-se-ia então a questão embaraçosa de saber porque é que as obras de arte ali estão. Na realidade, quanto mais se compreendem as obras de arte, tanto menos se saboreiam”. Como contraponto, evoca o comportamento tradicional: o da admiração. Ao contrário do “prazer de ordem superior”, o sentimento de admiração faria com que o “contemplador desaparecesse na  coisa e não  se incorporasse a ela.  Para Adorno, só quem tem “uma relação genuína, na qual ele mesmo desaparece” não toma a arte como objeto. Ou seja, só é digno da arte aquele que a conhece a fundo: o artista e o crítico ou filósofo: “A espiritualização da arte estimulou o rancor dos excluídos da cultura, iniciou o gênero da arte de consumo, enquanto, inversamente, a aversão contra a última impeliu os artistas para uma espiritualização cada vez mais radical… O conceito de deleite artístico foi um compromisso infeliz entre a essência social da obra de arte e a sua natureza antitética a respeito da sociedade” (p. 25).

Theodor Adorno
Theodor Adorno

Se, para Adorno, o objeto estético exige da parte do contemplador o conhecimento (exige que se penetre na sua verdade e na sua não verdade) fica, como tarefa da sociedade a educação estética daquele que contempla. Adorno mostra duas opções ao produtor cultural: conceber a arte como naturalmente maior do que o sujeito que a contempla e, portanto, inacessível a ele de modo que apenas aqueles que têm competência cultural possam participar da experiência estética; ou iniciar (não aponta meios) uma educação estética baseada na reflexão sobre a arte, dissociada de um uso prático referente à cotidianidade e não baseada no desejo ou no prazer.

Com uma clara intenção polêmica, em 1972, Hans Robert Jauss escreve a sua  Pequeña apologia de la experiência estética. Apenas dois anos depois da Teoria Estética de Adorno, Jauss faz uma conferência pública no XIII Congresso Alemão de História da Arte em Constanza e esta é publicada em seguida, apenas acrescida da última parte, dedicada à função comunicativa da  experiência estética. Segundo o que escreve Daniel Innerarity, o tradutor do livro para o espanhol, “és una defensa apasionada del arte, del gozo estético frente a las estéticas de la negatividad y la seriedad  intelectualista del arte ascético, desde Platón hasta Adorno. Contra la oposición entre gozo y trabajo, arte y conocimiento, en ella se afirma que gozar es la experiencia estética primordial” (Jauss, 2002, p. 10). Segundo ele, Jauss se situa  entre os que consideram que a arte possui  um caráter  cognitivo  de modo que  a percepção estética não é nem o conhecimento máximo nem a pura recepção do indizível.

Hans Robert Jauss
Hans Robert Jauss

Jauss descreve a experiência estética privilegiando o ponto de vista da recepção[1] e critica Adorno especialmente por pensar a obra separadamente do seu receptor até o ponto de considerar apenas negativa a forma de pensamento que pressupõe um receptor que interfere na obra:

…Adorno desconfía tanto de la experiencia practica del arte en la era de la industria cultural que le niega toda función comunicativa en la sociedad, y destierra al público a la soledad de una experiencia en la que “el receptor se olvida de sí mismo y desaparece en la obra”. No se ve, sin embargo, cómo el solitario espectador, al que Adorno niega todo goce artístico y sólo concede “sorpresa” o “sacudida”, puede llegar desde la recepción contemplativa a la interacción dialógica. En esta medida la estética de la negatividad, que Adorno desarrolla como terapia frente a la industria cultural, deja abierta la pregunta acerca de cómo se franquea el abismo entre la praxis presente y el arte como promesse de bonheur para la experiencia estética, y como ha de ser conducido el solitario y sorprendido espectador, mediante la experiencia comunicativa del arte, a una nueva solidaridad de la acción (p. 50-51).

A experiência estética, para Jauss, proporciona um espaço de jogo frente à própria experiência, na medida em que as obras de arte não tiram o receptor de seu mundo da vida prática, mas abrem espaço à liberdade necessária  para perceber e modificar essa experiência cotidiana:

Do ponto de vista de la recepción, la experiencia estética se distingue  de otras funciones del mundo de la vida  por su peculiar temporalidad: hace ver las cosas de nuevo y proporciona mediante esta función descubridora el goce de un presente más pleno; conduce a otros mundos de fantasía y suprime en el tiempo la construcción del tiempo; anticipa experiencias futuras y abre así el campo de juego de acciones posibles; permite conocer lo pasado o lo reprimido, conservando de este modo el tiempo perdido. […] La percepción estética modifica a quien percibe, aunque sólo sea porque hace nuevamente eficaz la peculiaridad del contenido estético frente a una  rutinaria hacia los objetos (p. 18).

Hoje o termo gozo, desfrute – “tener uso o provecho de una cosa” – perdeu seu significado primeiro como modo de apropriação do mundo e autoconsciência, que legitimou, em outros tempos, o trato com a arte. Na atualidade a atitude de prazer  se enreda antes,  numa falsa consciência da cultura de consumo. O prazer para os que querem as coisas mais fáceis para desfrutar sem pensar. Assim, quando o receptor é pensado na teoria da arte, é concebido como alguém a ser educado contra sua inclinação ao prazer, transformando a sua empatia em reflexão e crítica. Só é objeto de estudo aquela atitude que ultrapassa a primeira relação de identificação do receptor com o objeto ou com o espetáculo. A experiência estética considerada genuína é somente aquela que se dá quando extirpa de si todo o prazer e  o eleva ao cunho de reflexão.

O que Jauss propõe, ao recuperar o direito do receptor ao gozo como experiência primordial é que se ultrapasse o pressuposto de que a reflexão estética seja o fundamento de toda a recepção. O gozo estético, então, pode ser associado ao conhecer e ao atuar: o receptor sai de uma atitude passiva e de entrega ao prazer, para a liberação da consciência produtiva, receptiva e intersubjetiva ou comunicativa. Assim, a experiência estética é sempre liberação de e liberação para, como, já podemos adivinhar, está posto na teoria aristotélica da catharsis.

Jauss afirma que a tradição ocidental da reflexão teórica da arte está totalmente voltada ao conceito platônico do belo e que seria interessante, senão necessário, descobrir ou redescobrir a práxis produtiva, receptiva e comunicativa da arte na história da cultura europeia. Ele assim o faz, pela retomada  dos conceitos de poiesis, aisthesis e catharsis. O termo poiesis – capacidade poética –  designa a experiência estética fundamental do homem, em sua produção artística, se familiarizar com o mundo, obtendo nessa atividade um saber que se distingue do conhecimento conceitual da ciência e também do fazer instrumental. A capacidade poética presente na construção do objeto artístico marca a separação entre o trabalho comum do cotidiano e o trabalho artístico. A aisthesis designa a  experiência estética fundamental, dada pela obra de arte, de renovar a percepção das coisas, embotada pelo costume. A catharsis, termo que mereceu maior reflexão por parte de Jauss nesse texto, designa a experiência estética fundamental de que o contemplador, na recepção da arte, se desliga da vida cotidiana  através da satisfação estética e retorna a uma identificação comunicativa ou orientadora da  ação.

A oposição entre experiência estética e  práxis moral, segundo Jauss, não é um efeito necessário da arte. Passou-se a pensar sobre ela quando qualquer modelo didático ou exemplar ou qualquer identificação ou simpatia pelo herói foi considerado uma banalidade e uma blasfêmia contra a arte autônoma. Para responder à questão de como  se poderia  superar a oposição entre experiência estética e  práxis moral, Jauss recupera a  catharsis, conforme a descreve Aristóteles, como  propriedade essencial da experiência estética.

Para Jauss, a estética da negatividade está presa na contradição de pressupor  a consciência emancipada de um espectador já formado no trato com a  arte e  que haveria de se liberar mediante o processo comunicativo ou consensual da experiência estética.

É somente a partir  da identificação espontânea, e não a partir das reflexões que suscitam, que a arte pode transmitir normas de ação. É também a partir delas  que se abre a possibilidade de identificação com o herói que, no entanto, é ambígua no sentido de que enquanto espaço comunicativo pode modificar comportamentos na quebra de normas e na reconfiguração que orienta a ação, mas o espectador tem também o direito de liberar-se para um prazer puramente individual. Esta ambivalência fundamental é o preço a ser pago pela catharsis pela mediação do imaginário.

Contudo, a experiência estética não se esgota na alternativa entre um efeito emancipador e um efeito conservador da arte na sociedade. Jauss sustenta que entre  os extremos  de uma função  transgressora de normas e outra cumpridora de normas, há uma outra opção no campo da função comunicativa da arte, que é a  configuradora de normas.[2]

Do ponto de vista da comunicação, a experiência estética se dá, quando ao espectador/receptor é dado o direito de aprovação, de “aceitação na liberdade” como já apontou Kant no juízo do gosto. Jauss recupera Kant, como o pensador “que é uma autoridade indiscutível”, único que apresenta a “receita” de como pode a arte afirmar sua negatividade  frente à realidade social mantendo a sua função configuradora de normas: “el juício estético puede proporcionar ejemplos tanto de um juício desinteresado, no condicionado por uma  necesidad, como de um consenso abierto, no determinado principalmente por conceptos y reglas” (p. 93). A remissão do juízo estético à aprovação dos demais possibilita a participação em uma norma constituinte e, ao mesmo tempo, constrói a sociedade no pluralismo estético. Jauss sustenta que a Crítica do juízo de Kant fez época pela subjetivação da estética, enquanto que seu conceito pluralista de juízo estético que remete a uma aprovação foi esquecido. E só ganhou atualidade agora, diante de uma indústria cultural dominante e dos efeitos dos meios de comunicação de massa. Assim, a tentativa de recuperar a função comunicativa da experiência estética resulta numa positivação dessa experiência. Diante de tal positivação a estética da negatividade não deve “retroceder assustada”  senão que traduzir  novamente as formas transgressoras de normas ou de identificação irônica numa função configuradora de normas. Se a experiência estética não se caracteriza apenas pela criação na liberdade, mas também pela aceitação, isto é, no âmbito da recepção na liberdade, o consenso  aberto, não determinado por conceitos e regras, mas pelo exemplar, dá ao comportamento estético uma significação mediada pela praxis da ação. O receptor joga com os valores preestabelecidos e os que a obra adquire no momento da recepção, portanto ele interfere na obra, faz uma escolha e acrescenta seu próprio julgamento.

Jauss aponta o problema de sua própria teorização da recepção como o problema do horizonte de expectativas do receptor e das concepções pré-recepção que se vinculam à identificação. Isso diz de uma recepção da arte condicionada por fatores externos que impedem o acesso e a identificação de certo público com certa arte.

Nesse sentido, torna-se relevante lembrar as reflexões de Pierre Bourdieu em As regras da arte, quando aponta para a cisão entre uma arte concebida para o grande público, fortemente marcada por sua inscrição na categoria que quer agradar o público, conferir ganhos financeiros imediatos e se legitimar justamente pelo gosto do maior número e outra, que busca sua legitimidade entre os pares, geralmente os próprios artistas, e cuja característica maior seria a busca da autonomia em relação ao mercado.

Na literatura, por exemplo, o prestígio de um gênero em relação a outro, depende muito da qualidade do público:

Os progressos do campo literário no sentido da autonomia são assinalados pelo fato de, em finais do século 19, a hierarquia entre os gêneros e os autores, segundo o critério específico do juízo dos pares ser quase exatamente a inversa da hierarquia segundo o sucesso comercial (Bourdieu, 1996, p. 133-34).

Ou seja, na hierarquia segundo o lucro comercial aparece em primeiro lugar o teatro, depois o romance e por último a poesia; na hierarquia segundo o prestígio, vem primeiro a poesia, depois o romance e por último o teatro. Os gêneros distinguem-se, portanto, por 3 aspectos: preço do produto (mais alto, mais prestígio); qualidade dos consumidores (mais consumidores, menos prestígio); e ciclo de produção (quanto mais rápido o lucro é obtido, menos prestígio).

O mesmo paradigma ainda permanece hoje, quando há uma obstinada aversão dos artistas ao que vende e um prestígio alto pelo que não vende, considerado cult. Ao mesmo tempo, há o fetiche do mercado, que aproxima os artistas do público na mesma medida em que diminui seu prestígio entre os pares. Esses valores são preconcebidos e orientam a aproximação entre obra e receptor, determinando a fruição da arte, num primeiro momento, nem pelo prazer estético, nem pelo conhecimento, mas sim pelo preconceito criado pelo mercado e pelos artistas.

Adorno e Horkheimer, ainda em 1947, chamavam a atenção para o problema da cultura de massa no livro Dialética do esclarecimento. A denúncia de Adorno de que a arte é tomada como mercadoria pela indústria cultural e adaptada ao consumo em larga escala, aponta para um receptor forjado no próprio sistema industrial. Apossando-se da “arte superior” e da “arte inferior”, a indústria cultural tira-lhes o sentido original para tornar uma acessível, no sentido de ser aceita, entendida e consumida e outra mais limpa, com um tratamento mais aceitável, fazendo perder “através de sua domesticação civilizadora o elemento de natureza resistente e rude”. Adorno deixa claro que  a massa  à qual a indústria cultural se dirige não é  “o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 26).

Contudo, a premissa de que, como indústria, os meios acabariam reduzindo os públicos ao padrão de consumidor ideal, produzindo um quadro de homogeneização, é refutada por Renato Ortiz, no seu livro Mundialização e cultura, entre outros autores que resistem ao pensamento que toma o receptor como “tolo cultural” completamente manipulado pela indústria. Esses autores operam mais com conceitos de “nivelamento”, “classes de consumo” e defendem que há, ao lado de uma produção homogeneizante, a diversidade de culturas e a democratização do acesso à arte chamada erudita.

Adorno e Horkheimer citam o cinema como prova da atrofia da atividade do espectador:

…para seguir o argumento do filme, o espectador deve ir tão rápido que não pode pensar, e como, além disso, tudo já está dado nas imagens, o filme não deixa à fantasia nem ao pensar dos espectadores dimensão alguma na qual possam mover-se por sua própria conta, com o que adestra suas vítimas para identificá-lo imediatamente com a realidade (p. 122).

Walter Benjamim aborda o espectador de cinema por outro ângulo e, conforme Susan Buck-Morss, “para Benjamim, a técnica da montagem tinha ‘direitos especiais, talvez mesmo totais’, como uma forma progressista, porque ela ‘interrompe o contexto em que se insere’ e assim ‘age contra a ilusão’” (Buck-Morss, 2003, p. 97).

Walter Benjamin
Walter Benjamin

Considerando o papel do receptor para pensar a arte, Benjamim apresenta uma visão menos pessimista do fenômeno das massas em relação ao pensamento de Adorno (cuja Dialética do esclarecimento é uma resposta ao ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Benjamin). Martin-Barbero sustenta que Benjamim “foi o pioneiro a vislumbrar a mediação fundamental que permite pensar historicamente a relação da transformação nas condições de produção com as mudanças no espaço da cultura, isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção, da experiência social”. Para Benjamim, “pensar a experiência é  o modo de alcançar o que irrompe na história com as massas e a técnica” (Martin-Barbero, 2003, p. 84).

