ESTÉTICA, MERCADO, ARTE

Entre as indústrias culturais e as indústrias criativas, entre a ficção e a realidade, entre o entretenimento e a experimentação, entre a cultura de mídia e o seu outro. Nesse meio de campo, este dossiê discute literatura, arte, cinema, ensaio, televisão, cibercultura. Para isso, pensa no que separa e une, grita e silencia, impressiona e estrutura. Preocupa-se com o que permanece mas também com o que se vai.

No elenco de objetos, temos o cinema de dois dos mais destacados diretores da atualidade: o mexicano Alejandro González Iñárritu e o norte-americano Terrence Malick. No primeiro, a renovação possível de uma linguagem sempre em vias de desgaste. No segundo, o gesto coreográfico em direção ao divino. A realidade dura das cidades globalizadas encontra a poesia teológica das imagens impossíveis.

Na literatura, o embate entre divertimento e seriedade está dado antes pelo italiano Italo Calvino e hoje pelo brasileiro Rodrigo Lacerda. A mesma seriedade divertida que os romances policiais querem manter viva, ainda que para isso um corpo se faça necessário. A literatura sobrevive nas fronteiras que apagam as marcas da cena do crime de uma canonização cada vez menos culpada.

A arte não tem medo da cultura mercantil de massas, não mais. O debate contemporâneo sabe que a estética incorpora-se ao mercado. Da mesma forma como o ensaio procura o seu lócus no Brasil, entre a obrigatoriedade de comunicar e a necessidade de satisfazer o intelectualismo de um país ainda deslocado, ainda em dúvida sobre a primeira pessoa.

O dossiê abre-se, assim, ao exercício teórico e analítico de imagens, letras e sons no espaço e no tempo da lógica do mercado. A busca de critérios e categorias pauta os textos aqui apresentados, assim como a comparação de noções e conceitos para compreender a narrativa contemporânea, aqui manifesta em obras e projetos artísticos, nas telas e nas páginas.

E em dois contos inéditos de Adriana Armony que pensam o lugar do escritor brasileiro contemporâneo. E nas ficções e não-ficções do norte-americano David Foster Wallace, que tentou compreender tudo que estava dado pelo domínio da televisão, hoje relativamente menor quando decidimos pensar a cibercultura, a estetização online do mundo.

Poderia ser Z de Zorro, esse aristocrata que se disfarça, com muito estilo, para combater as mazelas da humanidade. Uma marca. Poderia ser Z de zany, a palavra inglesa de difícil tradução (bobo?) que virou entrada estética extremamente atual. Uma categoria. Poderia ser Z de zen, para dizer da tranquilidade com que nossos autores lidam com seus temas de apreço. Uma atmosfera.

É isso e mais: uma reunião de textos com ambição ambígua. Deseja fechar e abrir um alfabeto de ideias.

Divirtam-se.

Sérgio de Sá
Organizador
Outubro de 2016

ARTE, MERCADO E ESTETIZAÇÃO DO COTIDIANO

Resumo: Teóricos contemporâneos, ao abordarem o processo de constituição do campo da arte, têm priorizado a luta contra a cultura mercantil de massa, considerando-a um fator concernente à própria configuração interna do campo e não simplesmente à sua história externa, ou seja, as trocas entre o campo artístico e os objetos comercializáveis seriam tão velhas quanto a própria modernidade. O artigo discute a recorrência desse diálogo na atualidade à luz do declínio das grandes utopias e da crescente estetização do cotidiano operada pelo mercado de bens culturais.

Palavras-chave: Arte; mercado; cotidiano; utopia.

Abstract: Contemporary theorists, to address the process of constitution of the field of art, have prioritized the struggle against commercial mass culture, considering it a factor concerning the own internal configuration of the field and not just to its external history, ie, exchanges between the artistic field and marketable objects they would be as old as modernity itself. The article discusses the recurrence of this dialogue today in light of the decline of the great utopias and the increasing aestheticization of everyday operated by cultural goods market.

Keywords: Art; Marketplace; day to day; Utopia.

 

A arte comporta-se em relação ao seu Outro como um ímã num campo de limalha de ferro.
Theodor Adorno

Ao abordarem o processo de constituição do campo da arte na modernidade, teóricos contemporâneos como Pierre Bourdieu, Andreas Huyssen, Arthur Danto, Thomas Crow e Jacques Rancière, dentre outros, têm priorizado as pressões exercidas pela expansão do mercado de bens culturais, considerando a luta contra a cultura mercantil de massa um fator concernente à própria configuração interna do campo, não simplesmente à sua história externa. Retomam, assim, a seu modo e com objetivos diversos, a ideia defendida por Adorno, em Teoria Estética, de que a autonomia da arte não pode ser dissociada de seu oposto, a heteronomia, estabelecendo-se, entre estes polos, uma relação dialética pela qual cada obra de arte seria resultado de um equilíbrio momentâneo, isto é, a noção de arte não constituiria jamais um domínio definitivamente garantido (2012, p. 19).

O fato de a arte ter se consolidado como campo autônomo no mesmo momento em que as técnicas de reprodução se aperfeiçoavam e as próprias obras de arte começavam a se banalizar em objetos comerciais, surgindo uma arte industrial e uma indústria literária, vem sendo, então, relido à luz da progressiva hegemonia do mercado como grande mediador na esfera cultural da sociedade de consumo. Huyssen, por exemplo, volta-se para o passado para destacar a volátil relação entre arte e cultura de massa, na Europa do século XIX, afirmando que a evolução do primeiro modernismo, em Flaubert e Baudelaire, não pode ser entendida a partir da lógica da evolução da alta arte por si só (1996, p. 7). O Modernismo teria se constituído por uma estratégia de exclusão, ou seja, em função do medo de contaminação pelo seu outro: o ideal da autonomia seria uma forma de resistência à tentação sedutora da cultura de massa, optando-se pela abstenção do prazer de tentar agradar a um público mais amplo (1996, p. 8). A cultura de massa constituiria, assim, o subtexto oculto do projeto modernista.

Já para Bourdieu, a representação da cultura como realidade superior, refratária às necessidades vulgares da economia, isto é, a ideologia da criação fundada na inspiração livre e desinteressada, foi uma construção romântica que visava fazer frente às tensões geradas pela máquina econômica. Em defesa de seu argumento, lembra o paradoxo que está na origem da arte moderna: dominada por instâncias exteriores de legitimidade durante toda a Idade Média e parte do Renascimento e, na França, pela vida da corte durante toda a Idade Clássica, a atividade intelectual e artística só se liberou da tutela da aristocracia e da Igreja, de suas demandas éticas e estéticas, quando se constituiu “um público de consumidores virtuais cada vez mais estendido e diversificado socialmente, capaz de assegurar aos produtores de bens simbólicos condições mínimas de independência econômica e também um princípio de legitimação concorrente” (1974, p. 100). A instituição de um mercado da arte, ironicamente, ocorreu quando o artista passou a afirmar a irredutibilidade da arte ao status de simples mercadoria. A oposição entre liberdade criadora e mercado, ou seja, o desenvolvimento que produz a arte pela arte e a indústria cultural, teria por princípio, segundo o autor, os progressos da divisão do trabalho e a organização racional dos meios técnicos (1974, p. 117). A autonomia seria consequência da divisão dos saberes e da divisão do trabalho realizadas pela modernidade e, nesta divisão, a arte permaneceu como produção individual, ficando fora da produção em série: a contaminação do modo de produção da arte pelo modo de produção da indústria colocaria em xeque a divisão dos campos.

Por outro viés, Thomas Crow, preocupado em destacar não tanto a oposição entre o campo da arte e o da indústria do entretenimento, mas em ressaltar o movimento recíproco entre eles, aponta as contradições da cultura mercantil, dividida entre inovação e estandardização, indagando:

Como entender a contínua implicação mútua entre arte moderna e os materiais da cultura inferior ou de massas? Desde seus começos, a vanguarda artística se descobriu, renovou ou reinventou a si mesma identificando-se com formas de expressão e visualização marginais e não artísticas – formas improvisadas por outros grupos sociais a partir dos materiais degradados da produção capitalista (2002, p. 11, tradução minha).

Designando como vanguardas artísticas (distintas das chamadas vanguardas históricas do início do século XX) o impressionismo e o neoimpressionismo, o autor lembra que Olympia, de Manet, por exemplo, oferecia ao público desconcertado da classe média a economia pictórica do signo barato, o que o leva a perguntar: “Pode acaso a invenção de Manet e Baudelaire de poderosos modelos de modernidade separar-se da imagem sedutora e nauseabunda que a cidade capitalista parecia estar criando para si mesma?” (2002, p. 11, tradução minha). Para ele, o descobrimento impressionista da pintura como um jogo sensual não pode ser dissociado dos novos espaços de prazer comercial, das práticas sociais emergentes de diversão das massas. Restos desse mundo apareceriam na colagem cubista e dadaísta, chegando à pintura e aos happenings de artistas mais recentes como Andy Warhol:

O cubismo afiançou seu caráter crítico através de um reaproveitamento, nos domínios reservados da arte superior, de produtos e protocolos dos estratos inferiores ainda mais exóticos. A iconografia da mesa de café e o cabaré barato identificam seu ambiente com notável precisão. A marca, exatamente reproduzida, da etiqueta de uma garrafa era para Picasso e Braque tão importante como havia sido para Manet em Bar no Folies-Bergère (Crow, 2002, p. 34, tradução minha).

 

Edouard Manet: <em>Bar no Folies-Bergère</em>
Edouard Manet: Bar no Folies-Bergère

A repetição desse padrão, isto é, a convocação de formas culturais inferiores pela alta arte com o objetivo de ultrapassar práticas estabelecidas já desgastadas, permitiria afirmar, de acordo com Crow, que tal procedimento é constitutivo da arte moderna, exercendo um papel fundamental na sua trajetória, mesmo que pouco reconhecido pelos críticos: estes tenderiam a avaliar as alianças entre vanguarda e cultura de massa emergente sempre em termos negativos. Grande parte dos principais críticos de arte no século XX, dentre eles Clement Greenberg, leu a relação entre modernismo e cultura de massa como um incessante repúdio. Segundo Greenberg, o kitsch, ao se ampliar, apropriava-se de expedientes, regras e temas da cultura superior – em busca de matéria-prima, a cultura de massa teria extraído da arte tradicional suas qualidades comercializáveis, deixando como único caminho para a autenticidade um contínuo estado de alerta diante do estereotipado. Desta resistência teria derivado a necessidade modernista de interioridade, autorreflexão e fidelidade aos meios (2001). Distanciando-se da visão de Greenberg, Thomas Crow afirma:

Para aceitar as posturas de oposição da arte moderna, não faz falta supor que esta de algum modo transcendia a cultura mercantil; antes poderia ser considerada como uma arte que explorou com fim crítico as contradições de “dentro de” e “entre” distintos setores da cultura (2002, p. 32, tradução minha).

Observa, ainda, que os pintores impressionistas, ao rejeitarem o academicismo decadente, visaram construir uma nova ordem pictórica, centrando-se na contemplação das paisagens urbanas, nas percepções visuais efêmeras, nos fenômenos óticos irrepresentáveis: gente apressada fazendo compras, apenas entrevista, confusão dos cafés, dos teatros, do music hall, numa celebração do gesto e da cor. Para Crow, ao contrário do que comumente se pensa, a negação modernista em seus momentos mais vigorosos procederia de uma confusão produtiva dentro da hierarquia normal do prestígio cultural. O caráter fronteiriço da arte impressionista decorreria, indiretamente, da emancipação política das massas – esta teria dado lugar a uma busca paralela nas artes, redimidas, graças à política, de uma tradição autoritária: a de uma prática purificada.

Também Jacques Rancière (2011) refere-se à proximidade entre as coisas da arte e as coisas do mundo profano no início do século XIX, associando-a à política e ao avanço da democracia estética. Assim, a literatura moderna, que embaralha as fronteiras entre arte e vida, fazendo com que todos os temas sejam equivalentes, abolindo a separação entre o prosaico e o poético, harmonizava-se, de acordo com o autor, com a promoção social e política dos seres ordinários, ao contrário das Belas Letras e suas divisões rígidas entre gêneros, inclusive entre literatura e história. Em consonância com o novo mundo surgido após a Revolução Francesa e a industrialização, a verdade, na literatura moderna, passa a ser apreendida pelos sentidos, pela percepção efêmera do indivíduo, e não pela tradição. Revoga-se a distinção entre os poucos homens que atuavam, que se dedicavam aos grandes projetos e afrontavam os golpes e contragolpes da fortuna, e a massa de homens cuja atividade estava circunscrita ao círculo da vida, aos meios para mantê-la e à sua reprodução (2011, p. 29). Trata-se, então, de colocar em cena a verdade dos anônimos, a vida dos homens comuns.

Os microacontecimentos cotidianos, entretanto, entrelaçavam-se aos grandes, em função da leitura sintomática da sociedade realizada pela hermenêutica literária do século XIX:

Analisar as realidades prosaicas como fantasmagorias que dão testemunho da verdade oculta de uma sociedade, dizer a verdade da superfície viajando às profundidades e enunciando o texto social inconsciente que assim se decifra, esse modelo da leitura sintomática é uma invenção da própria literatura (2011, p. 43).

Desdobrando este argumento, Rancière faz questão de ressaltar que o princípio da teoria marxista segundo o qual a mercadoria é uma fantasmagoria, uma coisa de aparência muito simples, mas que em realidade se revela como um nó de sutilezas metafísicas, decorreria diretamente da revolução literária, que se desviou da lógica das ações governadas por fins racionais, indo até o mundo dos significados ocultos na aparente banalidade: “a mercadoria marxista sai da loja balzaquiana”, afirma, aludindo à variedade de objetos da loja de antiguidades, minuciosamente descrita pelo escritor no romance La Peau de Chagrin (2015, p. 20).

A transfiguração da mercadoria em fetiche realizada pelo capitalismo liberta os objetos da obrigação de serem úteis e promove seu valor de exposição, aproximando-os das obras de arte. Na vida moderna, ao se tornar obsoleta, indisponível para o consumo diário, qualquer mercadoria ou artigo familiar fica disponível para a arte, como objeto de “prazer desinteressado”, sendo estetizada novamente de uma outra maneira. Haveria, assim, uma dialética na poética romântica da permeabilidade da arte e da vida: “ao tornar o que é comum extraordinário, torna o que é extraordinário comum também” (2015, p. 19). Segundo Rancière, o perigo, nesse caso, não seria que tudo se tornasse prosaico, mas que tudo se tornasse artístico – que o processo de troca, de atravessar a fronteira, alcançasse um ponto em que o limite se tornaria completamente distorcido, em que nada, por mais prosaico que fosse, escapasse do domínio da arte (2005b, p. 40). Chamando a atenção para o recorrente embaralhamento dos limites entre a linguagem da arte e a da vida qualquer, observa:

Não há nenhuma necessidade de imaginar uma ruptura “pós-moderna”, que borre a fronteira que separava a grande arte das formas da cultura popular. A diluição das fronteiras é tão velha como a modernidade, mesma. O distanciamento brechtiano é evidentemente devedor das colagens surrealistas, que fizeram entrar no terreno da arte as mercadorias obsoletas das passagens parisienses ou as ilustrações dos semanários e catálogos passados de moda (2005b, p. 37).

A entrada dos objetos banais no terreno da arte, a relação entre arte e produtos comercializáveis, será também o objeto de estudo de Arthur Danto, em A transfiguração do lugar comum. O impacto causado pela obra de Andy Warhol, nos anos de 1960, levou-o a reformular todo o seu conceito de arte:

Meu ponto de vista é que o inevitável vazio das definições de arte tradicionais provém do fato de que todas elas se basearam em aspectos que as caixas de Warhol tornaram irrelevantes para definições dessa natureza; quer dizer, as revoluções no mundo da arte deixaram as definições bem-intencionadas da arte sem quaisquer recursos em face do arrojo das novas obras. Qualquer definição que pretenda sustentar-se precisa adquirir imunidades contra essas revoluções; eu gostaria de crer que depois das caixas de Brillo as possibilidades para isso realmente se encerraram e a história da arte chegou, de certa maneira, a um fim (2005a, p. 20).

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Ao se perguntar por que as embalagens de papelão de Andy Warhol eram arte enquanto as embalagens comuns dos supermercados não eram, dúvida que, para ele, tinha a forma de um problema filosófico, Danto acabou chegando à conclusão de que a condição de obra de arte era um resultado da história e da teoria. O trabalho de Warhol só teria se tornado viável como arte quando o mundo da arte – o mundo das obras de arte – estava pronto para recebê-lo entre seus pares. O filósofo chega, por esse caminho, à ideia de uma estética do sentido, em detrimento de uma estética da forma. “Obras de arte são significados corporificados” (2005a, p. 12), diz, acrescentando que o problema fundamental da filosofia da arte seria explicar como a obra se relaciona com o objeto. O objeto estético não seria uma entidade platônica eternamente fixa, “uma incessante felicidade além do tempo, do espaço e da história, eternamente presente para a deslumbrada apreciação dos especialistas” (2005a, p. 166). As qualidades estéticas da obra seriam função de sua própria identidade histórica, daí talvez a necessidade de rever completamente a avaliação de uma obra à luz das informações obtidas sobre ela: “é possível até mesmo que a obra não seja o que se pensava dela a partir de informações históricas erradas” (2005a, p. 166), conclui. Os atos de Duchamp, que impunham um certo distanciamento estético a objetos nada edificantes, apresentando-os como improváveis candidatos à fruição estética, seriam, para Danto, demonstrações práticas de que se pode descobrir alguma espécie de beleza onde menos se espera:

Por ser dadaísta, Duchamp se opunha à concepção do Grande Artista como um herói cultural. Ele sentia que a adoração exagerada do artista levaria a consequências políticas desastrosas. Então adotou uma postura antiartística. Tinha desprezo pelo olhar, pelo toque, pela mão do artista. Criação sem intervenção direta era um ideal dadaísta – daí os ready-mades (2005b).

Os deslocamentos operados por Duchamp apontavam também para o fato de que uma coisa podia ser arte, independentemente de ser bela, indicando que a beleza não era consubstancial ao conceito de arte. Passando ao largo das dificuldades da arte, ao longo do século XX, com relação à beleza, vista, muitas vezes, sob o estigma de ser um atrativo a serviço de implicações comerciais, correntes críticas, na atualidade, renegam o belo como qualidade estética, mas por razões opostas às que levaram as vanguardas a questioná-lo.

Teorias recentes, no campo da cultura, buscando combater o que classificam como preconceito ocidental contra uma cosmética feminina, têm proposto uma revaloração de categorias relativas ao gosto que foram marginalizadas ou excluídas pelo paradigma estético moderno. Pretendem tanto reavaliar procedimentos como o uso e abuso do colorido, do decorativo, do ornamento de superfície, como estabelecer categorizações que deem conta do que consideram uma estética doméstica e cotidiana. Pesquisadoras como Rosalind Galt e Sianne Ngai, por exemplo, propõem revisões no campo da estética, a partir da afirmação de categorias tidas como triviais – como o “lindo”, no caso da primeira, ou o “fofo”, para a segunda – tomadas, agora, como alternativas às noções de belo e de sublime, que seriam tributárias da tradição filosófica platônica. Para Galt, (2015, p. 42), argumentos feministas em prol do valor da superfície ou do detalhe e teorias queer da drag e do performativo constituem epistemologias antiprofundidade que servem de modelos para transformar regimes dominantes de valor. Como contraponto ao discurso da estética ocidental, associado ao poder predominantemente masculino e branco, ao medo patriarcal da “cultura de massa vista como mulher” (Huyssen, 1996, p.28), propõe-se uma teoria estética do “pequeno”, livre “das poderosas ressonâncias morais e políticas do belo e do sublime” (Ngai, 2015, p. 9). De acordo com estas vertentes críticas, “categorias do gosto menor” seriam mais apropriadas para a análise da crescente integração, ao longo do século XX, entre a produção estética e a produção das mercadorias em geral do que conceitos estéticos prestigiosos como o belo e o sublime.

Como se pode perceber, o principal alvo dessa crítica, realizada por defensores da estética do pequeno, não é a mercadorização da arte, mas o paradigma estético da modernidade, que, segundo essas correntes de pensamento, estaria associado ao ideal de pureza, à absolutização dos padrões de gosto das culturas dominantes e, consequentemente, a procedimentos elitistas de exclusão. Fruto do declínio dos grandes sonhos de emancipação do homem, da recusa contundente dos universais, tal ênfase na valorização do pequeno, no cotidiano como dimensão democrática por excelência da vida humana, imprime um outro estatuto às relações entre obras de arte e objetos banais na contemporaneidade. Já não se trata da convocação das coisas comuns movida por uma leitura sintomática, através da qual a arte pretendia desentranhar o que estaria oculto nos objetos, buscando em cada um deles as marcas da história: ficou para trás o tempo em que o universo da realidade prosaica era percebido como um imenso tecido de signos onde estaria escrita a história de uma sociedade. O cotidiano, agora, vale por si, pelo que está na sua superfície. É valorizado por ser, como diz Blanchot (2007, p. 241), a esfera onde nada aconteceria, em oposição ao grande acontecimento histórico, ao universal, visto como suspeito por sufocar o particular. Contrariando o clamor sensacionalista das mídias, no cotidiano a existência transcorreria em sua espontaneidade e insignificância: valoriza-se justamente a platitude, a banalidade do dia a dia, o fato de que, nele, o homem se mantém como que à revelia no anonimato humano.

A opção pelo pequeno, pelo corriqueiro, na arte contemporânea, pode ser vista, então, como uma tomada de posição contra a crença nos grandes projetos coletivos de transformação do mundo e, secundariamente, como uma opção moral contra a espetacularização operada pela mídia de massa: num mundo pós-utópico, no qual o desejo de atuar na história declina, o artista se empenha na epopeia do diminuto. Daí decorre que, desde a última década do século XX, vem ganhando proeminência, dentre outras tendências, a ideia do criador como usuário: intervenções a partir de usos imprevistos de dados de arquivos e de objetos cotidianos pontuam a prática artística atual, servindo a objetivos diversos e assumindo características próprias. Termos relativamente recentes, como cultura do uso, poética dos procedimentos, usuário de formas, apontam para uma outra maneira de mesclar arte e vida, referindo-se a uma determinada vertente artística que, sem partilhar a crença no poder subversivo da arte, desposada pelas vanguardas, optou por interferir em situações já existentes, por redispor objetos e imagens que formam o mundo comum, reciclando materiais variados, como imagens, sons e textos. Diferentemente do gesto de Duchamp, entretanto, o uso de imagens e objetos disponíveis, pelo usuário-artista, não tem intenção provocadora, objetos triviais não são introduzidos nos museus para questionar o estatuto da obra de arte, tampouco se lança mão da mistura de heterogêneos com o objetivo de provocar o choque – procedimento presente desde o dadaísmo até as diversas formas de arte contestatária dos anos de 1960. Na arte da pós-produção, noções como originalidade e criação são revistas: produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros são apropriados, abolindo a distinção entre produção e consumo, criação e cópia, ready-made e obra original.

Essa poética dos procedimentos, da manipulação da matéria-prima por usuários produtores, dá lugar, na esfera da literatura, à chamada escrita não criativa, isto é, a composição de textos a partir da costura de fragmentos de obras publicadas por outros autores, num trabalho de reciclagem próximo ao das mixagens realizadas no campo da música. Para Kenneth Goldsmith, poeta nova-iorquino laureado pelo MoMA, a poesia, hoje, adota formas inusitadas, havendo desde poetas que fazem películas que funcionam como poemas até poetas que transcrevem documentos legais: as palavras se converteram em material plástico, os textos anteriores em ready-made e a literatura aproxima-se, por esse caminho, da arte conceitual. Quando se pergunta quem são os leitores de seus livros, Goldsmith responde:

Eu não tenho leitores. Não se trata disso. Meus livros são aborrecidíssimos e lê-los seria uma experiência espantosa. Não se trata de ler, mas de pensar em coisas acerca das quais jamais pensamos. A medida do êxito de um livro assim é a quantidade de debate que gera: se escreveram resenhas, se comentaram nos blogs e se foram incluídos nos programas de cursos universitários. Não nos enganemos, nisso não há diferença em relação às grandes obras da vanguarda. Quem lê os Cantos de Pound ou o Ulisses, de Joyce? São livros de que todo mundo fala, mas que praticamente ninguém lê (2014).

Já na chamada arte relacional, surgida nos anos de 1990, a ênfase recai sobre a criação de situações dirigidas a modificar nosso olhar e nossas atitudes diante do entorno coletivo: o objetivo dessas microssituações é criar laços entre indivíduos e suscitar modos de confrontação e de participação novos. Assim, em oposição à heterogeneidade radical do choque, teríamos, por exemplo, a prática de um artista como Pierre Huyghe, fazendo aparecer sobre um painel publicitário, em vez da publicidade esperada, a fotografia aumentada do lugar e seus usuários. A arte relacional, cujos propósitos estariam em consonância com a noção de “partilha do sensível”, de Jacques Rancière, proporia, segundo o filósofo, em vez da revolução, formas modestas de uma micropolítica:

As práticas da arte in situ, o deslizamento do cinema nas formas espacializadas da instalação museística, as formas contemporâneas de espacialização da música ou as práticas atuais do teatro e da dança vão na mesma direção: a de uma desespecificação dos instrumentos, materiais ou dispositivos próprios das diferentes artes, a da convergência até a mesma ideia prática da arte como forma de ocupar um lugar no qual se redistribuem as relações entre os corpos, as imagens, os espaços e os tempos (2005b, p. 13).

Não se trata, desse modo, de tomar distância em relação às mercadorias, mas de buscar novas formas de proximidade entre as pessoas, de instaurar novas formas de relações sociais – reage-se à falta de vínculos, não tanto ao excesso de mercadorias e de signos. Como diz Borriaud, principal teórico desta arte também chamada de “arte colaborativa”: “mediante pequenos serviços, o artista corrige as falhas do vínculo social” (2009, p. 46). A frase de Borriaud deixa entrever a ambiguidade entre função utilitária e função estética dos objetos subjacente à estética relacional. Afinado com o pensamento de Felix Guattari, em A revolução molecular (1981), o crítico francês acrescenta ainda:

As utopias sociais e a esperança revolucionária deram lugar a microutopias cotidianas e a estratégias miméticas: qualquer posição crítica direta contra a sociedade é inútil, se baseada na ilusão de uma marginalidade hoje impossível, até mesmo reacionária (2009, p. 44).

Para fazer frente ao fetichismo da mercadoria, que se instala com a perda da autoridade que derivava do valor de uso do objeto, com o esvaziamento de seu caráter material em prol das relações simbólicas que o envolvem, a arte das “microutopias”, em algumas de suas vertentes, busca recuperar a relação arte-vida a partir de intervenções que constituem usos inesperados do espaço comum.