Pensar a experiência é admitir que estamos cada vez mais pobres dela e que “essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade” (Benjamin, 1996, p. 192). Não há mais volta a uma riqueza de experiências, porque os tempos são outros e agora “surge uma existência que se basta a si mesma”.  Pensar a experiência é, ao mesmo tempo, conseguir entender as transformações que esse empobrecimento produz – na mesma medida em que é produzido – na e pela massa.

Uma das chaves para se entender a nova experiência, para Benjamin,  está na aproximação entre homem e arte operada a partir da reprodutibilidade técnica. Essa aproximação  que destruiu a aura das obras de arte produziu uma mudança nos modos de recepção: o valor da arte não é buscado numa atitude de recolhimento diante da obra, mas na percepção e no uso. Essa é a leitura de uma grande transformação social que coloca o homem, “qualquer homem”, inclusive o homem da massa próximo da arte.

É nesse sentido que Benjamin situa o cinema de modo oposto ao de Adorno: “o cinema corresponde a modificações de longo alcance no aparelho perceptivo, modificações hoje vivenciadas na escala de existência privada por qualquer transeunte no tráfego de uma grande urbe” (Martin-Barbero, 2003, p. 87). Martin-Barbero ainda cita Habermas para acentuar as diferenças do pensamento dos dois expoentes da Escola de Frankfurt: “a experiência que Adorno procura desesperadamente resguardar é a que vem ‘da leitura solitária e da escuta contemplativa, quer dizer, a via régia de uma formação burguesa do indivíduo”, e acrescenta que Benjamim deslocou-se a tempo “de uma experiência burguesa que tinha deixado de ser a única configuradora da realidade” (p. 91).

O apontamento dos novos dispositivos da recepção, cuja chave está na percepção e no uso, é feito por Benjamim no texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Segundo seu raciocínio “a história de toda forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos que só podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, numa nova forma de arte” (Benjamin, 1996, p. 192). Desse modo situa o surgimento da mudança na recepção operada de forma visível pelo cinema, no Dadaísmo: “o Dadaísmo tentou produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos que o público procura hoje no cinema” (p. 191). Os dadaístas operam uma ressignificação da contemplação artística: como estavam menos interessados em vender suas obras do que em agir de forma contrária, tornando-as impróprias para o consumo e para a contemplação, opõem ao recolhimento da burguesia a atitude de distração:

Ao recolhimento, que se transformou na fase da degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento antissocial, opõe-se a distração como uma variante do comportamento social. […] Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica (p. 191).

O Dadaísmo tem o mérito de  recuperar o caráter sensível da percepção, ou seja, a percepção onírica, e com isso preparou o espectador para o cinema, “cujo valor de distração é fundamentalmente tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos que golpeiam intermitentemente o espectador” (p. 192).

A atitude de recolhimento do indivíduo cuja disposição para a arte é cultivada inexiste naquele que acessa a nova arte através do choque, pela percepção tátil, produzido pelo cinema. A recepção tátil se efetua menos pela atenção do que pela exposição à arte, e desse modo acaba, pelo hábito, produzindo a disposição para a recepção ótica: “no que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada” (p. 193).

Paolo Virno, no livro Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporâneas propõe uma forma de ler o tempo histórico atual através do conceito de multidão, preservando como uma das características dessa coletividade a atitude distraída da qual falava Benjamim. Virno sustenta que a multidão  atual se caracteriza principalmente pela linguagem, pelo intelecto e situa no nascimento da indústria cultural o momento em que trabalho – poiésis – e política – práxis – deixam de ser conceitos separados para convergirem. O mesmo argumento, tomado pela via da recepção, conforma o texto de Jauss, como exposto antes.

É nesse momento que o trabalhador se torna um virtuoso (executante sem produto material) através da linguagem, porque a faculdade comunicativa torna-se um componente essencial de cooperação produtiva: “en la industria cultural, la actividad sin obra, es decir la actividad comunicativa que se cumple en sí misma, es un elemento central y necesario. Y justamente por este motivo es en la industria cultural donde la estructura del trabajo asalariado coincidió con la de la acción política” (p. 56).

Na indústria cultural não faltam amostras do trabalho material, resultado final da produção artística; no entanto, a produção material é automatizada enquanto não só  o trabalho artístico, mas todo aquele que é executado pelo homem, depende cada vez mais de sua performance linguística, comunicativa e de sua capacidade intelectual, que deve ser entendida como faculdade de pensar, potência e não conhecimento adquirido.

Sendo mais otimistas ou mais pessimistas, todos os autores abordados neste artigo partilham da premissa de que a indústria cultural e o surgimento de novos processos de tecnologia no campo da arte modificaram tanto sua produção como sua recepção e em maior ou menor grau insistem na necessidade de se acompanhar a “evolução” da técnica com um olhar crítico que também lance mão de categorias flexíveis capazes de dar conta dessas metamorfoses. Se está claro que a produção e a percepção da arte se modificaram com a reprodução técnica e com as mudanças profundas no mundo do trabalho, está ainda mais claro que o fruidor de arte hoje é sempre também um artista em potencial. Seu modo de perceber a arte é o ponto de vista daquele que é capaz de fazer também e não mais a do tolo que vê um gênio. As faculdades ditas artísticas, próprias do terreno da arte migraram para o mundo do trabalho, como aponta Virno, o mundo do trabalho exigindo o uso da linguagem e da imaginação mais do que o trabalho braçal, afastado do mundo da arte.

A arte, assim, passa a pertencer muito mais ao mundo do entretenimento (mesmo as exposições de artes plásticas, sempre antes mais restritas a um público conhecedor) do que ao mundo do conhecimento. Ou seja, aquilo que Jauss reivindicava, contra Adorno, é cada vez mais visível como real na recepção estética e, talvez, aquele receptor contemplativo que Adorno queria resguardar esteja hoje em extinção.

*Ieda Magri é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora substituta do Programa de Ciência da Literatura da mesma universidade, onde também desenvolve pesquisa de pós-doutorado sob supervisão de Beatriz Resende. É autora dos livros de ficção Tinha uma coisa aqui (7Letras) e Olhos de bicho (Rocco).


Referências

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

ADORNO Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura: obras escolhidas, volume 1. 10ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar – Walter Benjamim e o projeto das passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte; Chapecó: UFMG; Argos, 2003.

JAUSS, Hans Robert. Pequeña apologia de la experiencia estética. Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Trad. Teresa Cruz. 1ª ed. Lisboa: Passagens, 1993.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: editora da UFRJ, 2003.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Trad. Adriana Gomes, Juan Domingo Estop, Miguel Santucho. Traficantes de sueños: Madrid, 2003.

Notas

[1] “[Jauss é] conocido fundamentalmente por haber fundado la Escuela de Constanza y como cabeza visible de la llamada ‘estética de la recepción’, un enfoque hermeneutico de las artes y la literatura, es uno dos renovadores más radicales de la estética contemporánea” (p. 10).

[2] As diferentes funções são associadas ao tipo de identificação com o herói. Jauss apresenta uma tabela de tipos de identificação estética com o herói,  a sua relação com a disposição receptiva, e as normas de comportamento do espectador (p. 87 e 88).

Um procedimento de Nuno Ramos: a imagem moderna desobrada | Júlia Studart*

Há uma questão saliente no trabalho do escritor e artista visual Nuno Ramos: uma espécie de apropriação desapropriante (num movimento entre posse e despossessão) que ele desenvolve, como modo de uso e operação crítica, logo política, de fragmentos e destroços de algumas imagens da literatura e da arte modernas para tentar reposicioná-las com o seu trabalho numa discussão por dentro do circuito da literatura e da arte agora, no presente. São inúmeros os exemplos dessas intervenções disjuntivas e, mais ainda, são cortes, montagens e acessos extremamente convulsos e intermitentes, o que parece tornar o que faz muito mais interessante e pertinente ao justapor e disseminar essas imagens manifestas entre o que escreve nos seus livros e o que constrói como intervenção visual nas suas exposições. Nuno Ramos procura fazer usos variados da potência da imagem moderna, quase sempre colada a um manifesto, numa virtualização que tende a propor e desfazer toda ideia de programa, ordem ou hierarquia, compondo assim novas imagens numa inoperação do comum.

Importante, portanto, lembrar que é Jean-Luc Nancy quem aponta para um désouvrement nessa conjunção, nessa constituição de uma comunidade inoperante, que seria também, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensarmos a arte e a literatura  – como elaboração ficcional da história ou da história como uma invenção constitutiva – como aquilo que ainda pode impor alguma forma de vida contra o poder, como  aquilo que pode viver e, principalmente, sobreviver na intimidade de um ser estranho. Diz ele que é

porque há isto, este desobramento que reparte nosso ser em comum, há “a literatura”. Ou seja, o gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspenso de tocar o limite, de indicá-lo e de inscrevê-lo, mas sem franqueá-lo, sem aboli-lo na ficção de um corpo comum. Escrever para o outro significa na realidade escrever a causa do outro (Nancy, 2001, p. 124).[1]

É pensando nisso – há a literatura / há arte e, muito, no que é escrever para o outro, no que é escrever a causa do outro ao tocar o limite na ficção de um corpo comum – que podemos começar a ler os usos dessas imagens no trabalho de Nuno Ramos entre a literatura e as artes visuais como um désouvrement. Em 1995, por exemplo, ele se junta a Paulo Pasta e Fábio Miguez para realizar uma curadoria para o Conjunto Caixa Cultural, de São Paulo, de uma exposição do gravurista suíço-carioca Oswaldo Goeldi em comemoração ao seu centenário de nascimento. Realizaram também uma pequena publicação reunindo gravuras de Goeldi com alguns poemas de Manuel Bandeira, demarcando aquilo que, com Jacques Rancière em seu livro O destino das imagens, é possível chamar de uma composição seriada a partir dos usos da frase-imagem. A frase-imagem, diz Rancière, não é apenas a união de uma sequência verbal e de uma forma visual; mas sim uma potência de expressão que pode vir tanto nas frases de um romance quanto numa encenação teatral ou num filme ou ainda na relação do dito com o não-dito de uma fotografia. Para Rancière, uma frase não é apenas um dizível e uma imagem não é apenas um visível. E completa:

Pelo termo frase-imagem entendo a união de duas funções esteticamente por definir, isto é, pela maneira como desfazem a relação representativa da imagem pelo texto. No esquema representativo, a parte do texto era a do encadeamento ideal das ações, a parte da imagem era a do suplemento de presença que lhe dá carne e consistência. A frase-imagem derruba esta lógica. No seu seio, a função-frase é sempre a do encadeamento. Mas, doravante, a frase desencadeia-se, tanto que é ela que dá carne. E esta carne ou esta consistência é, paradoxalmente, a da grande passividade das coisas sem razão (Rancière, 2011, p. 65).

Temos aí uma espécie de quebra da lógica representativa, ou seja, uma queda da legenda. Isto pode ser também um procedimento evidente que passa a constituir a “carne passiva das coisas sem razão” nesse projeto da publicação que segue o modelo de um caderno de notas aleatórias, magro e com espaços brancos que desfaz, assim, qualquer possibilidade de leitura das imagens como legendas dos poemas e vice-versa, ou seja, dos poemas como legendas das imagens. O que se tem é uma conversa resoluta e política entre as gravuras e os poemas página a página, independentes, e desde o título do caderno, quase à modo de Dostoievski, uma das leituras obsessivas de Goeldi, para compor aí uma frase-imagem na conjunção de dois termos díspares: Noite morta.[2] E, nessa ambivalência de figurações da noite que morre, da noite que morreu, Goeldi e Manuel Bandeira traçam, trocam e montam uma espécie de impasse entre o que Nuno Ramos, no texto-posfácio do caderno, chama de “intervalo-eixo” entre o agouro e a libertação, o abandono e o esquecimento. Diz ele que os objetos preferidos de Goeldi – as latas derrubadas, os cães vadios, os móveis ao relento, por exemplo – são preservados apenas em sua mesquinhez, mantidos em seu mistério e, por isso, plenos de potência.

Há nas gravuras de Goeldi, diz Nuno Ramos, uma tristeza que resulta não como atributo, mas sim como condição. São coisas que foram deixadas de lado, como um urubu pousado (“que pertence ao chão”) ou uma ossada. Assim, ele entende que essa tristeza que vem dos trabalhos de Goeldi é “banhada, não encontro termo melhor, [diz ele] numa estranha calma” (Ramos, 1995, p. 37). Por isso, essa “espacialidade acentuada, algo metafísica, que isola os seres e torna os lugares profundos, maiores do que cada um” (Ramos, 1995, p. 37). E, ao mesmo tempo, são esses elementos dispostos ao abandono que acrescentam à “espacialidade desencarnada pequenos comentários lúgubres”, indicando que, “num primeiro momento, tudo no mundo de Goeldi parece triste, isolado e caminha para a morte” (Ramos, 1995, p. 38). Desse modo, é importante verificar nessa série de frases-imagens que se armam aí como, por exemplo, entre o poema de Bandeira intitulado Momento num café e a gravura de Goeldi intitulada Destino, o que se pode chamar também de intermitência, de imagens intermitentes, que oscilam entre a palavra e a imagem, entre a imagem e a palavra, criando uma aparente disposição diferida entre os dois trabalhos (procedimento muito próprio de Nuno Ramos e exercido nessa curadoria como um désouvrement do seu gesto como artista e escritor ao tomar posse da imagem moderna para tocar as questões da vida e da arte contemporâneas):

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Bandeira, 1993, p. 155)

Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.
Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.

O poema de Bandeira é de seu livro Estrela da manhã, de 1936, e na montagem do livro vem logo depois do poema Oração a Nossa Senhora da Boa Morte, quando alguém, sem escolha, pede ajuda às santas Teresinha e Rita dos Impossíveis. E indica que não quer glória, nem amores, nem dinheiro; quer pouco, quer apenas alegria. Adiante, desiste até da alegria, e pede ao menos uma boa morte. Este culto está vinculado ao final da oração da Ave-Maria quando o pedido que se faz à santa é que ela rogue “por nós na hora de nossa morte, amém”. No caso de Momento num café ficamos diante de um poema de observação das circunstâncias cotidianas – muito próprio do procedimento de Manuel Bandeira – entre uns homens distraídos, agarrados à vida num espaço de encontro, e um ritual de morte que se dá num cortejo que passa diante do café.