Assim, diante da crescente estetização do cotidiano nas sociedades ocidentais, a questão do vínculo entre objeto artístico e valor de uso tem sido repensada por ângulos diversos. Numa sociedade em que as vitrines capturaram a contemplação, e a cena originária da experiência estética se expande cada vez mais para além do campo artístico ou da natureza, a dimensão do uso, que, em princípio, estava associada aos objetos comuns, é evocada no campo da arte visando dar conta das características assumidas pelo jogo de intercâmbio entre o mundo da arte e da não arte na contemporaneidade. O uso é convocado, algumas vezes, para que se reafirme a importância do lúdico, do gratuito, contra o pragmatismo do mercado, reiterando-se o papel do jogo como libertador dos objetos, já defendido por Schiller; outras vezes, é convocado para que se postule o procedimento de apropriação como estratégia contra os novos matizes do fetichismo da mercadoria. A inoperatividade e a profanação, por exemplo, propostas por Agamben (2007) contemplam estes dois tipos de reação ao que o capitalismo de consumo teria consagrado, isto é, a mercadoria e seu fetiche no consumo. O filósofo italiano, retomando a tese do capitalismo como religião, esboçada por Walter Benjamin, considera que, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que, oscilando entre valor de uso e valor de troca, se transforma em fetiche inapreensível.

Nesse contexto em que as coisas tornam-se sagradas, reverenciáveis por si mesmas, o grau de compromisso da arte pós-utópica com a resistência ao mundo instrumentalizado do consumo é variável, sendo, por vezes, minimizado por correntes artísticas e teóricas que privilegiam, sobretudo, a crítica do paradigma estético da modernidade, o qual para essas correntes estaria intrinsecamente ligado aos grandes projetos totalitários. Sempre se pode indagar, então, até que ponto o culto contemporâneo das pequenas e efêmeras intervenções constitui de fato uma outra via para a arte, uma micropolítica capaz de conciliar a autonomia do objeto estético e a reapropriação do mundo comum, sem perder sua capacidade crítica. Se a reivindicação do banal pela arte contemporânea já não serve para revelar enigmas e fantasias escondidos na realidade íntima da vida cotidiana e nem sequer para operar deslocamentos que irreverentemente ponham em xeque as fronteiras entre os circuitos da arte e dos objetos comuns, não correria o risco de se perder em meio aos espetáculos de banalidades que se exibem nos meios de comunicação de massa? Da mesma forma, as intervenções de cunho social nos espaços públicos pela arte colaborativa não correriam também o risco de derivar para uma espécie de simulacro de sociabilidade, como apontaram alguns críticos, dentre eles Jean Galard (1998)?

Para Agamben, Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu e, certamente, ao tomar um objeto qualquer e introduzi-lo no museu, não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercadorização. Diz o filósofo:

Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances a museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço (2012).

<em>Roda de bicicleta: </em>ready-made<em> de Marcel Duchamp</em>
Roda de bicicleta: ready-made de Marcel Duchamp

Apesar de considerar que o próprio da arte hoje é mostrar que não há verdadeiramente o próprio da arte, que a saída da arte contemporânea estaria exatamente na indeterminação de seus poderes e limites, Jacques Rancière, como Agamben, também se ressente da abolição da obra – definindo “obra” como “expressão da vontade criadora de um autor numa materialidade específica trabalhada por ele, erigida como original distinto de todas as suas reproduções” (2003). Num pequeno texto intitulado “Autor morto ou artista vivo demais?” – publicado na Folha de S. Paulo – o filósofo argumenta que a abolição da obra, no entanto, não se confunde com a morte do autor, nem com o fim da propriedade. Ao contrário, com o fim da obra a ideia de propriedade se reforçaria. Entretanto, como a obra, descartada a originalidade, é resultado da combinação de elementos de outras obras preexistentes ou tornou-se conceito, o artista passa a ser proprietário de uma ideia, como o inventor detém a patente do seu invento:

A Salle des Martin [Sala dos Martin] de Bertrand Lavier expõe 50 pinturas executadas por autores de nome Martin. Nenhuma dessas pinturas desempenha mais o papel de obra original. A originalidade da obra passou para a ideia, imaterial nela mesma, dessa reunião. Qualquer acúmulo de materiais pode então tomar seu lugar, por exemplo o monte de papéis velhos, elemento de uma instalação de Damien Hirst, que um funcionário de museu londrino, preocupado com limpeza, lançou inoportunamente ao cesto de lixo (2003, p. 3).

Chamando a atenção para o fato de que as relações entre o autor, o proprietário e a pessoa são extremamente complexas, o filósofo considera que o que se perde na arte contemporânea não é nem a personalidade do autor nem a materialidade da obra, mas a obra como afirmação da singularidade absoluta da forma. Rancière, que em outros textos se posiciona a favor da indeterminação concernente à identidade mesma da arte, pois esta indeterminação poderia servir para perturbar a distribuição dos territórios e das competências características da ordem consensual, no artigo mencionado, contraditoriamente, não deixa de revelar uma certa nostalgia de um tempo em que funcionários da limpeza de um museu,  devido ao esmero do trabalho do artista, à primazia concedida à forma, não teriam dúvidas diante de uma obra de arte, identificando-a com facilidade.

Cabe lembrar ainda que, com o abandono do sonho de transformação radical do mundo, não só a noção de obra é abalada, mas também o próprio imaginário que a modernidade criara em torno da figura do artista e que, de alguma forma, mantém-se presente na expectativa do público. Cético no que diz respeito à importância de seu papel na mudança da sociedade, o artista cada vez mais se afasta daquela imagem composta pelos críticos, pelas biografias romanceadas e pela imprensa, de contestador do sistema econômico que o explora, de alguém que vive uma vida à margem das ambições materiais, pouco afeito às amarras profissionais e às ilusões da fama. Ao contrário, sai à luta pela conquista de visibilidade para a sua obra e de sucesso comercial, dando entrevistas na mídia, criando perfis nas redes sociais, participando de feiras literárias, disputando espaço nas exposições e outros eventos do tipo. Este é o caso, por exemplo, dos escritores que participam do reality show Masterpiece, que vai ao ar na emissora italiana RAI[1]. Na edição de 2016, a produção do programa recebeu originais de cinco mil escritores interessados em pleitear uma vaga. Pouco mais de 30 foram selecionados e disputam um contrato para publicar seu romance de estreia pela tradicional editora Bompiani, que está no mercado editorial italiano há quase 90 anos. Os jurados do programa, produzido pela mesma empresa responsável por American Idol, são escritores italianos já consagrados por suas publicações. Os aspirantes a escritor têm de escrever, sob pressão dos jurados e do público, um texto em 30 minutos. Além disso, precisam cumprir algumas outras provas, como recitar trechos de seus livros e abordar o diretor de uma grande editora num elevador para convencê-lo a ler um texto original. No fim de cada episódio do programa, um finalista é selecionado e grandes escritores italianos dão dicas de como escrever melhor. Segundo Lucas Alencar, redator da matéria sobre o reality show publicada na Revista Galileu (2016), boa parte dos críticos culturais da Itália criticaram o programa, considerando que vulgariza a literatura e indagando se o provável sucesso de vendas do livro do vencedor seria decorrente da qualidade do texto ou da exposição do autor diante das câmeras.

O programa da televisão italiana, ironicamente, nos permite dizer que o sonho das vanguardas de aproximar literatura e vida cotidiana foi finalmente realizado: não pela arte, mas pelo mercado de entretenimento, embora ao preço de reduzir o texto literário à condição de simples mercadoria, submetida, como qualquer outra, à lógica do valor de troca e aos rigores da competitividade capitalista. O reality show, tradução midiática da estética do pequeno, do culto do cotidiano, preconizados por teóricos contemporâneos, aproveita-se da aura que a literatura como instituição, de certa forma, ainda conserva, para atrair o público, enredando-o na dinâmica de um jogo prosaico cujas regras comandam a rotina dos escritores regidos pelo processo de concorrência para publicação de suas obras.

Como se pode concluir, já não se trata, hoje, de discutir a validade ou não da mistura de heterogêneos que, afinal, é constitutiva do que a modernidade convencionou chamar de obra de arte, mas de questionar o modo como essa mistura se realiza a partir do momento em que os grandes ideais de emancipação do homem são revogados e, consequentemente, a utopia estética declina. Trata-se de pensar os rumos da arte contemporânea, tendo em vista o frágil equilíbrio entre resistência e negociação num cenário em que o choque também se banalizou.


* Vera Lúcia Follain de Figueiredo é doutora em Letras, professora Associada do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq.  É autora, dentre outros trabalhos, dos livros: Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema (PUC/7 letras), Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea (UFMG) e Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana (Imago/UERJ). Organizou os livros Mídia e Educação (Gryphus) e Comunicação, representação e práticas sociais, este último em trabalho de equipe (PUC/Ideias e Letras).

 

Referências

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ALENCAR, Lucas. Na Itália, escritores disputam contrato com editora em reality show. Revista Galileu, 14/01/2016. Disponível em http://revistagalileu.globo.com/ Acesso em 20 jun 2016.

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RANCIÈRE, Jacques. A revolução estética e seus resultados. In: Projeto Revoluções. Disponível em revoluções.org.br. Acesso em 3 jun 2015.

 

Nota

[1] Devo esta informação à minha orientanda de Mestrado, na PUC-Rio, Helena Schoenau de Azevedo.

ENTREVISTA COM ANDRÉ LEMOS

Impossível discutir cibercultura no Brasil hoje sem falar de André Lemos. Professor na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), organizou antologias e é autor de sete livros sobre o tema, um deles em parceria com Pierre Lévy. Em Carnet de Notes (http://andrelemos.info), mantém seus fiéis admiradores sempre bem informados. Neste momento, ele escreve três livros. Um sobre Internet das Coisas, no qual irá apresentar de modo introdutório o conceito de “sensibilidade performativa” e a ser concluído ainda este ano. Outro sobre smart cities, planejado para publicação em 2017. E também uma ficção, prevista para ficar pronta em novembro. Sua pesquisa atual, vinculada ao CNPq, é sobre Teoria Ator-Rede e Teorias da Comunicação. A entrevista a seguir procura deslocar o olhar de André Lemos – leitor criterioso e insaciável de ficção literária – para o campo das artes. Em tempos de redes e telas, temos um diagnóstico avançado da situação estética, em que técnica e tecnologia atuam como forças fundamentais da cultura contemporânea.

<em>André Lemos<strong> / </strong>Crédito: Arquivo pessoal</em>
André Lemos / Crédito: Arquivo pessoal

Gostaria de começar por uma experiência ficcional. Você escreveu um livro com tweets. Poderia contar um pouco da escritura de @re_vira_volta? Ficou satisfeito com os resultados do que classificou como twitteratura?

André Lemos: O termo twitteratura não é meu, mas usado por muitos autores quando se referem a um trabalho de ficção pelo Twitter. Há blogs, contas no Twitter e no Facebook sobre o tema usando esse termo. A minha experiência foi realizada em 2010 quando comecei a escrever semanalmente capítulos do @re_vira_volta no Twitter. A ideia original era ser um trabalho para o Twitter, explorando a escrita para esse meio e jogando com o constrangimento do sistema –  máximo de 140 caracteres. Me coloquei o constrangimento de não escrever menos. Cada texto ou microcapítulo escrito na semana, sempre aos sábados às três da tarde, teria que ter os exatos 140 caracteres. Depois disso, o editor da Simplíssimo me sugeriu transformar a experiência em um ebook e aceitei. O livro foi publicado e está disponível na Apple Store e na Google Play de graça.

Gostou da experiência?

André Lemos: Sim. Alguns seguidores esperavam o capítulo da semana. Era uma forma de escrita em um meio novo, no qual os leitores poderiam acessar o texto em tempo real e eu podia saber quem e quantas pessoas estavam seguindo a experiência. Criei uma conta específica para a história e usava a minha conta pessoal também. Embora a experiência de escrever pequenos textos e de forma seriada não seja nova (basta ter em mente os microtextos de Robert Walser), me interessa cruzar literatura com os meios eletrônicos. Me interessa também a literatura no papel, que fique claro. Em 2001 criei o projeto Janelas do Mundo. Uma experiência em ciberliteratura (http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/janelas/index1.html) em que pessoas escreviam sobre o que viam das suas janelas de qualquer lugar do planeta. Era uma escrita coletiva em blog e havia poucas experiências no Brasil à época. A escrita coletiva também não é nada tão novo na literatura, mas a exploração via web, permitindo uma edição e publicação rápidas e o alcance de leitores e escritores diversos, me interessava. Não se trata da busca pelo novo, mas de experiências de escrita em outras (des)materialidades. Fiz também outras escritas, invisíveis, com GPS nos projetos Survival e Identité, no Canadá, e no Come and Go, recentemente em Dublin, andando sem parar por 20 km (http://andrelemos.info/?p=5259&preview=true). Assim, posso escrever uma novela em 140 caracteres no Twitter, pequenas crônicas em posts em um blog para falar das minhas janelas, ou de bike, de carro ou a pé marcando eletronicamente o espaço, como fiz no Canadá ou na Irlanda. A satisfação nunca é plena, mas me diverti, seja na twitteratura, na ciberliteratura na web (como chamei o Janelas do Mundo) ou nos GPS – Writing. A pequena satisfação vem do cansaço do corpo depois da impressão das letras nessas novas materialidades.

E para ler literatura: papel ou tela?