O descompasso armado pelo poema de Bandeira é, seguindo o que Nuno Ramos diz de Goeldi, praticamente o mesmo: ao mesmo tempo agouro e libertação (se pensarmos na ideia que é a morte que liberta o corpo definitivamente), e abandono e esquecimento (se pensarmos que, no olhar demorado de um único homem, isolado, há um saber do quanto a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, uma traição). E, ao que parece, a gravura de Goeldi segue esse mesmo empenho, basta reparar um pouco na flanagem do espectro, o fantasma, com o crânio à mostra, um oco ósseo, uma sobra humana da morte, a mão direita delicadamente colocada no bolso do casaco e, do outro lado, a mão esquerda que parece empunhar uma foice, um instrumento da Morte como figuração do que ela é. Importante perceber o contorno de um corpo insuspeito que pertence ao chão ao lado do espectro e, ao redor, como nos apresenta Nuno Ramos, temos uma

espacialidade acentuada, com indicações de profundidade bem marcadas, que aumentam a fantasmagoria e o isolamento e, de outro lado, numa intensa comunhão formal entre os elementos, […] movimento e solidez, vento e pausa, dilaceramento expressionista e calma oriental. Através dessa dupla raiz o expressionismo de origem é superado. Solidão e tristeza deixam de ser propriamente expressivas para elevarem-se a uma condição exemplar, a de atributos adormecidos porém essenciais da nossa natureza. Tudo em seu trabalho participa dessa qualidade, desde os homens [quase sempre pobres-diabos] até os cachorros humildes, as latas vazias, os paralelepípedos. Não há foco ou hierarquia e a presença humana espalha-se num entorno também ele vivo e movente. Esquecidos ali, sem finalidade prática, os seres esparramados se encontram. São restos, pedaços e detritos que um vento metafísico juntou (Ramos, 1995, p. 38).

Outro bom exemplo desse empenho da curadoria como um gesto de seu procedimento é o uso do poema Boi morto de Bandeira, que abre o livro OPUS 10, publicado em 1952, que na publicação para a exposição do Conjunto Caixa Cultural aparece ao lado da gravura de Goeldi intitulada Náufragos. E, mais uma vez, fica-se diante de uma espectralidade moderna, a do acaso, do acidente (é possível lembrar também de Mallarmé e seu Un coup de dés), quando o que se vê é uma cabeça em movimento com uma transparência fantasmagórica, um anúncio de morte, num paradoxo interessantíssimo: mesmo náufragos “os seres de Goeldi são sobreviventes”, avisa Nuno Ramos; “os seres perdem o rigor mortis e abrem seus contornos a similitudes e passagens insuspeitadas” e é a queda que oferece redenção a quem caiu (Ramos, 1995, p. XX). O poema de Bandeira também aponta para esse cenário de queda e para esses seres, os fora de prumo, os mensageiros da passagem, os desequilibrados:

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvore da paisagem calma,
Convosco – altas tão marginais!
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi desconhecido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.
(Bandeira, 1993, p. 213)

Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.
Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.

A repetição diferida – boi morto, boi morto, boi morto – desse corpo que se exibe como um restolho à deriva é também muito própria dos interesses de Nuno Ramos em seu trabalho – trabalhar com os destroços do presente, arrancar a pele das coisas –, por exemplo, tem a ver com uma temporalidade de quando a linguagem fala de si mesma, quando ela nos fala sempre da cegueira que a constitui (cecité), como aponta Derrida no livro Memórias de cego (2010, p. 22-23). Pensar o poema, se político, como um corpo animal exposto – figurado nesse boi morto – é armar uma proposição que ao mesmo tempo em que desfaz o caráter humano – “dividido, subdividido” – termina também por refazê-lo e reconduzi-lo a uma vertente deliberada de instinto e desejo – morto, sem forma ou sentido / ou significado –, mais ou menos quando o desejo de saber ver (uma indecidibilidade: vontade de saber – savoir / vontade de ver – voir) fica mais perto de uma natureza da vontade, de um estado natural, como sugeriu Montaigne (1972, p. 481). Basta reparar como Bandeira termina o poema: “O que foi / ninguém sabe. Agora é boi morto, / Boi morto, boi morto, boi morto.

Assim, é possível perceber algo dos modos de uso da imagem moderna por Nuno Ramos – esta, por exemplo, que vem e que surge entre Bandeira e Goeldi – quando a expande para as suas séries de intervenções plásticas ou por seus livros, invariavelmente trabalhos que buscam fincar-se no espaço como um crivo (este espaço informal, trançado, aberto e contingente), como escreve ele no seu primeiro livro, Cujo, publicado em 1993: “Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira, sem quebrar. Tive de descascar a pele dos tijolos aos poucos, com paciência. […] Fui retirando camadas sucessivas, cada vez mais onduladas e acidentadas” (Ramos, 1993, p. 30-31). Ele opta por imagens de corpos expostos quando refaz essas imagens em textos e objetos, também por exemplo, a partir de bichos mortos, corpos abandonados ou objetos descolocados, como aviões enfiados em galhos de árvores ou uma cama afundada na areia da praia.[3]

O seu livro de poemas intitulado Junco, de 2010, um verbete anfíbio e díspar, que tanto pode ser o nome de uma embarcação chinesa quanto o de uma planta de folhas quase soltas, é composto de imagens de corpos de cães (expostos à beira da estrada) engendradas com imagens de troncos soltos e apodrecidos (abandonados na praia). São fotografias, espalhadas pelo livro, que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas.

Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)

Uma pequena nota ao final do livro, diz que as fotografias foram feitas enquanto escrevia os poemas e que sempre os imaginou juntos, como rasuras feitas de pedaços, detritos, restos e palavras sempre com o cuidado extremo de que no intervalo entre palavra e objeto / objeto e palavra não se tenha aí apenas uma legenda entre um e outro. Tanto que em uma narrativa que está em seu livro Ó, de 2009, “Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?”, há uma pergunta definidora que rearma a dimensão da frase-imagem toda feita a partir de destroços: “Mas faz parte da indiferença meio humilde, meio vagabunda dos cachorros deixar-se atropelar sem sequer amassar a lataria, sem ameaçar nossa integridade física nem causar prejuízo a quem os assassina” e “Cachorros sonham?” (Ramos, 2008, p. 151-152) Imagem intermitente que, por exemplo, já está no seu trabalho de 2008, “Monólogo para um cachorro morto”, que, além de uma instalação com lâminas de mármore, um monitor de tela plana exibe um filme em que Nuno Ramos encosta o carro no acostamento da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, segue até o guard-rail onde há um cachorro morto e deixa um aparelho de som – com os alto-falantes voltados para o animal –  que reproduz o texto “Monólogo para um cachorro morto”. Segue um trecho do texto:

Entre nós dois poesia (Pausa). Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada. Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique assim, morto (Ramos, 2010a, p. 442).

São exemplares as exposições Para Goeldi 1, de 1996, na Galeria AS Studio, em São Paulo, com 2 séries de desenhos e 4 esculturas; e Para Goeldi 2, de 2000, na Casa Vermelha, em Curitiba, no Paraná, com móveis usados e lâminas de granito. As exposições parecem retomar uma anotação do seu livro Cujo, de que “A semelhança é o melhor disfarce”.

Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.

Na primeira, o uso do urubu, animal de agouro e libertação, exposto e impresso em areia e silicato; a mala, a cadeira e o cesto fundidos em bronze com restos de vidro derretidos sobre eles, coisas de abandono e esquecimento, até as reproduções de algumas gravuras de Goeldi que sofrem interdição de fumaça e carvão para criar um ambiente que indica uma transparência; e, na segunda, os usos dos móveis em simbiose com as lâminas, como se fossem paredes, e vice-versa e a gravura Tarde, de Goeldi, ampliada numa cava do chão de cimento enchida  com óleo queimado indicando agora um ambiente indefinido – “uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria uma espécie de ambiente” (Ramos, 1993, p. 65). Essas exposições de Nuno Ramos sugerem a mesma desierarquização proposta pelas imagens dos poemas de Bandeira entre vivos e mortos e pelas imagens das gravuras de Goeldi “entre seres e coisas, homens e animais, natureza e social” (Ramos, 1995, p. XX) com uma luz desmesurada e destrutiva em que a tristeza, a solidão e a noite se misturam formando um contorno de corpos e de vida sobreviventes (Ramos, 1995, p. XX).

Nuno Ramos radicaliza esse procedimento ao retomar a imagem que vem dos urubus de Goeldi ou do boi morto de Bandeira, por exemplo, no seu trabalho para a Bienal de São Paulo, em 2010: Bandeira branca. Trabalho composto de “três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções ‘Bandeira branca’ (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), ‘Boi da cara preta’ (do folclore, por Dona Inah) e ‘Carcará’ (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho” (Ramos, 2010b); ou seja, é a deliberação ponderada, sobrevivente e crítica do uso de algumas imagens intermitentes que retira da literatura e da arte modernas para provocar embaraçadas e embaraçosas discussões da crítica e do público de agora, o que só demonstra a força política de um trabalho ao apontar para o furo de várias imposições por dentro do circuito fechado da arte.

Por fim, uma última inferência que pode ser pensada como um gesto mais anacrônico ainda, no sentido de uma colisão dos tempos e de uma modulação entre posse e despossessão (uma apropriação desapropriante), é o seu último livro de pequenas narrativas publicado em 2010: O mau vidraceiro. O título é uma recuperação indicativa da imagem do poema homônimo de Charles Baudelaire publicado no pequeno conjunto chamado Spleen de Paris em 1869, dois anos depois de sua morte. Nesse livro Baudelaire desfaz a forma do poema e o contamina definitivamente com a prosa; e esse “poema em prosa” trata de uma natureza contemplativa em torno de um dos elementos mais fascinantes da nova arquitetura de seu tempo, o vidro. Ao mesmo tempo trata de uma natureza demoníaca própria do homem que explode diante das novas formas e circunstâncias da vida moderna. O narrador, pois, reclama com um vidraceiro que faz pregão em bairros pobres sem ter entre seus objetos de venda nenhum vidro colorido. Empurra-o para a escada e, numa explosão de fúria e ímpeto, grita que é preciso, de algum modo, “a vida com beleza! a vida com beleza!” (Baudelaire, 1991, p. 29) Nuno Ramos, por sua vez, desenha todo o seu livro a partir dessa ambivalência da natureza do homem moderno sugerida por Baudelaire em seu poema na imagem do mau vidraceiro. Na quinta narrativa de seu livro, por exemplo, Homem-bomba, fazendo uso de uma posse e de uma despossessão, amplia o impreciso dessa ambivalência da imagem moderna ao armar uma “desobra” e jogá-la ao mar mais impreciso ainda do mundo, da vida e da arte contemporâneas. Eis a pequena narrativa, na íntegra:

Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos [oitavas, quartas, terças] com um único eco, bum, da minha solidão – vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará (Ramos, 2010c, p. 17).


* Júlia Studart é poeta e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, sobre literatura e arte brasileiras (a partir do trabalho do Nuno Ramos). Publicou Arquivo debilitado, o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Editora Dobra, SP, 2012), Livro Segredo e Infâmia (Editora da Casa, SC, 2007), Marcoaurélio!, uma plaqueta com a artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, CE, 2006), entre outros.

Referências

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

BAUDELAIRE, Charles. “O mau vidraceiro” In: O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Trad. Antonio Pinheiro Guimarães. Lisboa, Relógio D’àgua, 1991.

DERRIDA, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas. Trad. Fernanda Bernardo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

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RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Luís Lima. Lisboa, Orfeu Negro, 2011.

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RAMOS, Nuno. “Bandeira branca, amor – Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”. Folha de São PauloIlustríssima. São Paulo. 17 de out. 2010b.

RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Ed. 34, 1993.

RAMOS, Nuno. “Goeldi: agouro e libertação” In: Noite morta. BANDEIRA, Manuel
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RAMOS, Nuno. Junco. Sao Paulo, Iluminuras, 2012.

RAMOS, Nuno. Ó. Sao Paulo, Iluminuras, 2008.

RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. Sao Paulo, Iluminuras, 2010c.

Notas
[1] Tradução minha a partir da edição espanhola de Pablo Perera: “Porque hay esto, este desobramiento que reparte nuestro ser en común, hay ‘la literatura’. Es decir, el gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspendido de tocar el límite, de indicarlo y de inscribirlo, pero sin franquearlo, sin abolirlo en la ficción de un cuerpo común. Escribir para el otro significa en realidad escribir a causa del otro.”

[2] Importante lembrar que Goeldi também compôs para as narrativas de Dostoievski uma série de gravuras. Assim é que alguns livros das novas edições do escritor russo feitas pela Editora 34, de São Paulo, têm, nas capas, algumas dessas gravuras. Caso, por exemplo, de Memórias do Subsolo e de A Dócil / O sonho de um homem ridículo.

[3] Faço referência, respectivamente, aos trabalhos Fruto estranho, de 2010, exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Marémobilia, de 2010, realizado em Nova Almeida, no Espírito Santo.

Poesia brasileira contemporânea: ações plásticas e performáticas | Renato Rezende*

Em seu influente artigo “A escultura no campo ampliado”, publicado em 1978, Rosalind Krauss apoia-se na então ainda incipiente evidência de uma lógica artística não mais modernista, e sim pós-modernista, para propor e justificar o conceito de “campo ampliado” para a escultura contemporânea. Definindo escultura como aquilo que se dá no espaço duplamente negativo de “não-monumento” e “não-arquitetura”, a crítica de arte norteamericana constrói sua argumentação problematizando a categorização modernista da escultura e concluindo, por fim, que a “escultura não é mais apenas um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes. Ganha-se, assim, ‘permissão’ para pensar essas outras formas” (Krauss, s/d, p. 91). Essas outras formas possíveis de pensar a escultura, contrariando a necessidade da pureza de mediums e da autonomia da obra de arte pregada pelo cânone modernista, situando-se no espaço aberto e maleável de uma troca dinâmica entre paisagem/arquitetura/escultura, abrem-se também para a prática artística de ocupação de vários lugares diferentes pelo artista dentro do campo da cultura e para o uso diversificado de suportes.[1]

Após estabelecer o campo ampliado da escultura, Rosalind Krauss indica que o mesmo procedimento pode ser tentado com outros gêneros artísticos e sugere, por exemplo, que a dilatação do par originalidade/reprodutibilidade possa revelar os contornos do campo ampliado da pintura. Isso é tentado por Gustavo Fares em seu artigo “Painting in the Expanded Field”. O que nos interessa no artigo de Fares é a sua conclusão de que a pintura tem, durante os séculos, perdido um território que era seu.[2] Pensando nesses termos – o da perda de um lugar e, portanto, como veremos, de uma denominação – uma observação semelhante poderia ser feita, e com maior justiça, em relação à poesia: durante os séculos de desenvolvimento da cultura ocidental ela tem perdido um território que era originalmente seu. Em uma rápida e abrangente genealogia da poesia na nossa cultura, desde suas origens gregas, onde ela ganhava contorno e status de arte total, vemos que a tradição épica, ou seja, a tradição homérica, que no correr dos anos gerou Virgílio, Ariosto, Tasso, entre muitos outros, se transformou, com a ascensão da burguesia, em romance e, com o século das imagens, em cinema.[3] Quase ninguém mais escreve longos poemas narrativos com centenas de páginas, muitos personagens e aventuras.[4] Da mesma forma, a tradição da poesia lírica inaugurada por Arquíloco (segundo Nietzsche em O nascimento da tragédia) teria se transformado, na era da cultura de massas e indústria cultural (com a facilidade da reprodução das gravações sonoras), em canção popular.[5] Hoje, são raros os poetas que se dedicam ao poema lírico (sem fazer uso da ironia) e do poema épico tradicionais.[6] Esses gêneros, naquela modelagem, foram, por assim dizer, “subtraídos” da tradição da poesia e transferidos para (e alterados em) os mediums da música, da prosa e do cinema.[7] A poesia, então, adentrou o século 20 com um trunfo que os poetas julgavam inalienável: o pensamento – justamente por ser o pensamento constituído por palavras (assim como poemas são feitos de palavras, segundo Mallarmé). Não é coincidência que muitos dos grandes poetas do século passado foram poetas do pensamento: Eliot, Pound, Pessoa, Valéry… Nas últimas décadas do século 20, no entanto, com o advento da arte conceitual, as artes visuais passaram igualmente a levar uma alta e inaudita carga de pensamento, aproximando-se da filosofia.[8] A irmandade entre poesia e filosofia tem acompanhado a cultura ocidental desde sua origem e tal aproximação tem sido objeto de estudo e debate entre poetas e filósofos há muitas gerações.[9] Restaria-nos pensar, portanto, seguindo essa trilha de pensamento, a relação entre poesia e arte contemporânea em sua confluência filosófica.