André Lemos: Tanto faz. Hoje leio mais nos leitores eletrônicos (tenho um Kindle). Não gosto de ler literatura em laptops, desktops ou mesmo nos tablets. Não gosto da luz da tela, mas se não houver opção, leio em qualquer meio. O que importa é ler. Mas pessoalmente prefiro o papel e o e-reader como materialidades de suporte dos textos. O papel é muito confortável e sensual, mas carregar livros é muito chato e às vezes difícil. Para quem está sempre lendo, ter acesso aos livros é muito importante. Poder ter, com um e-reader, a sua biblioteca na bolsa é uma dádiva. Pela praticidade, fico hoje mais com o Kindle, priorizando a compra de ebooks. Mas no Kindle só leio literatura. Há também todas as formas de interação com leitores e de tratamento de dados disponíveis hoje com os formatos eletrônicos que podem ser interessantes: ver destaques de outros leitores em um livro, ter acesso a práticas de leituras a partir de análise de dados. Mas prefiro, enquanto leitor, não ver marcas de outros leitores e, enquanto escritor, não saber se os leitores param na página 25 ou 50! Para os textos acadêmicos de trabalho, uso mesmo os PDFs no computador. Respondendo diretamente a sua pergunta: é papel e tela. Não acho que tenha que ser um ou outro. Ampliar as formas e os dispositivos de leitura me parece ser bom tanto para leitores como para escritores.

As artes já se adaptaram por completo à internet?

André Lemos: Acho que já passamos da fase do deslumbre pela novidade e caminhamos para um maior amadurecimento dos processos e produtos artísticos na internet e nos novos dispositivos digitais. Arte é techné e não há processo artístico sem o desafio dos artefatos. Os artistas estão sempre explorando os limites dos objetos, por isso são o que são. Não sei se podemos dizer que há melhor adaptação. Passaram o susto e a euforia do início da internet e vemos obras mais maduras hoje. No Brasil, os trabalhos dos principais artistas “eletrônicos” (não vou citar para não cometer injustiças de omissões) mostram essa evolução. A adaptação completa pode até ser um sintoma de enfraquecimento criativo. Estar desadaptado é um motor para a criação em qualquer meio. A internet mudou bastante. Não se trata de fazer web-arte, mas de pensar novos produtos em novos dispositivos em uma ecologia midiática mais complexa: mídia locativa, drones, arte em redes sociais, games, realidade aumentada. Há um maior conhecimento das potencialidades dos artefatos, das redes, dos dispositivos móveis e pode-se transitar com mais tranquilidade entre eles. A questão me parece ser hoje muito menos a ênfase no uso dos novos dispositivos do que o tensionamento das questões centrais da cibercultura: problemas que questionam o uso do corpo, da subjetividade, dos dados pessoais e públicos, da privacidade, da vigilância e do planeta. O tema da atual Bienal de São Paulo é um exemplo disso.

Como avalia o consumo de imagens nas diversas telas que nos acompanham cotidianamente?

André Lemos: Imagens e telas são importantes mediadores da cultura e hoje ganham uma dimensão performativa até então inédita pelas características do digital. Não representam o mundo. Elas performam o mundo pela ação algorítmica. São, assim, índices. Há um uso ótico dos dedos para manipulação de imagens nos novos dispositivos pessoais móveis. Há uma expansão da fotografia como um vetor de contato, afastando a foto vernacular da sua origem de celebração de momentos únicos. Há o self que coloca o sujeito no centro do mundo da imagem, sendo o fundo apenas um fundo, seja ele a Mona Lisa ou o Grand Canyon. Há a manipulação de mapas e de formas de deslocamento pelo espaço. Há a gestão do corpo por aplicativos e dados recolhidos por dispositivos vestíveis como pulseiras e relógios criando uma nova forma de gestão da saúde… Estamos, a cada dia, envolvidos em uma intermediação com o mundo por imagens e telas de aplicativos nos mais diversos dispositivos: celulares, tablets e agora com os mais comuns dos objetos transformados em objetos “smart” pela internet das coisas – pulseiras, relógios, roupas, sapatos, carros, casas, geladeiras… A IoT (Internet of Things) cria nesses objetos uma “sensibilidade performativa” que produz novas agências sobre outros objetos (incluindo aí os humanos), gerando ações no mundo a partir de uma governança algorítmica da vida, que alguns têm chamado de “algocracia”. As imagens e telas são hoje uma espécie de espelho e, ao mesmo tempo, de tradutor do mundo. Elas vão invadindo a nossa civilização desde as pinturas rupestres, passando pela fotografia, cinema, televisão, web e agora os tablets, smartphones e outros objetos. O consumo de imagens é uma forma de consumar eficazmente o mundo. Nesse sentido, as imagens são objetos mediadores importantes que nos fazem fazer coisas. Mais do que olharmos para as telas, as telas produzem um determinado olhar balizando a nossa inserção no mundo. Consumimos mais e mais imagens em telas, mas as telas e suas imagens também nos consomem, nos produzem e criam novas redes sociotécnicas que compõem a cultura contemporânea. No fundo, não sabemos mais quem consome quem ou o quê, qual a direção do vetor da ação e de onde ela se origina. Há, portanto, uma forma de “construção” do mundo que precisa ser discutida, politizada.

De que forma a desmaterialização interfere na recepção estética? Estamos preparados para abandonar todos os suportes? 

André Lemos: Não há desmaterialização absoluta. Sabemos que estamos em uma era de disfunção econômica e cultural pelo surgimento de modelos de negócio que aparentemente estão desmaterializando o mundo. O Uber é o maior serviço de táxi sem possuir carros, o Airbnb, de aluguel de imóveis sem possuir apartamentos, a Amazon, de vendas de produtos sem ter loja física, o Facebook, a maior empresa de mídia do mundo sem produzir conteúdo, a Apple ou o Google, os maiores vendedores de aplicativos sem produzi-los. A desmaterialização é apenas uma faceta de novas formas de territorialização, de controle e de materialização. Os suportes interessam e influenciam a fruição do produto midiático de diferentes maneiras. Em alguns casos, o fim do suporte físico é inevitável, em outros não acontecerá. Não se trata de abandoná-los. Por exemplo, falávamos dos livros mais acima. Acho que um belo livro de fotografia como o de Sebastião Salgado, com um metro de largura, deve ser consumido dessa forma, em papel. Não há suporte eletrônico que substitua essa experiência. Mas um livro acadêmico, ou de ficção, não tem por que ser necessariamente de papel, pois o que importa é o conteúdo e não as letras nas páginas. Ouvir música em vinil ou fita cassete é apenas preciosismo de nostálgicos ou aficionados. Mas para quem quer curtir a música, o que importa é o que toca (e o lugar e com quem compartilhamos o momento). Aqui o suporte físico importa pouco. Nesse caso, acho que o streaming pode ser o futuro da música. O cinema só é cinema com uma sala escura compartilhada com desconhecidos. A Netflix não vai suprir o que o cinema oferece, assim como o museu digital não tem como competir com o museu físico. Acessar um museu na internet não refaz a experiência de contato com objetos em um espaço físico tornado, por isso, sagrado. Na minha opinião, não há desmaterialização absoluta, há sempre processos de “rematerialização”, como os processos de desterritorialização e reterritorialização. Não há e não haverá o abandono indiscriminado dos suportes físicos em prol dos eletrônicos. O que temos hoje são tensões e remediações entre formatos, conteúdos e suportes.

Como a cibercultura lida com a crítica da cultura, pensada em formatos, conteúdos e suportes típicos de cinema, literatura, música etc.?

André Lemos: Há uma liberação da emissão com a emergência de novas formas de veiculação da crítica e de seu consumo emergentes na cibercultura, possibilitando a quebra de monopólio dos meios massivos. Isso não significa dizer que eles não são importantes. Devemos pensar em um enriquecimento da paisagem comunicacional contemporânea proveniente da tensão entre o controle das mídias massivas e a liberação da emissão, conexão e reconfiguração com as mídias pós-massivas. Podemos ler críticas de artes plásticas, cinema, teatro, literatura, dança ou música em revistas e jornais especializados de massa (são poucos os que podem escrever neles), mas temos hoje a opção não só de buscar críticas de leitores em blogs, Facebook, Twitter, em diversas línguas, como também de escrever sobre essas modalidades em múltiplas plataformas. A qualidade (sempre criticada) dessa liberação da emissão deve ser deixada à decisão dos leitores. Se podemos ler as críticas literárias em revistas especializadas massivas e também nas diversas plataformas e serviços da internet, podemos dizer que a experiência literária de leitores e escritores é ampliada. Essa é uma mudança muito interessante. Por exemplo, vemos hoje a emergência de uma nova cultura dos fãs que foi potencializada pelas redes e dispositivos atuais da cibercultura. Eles escrevem críticas, leem crítica dos outros e criam seus produtos a partir daqueles que consomem, gerando interessantes narrativas cross e transmidiáticas. A cultura digital quebrou o monopólio da crítica especializada de veículos tradicionais e ampliou o exercício da crítica. A cultura sai vencedora.

Você é, digamos, um difusor da Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour. Como ela poderia ser aproveitada no pensamento crítico sobre as artes hoje?

André Lemos: Como falávamos das imagens antes, elas são mediadores importantes e não apenas objetos de consumo. Temos que pensar nos dispositivos como agentes centrais na constituição do social e não apenas como passivos sucumbindo a uma suposta autonomia do sujeito humano. Falávamos das imagens e dos aplicativos. Elas produzem a realidade e as redes sociotécnicas atuais.  Essa visão teórica – da Teoria Ator-Rede – TAR, mas também da Ontologia Orientada a Objetos – OOO, da Materialidade da Comunicação, da Semiótica e mesmo de alguns trabalhos dos Estudos Culturais e da Ecologia das Mídias – nos ajuda a entender que os instrumentos são sempre produtores do real e que toda realidade é construída. O problema não é essa construção, já que não existiria outra possibilidade, mas politizá-la. Para isso, os objetos devem entrar na conta. A TAR nos propõe pensar o social sem sucumbir em respostas dadas por grandes frames explicativos ou por essências ou substâncias, colocando tudo em simetria. Essa visão deixa transparecer a rede composta pelos que agem e pelos que intermediam em uma determinada associação. Isso é interessante para pensar a arte e qualquer fenômeno social. Por exemplo, a TAR evita pensar a ideia de aura como uma essência do original, indo de encontro à famosa tese benjaminiana. Para a TAR, deve-se seguir a trajetória dos objetos (incluindo os artísticos) e compreender que a permanência de uma obra está diretamente ligada à possibilidade de sua transformação no tempo e no espaço. Latour aponta que a cópia é o que mantém a trajetória do objeto, a sua força de circulação e o que cria, na realidade, a sua aura. O problema não é a cópia, mas garantir a geração de boas cópias. A música de Caetano Veloso, por exemplo, gravada e regravada por diversos autores é que faz a sua aura aumentar e sua obra existir por muito tempo. Mas a cópia deve ser boa. Se for ruim, não a ouviremos mais, novos artistas não a gravarão e ela desaparecerá. A cópia (boa) não mata a aura, muito pelo contrário. Assim, fazer boas cópias é manter algo em circulação, possibilitando a trajetória do objeto. Em meio a debates superficiais polarizados, centrados muitas vezes no aspecto econômico sobre cópias e originais, digital e analógico, suporte material ou físico, a TAR pode nos ajudar a sair dessa perspectiva e enfrentar a análise das associações de uma maneira que leve em conta a composição. Outro ponto interessante é que o artista é sempre feito pela obra e não o contrário. Nesse sentido, a discussão sobre autoria também é interessante. No seu último livro, Enquete sobre os modos de existência, Latour aponta para a necessidade de desenvolver uma diplomacia que nos ajude a sair do impasse da modernidade. Para isso ele identifica os seres que nos constituem enquanto modernos. Identificar a rede e a preposição desses seres é fundamental para dizer o que somos, já que “jamais fomos modernos”. Bom, alguns desses seres (composições que se constituem não enquanto substâncias, mas enquanto trajetórias por um outro) tocam diretamente a questão da arte, como os seres da ficção, da técnica e da metamorfose. Trata-se de trajetórias de seres que precisam passar por outros para existir, como se a música precisasse de amantes da música para existir (ser da ficção) e os amantes da música se transformassem pela sua escuta (os seres da metamorfose). A arte cruza ainda os seres da técnica pois sempre precisam de passar por outros em formas de “dobras e desengates” (faz fazer e transforma um objeto em outro). A TAR oferece diversas entradas para pensar a arte e particularmente seu papel na produção da modernidade e da cultura digital.

Que conexões as indústrias criativas estabelecem com as smart cities?

André Lemos: Cidades inteligentes, que prefiro chamar de “cidades smart” para usar o acrônimo S.M.A.R.T. – Self-Monitoring Analysis and Reporting Technology e evitar pensar que a inteligência estaria necessariamente vinculada aos usos de tecnologias de ponta, são projetos nos quais um determinado espaço urbano é palco de experiências de uso intensivo de tecnologias de comunicação e informação sensíveis ao contexto (IoT), de gestão urbana e ação social dirigidos por dados (Data-Driven Urbanism). Esses projetos agregam, portanto, três áreas principais: Internet das Coisas (objetos com capacidades infocomunicacionais avançadas), Big Data (processamento e análise de grandes quantidades de informação) e Governança Algorítmica (gestão e planejamento com base em ações construídas por algoritmos aplicados à vida urbana). O objetivo maior é criar condições de sustentabilidade, melhoria das condições de existência das populações e fomentar a criação de uma economia criativa pela gestão baseada em análise de dados. Assim sendo, a relação é direta entre projetos de “cidades smart” e indústrias criativas. No entanto, de uma visada mais ampla, não há um modelo único e vários países estão testando soluções. Em muitos casos, há muito discurso e pouca efetividade nesses projetos. Reeditam-se utopias conhecidas de inserção de tecnologias no espaço urbano. Há muita fé e pouca evidência empírica sobre o sucesso das “cidades smart”. E o discurso é sempre recheado por promessas de sustentabilidade, participação cidadã e indústrias criativas, como se os dados fossem ler a realidade das cidades sem “bias”. Mito da neutralidade dos dados, da gestão científica e técnica da vida social. É importante observar de perto esses projetos.