Em “Rumo a um mais novo Laocoonte”, publicado em 1940, Clement Greenberg afirma que “quando porventura se confere a uma arte o papel dominante, esta se torna o protótipo de toda arte: as outras tentam se despojar de suas próprias características e imitar-lhe os efeitos. A arte dominante, por sua vez, tenta ela própria absorver as funções das demais” (Greenberg, 1997, p. 46).[10] Ora, se há uma arte dominante hoje, ela se situa, sem dúvida, no reino das artes visuais, ou sua mais recente denominação generalizante, arte contemporânea. Para Rosalind Krauss, que foi discípula de Greenberg, o programa modernista procurou reduzir a pintura à essência de seu medium, ou seja, à planaridade. Tal processo se radicalizou de tal forma que, paradoxalmente, acabou se transformando em seu oposto: radicalizada a especificidade da pintura, ela foi esvaziada para assumir uma categoria genérica de Arte. As telas negras de Frank Stella apontaram para uma planaridade materializada,[11] abrindo caminho para os “Specific Objects” de Donald Judd – a pintura como qualquer outra coisa tridimensional (Krauss, 1999, p. 9-11).[12] Sendo como qualquer outra coisa, a pintura já não podia ser específica, e sim, geral. Desta forma, a pintura deixou de ser pintura para se tornar Arte em geral; e ser um artista passou a significar questionar a essência da Arte (em geral). Assim, o objeto físico deixou de ser necessário, cedendo lugar (ainda enquanto arte, por via da arte, e não da filosofia) à condição conceitual da linguagem.[13] Seguindo essa linha de raciocínio, Arthur Danto pode afirmar que já não há mais um critério possível que determine o que é e o que não é arte: todas as formas de mediums e estilos são legítimas. Isso significa que o artista contemporâneo, ao construir sua poética, tem à sua disposição não apenas as novas tecnologias, mas toda a arte do passado – tenha sido ela reconhecida ou não – e seus meios e estilos (com exceção do espírito em que esta arte foi realizada). “O pluralismo do mundo da arte atual define o artista ideal como um pluralista” (Danto, 1997, p. 114).

Desde logo, o “campo ampliado” pós-moderno pressupunha uma relação mais dinâmica e ambígua entre os mediums. Quase vinte anos depois da publicação de “A escultura no campo ampliado”, em 1999, num ensaio em que estuda a questão da condição pós-midiática da obra de arte contemporânea através de uma análise da obra do “(ex) poeta” belga Marcel Broodthaers, Krauss retorna criticamente à questão da crise do medium. Nessas alturas, seu desconforto com o termo “medium” é tão grande que ela tem a necessidade de abordar o assunto num prefácio:

A princípio pensei que poderia simplesmente traçar uma linha sob a palavra medium, enterrá-la como grande parte dos resíduos tóxicos, e livrar-me dela ao entrar num novo mundo de liberdades léxicas. “Medium” parecia ser por demais contaminado, por demais ideológico, por demais dogmático, por demais carregado de discurso (Krauss, 1999, p. 5).

Articulando três diferentes narrativas, Krauss traça uma genealogia da dissolução do conceito de especificidade do medium nos anos de passagem entre as décadas de 1960/1970. A primeira diz respeito ao trabalho Museu de arte moderna, Departamento das águias, uma sequência de obras que Marcel Broodthaers iniciou em 1968 e deu por encerrada em 1972, através da qual o artista destrói a ideia de um medium estético e transforma tudo em readymade, dissolvendo a distinção entre o estético e o mercantilizado e ficcionalizando a forma como esta perda de especificidade se dá. O segundo e independente ataque à especificidade do meio se dá com o advento da câmera de vídeo portátil (portapak) e o uso do vídeo entre os artistas ligados ao Anthology Film Archives, que funcionou no Soho, Nova York, no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Usando o portapak para criar, Richard Serra, que, no entanto, se considerava um artista modernista, logrou trabalhar e articular o novo medium como algo agregador, um aparato, e portanto como algo muito distinto das propriedades materiais de um mero suporte físico.[14] Tal percepção é concomitante ao surgimento da TV como meio de comunicação em massa. Segundo Krauss, assim como o princípio da Águia, de Broodthaers, a TV proclama o fim da especificidade dos mediums, inaugurando uma condição cultural pós-midiática, que foi compreendida e utilizada pelos artistas. Finalmente, a terceira narrativa que vinha se somar a essas práticas artísticas inovadoras, e que a elas dava credibilidade intelectual, era oriunda das argumentações de Foucault a favor de uma interdisciplinaridade acadêmica e das proposições pós-estruturalitas e desconstrucionistas de Jacques Derrida e outros pensadores franceses.

Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)
Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)

Para Krauss, todo medium é intrinsecamente plural e, desse modo, é impossível reduzir um gênero artístico ao seu medium. O próprio Greenberg teria percebido isso ao, mais tarde em sua carreira, abandonar a ênfase na planaridade e cunhar os conceitos de opticalidade e campo de cor. Um dos argumentos principais da autora, nesse ensaio, é que “a especificidade dos mediums, mesmo os modernistas, deve ser compreendida como um diferencial, auto-diferenciado, e, portanto, uma camada de convenções nunca simplesmente redutíveis à fisicalidade de seu suporte” (Krauss, 1999, p. 53). Segundo Krauss, Broodthaers representa a complexidade da condição pós-midiática pós-moderna, e sua genialidade reside no fato de ele ter, ao usar filmes antigos, alusões ao colecionismo, auto-détournments e outros procedimentos, revelado a condição auto-diferenciada (self-differential) dos próprios mediums, alegorizando-a, ficcionalizando-a e fazendo da própria ficção um medium.

Lamentando a irônica proliferação do princípio da Águia quase trinta anos depois do trabalho pioneiro e aberto de Broodthaers, presente em todas as bienais e feiras de arte do mundo globalizado na forma de infindáveis instalações e trabalhos multimídia, funcionando como uma nova academia a serviço do capital, Krauss clama por uma prática de differential specificity (capaz de reconhecer e articular as complexidades da condição pós-midiática através da contemplação e revelação das formas já ultrapassadas que ela encerra) e define medium como algo que, para sustentar uma prática artística, “deve ser uma estrutura de apoio, geradora de uma série de convenções, algumas das quais, ao assumir o próprio medium como seu tema, serão completamente ‘específicas’ a ela, produzindo assim a experiência de sua própria necessidade” (Krauss, 1999, p. 26).

A definição de Krauss parece ressoar com o pensamento do antropólogo brasileiro Antonio Risério, que, em seu Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, ataca o que ele percebe como um conservadorismo dentro do próprio ambiente de produção literária, e argumenta contra o confinamento da poesia no suporte livro:

Na verdade, os discursos que querem reduzir a poesia a um dos formatos que ela assumiu, ao longo de sua longa trajetória histórica, indicam para mim, nada mais que a crescente ansiedade de literatos conservadores diante das transmutações formais que presenciamos – e, em consequência, diante da impossibilidade de sustentar o caráter único ou mesmo a hegemonia do modelo gráfico que eles elegeram para o fazer poético. Mas o fato – simples – é que a arte da palavra é anterior ao espaço gráfico gutemberguiano. […] Só alguém completamente enceguecido pelo afã irracional de defender o seu sítio (ou a sua baia) escritural, frente à proliferação de signos e formas de nossa circunstância histórico-cultural, pode pretender que a materialização do poético somente seja viável através do medium gutemberguiano, pelo padrão/formato tipográfico que se estabeleceu com a impressão de textos compostos com versos livres. Os computadores, a holografia, o laser, o vídeo etc., estão aí, à nossa volta (Risério, 1998, p. 200).

Para o pensador baiano, “um poema existe quando se materializa num medium. E cada ‘meio’, além de oferecer um rol de recursos, abre um leque de exigências” (Risério, 1998, p. 46).[15] Mas o que exatamente se materializa num medium? O que é um poema? Agamben também debruçou-se, numa série de ensaios curtos, mas agudos e perfeitamente alinhados com sua proposta de crítica negativa, sobre essa questão (Agamben, 1998; 2002; 2008). Para o pensador italiano, são cinco os institutos poéticos, ou os elementos que diferem a poesia da prosa: o fim do poema (ou seja, o verso final, que se lança no silêncio), a versura (o ponto de suspensão da virada de um verso para outro – como o arado que sobe no final do campo, para retornar abrindo novo sulco – momento decisivo do enjambement), a cesura (pausa embutida no interior do verso), a rima e o enjambement, sendo este último o critério mais marcante, assim definido por ele: “a oposição entre um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica” (Agamben, 2002, p. 142).

Poético é o texto no qual essa oposição pode se dar. Partindo da famosa definição pendular de Valéry,[16] mas privilegiando não a harmonia entre som e sentido, mas justamente sua discrepância e irredutibilidade, Agamben afirma que “todos os institutos da poesia participam desta não coincidência, desse cisma entre som e sentido” (Agamben, 2002, p. 143). O poema se define, portanto, como a sobreposição simultânea entre duas séries – a série semiótica e a série semântica, expressão e impressão, presença e ausência, som e silêncio – em atrito e crise, revelando a linguagem em sua própria diferença, em seu lugar enquanto linguagem mesma, em curto-circuito, jamais acatando a unicidade própria do discurso prosaico mas, ao contrário, mantendo a tensão de um antagonismo essencial que aponta para um constante estado de abertura, necessariamente crítico. Jean-Luc Nancy, em seu ensaio A resistência da poesia, afirma: “a poesia é igualmente a negatividade, no sentido em que nega, no acesso ao sentido, aquilo que determinaria esse acesso como uma passagem, uma via ou um caminho, e o afirma como uma presença, uma invasão” (Nancy, 2005, p. 12). Ainda Nancy: “a palavra ‘poesia’ designa tanto uma espécie de discurso, um gênero no seio das artes, ou uma qualidade que pode apresentar-se fora dessa espécie ou desse gênero, como pode estar ausente nas obras dessa espécie ou desse gênero” (Nancy, 2005, p. 9).

Para o pensador brasileiro Adalberto Müller, não se trata mais de perguntar o que é a poesia, mas sim onde ela está. Nesse campo ampliado – ou fissura aberta – o poema – como objeto de linguagem, mas não obrigatoriamente linguagem verbal – desloca-se dos seus suportes tradicionais e requer uma “base epistemológica que possibilite o trânsito seguro de uma área do conhecimento para outra” (Müller, 2012).

Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)
Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)

Nesse lugar ou lugares fronteiriços ou híbridos (espécie de limbo; invisíveis para a crítica mainstream da poesia brasileira – vide, por exemplo, a quase ausência de estudos sobre um poeta seminal como Wladimir Dias-Pino), inserem-se não poucos poetas ou coletivos brasileiros contemporâneos que de formas variadas trabalham a poesia de uma maneira plástico-performática ou que, em outras palavras, têm criado poemas em um campo ampliado. Entendem-se como “plásticas” as ações poéticas que se inscrevem simultaneamente no campo das artes visuais, notadamente a pintura, a escultura e a fotografia. Embora a performance seja um elemento já constitutivo do universo da arte contemporânea (assim como a vídeoarte[17]), suas possíveis ações extrapolam uma definição que a reduz a esse universo,[18] e evidentemente abarcam a poesia. Entre muitos, podemos lembrar o caso de Alex Hamburger (parceiro de Márcia X em várias performances memoráveis), Alexandre Sá, André Sheik e Domingos de Guimaraens, membro do Grupo UM e do coletivo Os Sete Novos,[19] apenas para citar alguns dos que hoje se inserem no circuito das artes visuais. É o caso também de Michel Melamed, poeta, ator, músico e performer, do cineasta e vídeo-artista Felipe Nepomuceno, do vídeo-poeta e fotógrafo Alberto Saraiva e do artista multimídia Ricardo Aleixo.

Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)
Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)

Outros artistas procuram manter sua “identidade” como poetas, ao mesmo tempo em que exploram e atravessam tais zonas de fronteira, embora suas produções fora do campo da “literatura” sejam raramente abordadas pela crítica de poesia: é o caso das performances do coletivo Arranjos para Assobio, ligados a UFRJ, e de poetas que expuseram dentro do Projeto Poesia Visual, no Oi Futuro de Ipanema, Rio de Janeiro, sob a curadoria de Alberto Saraiva, como Roberto Corrêa dos Santos (“Últimas notas sobre o Grande Vidro”), Lenora de Barros (“isso é osso disso”) e Xico Chaves.

Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)
Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)

Menos raro ainda é a presença da palavra no trabalho de artistas visuais, seja no título (como chave para a obra); em textos em anexo inseparáveis do trabalho (vide as narrativas de Tunga, que, aliás, define-se como poeta[20]); ou no próprio corpo da obra, como, entre muitos exemplos, podemos apontar para algumas obras de Ricardo Basbaum, Leila Danziger, Adolfo Montejo Navas (na tradição de Joan Brossa) e Rosana Ricalde (Corrêa Dos Santos; Rezende, 2011). Há ainda aqueles trabalhos que promovem diálogos entre textos e imagens, como “Morte das casas”, de Nuno Ramos – também um excelente prosador e ensaísta[21] – em diálogo direto com Drummond, ou “4 Cantos”, de Nelson Felix, indissociável dos poemas de Sophia de Mello Brenner; além de performances que se utilizam da linguagem corporal e objetos que remetem à escrita (vide Paulo Bruscky e Gabriela Marcondes, entre outros). As ações plásticas e performáticas de poetas brasileiros contemporâneos obviamente não se esgotam nesses rápidos exemplos; no entanto seria interessante, e até mesmo urgente, estudar os rumos da poesia brasileira a partir da perspectiva que elas abrem.

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.


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Notas
[1] O movimento neoconcreto brasileiro, que incluía Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark e o poeta Ferreira Gullar, entre outros, foi pioneiro em práticas artísticas que exercem intervenções no campo social e interatividade e, referindo-se a tais práticas, o crítico Mário Pedrosa foi um dos primeiros intelectuais no mundo a cunhar o termo “pós-moderno”.