* Sérgio de Sá é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e doutor em Estudos Literários pela UFMG, com pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), é autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG, 2010). Tem ensaios publicados nos livros O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea (Rocco, 2013) e Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (Revan, 2014), entre outros.

A IMPROVÁVEL ECONOMIA DOS DESPROPÓSITOS

Resumo: Como as principais tendências contemporâneas da retomada do ensaio desembarcam no Brasil? A partir dessa questão, o texto refaz a trajetória do gênero no país em contraste com a percepção do mundo anglo-saxão acerca do ensaísmo. Aponta-se a encruzilhada da reflexão intelectual com a exposição da primeira pessoa, da relação entre academia e mercado, da tensão entre comunicabilidade e aprofundamento.

Palavras-chave: ensaio; comunicação; mercado.

Abstract: How does the main contemporary trends of essay disembark in Brazil? From this point, the text retraces the trajectory of the gender in the country in contrast to the perception of the Anglo-Saxon world about essayism. It points to the crossroads of intellectual reflection regarding the exhibition of the first person, the relationship between academia and market, the tension between communicability and deepening.

Keywords: essay; communication; market.

 

1.
O ensaio é, entre nós, quase sempre tomado pelo que não é ou não deveria ser. Nascido como instância de liberdade, mão estendida para a amizade do leitor, início de diálogo, o ensaio veio dar em nossas latitudes dois séculos depois de espalhado pela Europa. E por aqui terminou quase sempre confundido com coisa difícil, de erudito ou especialista. Nascido conversa solta ao sabor da curiosidade e da inteligência, muitas vezes tornou-se entre nós monólogo pedante, não raramente cifrado pelo jargão universitário, desafinando o diapasão da difícil fala fácil que é uma de suas conquistas fundamentais. Sem assunto, sem interlocutor, o espectro de Montaigne vaga pelos escombros do encarniçado bacharelismo de nossa vida intelectual. Um caça-fantasmas pode detectá-lo aqui e ali em páginas de revistas. Nos jornais, raramente. Em livros, alguns, sobretudo entre os que participam da sempre robusta lista dos worst sellers, das piores vendas. Nos muitos cruzamentos do pensamento e da escrita com o mercado, o ensaio faz uma esquina improvável.

William Hazlitt: autorretrato, 1802
William Hazlitt: autorretrato, 1802

2.
Diz-se que a França inventou o ensaio e a Inglaterra, o ensaísta. Na Londres do século xviii para o xix talvez esteja o primeiro indício de que a forma difundida na ilha por Francis Bacon, atento leitor de Montaigne, poderia render, além de prazeres intelectuais, algum dinheiro para seus praticantes. William Hazlitt (1778-1830) e Charles Lamb (1775-1834) são os exemplos mais bem-acabados dos essayists que viveram – ainda que mal, diga-se ­­– da própria pena. Praticavam o que ficou conhecido como familiar essay, assim designado por fundar-se numa prosa autoral que, publicada em periódicos, estabelecia vínculos imediatos e duradouros entre escritor e leitor. “Sobre o ódio” e “O convalescente”, clássicos de um e de outro, são exemplos perfeitos do fair play intelectual que Lucia Miguel Pereira via como uma das marcas fundamentais da invenção dos Ensaios. Tratam ambos de temas desimportantes e marginais para uma vida intelectual ritualizada e idealizada – um disserta sobre a necessidade de querer mal a algo ou alguém, outro sobre o status ambíguo daquele que, recuperando-se de uma doença, vive num intervalo entre os mundos da saúde e da fraqueza. Não há nesses raciocínios virtuosos objetivo final ou conclusão. O que interessa é o percurso, o passeio. Não esqueçamos que o ensaio ocupa, segundo Theodor Adorno, “um lugar entre os despropósitos”.

3.
Em 1984, Philip Larkin decretava: “O ensaio, como uma forma literária, está extinto”. Para o poeta, o precário ganha-pão de seus ilustres conterrâneos do século xviii “pertence a uma época em que ler – ler quase qualquer coisa – era o principal entretenimento da classe educada” (apud KIRSCH, 2013). Sua tese era sustentada então pela evidência de que a cultura audiovisual, mais rápida e rasteira, teria subjugado até a chamada “classe educada”, que habitualmente tinha o ensaio e seus refinados prazeres como elemento importante em sua dieta intelectual. Um entretenimento culto, no diapasão do prazer e não necessariamente de qualquer finalidade imediata, educacional ou de outro tipo. Melhor poeta do que futurólogo, Larkin não chegou a conhecer a Internet nem pôde constatar o novo e insuspeito lugar que, com ela, a leitura e a escrita ocupariam entre educados e não tão educados. E muito menos conjecturar que se falaria, no mundo anglo-saxão do século xxi, de uma nova vida para o ensaísmo.

4.
Vinte e nove anos depois de Larkin, Christy Wampole, professora assistente de Princeton, publica no Opinionator, blog do New York Times cujo título já é uma declaração de princípios, o sintomático “A ensaificação de tudo”. “É como se mesmo diante da proliferação de novas formas de comunicação e escrita”, escreve ela, “o ensaio tivesse se transformado num talismã de nosso tempo” (Wampole, 2013). Aludindo a uma “longevidade” do gênero, ela vê no ensaísmo uma alternativa ao “pensamento dogmático” que identifica como dominante nos Estados Unidos de 2013, ano em que escreve. “Na verdade”, diz ela, “eu defendo uma aplicação consciente e mais reflexiva do espírito do ensaio a todos os aspectos da vida como uma resistência à zelosa limitação das cabeças fechadas. A esta aplicação chamarei ‘ensaificação de tudo’” (Wampole, 2013). A imagem que usa é pensada para ser desconcertante: “O ensaísta sampleia mais do que um DJ: um loop de épico aqui, um curto replay da voz ali, um break polivocal e citações de um passado glorioso, tudo isso encimado por um scratch bem pessoal” (Wampole, 2013). Menos gratuita do que parece, a metáfora pop fala tanto de uma possível definição de um método do ensaísta – Max Bense lembrava que o ensaio é mesmo uma ars combinatoria (cf. Bense, 2014) –  quanto de sua proximidade com nosso remixado presente.

5.
Em 2012, tudo o que a jovem Hannah Hovarth queria era tornar-se a voz de sua geração. Na impossibilidade de chegar tão longe, contenta-se em tornar-se a voz de “alguma geração”. Alter ego da atriz, diretora e roteirista Lena Dunham, Hannah é a protagonista de Girls, série que estreou na hbo naquele ano contando as histórias de quatro jovens mulheres perdidas entre poses e ironias na capital do hipsterismo americano, o Brooklyn novaioquino. Hannah vive situações de variados graus de bizarrice, muitas vezes voluntariamente, tentando acumular experiências que, acredita, lhe permitirão nutrir uma carreira de escritora. Seu ideal, no entanto, não é ser romancista ou poeta. Quer ser ensaísta e estudar em Iowa, na universidade que em 1934 criou um dos primeiros programas de creative writing dos Estados Unidos. No imaginário dela, a possibilidade de realização estética e existencial está nos vastos e imprecisos domínios da não ficção, mais exatamente na complexa seara do personal essay, um subgênero do ensaio em que a experiência pessoal do autor é o ponto de partida – e nas piores versões, também de chegada. É como se, mesmo sem querer, o ensaísta repetisse a todo momento Walter Mercado, o astrólogo porto-riquenho que, ao oferecer seus serviços, asseverava: “La garantia soy Yo!”. Foi esse o título,[1] aliás, que escolhi para uma resenha de The Best American Essays of 2011, tamanha a preponderância da primeira pessoa entre os escolhidos daquele ano pela série que, desde 1986, procura ser uma amostragem do que de melhor se publica no ensaísmo norte-americano.

6.
Se a fronteira entre a liberdade radical do ensaísmo e o vale-tudo é sempre tênue, ela quase desaparece quando o tema é a experiência pessoal do escritor. Em 1997, Phillip Lopate organizou The art of the personal essay, antologia pioneira e até hoje insuperável em que o personal essay é tratado com tamanha maleabilidade que vai de Sêneca a Joan Didion, com escalas no mínimo curiosas em Natalia Ginzburg e E. M. Cioran. Diretor do programa de não ficção de Columbia, professor experiente e ótimo escritor, Lopate buscava assim dar lastro histórico e intelectual a uma tendência do ensaísmo que, àquela altura, ainda estava longe da explosão de hoje. Nos textos que reuniu, autores tão diferentes quanto James Baldwin ou Jorge Luis Borges fazem uso rigoroso da primeira pessoa, que, longe de uma “naturalidade” da expressão, é construção delicada e complexa para buscar o geral no particular, para transformar a matéria-bruta da experiência imediata num olhar original sobre o coletivo. É assim, aliás, em alguns dos melhores ensaístas contemporâneos, como Geoff Dyer, John Jeremiah Sullivan e Leslie Jamison. E está distante disso na medida em que o ensaio torna-se veículo de confissão pura e simples, expressão de uma vivência com baixo teor de reflexão. Ou, o que é o pior, que se formula de olho em seu leitor.

Stefan Zweig
Stefan Zweig

7.
Em “O ensaio como forma”, Adorno já advertia que o mesmo ímpeto que liberta o ensaio dos constrangimentos do método pode lançá-lo acriticamente na facilitação. “Livre da disciplina da servidão acadêmica”, escreve ele, “a própria liberdade espiritual perde a liberdade, acatando a necessidade pré-formada da clientela” (Adorno, 2008, p. 20). Um de seus exemplos é Stefan Zweig, popularíssimo em sua época por romances, novelas, biografias e ensaios que, na ótica severa do filósofo, terminam por chafurdar num ecletismo que é menos manifestação de autonomia estética do que submissão aos variados nichos do mercado literário. Não se trata aqui de defender uma improvável “pureza” do ensaio contra o utilitarismo do mercado, mas de ressaltar que o princípio de liberdade do ensaísta pode ser trivializado, muitas vezes de forma quase imperceptível. “A suspeita contra a falsa profundidade”, já advertia Adorno, “corre sempre o risco de se reverter em superficialidade erudita” (p. 19).

8.
De que estamos falando então quando falamos numa retomada do ensaio, sobretudo no domínio anglo-saxão, aquele que propiciou seus melhores e mais interessantes desdobramentos através da História? Sem dúvida de um desses encontros, raros, do ensaísmo com o mercado. Encontro que potencializa a difusão dos mais interessantes valores de liberdade intelectual mas que, também, acirra os paradoxos de um gênero tenso e autorreflexivo. O que se comemora com a sobrevivência de uma revista como a americana n+1 ou de uma editora dedicada ao ensaísmo como a inglesa Notting Hill Editions é, sem dúvida, o encontro do ensaio com seu leitor ideal, o common reader que Virginia Woolf imaginou, interessado, culto, mas não necessariamente especializado, leitor onívoro que prescinde de instâncias de legitimação, que se move erraticamente, guiado pela curiosidade e pelo prazer dos raciocínios e das incursões intrujonas nos mais diversos campos que só o ensaio permite. Mas a seu lado, às vezes misturado com ele, vem o hyped reader, nada comum, pronto para aderir à mais nova ideia da semana, para ler e difundir o mais recente ególatra irônico, convicto de que, para escrever, basta estar vivo. Teria o ensaio, em sua estrutura mais íntima, anticorpos suficientes para circular na velocidade das “tendências” sem se dissolver?

9.
Como tantas outras ondas, essa também arrebenta no Brasil. E aqui encontra, como eu lembrava lá no começo, um ambiente intelectual indiferente ou infenso às suas cheias e vazantes. Pelo menos dois pontos, hoje, tornam a vida intelectual brasileira inóspita para o ensaio:[2] o primeiro diz respeito à crise da imprensa e do mercado editorial; o segundo, aos paradoxos da universidade. Jornalistas e editores se veem como soldados numa guerra pela atenção dos leitores e, buscando conquistar posição, passam a tentar prever as preferências de seus potenciais interlocutores. Em 90% dos casos, a aposta é na medianização do gosto e das referências, primeiro passo de uma jornada melancólica que passa pela mediocrização do que se publica e muitas vezes desemboca no aberto anti-intelectualismo. A vida acadêmica, por sua vez, profissionalizada e submetida a draconiana avaliação produtivista, tende a entrar num curto-circuito congratulatório: professores e pesquisadores escrevem e falam para professores e pesquisadores, elogiam-se e digladiam-se entre si com baixa disposição para a arena pública, aquela em que os intelectuais, falando aos não-especialistas, fazem de sua expertise não uma finalidade, mas o ponto de partida para um diálogo. Jornalistas acham, com certa razão, que os intelectuais universitários falam javanês. Estes desprezam os jornalistas, com certa razão, pela progressiva desistência de serem propositivos, por se renderem ao leitor como clientela.

Theodor Adorno
Theodor Adorno

10.
É de se especular, no entanto, se essa terra arrasada faz mais bem do que mal para o espírito do ensaísmo. De se perguntar se o ensaio vive melhor nas brechas e nas linhas auxiliares do que no mainstream. Se o ensaísta, que E. B. White definia como um orgulhoso cidadão de segunda classe na República das Letras,[3] realmente ganha com qualquer tipo de protagonismo. Se, finalmente, como consequência da pauperização generalizada de nossa vida intelectual, não recuperemos o risco de pensar e escrever sem redes de segurança. Talvez aí se abra um mercado baseado mais na troca do que na mais valia das ideias, sem as recompensas duvidosas do “mais vendido” e livre dos arremedos do método. Pois o ensaio, nos lembra o velho Theodor, não passa mesmo de um despropósito.


* Paulo Roberto Pires (1967) é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e doutor em Literatura Comparada pela mesma universidade. Jornalista e escritor, é autor do perfil biográfico Hélio Pellegrino, a paixão indignada (Relume-Dumará, 1998) e dos romances Do amor ausente (Rocco, 2001) e Se um de nós dois morrer (Alfaguara, 2011). É editor da serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles.

 

Referências

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2008, p. 15-45.

BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. In: serrote, número 16, março de 2014. Trad. Samuel Titan Jr. Disponível em: http://www.revistaserrote.com.br/2014/04/o-ensaio-e-sua-prosa.

KIRSCH, Adam. The new essayists, or the decline of a form?. In: New Republic, 8.2. 2013. Disponível em: https://newrepublic.com/article/112307/essay-reality-television-david-sedaris-davy-rothbart.

LOPATE, Phillip (org.). The art of the personal essay: an anthology from the Classical Era to the Present. Nova York: Anchor Books, 1997.

WAMPOLE, Christy. A ensaificação de tudo. In: Revista serrote, 2013. Trad. Paulo Roberto Pires. Disponível em: www.revistaserrote.com.br/2013/06/a-ensaificacao-de-tudo-por-christy-wampole.

 

Notas

[1] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/11345-quotla-garantia-soy-yoquot.shtml

[2] Há uma conjunção de fatos que explica a situação do ensaio brasileiro hoje, mapeada em parte por Pedro Duarte no ensaio “O elogiável risco de escrever sem ter fim”, publicado na Ilustríssima no dia 28 de fevereiro de 2016.

[3] A definição aparece no prefácio da antologia Essays of E.B. White, publicada pela primeira vez em 1977 pela Harper Collins.

ISTO É DFW: EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA E FICÇÃO LITERÁRIA

Resumo: O texto aborda a obra literária de David Foster Wallace na perspectiva das relações do escritor com a mídia e na mídia. Em contos ou no romance Graça infinita, Wallace foi capaz de ler o entretenimento e o tédio que tomam posse da cultura norte-americana finissecular. Em ensaios e entrevistas, esclareceu os modos de detalhar incisivamente suas narrativas ficcionais e não-ficcionais.

Palavras-chave: Ficção norte-americana; mídia; David Foster Wallace.

Abstract: The text deals with the literary work of David Foster Wallace from the perspective of the writer’s relationship towards the media and in the media. In short stories or the novel Infinite jest, Wallace was able to read the entertainment and boredom that took possession of the American culture at the end of the century. In essays and interviews, he explained the ways of detailing pointedly his fictional and non-fictional narratives.

Keywords: American fiction; media; David Foster Wallace.

 

<em>David Foster Wallace (1962-2008)<br>Crédito: Hachette</em>
David Foster Wallace (1962-2008)
Crédito: Hachette

Lo desconocido es una abstracción; lo conocido, un desierto; pero lo conocido a medias, lo vislumbrado, es el lugar perfecto para hacer ondular deseo y alucinación.
El entenado, de Juan José Saer

 

Salta aos olhos o romance Infinite jest, de 1996. Graça infinita, que chegou às livrarias brasileiras em tradução de Caetano Galindo no início de dezembro de 2014, é lido, entre outros motivos, para compreensão da sociedade do entretenimento. David Foster Wallace (1962-2008) também é autor de um ensaio animador (e já canônico) sobre ficção e televisão, intitulado “E Unibus Pluram: television and U.S. fiction”. Nele, o escritor examina como a tevê se tornou objeto de valor e de uso para os jovens autores de ficção. Por consequência, vislumbra o espaço e o tempo que o meio ocupa na vida média dos cidadãos norte-americanos. DFW toma a ironia como chave de entrada no universo televisivo.

Em vários outros textos, ficcionais e não-ficcionais, os media entram não apenas como natural cenário da vida finissecular ocidental, mas como tema a ser debatido. No papel de repórter, Wallace pôde observar a engrenagem midiática por dentro. Como ficcionista, criou narradores potentes e interessados na compreensão da mídia, especialmente no que ela é capaz de agendar em torno de seus espetáculos. Além de Graça infinita, a experiência midiática aparece com nitidez nos contos “Little expressionless animals” e “My appearance”, do livro Girl with curious hair (1989), e “Good old neon” e “The Suffering Channel”, do volume Oblivion (2004).

Como entrevistado convocado a falar de seus próprios textos e a dar opinião sobre temas os mais diversos (na imprensa escrita e nos meios audiovisuais), DFW se configura como voz midiática singular. É clara a construção, não necessariamente proposital, de uma figura de escritor, de uma persona e de um personagem, que sempre rouba a cena com inteligência e astúcia. Bandana na cabeça, uma espécie de autoflagelo na postura, constante dúvida metalinguística na mente.

A entrevista é o lócus privilegiado de uma ambivalência que percorre toda a obra. O autor “difícil” se depara com a necessidade de ser “fácil”. No jogo jornalístico transmitido pela tevê ou pelo rádio, publicado no jornal ou na revista, a ausência-presença dos receptores instaura a necessidade básica de se fazer entender por alguém que não se sabe exatamente quem é. O anonimato em larga escala. A fama como valor-notícia. Nessa conquista de território da linguagem comum, entra o que Beatriz Sarlo chama de “el género de la voz y de la autenticidad” (Sarlo, 1995, p. 13). A voz (personificada) confere autenticidade ao discurso. Há aí uma confiança na origem. É o mesmo que diz, e não outro. O pacto da veracidade instalado pelo jornalismo também ajuda a compor o tecido da entrevista e sua ambiguidade.

A autobiografia-ficcional do entrevistado, elevada à categoria de verdade (jornalística) e confirmada pela verossimilhança construída pela voz direta do autor, só tem vez porque submetida a critérios de noticiabilidade. Estar no circuito informacional dos media significa perguntar pelo acontecimento, atravessado pelo extraordinário. DFW soube “acontecer” com seus textos e sua personalidade, ainda que a princípio avessa a exposição, ou porque totalmente autoconsciente. A presença de DFW em entrevistas na mídia faz perceber a literatura como fenômeno que está antes do livro e que vai além dele. Não se lê apenas o objeto, mas também o sujeito que se desdobra midiaticamente. O leitor toma isso em consideração. Há motivos e há consequências. O suicídio de Wallace em 2008, aos 46 anos de idade, é dado incontornável de uma experiência que ganha a mídia para interferir nos destinos literários.

Há vários clichês sobre DFW. O melhor escritor de sua geração. O mais talentoso. O escritor que melhor capturou o espírito do seu tempo. Wallace, intérprete da vida tomada por diversão em larga escala. Podem ser frases de efeito que vendem resenhas e livros. Certo é que há na obra (expandida) de Wallace vasto campo que mostra a invenção de uma teoria da comunicação literária a partir de uma experiência biográfica estreitamente relacionada ao convívio com a tela da televisão.

No prefácio à edição norte-americana comemorativa dos vinte anos de Graça infinita, Tom Bissell elenca quatro “teorias” na tentativa de explicar a longevidade do livro, mais vivo do que nunca. Na primeira, Bissell diz que o romance, sendo sobre um “entretenimento” bélico que escraviza e destrói todos que a ele assistem, “é o primeiro grande romance da internet” (2016, p. xii). A segunda ideia aponta para o fato de que Graça infinita é extremamente inovador no quesito linguagem. Terceira noção: estamos diante de uma obra de personagens, quer dizer, poucos criam características pessoais como DFW: Don Gately, Hal Incandenza, Rémy Marathe, Madame Psychosis e uma leva de figuras marcantes. A quarta e última teoria é categórica ao colocar Graça infinita como o romance de sua geração.

O que mais gostaria de reter do texto de apresentação, entretanto, é o que vem a seguir, a percepção de que, por meio de uma incrível capacidade para notar os detalhes, DFW merece o adjetivo wallaceano. Não da mesma forma como kafkiano, orwelliano ou dickensiano, que descrevem algo externo previamente existente: estado de espírito, situação, decadência civil. Para Bissell, Wallace não nomeou uma condição. Ele criou uma: um “estado de apreensão (em ambos os sentidos) e compreensão” (Bissel, p. xv). E é essa condição que justifica muito do culto ao autor e à obra. Transitar por DFW é mudar para sempre o modo de encarar o mundo real.

Essa tomada de consciência deve se dar numa paisagem cultural naturalizada: os mass media. Estamos no mundo mediatizado, mediado. Por meio de uma linguagem tensa e única, DFW procura estranhar a presença tão natural de marketing, publicidade, cultura pop, arte comercial. Desse mergulho etnográfico em mídia, Wallace retira histórias que levam a uma abordagem curiosa, entre o conforto do reconhecimento e o desconforto da perturbação. Da menina que se sobressai num jogo de perguntas e respostas (Jeopardy!) extremamente popular na televisão à atriz que se prepara para dar uma entrevista no mais importante talk show (Late Night with David Letterman) da mesma tevê norte-americana. Do executivo do mundo da publicidade em monólogo crítico com o psiquiatra sobre as falsidades de sua vida ao jornalista de uma revista disposto a escrever o perfil de um artista que literalmente defeca sua arte, ou melhor – para nosso deleite linguístico informal –, obra a obra.

O padrão claro é individualizar. Olhar as corporações, as empresas, as indústrias, as profissões por dentro. Descreve-se todo o cenário nos mínimos detalhes, pasticha-se a linguagem particular daquele universo (nunca, jamais a paródia), procura-se entender como os sujeitos são afetados pela normalidade de cada um. Na mimetização ao modo de dois argentinos – Manuel Puig (que leu, adorou e divulgou) e Rodolfo Fogwill (que não leu) –, DFW encontrou uma maneira de abalar a estrutura na opção de consciência de fala de personagens-que-vivem-em-linguagem (com direito, claro, ao fantasminha de Jorge Luis Borges) e que estão à procura de um tempo e um espaço fora do campo da ironia.

No desfile atônito de sujeitos, verbos e predicados, a literatura wallaceana pergunta-se o tempo todo se é preciso ser divertido (entertaining) para falar de diversão. É preciso entreter para falar de entretenimento? A pergunta amplia o sentido quando se sabe que a ficção do autor muitas vezes é tida como hermética, para poucos. No caso de Graça infinita, a começar pela extensão. São mais de mil páginas.

É preciso manter uma conversa em funcionamento porque essa é uma luta contra o solipsismo, que tanto inquietou DFW a partir da leitura do austríaco naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein. E o outro precisa ser seduzido, para não ficar aborrecido, entediado. Portanto, entreter faz parte do jogo. Mas não é o juiz absoluto do valor da arte literária (nem da vida). Para escapar do seu domínio, há uma regra que atravessa horizontalmente a ficção do autor: a escavação do saber. Para dentro e para fora, em primeira (mais) e terceira (menos) pessoas, com a linguagem que detalha o olhar e faz sintaxe do pensar. Muito além dos textos que também tematizam o entretenimento. E bem antes de sentar para escrever. Também no momento posterior, quando Wallace é levado a falar, em entrevistas, sobre o que escreveu.

Wallace oferece uma fórmula de escape da perspectiva metanarrativa aos moldes do que se convencionou chamar de pós-moderno. Assim, ele foge de falar do próprio texto literário, no que seria a atitude anti-ilusionista, para dizer das histórias que compõem o maravilhoso mundo do entretenimento, porque esse é o espaço em que transita a sociedade norte-americana. Não há, portanto, teoria da narrativa literária apresentada de modo explícito. Temos intertextualidade que se dispõe a fazer a metalinguagem dos meios de comunicação, em particular, como dissemos, a televisão.

Um dado de emoção e um dedo de comédia (graça?) parecem ser outras chaves para compreender a paixão que a obra desperta nos leitores, mesmo os textos não sendo, vale frisar, digeríveis à primeira vista. O afeto e o humor são cruciais para entender como DFW conquistou esse lugar no coração do leitor sem desistir jamais de realizar uma obra consistente, coerente e corajosa dos pontos de vista formal e temático.

Em inglês, a expressão “amusing ourselves to death”[1] é dita como manifestação de uma felicidade extrema na relação com o entretenimento. Estamos “morrendo de nos divertir”. Tomada um pouco mais a sério e, talvez, na dimensão da realidade dos países ocidentais ocupados pela indústria cultural, ela serve a Wallace como metáfora de uma situação corriqueira e ubíqua. Temos como sobreviver a esse predomínio da ideia de que vivemos para a diversão? De que vivemos em função do deus entretenimento? De que nada, ou pouco mais, nos interessa? Em Graça infinita, as respostas não se descolam da noção de vício. Em esportes, em drogas, em entretenimento. A ponto de nos levar, esse último, a morrer de inanição.