[2] “Gostaria de conjeturar que a ‘pintura’ tem ‘cedido’ através da história parte do território que conquistou para si cinco séculos atrás, se não antes, e que essa ‘expansão’ é testemunhada pelas diferentes formas e mídias que prevalecem hoje. A narrativa, por exemplo, foi apropriada pelo vídeo, enquanto que a importância de ‘ver’ e de ‘estar presente’ parecem ter passado para o reino da instalação e das artes performáticas, nas quais o espaço real é um componente importante do trabalho. A ‘mensagem’, se algum dia existiu, tem sido esvaziada da pintura e assumida pelos críticos, ou pelos próprios artistas, como uma atividade verbal, em paralelo e não necessariamente relacionada aos trabalhos de arte sendo produzidos…” (FARES, 2004, p. 477-487). Entre nós, um estudo que se dedica ao campo ampliado da pintura é Pintura em distensão, de Zalinda Cartaxo (2006).

[3] Para Susan Sontag, o cinema é um subgênero da literatura (Sontag, 1987, p. 21).

[4] Exceções, que provam a regra são Latinoamérica, de Marcus Accioly (2001) e o recente Uma viagem à Índia, de Gonçalo Tavares (2010).

[5] Francisco Bosco, poeta e letrista de música, além de ensaísta, possui um curto, mas definitivo ensaio sobre o assunto. Segundo ele (2007): “A poesia é uma potência, atualizada ou não, da letra. A letra, sem deixar de ser letra, pode ao mesmo tempo tornar-se poesia.”

[6] Segundo Paulo Henriques Britto, o poema épico, ligado à construção de uma nação, extingue-se com a construção do estado moderno, e a última epopeia incorporada ao cânone foi Os Lusíadas, que já contêm elementos poucos ortodoxos ao gênero (o não enaltecimento incondicional da pátria, por exemplo). O poeta lírico, por outro lado, afirma uma individualidade, ou melhor, uma subjetividade. O principal elemento da poesia lírica é a memória do poeta, com cujas experiências e vivências interiores o leitor se identifica. Para o tradutor e poeta brasileiro, vivemos no Brasil atual uma predominância de uma poesia pós-lírica, na qual o “eu lírico” é, acima de tudo, uma encruzilhada de textos: “Dois traços, porém, me parecem característicos da poesia pós-lírica: a tendência a dar mais importância à intertextualidade do que à experiência não literária; e a tendência a exigir do leitor um cabedal de conhecimentos de tal modo especializado que a leitura só se torna viável se for feita paralelamente com uma série de notas e explicações” (Britto, 2000, p. 124-131).

[7] “Boa parte da experiência humana de que tratavam a poesia lírica e a épica é eliminada de antemão; alguns poetas pós-líricos dão a impressão de que a condição humana – as contingências da carne, as paixões, a mortalidade – são temas que só devem ser tocados com as pontas dos dedos, se não evitados de todo e relegados à canção popular ou ao cinema” (Britto, 2000. p. 130).

[8] De acordo com Danto: “Os filósofos da arte e o mundo da arte agem como duas curvas opostas que se tangenciam em um único ponto e depois se desviam para sempre em direções diferentes. Isso acaba reforçando a hostilidade própria dos artistas, desde Íon… […] E assim as coisas teriam permanecido indefinidamente não tivesse a arte evoluído de tal forma que a questão filosófica de seu status quase se converteu em sua própria essência. […] Hoje em dia, às vezes é necessário fazer um esforço especial para distinguir a arte de sua própria filosofia. É quase como se a totalidade das obras de arte tivesse se condensado naquela parte delas mesmas que sempre foi do interesse dos filósofos…. A arte é praticamente uma confirmação da teoria da história de Hegel, segundo a qual o Espírito está destinado a tornar-se consciente de si” (Danto, 2005, p. 101-102).

[9] No contemporâneo, por exemplo, tal discussão é articulada por Giorgio Agamben de forma disseminada em vários de seus escritos, mas especialmente em A linguagem e a morte (2006). Entre nós, o poeta e filósofo Antonio Cícero tem se dedicado ao tema em livros como Poesia e filosofia (2012).

[10] Através de um entendimento e de uma prática das artes como mimese, é possível traçar um percurso de traduzibilidade entre elas (ou seja, as artes como tecné, e equiparáveis entre si em suas diferentes maneiras de imitar o mundo). A questão se problematiza e sofre uma guinada com o advento do modernismo e seu incessante estado de crise, quando as artes deixam de ser representativas e se voltam aos seus próprios mediums (perdendo, desta forma, sua capacidade de traduzibilidade mútua).

[11] Por planaridade materializada Krauss se refere às faixas brancas por onde, segundo Stella, a pintura respirava em telas como a série The Marriage of Reason and Squalor (1959). Tal procedimento é idêntico ao usado por Lygia Pape em sua série Tecelares (1958), e as palavras de Krauss para a obra de Stella poderiam ser integralmente usadas para a obra de Pape, como fica provado em Herkenhoff (2012).

[12] Seria interessante pensar tais conceitos em relação à teoria do não-objeto neoconcreto.

[13] Em A linguagem e a morte Giorgio Agamben pergunta: “Se a filosofia se apresenta desde o início como um “confronto”… e uma “diferença”… com a poesia […] qual é a extrema experiência de linguagem própria da tradição poética?” (Agamben, 2006, p. 91). Tal questão permeia boa parte da obra do filósofo italiano. Em Estâncias, Agamben parece apontar a solução dessa crise – “a urgência para que a nossa cultura volte a encontrar a unidade da própria palavra despedaçada” – na manutenção da abertura alcançada pela prática de uma crítica negativa, ou seja, uma crítica – que nasce no momento em que a cisão entre a poesia e a filosofia alcança seu ponto mais extremo – já não dedicada à análise de um objeto que lhe é exterior e que ela procura apreender, mas ao questionamento de sua própria presença: daí seu encontro com a arte – e com o pensamento filosófico. Neste sentido, a poesia seria uma abertura sempre mantida em aberto, a constante renovação de uma ferida enfim exposta (Agamben, 2007, p. 13).

[14] Novamente, traçando um paralelo com o que acontecia no Brasil, seria interessante pensar na produção dos pioneiros da videoarte no país, especialmente no Rio de Janeiro, como Sonia Andrade, Letícia Parente e Ana Vitória, entre outros, que, com uma câmera emprestada, produziram obras ainda contundentes, que não se filiam nem à dicotomia Concretismo/Neoconcretismo nem à Nova Figuração.

[15] Para Risério, o poema que desguarnece as fronteiras com outros mediums, formando produtos híbridos ou multimídia – sempre, para ele, a partir da palavra – pode ser chamado de ‘texto intersemiótico’: “A poesia é a arte da palavra também no sentido de que é, à sua maneira, arte da insatisfação humana diante dos limites da linguagem. À falta de expressão melhor, pode-se chamar ‘texto intersemiótico’ o poema que não se contenta com a permanência nos domínios incontestáveis da semiótica verbal. Ao apelar para outros códigos, ele se situa numa zona de fronteira” (p. 58).

[16] Em alguns estudos seminais (especialmente “Questões de poesia”, “Primeira aula do Curso de Poética” e “Poesia e pensamento abstrato”) Paul Valéry investiga com rigor a natureza da poesia. Para o autor de Cemitério marinho “um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras”, ou seja,  capaz de transportar o leitor à esfera do poético, torná-lo inspirado. Tal máquina (o poema), capaz de recriar no leitor a experiência do poeta, funciona na troca harmoniosa do movimento pendular entre som e sentido (Valéry, 1999, p. 169-210).

[17] Expando o tema específico da relação entre poesia e vídeoarte em Rezende, Renato. “Poesia e video-artes: algumas aproximações”. Revista Z Cultural, ano VII, n 2. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/poesia-e-video-arte-%E2%80%93-algumas-aproximacoes-de-renato-rezende/

[18] Como lembra Daniela Labra: “No campo artístico, o termo performance (ou performing arts) é abrangente, podendo ser aplicado a qualquer prática em que o corpo está presente, seja dança, artes cênicas, circo ou mesmo uma apresentação musical” (Labra, 2008).

[19] Para uma introdução ao fenômeno de coletivos na cena artística brasileira contemporânea, ver: Rezende; Scovino, 2010.

[20] “Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é e coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.” Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende (Tunga, 2008).

[21] Nuno foi incluído por Paulo Ferraz em sua antologia de poetas brasileiros surgidos nos anos 1990 (Ferraz, 2011).

Francisco Iglésias e a literatura | Silviano Santiago*

Francisco Iglésias é um rapaz alto, muito magro, que pega sempre o último bonde Horto. Não dança, não fuma, não bebe, não namora. Com vinte e dois anos de idade. Sua letra é quase ilegível. Apesar de sério, como acontece com as pessoas magras, não usa cartolas. Sua elegância vem mais do pensamento maledicente. Mesmo desafinado conhece quase todos os sambas e tangos que pululam pelos bairros. Embora ele anuncie constantemente seu desejo de deixar as montanhas, há alguma coisa na paisagem que nos segreda que ele ficará para sempre aqui. Há uma lenda a seu respeito que vale a pena ser contada: dizem que, manhãzinha ainda, quando vem do subúrbio para lecionar, o Iglésias vem conversando franciscamente [sic] com as aves e frutas (Anônimo, Edifício, número 2, fevereiro, 1946).

A relação de Francisco Iglésias com a literatura não é passageira, nem estritamente profissional ou disciplinar. Não é tampouco acidente tardio na sua vida nem consequência de viés inesperado na sua pesquisa historiográfica. A literatura faz parte da sua formação de historiador, ou, de maneira mais ampla, da sua “educação sentimental”, para retomar o título do famoso romance de Gustave Flaubert. Não terá sido por coincidência que, no ano seguinte ao em que se gradua em História pela Universidade (Federal) de Minas Gerais, em 1946, aproxima-se do grupo de jovens ficcionistas e poetas mineiros que idealiza e publica a revista Edifício, tornando-se presente nas páginas dos seus poucos e sucessivos números.

Com capa de Heitor Coutinho, a revista traz epígrafe ? “E agora José?” ?, tomada de empréstimo ao poema de Carlos Drummond de Andrade. O primeiro número da revista estampa a data de janeiro de 1946. No Índice, os nomes de jovens e promissores talentos estão associados aos de escritores já conhecidos. Citemos alguns: Valdomiro Autran Dourado, Vanessa Neto, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Wilson Figueiredo, Jacques do Prado Brandão, Otávio Alvarenga, J. Etiene Filho. O título de uma das colaborações se destaca pelo insólito: “Os pensamentos perigosos”. Autor: Francisco Iglésias. O nome da revista era também óbvia alusão a versos de outro poema de Drummond, “Edifício esplendor”. Ao final deste, podemos ler os seguintes versos: “ ? Que século, meu Deus! Diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De Drummond são ainda as palavras que abrem o primeiro número: “Esboço para apresentação de EDIFÍCIO”.

Tomada de um dos mais famosos poemas do itabirano, a epígrafe da revista, “E agora, José?”, constata e enumera as frustrações de uma geração diante do legado que recebem dos mais velhos e, pela interpelação à queima-roupa a cada um dos seus leitores, conclama-o à ação lúcida no presente: “o dia não veio,/ o bonde não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou,/ e agora, José?” Mais velhos e mais moços, os leitores do poema são todos artistas e intelectuais sobreviventes dos anos de chumbo do Estado Novo e, como tal, ainda podem caminhar. Insiste o poeta de A rosa do povo, transformando o tom pessimista em abertura para a esperança: “José, para onde?” Caminhos não há, há que inventá-los. Se o desesperançado Mário de Andrade foi o patrono dos jovens da revista Clima (maio de 1941 a novembro de 1944), o esperançoso Carlos Drummond o foi da revista mineira.

Os Josés mineiros, à semelhança do seu homônimo acariocado, tinham saído, na pátria, da repressão e da censura impostas pelo Estado Novo e, lá fora, dos horrores causados pela Segunda Grande Guerra. A luta contra o nazi-fascismo dentro e fora do país foi a tônica da revista. Drummond é o poeta que elegem como salvo-conduto para exercer o trabalho estético e político no difícil e lento processo de redemocratização por que deveria passar a nação. Amaro de Queiroz, tomando assento ao lado dos jovens autores brasileiros presentes na Plataforma da nova geração, conjunto de entrevistas publicadas por Mário Neme em 1945[1], escreve no número 2: “A novíssima geração, ao contrário da modernista, é muito mais política do que estética”. Não é de se estranhar que, no número da revista publicado em fevereiro do mesmo ano, Francisco Iglésias proclame: “Agora não tenho dúvidas em afirmar que foi a leitura dos autores marxistas o que mais me marcou no sentido de orientação”. Aquele “agora” era, ao mesmo tempo, sinal de alívio e afirmação tardia de um pensamento enfim liberto. O “sentido da orientação” no presente, suas leituras, era a resposta que o talentoso licenciado em História dava à indagação do poema e à epígrafe da revista.

Naquele momento histórico, Drummond foi unanimidade nacional. Em resposta à enquete feita por Mário Neme, o então jovem Antonio Candido se entusiasmava: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo. Por isso, Mário [Neme], eu acho que tem mais sentido a maturidade de um homem como Drummond do que o verdor quase sempre desnorteado e não raro faroleiro de todos nós”. Antes afirmara: “Carlos Drummond é um dos homens da ‘outra geração’, da tal que você quer que nós julguemos. No entanto, não há moço algum que possua e realize o sentido do momento como ele” (Neme, 1945, p. 31-32). A lua de mel de Drummond com a esquerda iria terminar durante o 2º Congresso Brasileiro de Escritores, iniciado no dia 12 de outubro de 1947, em Belo Horizonte. Segundo o testemunho do poeta, nas reuniões o “espírito sectário” levou de vencida o “espírito democrático”. Sobre o racha ideológico e a sua opção, informa Drummond em páginas do diário: “Nenhum de nós queria impedir o direito de os comunistas se manterem organizados em Partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário.”[2]

Diante do quadro sumariamente esquematizado, era de se esperar que Carlos Drummond fosse a figura literária que iria absorver a preocupação do jovem historiador, às voltas com o “sentido” ? para retomar um vocábulo caro a Caio Prado Jr. e aos seus discípulos ? do momento político e social. Basta lembrar poemas como “Nosso tempo”, ou “Os bens e o sangue”, para dar-se conta de que cairiam como a sopa no mel sobre as preocupações confessadas de Francisco Iglésias – a História econômica, a História de Minas Gerais, com algumas incursões na História do Brasil (Iglésias, 1971, p. 11). Possíveis e necessários ensaios sobre o poeta de A rosa do povo dariam continuidade às preocupações mais legítimas do historiador e, indiretamente, aos ensaios selecionados para a sua primeira grande coletânea.