Ao afirmar o desejo de contar como era viver na América perto da virada do milênio, DFW não teve dúvida: “Há algo particularmente triste sobre isso, que não tem muito a ver com circunstâncias físicas, ou a economia, ou nada do que é falado no noticiário. É mais uma tristeza ao nível do estômago. Se é algo próprio da nossa geração, eu realmente não sei” (apud Ferris, 2008).[2] Uma dor, portanto, caminha lado a lado com a busca incessante pelo prazer, na vida real e dentro das linhas literárias. Mais uma vez estamos em terreno minado, em que determinações ordenadas coletivamente entram em confronto com a recepção subjetiva para explodir de diversas formas. A vida se deixa narrar como experiência viva.

Objeto, sujeito

“Numa cultura que esvazia você diariamente de sua capacidade para imaginação, para linguagem, para pensamento autônomo, complexidade como a de Dave é uma dádiva”, diz a escritora Zadie Smith[3] em frase que circula livremente pela internet sem origem direta identificada. Nesse ambiente inóspito apontado pela autora de Dentes brancos, David Foster Wallace contribui com uma leitura de mundo diferente da que propõe o mainstream da indústria cultural e dos meios de comunicação. Menos irônica, menos hedonista, menos infantil.

DFW é autor de três romances, tendo um deles sido lançado após a sua morte, The pale king (“O rei pálido”), que apresenta o tédio numa sociedade afluente e supostamente divertida. O primeiro, The broom of the system (“A vassoura do sistema”), publicado quando o autor tinha 25 anos, é resultado de um trabalho de conclusão de curso na universidade, bastante inspirado na queda filosófica por Wittgenstein. The broom já mostra um escritor com acuidade ímpar para os diálogos e uma óbvia contrapartida para o realismo dominante no espírito literário do momento. Na mais longa e mais conhecida das narrativas, Graça infinita, os recursos se ampliam ad infinitum.

DFW tem três livros de contos, um deles traduzido: Breves entrevistas com homens hediondos, originalmente de 1999 e lançado aqui em 2005. Entretanto, o escritor ganhou muito de sua fama em função de textos jornalísticos encomendados por revistas norte-americanas de grande circulação, como Harper’s e Premiere. Uma antologia de reportagens e ensaios foi publicada no Brasil em 2012: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Tiveram grande repercussão, por exemplo, os relatos sobre uma feira agropecuária no Meio-Oeste dos Estados Unidos, uma viagem de cruzeiro e um perfil do tenista suíço Roger Federer. O tênis, aliás, fez parte da vida adolescente do autor e aparece com força em Graça infinita, parte dele situado numa academia de treinamento desse esporte. É unânime a percepção crítica de que a racionalidade estrutural do jogo de tênis em contraste radical com uma imprevisibilidade emotiva (dependente ao extremo do estado de espírito do atleta, mais do que do momento físico) exerce um fascínio perene no escritor e se desdobra nos textos quase ubiquamente.

Situado numa linhagem da segunda metade do século XX que inclui sobretudo Thomas Pynchon e Don DeLillo, David Foster Wallace articula experimentação e comunicação em linguagem própria, reconhecidamente inconfundível, uma identidade que já viu nascer descendentes nos Estados Unidos e fora deles. Na introdução ao livro de entrevistas Conversations with David Foster Wallace, Stephen J. Burn aponta espectros estilísticos e temáticos de DFW presentes na literatura norte-americana contemporânea realizada por Jeffrey Eugenides (no conto Extreme solitude, por exemplo), por Richard Powers (no romance Generosity) e por Jonathan Franzen (no aclamado Liberdade). Jovens escritores brasileiros como Daniel Galera e Ronaldo Bressane se dizem devotos e devedores da obra. Chegam a dar cursos sobre o autor.

Em 2015, foi publicado o volume The David Foster Wallace Reader, que traz inéditos teaching materials, isto é, material que DFW usava em suas aulas de literatura ou de escrita criativa. Para além do fato de podermos observar a seriedade de DFW em relação ao ofício de ensinar e da evidência de sua paixão paranoica pela gramática da língua inglesa, é interesse notar que a indústria editorial saca a vibração de um nicho curioso de mercado, fundado sobre projeto iconoclasta, mas que se mostra de interesse contínuo, obra que exibe a vida nada tranquila na América (e nos países sob influência), a permanência penetrante da cultura pop em diversas esferas e o papel do escritor de ficção numa sociedade saturada de entretenimento.

DFW consegue encontrar na ficção um meio-termo entre comunicação e experimentação, isto é, abre caminhos para o diálogo com o leitor sem deixar de mostrar a autoconsciência da linguagem. Dessa forma, o autor aponta caminhos de renovação do pós-modernismo literário. Nessa absorção da sociedade contemporânea, particularmente no que diz respeito à onipresença do entretenimento, as noções de tédio e de solidão são componentes também a destacar. Wallace incomoda-se com a falta de resolução feliz para a empatia entre as pessoas, o que as leva aos meios, que não devolvem o afeto necessário, como não poderia ser diferente se estamos lidando com experiência humana indireta. Assim, nos textos de DFW, os jogos de ambiguidade procuram os sentidos de dilemas literários e, por consequência, humanos: fácil e hermético; comercial e artístico; comum e individual; único e ordinário; estranho e familiar; confortável e perturbador; próximo e hostil; sucesso e fracasso; fama e anonimato.

A possível originalidade de DFW na leitura das culturas pop e midiática pode ser estabelecida na comparação destacada com pelo menos outros dois escritores: Puig e DeLillo. Se um dos propósitos de DFW é engajar o leitor imaginariamente e intelectualmente em tempos de inflação informacional, em tempos de baixa concentração, o argentino Manuel Puig, autor de Boquitas pintadas, é o precursor do estabelecimento sem preconceitos de conexões entre literatura e cultura pop, entre ficção literária e mídia. Puig lança as bases formais da abordagem literária sobre os media, dentro das quais DeLillo insere o “ruído branco” da cultura norte-americana, seu barulho incessante e capaz de pautar, por exemplo, a mais privada conversa familiar. Como se Puig desse a forma e DeLillo, o conteúdo. O uso dos diálogos não deve ser esquecido se desejamos perceber as junções no domínio da oralidade típica dos meios audiovisuais.

Se Puig foi capaz de estabelecer pontes estéticas perenes entre arte comercial e literatura de vanguarda, DFW estica esse relacionamento a um ponto de não retorno, com estratégias similares de mediação, mas ainda mais densas. Se DeLillo capta o poder instalado no cotidiano na tentativa de desestabilizá-lo, DFW leva esse approach  a um nível intenso de subjetivização (interno) e detalhamento (externo), embrulhados  por uma qualidade identificada pelos mais diversos leitores: sinceridade. Característica ou qualidade que se oferece a partir da engenharia de soluções narrativas calculadas para fazer voar o interesse equilibrado sobre ambivalências. Em sua mais famosa entrevista, Wallace atesta o desinteresse por soluções radicais que acabam sendo vazias:

Metaficção recursiva venera a consciência narrativa, faz com que ela seja o assunto do texto. Minimalismo é ainda pior, mais vazio, porque é uma fraude: ele evita não só a autorreferência, mas qualquer personalidade narrativa em tudo, tenta fingir que não consciência narrativa em seu texto. Isso é americano pra cacete, cara: ou transformar algo em seu Deus e cosmos e aí venerá-lo, ou então matá-lo (apud Burn, 2012, p. 45). [4]

O tema de DFW é a vida que tem o prazer do entretenimento e a concomitante dor da solidão como eixos centrais. Sua opção estética nunca foi colocar o texto acima disso. Mas a autoconsciência também não é capaz de se apagar por completo. O autor está vivo e está aqui, ali, acolá. Do campo maior do entretenimento (que tem a ver com comunicação), passamos pela guerra à ironia (que brota da televisão), para chegarmos ao tédio (que constitui o indivíduo na sua relação com o consumo) e à dor (que se instala na identidade).

No filme O fim da turnê, embasado numa entrevista proposta pela revista Rolling Stone, o ficcional Wallace, interpretado por Jason Segel, é um sujeito dividido entre a participação na vida literária (lançamento, autógrafo, entrevista) e a realização literária stricto sensu. Os diálogos com o jornalista David Lipsky, que fazem mover a trama, apresentam um gesto infinito de tolerância. Nunca de empatia. Se o que interessa ao maior número de pessoas é espetáculo e se não há nada de errado em estar interessado no que é atrativo, o que fazer com a literatura, o que fazer da literatura, para que fazer literatura? David Foster Wallace, mergulhado na experiência midiática de seu tempo, propôs uma rebelião individual.


* Sérgio de Sá é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e doutor em Estudos Literários pela UFMG, com pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), é autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG, 2010). Tem ensaios publicados nos livros O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea (Rocco, 2013) e Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (Revan, 2014), entre outros.

 

Referências

BISSEL, Tom. Everything about everything: Infinite jest, twenty years later. In: WALLACE, David Foster. Infinite jest. Nova York: Back Bay Books, 2016, p. xi-xv.

BOSWELL, Marshall. Understanding David Foster Wallace. Columbia: The University of South Carolina Press, 2003.

BURN, Stephen J. (org.). Conversations with David Foster Wallace. Jackson: University Press of Mississippi, 2012.

COHEN, Samuel e KONSTANTINOU, Lee (org.). The legacy of David Foster Wallace. Iowa City: University of Iowa Press, 2012.

HERING, David (org.). Consider David Foster Wallace: critical essays. Los Angeles: Sideshow Media Group Press, 2010.

MAX, D.T. Every love story is a ghost story: a life of David Foster Wallace. Nova York: Penguin, 2013.

SARLO, Beatriz. “Prólogo”. In: SPERANZA, Graciela. Primera persona: conversaciones con quince narradores argentinos. Buenos Aires: Norma, 1995, p. 11-14.

WALLACE, David Foster. Girl with curious hair. Nova York: Norton, 1989.

WALLACE, David Foster. Oblivion: stories. Nova York: Little, Brown, 2004.

WALLACE, David Foster. The last interview and other conversations. Nova York: Melville House, 2012.

WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

WALLACE, David Foster. Graça infinita. Tradução de Caetano Gallindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

WALLACE, David Foster. The David Foster Wallace Reader. Nova York: Little, Brown, 2014.

 

Notas

[1] Título de livro de Neil Postman, clássico sobre o tema.

[2] No original, em inglês: “There’s something particularly sad about it, that doesn’t have very much to do with physical circumstances, or the economy, or any of the stuff that gets talked about in the news. It’s more like a stomach-level sadness. Whether it’s unique to our generation I really don’t know”.

[3] No original, em inglês: “In a culture that depletes you daily of your capacity for imagination, for language, for autonomous thought, complexity like Dave’s is a gift”.

[4] No original, em inglês: “Recursive metafiction worships the narrative consciousness, makes it the subject of the text. Minimalism’s even worse, emptier, because it’s a fraud: it eschews not only self-reference but any narrative personality at all, tries to pretend there is no narrative consciousness in its text. This is so fucking American, man: either make something your God and cosmos and then worship it, or else kill it”.

DISSENSO, CONSENSO: ARTE E DIVERTIMENTO

Resumo: O artigo propõe pensar, a partir de narrativas do escritor italiano Italo Calvino e do brasileiro Rodrigo Lacerda, de que formas divertimento e riso atravessariam seus respectivos trabalhos. Na contramão de certa tendência de entender a seriedade como elemento estruturante, estes criadores buscam o divertimento como valor. Os rumos que apontam servem para que se possa sondar uma prática criativa alinhada a certo modo de compreender a própria literatura.

Palavras-chave: Humor; divertimento; literatura; Italo Calvino; Rodrigo Lacerda.

Abstract: The article proposes to think, from the narratives of Italian writer Italo Calvino and Brazilian Rodrigo Lacerda, in which forms fun and laughter would cross their respective works. In the opposite direction from the tendency to understand the seriousness as a structuring element, these creators seek fun as value. The paths pointed serve so that a creative practice aligned to a certain way of understanding literature itself can be canvassed.

Keywords: Humor; fun; literature; Italo Calvino; Rodrigo Lacerda.

 

Martin Page, em entrevista sobre as perdas e ganhos dos processos de adaptação de seus livros, afirma ao jornal O Globo: “O que mais tenho são ganhos, porque as adaptações geram dinheiro: e dinheiro é uma maneira de poder escrever livros que não vão fazer sucesso”[1]. Aqui temos, mais uma vez, a clássica oposição entre literatura como entretenimento e literatura séria, complexa. O sucesso (adaptação, fama) comparece na afirmativa do escritor francês como a antítese do livro “para poucos”, aquele de restrita circulação e diminuta repercussão. Ser consumido por muitos permite ao autor, paradoxalmente, o luxo de escrever o que der na telha, sem a preocupação de agradar.

Dentro ainda dessa seara, impossível escapar do caso Paulo Coelho, imagem nacional reunindo venda/sucesso. Não é preciso ir longe. Castelo, avião particular, adaptação para cinema, infinitas traduções. No entanto, toda a fama (prometo não discutir aqui valor ou estética, não seria este o propósito) encontra um contraponto no ideal perseguido pelo mago: o reconhecimento como escritor e não como fenômeno de vendas. O ingresso na Academia Brasileira de Letras – por mais que se questione o espaço, o perfil e as escolhas de seus integrantes – carrega ainda forte simbologia no tocante à legitimação dos autores dentro do campo literário brasileiro. Dito de outra forma, não basta estar traduzido para dezenas de línguas, ser campeão de vendas e citado por Barack Obama em discurso no Brasil[2]. É preciso entrar para a casa de Machado de Assis, o panteão dos escritores “de verdade”, ainda que muitos dos que lá estão não possam ser chamados por esse nome.