Iglésias opta pela solução de continuidade. Confessa ele em prefácio de História e ideologia: “Não se veja, no caso dos autores [estudados], busca de identificação pessoal: com dois deles, por exemplo, temos mais distância que proximidade [grifo meu] – como se dá com Fernando Pessoa, ou, sobretudo, Jackson de Figueiredo, com os quais, ideologicamente, nada temos a ver” (1971, p. 11). No primeiro caso, sobressaem “o misticismo e o messianismo, modos irracionais, ainda que expressos por um poeta de gênio como Fernando Pessoa”. No segundo caso, “o pensamento reacionário, fruto da falta de sentido histórico – expresso por Jackson de Figueiredo” (1971, p. 14). Os dois autores estudados optam por temas e pela defesa de ideias que contrastam com o abecedário historiográfico marxista do autor e contra ele se chocam.

Francisco Iglésias
Francisco Iglésias

De onde o fascínio pela distância em relação ao objeto? De onde o interesse profundo pela face derrotada da moeda ideológica? Qual a razão para se escrever criticamente sobre o avesso do sentido da história?

A primeira resposta às perguntas foi enunciada, ainda que de maneira imprecisa, pelo próprio historiador. Em dado momento, diz que messianismo e irracionalismo políticos “são momentos para a compreensão do presente”; em outro, acrescenta que o pensamento reacionário de Jackson “exerceria influência em seus dias e mesmo depois” (1971, 14). O gosto pela atualidade, que ecoa em nota pessimista o Drummond do poema “Mãos dadas”[3], é a coordenada comum na resposta dada pelo historiador. Iglésias, no entanto, não tematiza a simpatia entre sujeito e objeto, antes a antipatia, ou seja, o alvo da sua escrita ensaística é a distância, ou seja, um entrelugar entre pontos de vista opostos. As exigências da atualidade se esbatem contra o legado de muitos dos melhores. Iglesias tematiza a memória do arcaico e a diferença, a fim de extrair delas tanto o sumo da dificuldade de análise, quanto as forças para transpor obstáculos concretos e instaurar a racionalidade histórica. A análise do presente em vias de transformação não prescinde do conhecimento e estudo da face derrotada da moeda política e do avesso político progressista. Tese incômoda, sem dúvida, para os simpáticos fogueteiros de plantão e, mais incômoda ainda, para os festivos esquerdistas que seriam legião no pós-64, como tão bem retratou Antônio Callado no romance Bar Don Juan.

Segundo o colega de geração e amigo Jacques do Prado Brandão, no mesmo ano em que Iglésias se insere no grupo Edifício, ele se aproxima do universo acadêmico paulista e nele tenta inserir-se. Por um golpe do acaso transfere-se para São Paulo e passa a trabalhar na prestigiosa Livraria Jaraguá, então de propriedade de Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática (EAD). Este, em texto memorialista, lembra os áureos tempos da livraria. Escreve Alfredo: “Durante a longa viagem aos Estados Unidos e à Europa, substituiu-me na direção [da Livraria] o amigo Francisco Iglésias, mineiro, bolsista da USP, posteriormente professor da Universidade de Minas, considerado por um dos seus Reitores como a maior cabeça daquela instituição” (Mesquita, 1979, p. 43). Os melhores amigos paulistas de Iglésias, segundo Jacques, são Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Sales Gomes. Trata-se de matéria ainda nebulosa, mas depreendemos das poucas informações que seus novos amigos são escritores, críticos e jovens professores, que fizeram parte da revista Clima.[4] Se a hipótese for verdadeira, teremos de dar conta, na formação intelectual de Iglésias, de outras relações perigosas, para usar adjetivo do seu agrado ? as que ele mantém com os jovens intelectuais e universitários paulistas e o seu ideário político.

Tomemos Antonio Candido como guia, já que antes o fora na compreensão do peso e valor da poesia de Drummond nos dois anos que se seguiram à derrocada da ditadura Vargas. Ele nos vai fornecer valiosa pista para mostrar como um quartel de século depois da formatura e da experiência Edifício, em dois ensaios da coletânea História e ideologia, Iglésias se apega às suas origens pelo viés paulista[5]. Responde Candido a Mário Neme:

Aliás, se você me perguntar qual ‘o’ dever específico de nossa geração, eu não saberei responder. Mas se me perguntar qual poderia ser, no meu modo de sentir, um rumo a seguir pela mocidade intelectual no terreno das ideias, eu lhe responderei, sem hesitar, que a nossa tarefa máxima deveria ser o combate a todas as formas do pensamento reacionário. Nos domínios da inteligência, Mário Neme, a Reação assume os aspectos mais díspares e mais cavilosos. Se insinua por todo canto. E, num trabalho monumental de obstrução, ? tanto mais monumental quanto exercido inconscientemente por muitos intelectuais,? breca em todas as curvas a expansão do progresso humano e da inteligência livre” (Neme, 1945, p. 37, grifos nossos).

Em seguida, Candido declina os três caminhos do pensamento que, no Brasil, são altamente tendenciosos: “as filosofias idealistas, a sociologia cultural e a literatura personalista”. Sobre a segunda, personificada pelas últimas obras de Gilberto Freyre, dirá uma das suas frases de maior efeito político: “aí está um caso em que o método cultural carrega água para o monjolo da Reação” (Neme, 1945, p. 39).

Para finalizar, isolemos o caso Fernando Pessoa (1888-1935) tal como visto por Iglésias. Tentaremos depreender do pioneiro ensaio escrito sobre o programa político do poeta luso uma metodologia de leitura da obra literária pelo historiador Francisco Iglésias.

A originalidade da abordagem do texto literário por Iglésias reside no fato de que, na análise e avaliação do fenômeno artístico, ele inverte os procedimentos tradicionalmente estabelecidos pelos cientistas sociais. O texto propriamente literário ? para nos restringir aos limites deste artigo ? é sempre lido por eles a partir do contexto econômico, social e político que o informa. É difícil encontrar um cientista social que, diante do levantamento e análise de um contexto retrógrado que, numa obra literária, alicerça ideologicamente o drama poético, julgue a esta digna de interesse para os contemporâneos e os pósteros. É dura e contundente ? muitas vezes definitiva ? a avaliação que fazem do autor e da obra. O adjetivo que apõem tanto a um quanto à outra é sempre o de reacionários. Romancistas e poetas de pensamento reacionário são dignos do desprezo da História e de todos.

Iglésias inverte os procedimentos. Ele contextualiza a leitura da História pelo texto literário para salvar a este de intromissão duvidosa. Em lugar de nos levar a concluir que Fernando Pessoa é apenas mais um moderno escritor reacionário, à semelhança do que foi dito e escrito, por exemplo, sobre o poeta Ezra Pound ou o romancista Louis-Ferdinand Céline, afirma que é ele “o maior poeta da língua portuguesa”. Ao inverter os procedimentos clássicos dos cientistas sociais, Iglésias pode ser impiedoso, e o é, na análise do reacionarismo de Fernando Pessoa sem, no entanto, arranhar ainda que de leve a alta qualidade da sua poesia[6]. A fim de operar a inversão metodológica, Iglésias assume, num primeiro momento, restrições que devem ser interpretadas com certo cuidado. A primeira restrição aparece sob a forma de exclusão. Diz ele que não vai abordar a poesia de Fernando Pessoa; tratará, antes, do seu pensamento político, ou melhor, corrige-se ele, vai tratar dos “estudos e anotações de natureza política que deixou ou [das] atitudes políticas que assumiu” (Iglésias, 1971, p. 236. Também p. 245 e p. 290)[7]. A segunda restrição aparece sob a forma de limite disciplinar. Diz ele que, diante da complexa e multifacetada obra de Fernando Pessoa, não trabalhará como crítico literário, mas como “estudioso da história das ideias”.

Ambas as restrições são em parte verdadeiras e em parte falsas, mas fazem parte de uma sofisticada estratégia de leitura do texto literário por um historiador. Tanto é verdade que as duas restrições não são totalmente verdadeiras, que começa a análise do seu objeto pela famosa heteronímia do grande poeta cuja origem, como se sabe, é de fundo histero-neurastênico. Iglésias afirma com tranquilidade que iniciará o seu estudo sobre o pensamento político de Pessoa por abordar a questão de maneira paradoxal, ou seja, pelo modo como o poeta encontrou na multiplicidade dos nomes a sua unidade. É, pois, pelo viés inusitado da produção literária que começa a “explicar as ideias e posições políticas” do pensador português. Em página posterior consignará de maneira definitiva o modo como encara a identidade do poeta: “Em vez de significar limitação – a falta do encontro da Unidade –, traduz riqueza – a multiplicidade coerente e autêntica. Na divisão é que [Fernando Pessoa] se encontrou e se afirmou” (1971, p. 242-3).

Antes de pôr as ideias políticas reacionárias de Pessoa contra a parede, Iglésias analisa a questão dos heterônimos, valendo-se da melhor bibliografia então à disposição do historiador. Dessa forma, pôde o historiador estabelecer com toda clareza o princípio da contradição entre discursos dogmáticos como traço fundamental para explicitar o contraste irremediável que existe entre os valores estéticos do discurso poético e os valores ideológicos do discurso político. São duas entidades discursivas que não se casam na obra de Fernando Pessoa e, pelo tom de cada uma delas, guardam autonomia ao mesmo tempo que se afirmam pela contradição[8]. A avaliação delas pelo historiador virá posteriormente. Aproveitando-se da famosa dicotomia estabelecida por Oscar Wilde, Iglésias concluirá que o gênio de Pessoa está na obra poética, já o talento e certa originalidade, no desenvolvimento das ideias sociais (1971, p. 246). Cita Iglésias trecho de carta que o poeta escreveu a Miguel Torga: “Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião […]”, para em seguida comentar: isso não impede que “o tom dogmático seja o que mais frequentemente usa, na prosa e até na poesia” (1971, p. 238)[9].

De posse desses dados conflituosos e com a ajuda de confissões do poeta e de leituras próprias, Iglésias desce ao profundo da crise existencial do autor moderno, cujas raízes se encontram em Shakespeare e ganham viço em poetas como Antero de Quental, cujo “mal era a histeria”, ou em prosadores como o suíço Amiel, que consignou em diário as tramas que “a impotência da vontade” maquina. A Amiel Pessoa dedicará significativo poema, onde se lê: “Inúteis dias que consumo lento/ No esforço de pensar na ação”. Interessava-lhe o político, mas não a vida partidária (1971, p. 252). Importante notar que, se no plano literário a “ansiedade de influência”, de acordo com a fórmula de Harold Bloom, é enorme, já no plano dos escritos econômicos, constata Iglésias, “não há citações ou apelos à autoridade de quem quer que seja” (1971, p. 266). “Meus autores, minhas autoridades”, afirmou Norman O. Brown. Sem autores citados, sem autoridades, o discurso político de Fernando Pessoa é autofágico. O mesmo não acontece com o discurso poético, que se apoia numa erudição monstruosa do legado lírico ocidental.

Antes de ser portanto matéria de importância, antes de ser explicitação do contexto para a leitura dos textos poéticos de Fernando Pessoa, o levantamento feito por Francisco Iglésias extrapola o leito propriamente literário que o torna sedutor e abre as comportas da interpretação para a visualização de um fim mais meritório. A análise do contexto econômico, político e social conduz a ele, historiador, e a nós, leitores, ao melhor conhecimento da cultura em que se inserem Fernando Pessoa e a sua obra poética. Fecha-se o círculo hermenêutico sem se que ofenda o brilho literário, embora grande parte da produção discursiva de Fernando Pessoa tenha sido posta à mostra e explicada pelo historiador das ideias[10]. Fernando Pessoa nada mais seria do que um exemplo a mais na longa história da decadência econômica, política e social portuguesa. Escreve Iglésias: “A nação [portuguesa], que teve a sua plenitude no século XV, quando foi pioneira no mundo, mostrando os mais largos caminhos, não se preparou para aproveitar o que conquistara, não se adequou à nova realidade, mantendo-se presa a velhos padrões; regrediu mesmo, como assinalam os seus melhores intérpretes” (1971, p. 292). E continua: “Portugal e Espanha é que mais contribuíram para construir a riqueza do período conhecido por Mercantilismo, mas não tiraram da situação criada o devido proveito, que foi para outros – notadamente a Inglaterra e os Países Baixos. É esse um dos momentos e fatos mais importantes da História Moderna” (1971, p. 292).

Diante de tal realidade, é compreensível “o saudosismo [do poeta], como é explicável até que se apresentem doutrinas salvadoras fundadas em mitos, que têm acolhida pelo povo e são elaboradas por intelectuais” (1971, p. 293, grifo nosso). O reacionarismo do intelectual, transparente nas formas como elabora doutrinas salvadoras para a nação lusa, antes de ser motivo para a explicação e avaliação da sua obra poética é razão para o historiador investigar e denunciar o contexto retrógrado que paradoxalmente tornou possível aquela vida e aquela obra. Historiador brasileiro e pensadores portugueses se entregariam à mesma tarefa intelectual no plano ideológico: a de “desmistificar – e desmitificar – seu presente e sua História, dando-lhe acento de racionalidade, mas o êxito [da tarefa] ainda não foi obtido”. Daí o retorno à questão do pensamento reacionário em 1971, questão que ainda nos incomoda nos anos 2000, brecando a expansão do progresso humano e da inteligência livre, para retomar as palavras de Candido.

Iglésias nos diz que o discurso poético e o das ciências sociais coexistem como discursos dogmáticos em Fernando Pessoa, mas não se situam no mesmo plano. São autônomos e vivem separados. A obra poética não é a causa do reacionarismo, é antes a consequência acidental dos condicionamentos econômicos e sócio-políticos. Iglésias reconhece, como assinalamos, o valor do primeiro discurso pela alta voltagem lírico-sentimental que o poeta conseguiu imprimir aos versos. Quanto às ideias de Fernando Pessoa sobre as ciências sociais, elas “pouco ou nada representam. Se não chegam a existir para a ciência social, também não contam para Fernando Pessoa enquanto autor – a não ser no aspecto de esclarecimento de sua posição ante problemas sociais. Não lhe enriquecem a obra criadora, mas, para os que amam a sua poesia e se interessam por sua personalidade, a leitura é feita com paixão” (1971, p. 272). Fascínio pela distância, interesse pela face vencida da moeda ideológica e razão para escrever criticamente o avesso do sentido da História encontram o seu fundamento no amor do historiador pela extraordinária obra poética de Fernando Pessoa.

Como um poeta tão extraordinário pode ser tão reacionário nos seus escritos políticos? Eis o enigma Fernando Pessoa, que só um historiador apaixonado pela literatura pode começar a deslindar.

Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago
Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago

* Silviano Santiago (1936) é professor, romancista e crítico literário. Foi três vezes vencedor do Jabuti – com Em liberdade (romance, 1982), Uma história de família (romance, 1993) e Keith Jarrett no Blue Note (contos, 1997). Seu romance mais recente, Heranças, recebeu o Prêmio ABL de Ficção 2009. A coleção de ensaios O cosmopolitismo do pobre (2005) recebeu o prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É professor emérito da Universidade Federal Fluminense e escreve nos principais veículos da imprensa brasileira. Em 2013 lançou Aos sábados pela manhã, coleção das colunas publicadas em O Estado de São Paulo, recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, dado pela Academia Brasileira de Letras, e lhe foi outorgado pela Universidade do Chile o título de Doutor Honoris Causa. Livros seus estão traduzidos ao inglês, espanhol e francês.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio: Record, 1985.

ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo, Globo, 1991.

CANDIDO, Antonio. “Clima”, in Teresina, etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COSTA PINTO, Antônio. “Modernity versus Democracy? The mystical nationalism of Fernando Pessoa”, in: The intellectual revolt against liberal democracy 1870-1945. Jerusalém, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1996.

IGLESIAS, Francisco. História e ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1971.

MESQUITA. Alfredo. “No tempo da Jaraguá”, in Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas cidades, 1979.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo, Ática, 1977.

NEME, Mário (org.). Plataforma da nova geração. Porto Alegre, Globo, 1945.

PONTES, Heloisa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Notas

[1] Para uma leitura daquele momento histórico, no campo das artes, leia-se do autor: “Sobre plataformas e testamentos” (Andrade, 1991, p. 7-22).

[2] Continua Drummond: “A ideia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles [comunistas], que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da agremiação” (Andrade, 1985, p. 78).

[3] Os versos finais do poema, “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”, esclarecem os iniciais, “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. O poema se encontra no livro Sentimento do mundo.

[4] Para o melhor conhecimento da geração, consultem-se Candido, 1980 e Pontes, 1998. Numa primeira versão do seu depoimento, posteriormente corrigida, informa Candido: “Éramos ligados também com rapazes de Belo Horizonte [que depois constituíram o grupo da revista Edifício], tendo Fernando Sabino sido nosso colaborador” (p. 170). Entre uma versão e a outra, percebe-se o dedo zeloso de algum mineiro.

[5] Para o estudo da pista que Candido nos fornece, deve-se consultar o capítulo III Ideologia da cultura brasileira (Mota, 1977), em particular a seção “Antonio Candido e o combate às formas de pensamento reacionário”, p. 126-132.

[6] As últimas linhas do ensaio esclarecerão de vez a posição do historiador: “Fernando Pessoa foi poeta e por sua obra deve ser julgado. Tudo o mais é acidental e de importância secundária, comparado à poesia que deixou” (Iglésias, 1971, p. 298).

[7] Em datas posteriores ao trabalho de Iglésias, foram publicadas duas coletâneas com os artigos políticos de Fernando Pessoa. Uma em três volumes, sob a responsabilidade de Joel Serrão [1979-1980] e a outra, em dois volumes, sob a responsabilidade de Antônio Quadros [1986]. Para informações sobre estas e para uma leitura menos “literária” e menos contundente da problemática ideológica pessoana, consultar: Costa Pinto, 1996, p. 343-355.

[8] O tom dogmático no poema e na reflexão social se dobra em Fernando Pessoa pelo elogio da matemática como lógica superior e transitável por cima das diferenças discursivas. Segundo Iglésias, “um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidade de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba” (Para este e outros exemplos: 1971, p. 270).

[9] A contradição entre discursos dogmáticos, por sua vez, tornará pouco eficientes, ou inúteis, outras formas de discurso praticadas pelo poeta, por exemplo o jornalístico. Pessoa “não se definia, ou era contraditório e paradoxal, impróprio para o jornalismo, para o doutrinário ou proselitista” (1971, p. 250). O discurso jornalístico, acrescentamos, torna-se panfletário e o doutrinário, partidário.

[10] Ver, a propósito, a leitura que faz do livro Mensagem (1971, p. 287-291).

Representações do primitivo: cenas de pensamento | Vera Lins*

Uma forma, uma figura, talvez sirvam para pôr problemas, nunca para trazer conclusões.
Merleau-Ponty

Quando comecei a pensar sobre a representação do negro e do índio brasileiros, pensei na importância da questão do primitivo para as vanguardas históricas e a questão do modernismo brasileiro. E ao pensar,  me veio à tona a memória de dois quadros que trazem o negro à cena: um meio ícone do movimento, que é A Negra, de Tarsila do Amaral, de 1923, bem conhecido, e outro, que precisei ir a Viena para conhecê-lo e que me impressionou muito: Fascinação, de Pedro Peres, de 1902. Nunca o tinha visto, quando deparei com ele em Krems, vilarejo perto de Viena numa exposição muito interessante de arte brasileira, que durou de setembro de 2007 a fevereiro de 2008 e da qual trouxe o  catálogo. Fiquei fascinada.

A Negra, Tarsila do Amaral, 1923
A Negra, Tarsila do Amaral, 1923 Fonte: Catálogo da exposição Brasilien: Von Osterreich zur Neuen Welt. Org. Tayfun Belgin, Kunsthalle Krems, 2007

Estava em Viena para um congresso e via o cartaz dessa exposição por todo canto, o quadro Iracema de José Maria de Medeiros. Foi organizada por Carlos Martins, Mônica Xexéo e outros. Gostei tanto da exposição que escrevi uma resenha do catálogo para a revista da Casa de Rui Barbosa. Eu não conhecia vários quadros reunidos lá, como um de Abigail de Andrade, A hora do pão, e este de Pedro Peres.

Fascinação, Pedro Peres, 1902
Fascinação, Pedro Peres, 1902 Fonte: Catálogo da exposição Brasilien: Von Osterreich zur Neuen Welt. Org. Tayfun Belgin, Kunsthalle Krems, 2007

O foco era  a formação do povo brasileiro, apreendida não só nas telas de Almeida Junior, mas também vários outros. Embora um crítico alemão fale na introdução do catálogo da qualidade das pinturas, me parece que a intenção aqui ultrapassava as discussões sobre academicismo ou não, o que marca a leitura habitual do oitocentos pictórico brasileiro.

Os índios, os escravos negros, o branco bandeirante e o trabalhador rural se viam em quadros que vieram da Pinacoteca de São Paulo, do Museu Nacional de Belas Artes e da coleção Sérgio Fadel, dando uma perspectiva antropológica a quase um século de pintura. São três textos que compõem o catálogo, dois de curadores austríacos, e o terceiro, de Valéria Piccoli, que apresenta criticamente a produção brasileira do século 19, desde os viajantes, encantados com a natureza, que se torna o tema principal do projeto de nacionalidade que toma forma com Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre os viajantes faz a diferença entre Ender e Chamberlain que pintavam paisagens e cenas distanciadas e Rugendas e Debret que, ao contrário, apresentavam a escravidão mais de perto e sem a ordenação neoclássica. Ressalta a idealização do índio, que deixava de fora o negro na formação do povo brasileiro e vê o mito do embranquecimento no quadro de Modesto Brocos, A redenção de Caim, de 1895. Chega a Belmiro de Almeida e Rodolfo Amoedo como experimentadores que apoiavam os pintores que divergiam do estilo bombástico da Academia.

Mas o que me ficou gravado na memória foi o quadro Fascinação, de Pedro Peres, de 1902, que está na Pinacoteca de São Paulo. Longe dos quadros de batalhas ou históricos,  Pedro Peres fala das relações sociais com um quadro sutil e instigante em que uma menina negra olha fascinada uma boneca toda enfeitada, possivelmente da filha dos brancos donos da casa e talvez ex-proprietários de seus pais. Há um conflito visível na tela, estampado no rosto da menina, no vermelho do chão, no luxo da boneca branca – uma cena de interior que problematiza a questão do negro, levanta esteticamente uma questão político-social presente até hoje na sociedade brasileira.

E agora gostaria de trazer as reflexões de Jacques Rancière para me ajudar a olhar os dois quadros, o de Tarsila e o de Pedro Peres. Para Rancière a arte possibilita uma reconfiguração polêmica do sensível. E existiriam três regimes estéticos, o primeiro, o ético da imagem sagrada, o segundo, representativo, que chama de poético e o terceiro, o estético, que vigoraria desde o final do século 18 com a quebra dos gêneros e a atenção  ao banal, ao pequeno. Na pintura, o regime estético depunha os quadros históricos e trazia o banal à cena. Não é mais a representação da nacionalidade o que conta, mas as questões que afloram – possibilitando a reconfiguração polêmica do sensível. Passa-se dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificando os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária. O que acontece já no quadro Fascinação, que gera pensamento, o que se espera da arte.

Para Rancière, estaríamos hoje ainda dentro do regime estético. Com isso ultrapassa os conceitos de modernidade e pós-modernidade. E reavalia as vanguardas. Haveria uma vanguarda estratégica que, como um partido, toma a frente, como as vanguardas históricas e como o modernismo dos manifestos, diz como devem ser a obras, fazendo tábula rasa do passado. A vanguarda que ainda conta é a que traz uma antecipação estética do futuro na invenção de formas sensíveis. Para ele também o pulo pra fora da representação mimética não é a recusa da figuração. A figuração pode não ser mimética.

Rancière retoma Schiller para dizer que a revolução estética é a realização sensível de uma humanidade ainda latente no homem e que a arte é política quaisquer que sejam as intenções.

Creio que o quadro de Pedro Peres pode ser considerado uma cena de pensamento, há nele bastante conflito. O pintor apreende um instante e como diz Rancière, pode ver na coisa um objeto consagrado e uma cicatriz. A Negra, de Tarsila, é uma lição aprendida com a vanguarda europeia, com Léger e adaptada ao contexto nacional. Claro que A Negra, de 1923, que lembra as máscaras africanas das vanguardas, traz uma nova sensibilidade, na quebra da perspectiva, na planaridade do espaço, mas muitas das suas soluções formais ficam meio ornamentais e foram hoje absorvidas no cartaz, na publicidade. E nela há ainda um apelo ao exótico. Li há pouco uma crônica de Tarsila em que dizia que o cubismo era o serviço militar do artista.

O quadro de Peres toca, apenas sugerindo, numa questão social e política ainda não resolvida. Já está dentro do sonho modernista de uma arte capaz de dar ressonância infinita ao momento mais ínfimo da vida mais ordinária. Rancière, num livro recente, Aisthesis, (2011) vê em várias cenas da virada do século 19 para o 20 uma mutação das formas de experiência sensível, da maneira de perceber e de ser afetado que propiciam reconfigurações da experiência e um modo novo de sensibilidade. Fala de cenas de pensamento que acolhem o até ali impensável. “Pois o pensamento é sempre um pensamento do pensável, um pensamento que modifica o pensável acolhendo o que era impensável” (p. 12). E faz uma contra-história da modernidade artística, incorporando episódios que já deslocam a percepção em cenas de pensamento. Rancière vai de 1764 a 1941, de Théophile Gauthier a Ruskin e a James Agee.

Vista ainda hoje como a grande explosão vanguardista brasileira nas artes e na literatura, a Semana de 22 (de 11 a 18 de fevereiro de 1922) marca nosso modernismo como o estopim da ruptura entre passadismo e modernismo. Com o movimento que culmina aí, nos integrávamos ao concerto das nações modernas. Os manifestos tanto ecoavam os europeus, como afirmavam o nacionalismo tupiniquim, inaugurando uma modernização estética que acompanhava uma aposta na industrialização que nos possibilitaria sermos, simultaneamente, universais e nacionais. Numa visão linear exalta-se o novo desse modernismo de acordo com o projeto progressista ocidental.

Tarsila do Amaral - Operários
Tarsila do Amaral – Operários

Mas essa história pode ser contada de outra forma. É o presente que dá sentido ao passado, que vai sendo feito e refeito pelas gerações que se apropriam dele. Primeiro, que passadismo era esse? Os modernistas de 22 queriam romper com românticos, naturalistas e parnasianos e com estes identificavam todo o século 19 até eles. Mas, no seu impulso de romper com o tradicional, não distinguiam os “experimentais” do século passado –Machado, os simbolistas como Cruz e Souza, Sousândrade e outros, e ainda, românticos como, por exemplo, Bernardo Guimarães. Inauguravam, junto com as vanguardas europeias, uma tradição de ruptura, que arrasava o passado recente. Vanguarda é um termo militar, designa os que na frente avançam, numa guerra. Destrói-se o que veio antes, em nome do progresso. Ser moderno é ser atual e aceitar o progresso contra a repetição do passado. Tinham uma concepção de progresso também em arte, que não pode ser pensada em termos de evolução, mas de transformações.

E ainda, num segundo momento, depois do ataque ao passadismo estético, a antropofagia defendia uma deglutição do estrangeiro, mas não criticava a razão técnico-científica que vinha com ele e que pretendia assimilar, sem problematização. Buscava-se a convivência da selva com a escola, a colagem de uma paisagem nacional primitiva com um novo cotidiano, moderno, numa poética do objetivo e do concreto. Sua defesa do moderno era a defesa do atual, do novo imediato que prometia a industrialização. Acreditavam numa síntese da pureza do estado natural indígena com os traços positivos da contribuição da técnica avançada.

Tarsila do Amaral - Gare
Tarsila do Amaral – Gare

A conferência de Menotti del Picchia, de 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, intitulada “Arte moderna”, tem o tom de manifesto e suas afirmações a aproximam do futurismo de Marinetti: “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismo, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho na nossa arte” (Del Picchia, 2002, p. 289).

Hoje, quando podemos ver os desastres da modernização e sua falência em construir um mundo melhor, podemos ver os limites do modernismo das vanguardas históricas e, olhando as ruínas que ficaram de sua marcha pelo progresso, identificar práticas críticas e experimentais, antes das vanguardas, pensando um  modernismo desde a virada do século, pois já se colocava em questão o academismo, a “representação fotográfica”, tanto nas artes plásticas quanto na literatura. Pintores como Castagneto, Helios Seelinger, Visconti e Belmiro de Almeida buscam mais do que imitar qualquer modelo ou representar as coisas “tais como são” e se identificam com impressionistas e simbolistas de todo o mundo. Descontentes com o que existe, seu desejo é tornar visível, algo ainda invisível, mesmo trabalhando com uma figuração. Estão dentro do paradigma estético da nova comunidade, a dos homens livres e iguais na sua própria vida sensível (Rancière, 2005, p. 16).

Pode-se ver, a partir de uma releitura do século 19, um modernismo carioca, desde fins do século, com João do Rio, Gonzaga Duque, Lima Barreto, Benjamim Costallat, Álvaro Moreyra e outros. Capital da República, cidade cosmopolita, pelo Rio de Janeiro passavam as companhias artísticas europeias. E esses escritores, muitos da roda boêmia, eram ambivalentes quanto à ordem que se impunha com a modernização e, às vezes, extremamente críticos. Suas revistas mostram isto: subjetividades errantes, que se disfarçavam sob vários pseudônimos e se articulavam nos cafés e cabarés, dissidentes das iniciativas oficiais, numa cidade em transformação, em que construção trazia também destruição.

A Semana de 22, na então próspera e provinciana São Paulo, apontada como um marco, no entanto, faz esquecer uma fermentação de ideias que se atualizaram em linguagens inquietas e críticas também antes dela. É importante lembrar 22, o grupo de Oswald e Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, e outros, mas não enquanto monumentos. Seu papel foi importante ao ampliar as possibilidades de linguagem trazendo as propostas das vanguardas históricas europeias. Mas não só eles problematizaram. Mesmo no movimento há escritores e artistas ainda pouco lembrados como Flávio de Carvalho, por exemplo.  E antes e depois das vanguardas estamos dentro do regime estético das artes que, segundo Rancière, incorpora o realismo de Flaubert, por trazer o banal à cena.

Em O cacto e as ruínas, Arrigucci compara o poema “O Cacto” (1925) de Manuel Bandeira com “Pobre alimária” de Oswald de Andrade (comentado por Roberto Schwarz, em “A carroça, o bonde e o poeta modernista”). Enquanto em Oswald, a modernização, apresentada pelo bonde e os trilhos, complica, mas não impede uma solução do conflito, tudo se resolve otimisticamente – a convivência entre a carroça e o bonde é possível; no poema de Bandeira, o conflito é trágico e o cacto, natureza indomável, resiste, áspero e intratável.

pobre alimária
Oswald de Andrade

O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lento carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote

Manuel Bandeira mora no Rio, não vai à Semana paulista, onde, no entanto, lêem seu poema “Os Sapos”, uma crítica aos poetas parnasianos. Bandeira começa simbolista com A cinza das horas (1917) e já como simbolista queria mais do que os versos cinzelados e frios que os parnasianos podiam apresentar.

O cacto
Manuel Bandeira

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia, um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua.
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de
iluminação e energia:
– Era belo, áspero, intratável.

O progresso foi o mito fundador do século 20, com seu elogio da máquina. Hoje, no século 21, vemos que a modernização se mostrou catastrófica, a razão da técnica e da ciência não só não domina a natureza, o sonho iluminista, mas leva a novos problemas. O Holocausto superou em horror o genocídio dos índios, pelo cálculo, a objetividade e a frieza que a técnica permitiu e incentivou. E colocou em questão a vontade de ordem da modernidade e sua incapacidade de suportar a diferença e a ambivalência. Os “aeroplanos, motores e chaminés de fábricas” não se impõem sem a violência de uma ordem intolerante com o selvagem, o diferente, cuja forma de vida só pode identificar como ignorância e atraso.

Isso não puderam pensar os modernistas de 22. Hoje, como “modernistas tardios”, vemos seus limites e revemos nossas utopias – nenhum progressismo mais. Podemos recuperar a ousadia das vanguardas, mas exercendo nossas diferenças e singularidades, críticos à sociedade industrial moderna e contemporânea. E podemos reavaliar um quadro como Fascinação como uma cena de pensamento. O que aproxima os dois quadros é o sonho modernista, ou melhor, do regime estético das artes, de uma arte capaz de dar sua ressonância infinita ao momento, o mais ínfimo da vida, a mais ordinária.

Iracema, José Maria de Medeiros, 1884
Iracema, José Maria de Medeiros, 1884

* Vera Lins é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras, UFRJ, e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (1991) Poesia e crítica: uns e outros (2005), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (2009) e Desejo de escrita (2013), entre outros.

Referências

AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva-Edusp, 1972.

ARRIGUCCI, Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 1997.

ANDRADE, Mário. O Movimento Modernista. Rio: Casa do Estudante do Brasil, 1942.

BAUMAN, Z. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar, 1999.

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar, 2000.

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio: Civilização Brasileira, 1978.

COSTA LIMA, L. Pensando nos trópicos. Rio: Rocco, 1991.

DEL PICHIA, Menotti. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis, Editora Vozes, 17 ed., 2002.

JARDIM DE MORAES, Eduardo. A brasilidade modernista, sua dimensão filosófica. Rio: Graal, 1978.

LINS, V. Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador. Rio: Tempo brasileiro, 1991.

RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis. Paris: Éditions Galilée, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.

SCHWARZ, R. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Pré-histórias: uma arqueologia poética do presente | Veronica Stigger*

Em 2010, fui convidada a fazer uma intervenção na Mostra Sesc de Artes, em São Paulo. O espaço designado para o meu trabalho foram os tapumes da construção da futura unidade da Rua 24 de Maio, bem no centro da cidade. Já fazia tempo que eu vinha coletando fragmentos de conversas ouvidas na rua ou frases ditas por amigos e familiares. Nem todas as frases eu tinha anotadas. Algumas, sabia apenas de memória, outras, por sorte, havia postado no Twitter e, desse modo, tinha o registro delas. Quando surgiu o convite do Sesc, achei que era a oportunidade perfeita para trabalhar esses fragmentos. Ao expô-los nos tapumes da construção, era como se eu devolvesse à rua aquilo que havia extraído dela.

A quantidade de frases que recolhera até então não era suficiente para preencher os 375 metros quadrados de tapumes. Precisaria de muito mais, e tinha pouco tempo. A primeira providência foi passar para o computador todas aquelas frases que lembrava de memória. “As vacas só existem para me alimentar”, falou uma vez um amigo num almoço de domingo. “Fome é meu estado natural”, respondeu uma amiga quando perguntada se não era muito cedo para irmos jantar. “Um dia todos estarão mortos, você vai querer fazer um churrasco e não vai ter quem convidar”, disse um primo do Eduardo Sterzi, meu marido, para implicar com o caçula da família. O curioso é que as pessoas que pronunciaram essas frases não se lembravam de tê-las dito, enquanto eu nunca as esqueci.

Mas, como comentei, necessitava de mais frases. Apurei então os ouvidos. Na ocasião, estava em Porto Alegre. Enquanto passeava com os cachorros da minha mãe, prestava atenção a tudo o que diziam a minha volta. Num desses passeios matinais, com a vira-lata Dora na coleira, um sujeito, de uns cinquenta anos, se aproximou de mim e, olhando fixo para a Dora, saiu com esta pérola: “Quando morei na Ásia, comi muito cachorro. A carne é boa, bem boa”. À tarde, de posse do meu bloco de notas, pegava o ônibus que fazia o trajeto mais longo até o shopping mais distante da casa da minha mãe e passava horas lá, sentada numa confeitaria, bem no meio do corredor, em frente a uma loja da Swarovski, diante da qual ouvi uma senhora reclamando para a outra: “Não são joias. Não brilham. Não dá para tomar banho com elas”. Nunca entendi a parte sobre a falta de brilho… Eram cristais – como poderiam não brilhar?

Encarava essas idas ao shopping como uma espécie de trabalho de campo, como uma pesquisa, em certa medida, arqueológica e etnográfica. Dentre os tantos fragmentos que ouvi aqui e ali, no shopping, no ônibus, nos parques de Porto Alegre, descendo a Rua Augusta, em São Paulo, na fila do cinema etc., selecionei aqueles que possibilitavam as mais diferentes leituras e que chamaram a minha atenção pelo inusitado do assunto ou pela maneira especialmente significativa como foram ditos. Acredito que certo momento da nossa sociedade está inscrito nessa sequência de frases. Algumas delas são apenas engraçadas, como, por exemplo, aquela que diz: “Essa lagoa é ótima para quem quer casar. Basta dar três mergulhinhos”. Outras, no entanto, são obviamente terríveis, na medida em que colocam a nu aquilo que as pessoas gostariam que permanecesse escondido no âmbito privado. Minha intenção ao registrar e expor frases que foram ditas à boca pequena, como “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?” ou “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, era justamente expor o preconceito que impregna esses diálogos íntimos, preconceito que por vezes só fica claro quando é deslocado para a esfera pública. Meu plano era que o espectador, confrontado com frases que foram efetivamente ditas por outras pessoas, mas que talvez pudessem ser ditas por ele mesmo, fosse, ao menos idealmente, levado a refletir sobre seus próprios preconceitos. A ideia primeira era que as frases, que foram transpostas para placas propositalmente toscas, de madeira, feitas de modo artesanal pela artista plástica Edna Nogueira da Silva conforme minhas orientações, fossem vistas sobre um fundo metálico ou sobre um papel espelhado, a fim de que o espectador olhasse a si mesmo enquanto as lesse, ou seja, que ele também se incorporasse à obra. Mas o papel espelhado não resistiria à chuva e o metal extrapolava o orçamento.

Percebi, ao longo da coleta, que, em geral, os fragmentos giravam em torno da tríade mais frequentada nas conversas brasileiras (e talvez não só nestas, mas vivemos aqui…): sangue, sexo e grana. Esta tríade era o nome inicial do projeto para a Mostra Sesc de Artes, mas os textos que falavam abertamente de sexo foram censurados, já que se tratava de um espaço institucional em área pública. Cheguei a incorporar a esta instalação dois comentários irônicos ao corte sofrido: “Não imagina o que ficou de fora”, dizia o primeiro; “Não pode. Por que não pode? Porque não pode”, brincava o segundo, num diálogo imaginário que, para mim, já se tornou um clássico, virando até cartaz em algumas manifestações de que participei. Na falta de um dos elementos da tríade, precisava encontrar outro nome. Foi aí que me dei conta de que este projeto era, de certo modo, uma continuação de um conjunto de textos que compunha Os anões, livro lançado naquele mesmo ano.

Os anões é dividido em três partes: Pré-Histórias, Histórias e Histórias da Arte. Todas as partes são compostas de textos curtos – o maior deles, o conto que dá título ao volume, tem cerca de seis mil caracteres. Mas há uma seção, a das Pré-Histórias, em que esses textos são tão curtos e tão rápidos que me parecem funcionar como uma lufada inesperada de ar que golpeia o rosto do leitor e o deixa sem saber o que, afinal, acabou de acontecer. Menos que contos em miniatura, têm-se aí contos em germe, ficções embrionárias ou potenciais que, por sua própria incompletude, ficam ressoando na memória do leitor. As frases que vinha recolhendo eram dessa família. Elas contêm elementos que fazem o leitor pensar, imaginar o que pode estar ali por trás. Elas fornecem personagens e ações ainda não de todo formados, que pedem desdobramentos por parte de quem as ouve ou lê. O nome do projeto, pois, não poderia ser outro: Pré-Histórias. A este nome, acrescentei um 2, indicando a continuação de uma série.

E a série já teve segmento. No primeiro semestre de 2013, ao ser convidada para a mostra Tuiteratura, realizada no Sesc Santo Amaro, em São Paulo, elaborei o terceiro conjunto de Pré-Histórias. Dado que a mostra fazia referência direta ao Twitter, pensei que seria interessante desenvolver algum projeto relacionado a essa rede social, que não se limitasse a apresentar textos com até 140 caracteres, passíveis de serem publicados em qualquer lugar, mas que explorasse, de alguma forma, a própria lógica do meio. Lembrei-me imediatamente do aplicativo That can be my next tweet, que gera, a partir do que você escreveu nos últimos tempos, seus prováveis próximos tweets, e de como meus next tweets gerados por ele me divertiram muito durante toda uma noite. Recordei que, na ocasião, havia arquivado alguns dos melhores exemplares para algum trabalho futuro. Era chegada a hora de usá-los.

Nas Pré-Histórias anteriores trabalhei, de uma maneira geral, a partir da apropriação de frases de outras pessoas, captadas por aí. Em Next tweet (Pré-Histórias, 3), o procedimento era quase o mesmo, mas as frases não eram mais alheias; eram, supostamente, minhas: readymades meus gerados por uma máquina. Pretendo, em breve, reunir em livro não apenas os meus next tweets, mas também os de amigos e conhecidos.

Em 2012, o projeto das Pré-Histórias, 2 virou livro. Delírio de Damasco (nome da torta que comia em meu trabalho de campo no shopping de Porto Alegre), editado pela Cultura e Barbárie, de Florianópolis, reúne as frases apresentadas na Mostra Sesc de Artes mais as censuradas e outras colhidas depois. Meus editores, Alexandre Nodari e Flávia Cera, me contaram que há leitores que aproveitam os espaços em branco do volume para desenvolver as histórias que as frases sugerem ou para anotar fragmentos que chegaram a eles. O projeto, virtualmente, não tem fim. Eu mesma recebo mensagens com frases que poderiam estar no Delírio. É como se o livro despertasse o arqueólogo poético do presente que se esconde em cada um de nós.

O Delírio de Damasco não pretendia ser um catálogo da intervenção do Sesc. Desde o princípio foi pensado como livro independente. Todas as frases estão organizadas em tercetos, uma forma com a qual eu vinha trabalhando em textos ainda inéditos, como o longo poema “O coração dos homens”, que integra o livro Sul, lançado agora em agosto em Buenos Aires, e num poema que faz parte de um dos capítulos do meu primeiro romance, Opisanie ?wiata. Um dos meus planos para o futuro é fazer uma espécie de catalogue raisonné das frases reunidas em Delírio de Damasco, contando as histórias por trás de cada um dos fragmentos, onde foram colhidos, quem os disse etc.

Em função desse trabalho que resultou no Delírio de Damasco fui convidada a realizar uma exposição na Embaixada do Brasil em Bruxelas. Parte das placas foi refeita, agora em três línguas: português, francês e flamengo. Além das placas, transpus alguns dos meus contos para o espaço expositivo e apresentei um trabalho inédito, pensado já para outro suporte que não o livro, Minha novela, que pode ser visto no Youtube, mas sem, é claro, a ambientação da mostra. Esse texto também deve sair em livro pela Cultura e Barbárie, mesma editora que publicou o Delírio.

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Estou trabalhando atualmente num projeto para as Pré-Histórias, 4, que reunirá frases ouvidas em galerias e museus de arte. O título completo do trabalho deverá ser Quadras de uma exposição (Pré-Histórias, 4). Minha ideia é que seja exibido numa galeria ou num museu: devolver ao espaço expositivo o que ouvi nele. Assim, a sala se povoará não propriamente de trabalhos artísticos, como esperado, mas de vozes, as mais diversas e dissonantes, que falam sobre aquilo que, naquele momento, se acha ausente: as obras. Desta vez, não trabalharei com tercetos, mas com quadras, num jogo com a denominação quadros.

Por fim, para encerrar este longo depoimento, tenho pensado em, no futuro, realizar um outro livro, nos moldes do Delírio de Damasco, só com as frases que ouvi por aí e incorporei a textos meus já publicados, como por exemplo, “É noite no corredor”, dita pela filha de uma colega de Mestrado e que virou a primeira frase do conto “No corredor”, de O trágico e outras comédias, e “As pessoas da nossa classe social não deveriam passar por isso”, dita pela minha irmã e incorporada a “Tristeza e Isidoro”, de Gran Cabaret Demenzial. Será mais um modo de insistir numa das dominantes do meu trabalho, que é o questionamento da realidade pela ficção ao mesmo tempo que se questiona a ficção pela irrupção do real nos limites do texto. Curtos-circuitos, em mais de um sentido.

* Verônica Stigger é escritora, crítica de arte e professora universitária. Tem doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorados pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). É professora das Pós-Graduações em Fotografia e em História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC). Entre seus livros publicados, estão Gran Cabaret Demenzial (Cosac Naify, 2007), Os anões (Cosac Naify, 2010), Delírio de Damasco (Cultura e Barbárie, 2012) e Opisanie ?wiata (Cosac Naify, 2013).