A afirmativa de Martin Page dissocia sucesso dos bons livros. Paulo Coelho bate recordes de vendas, mas busca o reconhecimento no seleto grupo dos iniciados. A esse respeito, sempre vale voltar à formulação modernista: “A massa ainda há de comer o biscoito fino que eu fabrico”, de Oswald de Andrade. Fama e sucesso de um lado, iguarias de outro. Ainda funcionamos dentro da lógica que alia alta qualidade a público rarefeito? Para quem busca compreender as muitas facetas da circulação do literário resulta um tanto frustrante se contentar com essa aritmética. Procurarei aqui entender formas de superar essa polarização ou ainda em que momentos seria possível identificar narrativas em que essa dicotomia dá lugar a ambiguidade mais complexa. Em que lugar podemos encontrar autores e obras em que esse trânsito ocorre de maneira efetiva?

Na trilha das hipóteses, é sempre válido voltar àquele que conseguiu, há quase trinta anos, conjugar valor e circulação, dissenso e muitos leitores. O semiólogo que virou best seller. O medievalista, erudito nada apocalíptico. Autor de sucesso de vendas nos anos 1980, Umberto Eco escreve o Pós-escrito a O Nome da Rosa para analisar o processo criativo do célebre romance. Mas não só. O texto explora ainda uma vez a dinâmica com o leitor. E aí entra nova dimensão do tema, já que chama a atenção o número de vezes em que a palavra diversão aparece. O escritor italiano alerta sobre a importância desse elemento:

Eu queria que o leitor se divertisse. Pelo menos, tanto quanto eu estava me divertindo. Este é um ponto importante, que parece contrastar com as ideias mais ponderadas que acreditamos ter sobre o romance. Divertir não significa di-verter, desviar dos problemas (…) (Eco, 1985, p. 48).

Divertir não equivale a se perder, extraviar-se. Talvez a achar um outro rumo. O conceito de divertimento é histórico, adverte, e o romance moderno teria procurado enfraquecê-lo no âmbito do enredo. Choque e escândalo eram as medidas adequadas àquele momento. Mas a equação que propõe equivalência entre consenso e desvalor precisou ser revista, lembra Eco. A abolição das fronteiras entre alta e baixa cultura, a lacuna entre uma arte experimental e a fruição prazerosa da mesma passam a ser repensadas. É o próprio quem articula definitiva reflexão acerca da indústria cultural em Apocalípticos e integrados (1964).

Segundo Eco, romper a barreira que foi erguida entre a arte e o divertimento seria uma das validades dessa argumentação. Haveria então a possibilidade de divertir sem perder a complexidade? “A inaceitabilidade da mensagem já não era critério soberano para uma narrativa (ou para qualquer outra arte) experimental, uma vez que o inaceitável estava doravante codificado como agradável” (Eco, 1985, p. 52), afirma. A lição teria vindo do romance pós-moderno (Thomas Pynchon, John Barth), pois ele deveria superar “as diatribes entre realismo e irrealismo, formalismo e ‘conteudismo’, literatura pura e literatura engajada, narrativa de elite e narrativa de massa…” (p. 59). Haveria um terceiro caminho, e nele caberiam histórias que podem agradar sem necessariamente se configurar em narrativas consoladoras. Vera Follain de Figueiredo afirma:

Se a obra de arte moderna era, por definição, uma obra difícil de interpretar, despertando um sentimento de estranheza, causando choque no leitor, a obra pós-moderna quer fazer-se passar como algo familiar, cabendo ao público mais refinado desconfiar dessa familiaridade e recuperar sua dimensão complexa, encoberta por essa aparente simplicidade (Figueiredo, 2012, p. 62).

A autora destaca o caráter conciliatório dessa arte, que não mais desafia as exigências do mercado de bens culturais, ou rechaça heroicamente o sucesso comercial. Unem-se dois polos que no modernismo tendiam a se repelir e se impõe com força a estética híbrida da pós-modernidade. Esse movimento de retorno ao agradável proposto por alguns dos escritores pós-modernistas teria trazido a reboque outro elemento que me interessa discutir: o prazer. E ele virá muitas vezes – mas nem sempre – dentro de uma proposta de retomada irônica: “A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente” (Eco, 1985, p. 57).

A inocência pode estar definitivamente perdida, mas não o prazer da leitura. Todo leitor sabe bem disso. A partir dessa chave indagaria quais autores podem agradar aos profissionais das letras (professores, críticos, jornalistas, editores) e aos não especialistas. Se o romance de Eco soube contentar a crítica especializada e o chamado leitor médio, provocando um abalo na noção de consenso e dissenso, um outro escritor muito próximo tangenciava questões análogas. Italo Calvino foi também importante propagador do prazer da leitura. O escritor italiano – um dos mais significativos ficcionistas do século XX – não deixava de afirmar em depoimentos, ensaios e na própria ficção o desejo de que seus leitores se divertissem.

Creio que o divertir seja uma função social, que corresponde à minha moral; penso sempre no leitor que deve sorver todas estas páginas, é necessário que ele se divirta, que tenha uma gratificação; esta é a minha moral: a pessoa comprou o livro, pagou, investiu seu tempo, deve se divertir. (…) Penso que o divertimento seja uma coisa séria (apud Clerici e Falcetto, 1994, p. 1, minha tradução).

Nas célebres propostas para o próximo milênio[3], Calvino fazia sua profissão de fé no futuro da literatura e propunha princípios a orientar o texto literário: leveza, consistência, multiplicidade, visibilidade e exatidão. A elas, talvez fosse possível agregar este elemento que surge como posicionamento existencial. Não à toa, o escritor por duas vezes no trecho citado faz uso da palavra moral, algo que remete a um valor a ser perseguido em sua produção ficcional, conjunto de regras a serem seguidas.

Sobre a vinculação da identidade de Calvino à comicidade, Stefano Beccastrini lembra a importância e a utilidade daquilo que nos faz rir, destacando o fato de que achar graça de si mesmo e do mundo significa ser livre, e não necessariamente ser feliz: “É por isso exatamente que tantas pessoas não sabem rir: porque não costumam se confrontar com o universo ou porque, quando se confrontam, acreditam ser mais importantes” (Becastrinni, 1994, p. XI). Recado aos sisudos: divertimento é coisa séria. O humor é forma de expressão legítima, e problematiza o próprio papel normativo e conservador da escrita, ao não se alinhar com a ideologia da sisudez – que prefigura o bom senso e o bom gosto.

 

<em>Ítalo Calvino</em>
Ítalo Calvino

 

Segundo Luca Clerici e Bruno Falcetto, a ironia e o divertimento estão entre as entonações prediletas de Calvino para dialogar com quem lê. De forma moderada, mas sempre presente, divertimento e riso atravessariam de diferentes maneiras todo o seu trabalho (1994, p. 1). E como identificar esse aspecto na prosa do escritor italiano? Já no final dos anos 1950 – em pleno clima do pós-guerra europeu e da poética neorrealista pautando a literatura italiana – Calvino dá uma guinada e publica Os nossos antepassados, trilogia da qual fazem parte O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959). O escritor foge da literatura propriamente engajada, mas mostra ali ser possível nomear o mundo contemporâneo e ainda assim oferecer ao leitor aventuras, histórias de amor, de naufrágios e guerras[4]. As histórias em tom de fábula se passam em tempos remotos e lugares distantes, e viscondes, cavaleiros, barões, cortesãs, princesas e plebeus partilham o espaço textual. No entanto, não se trata de apresentar ao leitor romances históricos. Calvino propõe sofisticada indagação acerca da contemporaneidade e atualiza procedimentos das narrativas medievais. Recicla a figura de Carlos Magno, a literatura de Ludovico Ariosto e certa tradição irônica italiana. Um pé no passado, outro no presente. A retomada de que nos fala Eco.

Vinte anos depois, em Se um viajante numa noite de inverno (1979), ele radicaliza o gesto e promove o leitor de romances a protagonista. Naquele que talvez seja um dos melhores capítulos iniciais de que se tem notícia, o escritor se dirige a nós, leitores, propondo delicioso protocolo de leitura:

Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!’ Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’
(…)
Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se. (…) Procure providenciar tudo aquilo que possa vir a interromper a leitura. Se você fuma, deixe os cigarros e os cinzeiros ao alcance da mão. O que falta ainda? Fazer xixi? Bom, isso é com você (Calvino, 1999, p. 11).

Diversão e leveza nunca equivalem, no entanto, à ausência de reflexão. A narrativa evita o caminho da metalinguagem por demais cerebral, assim como a frugalidade do best seller. Sequências de dez histórias interrompidas se sucedem, de estilos totalmente diversos. Nenhuma será concluída; todas seduzem o Leitor[5]. Como afirma Ligia Cademartori (2009, p. 93), o romance comunica, também, o sentido de multiplicidade que foi tão caro ao autor italiano. Serão ali também configurados vários tipos de leitores. Alguns ocasionais, ecléticos, estilo franco atirador. Outros, por vocação, para quem a leitura é um modo de estar no mundo. E ainda um terceiro tipo, o Não-Leitor, alguém que aprendeu a não ler, e procura nos livros matéria para debate ou para engordar uma tese acadêmica. Sinaliza a leitura burocratizada e pouco afeita à navegação que busca o ancoradouro a acolher com segurança: a grande biblioteca, no dizer do narrador.

A eles se agrega Ludmilla, a leitora por prazer desinteressado, aquela que faz parte do grupo dos que “se satisfazem em lê-los e amá-los” (Calvino, 1999, p. 97). O escritor defende com vigor essa figura do leitor médio encarnada pela leitora. Conforme anunciado anteriormente, afirma nunca esquecer que esse sujeito é o comprador do livro, objeto à venda no mercado: “Quem pensa que pode prescindir do aspecto econômico da existência e de tudo o que ele comporta não teve jamais o meu respeito” (p. 269).

Os inícios de romances se interrompem, mas Se um viajante avança para desenlace reconfortante. No último capítulo, Leitor e Leitora se encontram na cama, abrigo de leituras paralelas. Lá finalmente os títulos das histórias se complementam e formam uma (breve) narrativa. Calvino afirma a respeito: “(…) calculei tudo para que o ‘final feliz’ mais tradicional, o casamento do herói com a heroína, selasse a moldura que encerra a desordem geral” (p. 268). Variados momentos no romance remetem ao paralelismo entre a leitura das páginas e aquela que os amantes fazem de seus corpos. Alongar o prazer é mecanismo presente tanto no ato de leitura quanto na relação entre dois amantes, na imagem afortunada de um casal.

Mas será o clímax o verdadeiro alvo? Ou a corrida para esse fim não será antes contrariada por outro impulso que se esforça contra a corrente para retardar os instantes, para recuperar o tempo? (…) É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis (p. 160).

Protegidos no interior desse abraço, os amantes parecem configurar o que Alberto Manguel chama de leitura ideal. À diferença de Paolo e Francesca, imagem de leitores presente na Divina comédia – que abandonam a atividade após o primeiro beijo de amor – a dupla em Se um viajante continua lendo, o que suscita o comentário do crítico argentino: “Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro” (Manguel, 2019, p. 35). É desse e de outros prazeres que nos fala Calvino. O próprio começar e abandonar as narrativas inconclusas remete a um jogo[6] quase infantil, modo de operar em que a criança lida com interesses variados: começo, abandono, desinteresse, busca de outro objeto de gratificação. Brincadeiras de montar e desmontar. Um prazer sempre adiado, sempre renovado.

Revigorar o prazer da leitura parece ser a proposta de um autor brasileiro, quando nos apresenta versão de uma peça de Shakespeare. Penso no guia de leitura Hamlet ou Amleto?: Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos, de Rodrigo Lacerda. No livro, o narrador se dirige a um jovem ator prestes a estrear no papel do príncipe da Dinamarca, conduzindo pela mão esse novato sem se encastelar autoritariamente no conhecimento – que tem de sobra. Brinca com ele, desdobra temas e questões, estabelece conexões com o leitor contemporâneo sem deixar de apresentar o texto shakespeareano. A literatura está lá, mas o cinema, a televisão e os quadrinhos surgem como suplemento.

Não se pode negar a alegria do encontro com esse tipo de narrativa. Há muito esta leitora não se divertia tanto com um texto literário. Deficiência daquela que lê ou excesso de seriedade por parte de quem escreve? Fato é que Lacerda põe em prática certo debate sobre a polarização aqui discutida. E nos diz ser possível acessar a força da poesia dramática de Shakespeare sem ser hermético. Vale lembrar que estamos falando de tragédia, sangue familiar rolando, pátrias traídas e heranças malditas.

Shakespeariólatras, shakespearianistas, shakespeariófilos (palavras do narrador), atenção: o culto ao bardo inglês não precisa prescindir do humor. E essa narrativa brinca o tempo todo com o protocolo de leitura dos especialistas, aqueles que dominam um jargão e integram seleto grupo de iniciados. As ironias com a adoração pelo autor de Hamlet são piscadela para o leitor do século XXI. Sim, a crítica está aí e é bom que exista. As interpretações ganham em sutileza e profundidade. No entanto, ela andou por vezes colocando a própria literatura em perigo, como nos alertou o ex-estruturalista Tzvetan Todorov. Excesso de formalismo e abuso de formulações conduziram a uma experiência pouco fecunda no âmbito da leitura, ao “escarafunchar cada mínima hipótese interpretativa para uma única linha do texto” (Lacerda, 2015, p. 187). A perspectiva de ganho em uma abordagem menos engessada recebe reforço nas palavras de Todorov:

Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um melhor conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicaram a essa tarefa há milênios? (Todorov, 2009, p. 92-93).

Na defesa do literário, o ensaísta búlgaro lembra a necessidade de encorajar a leitura por todos os meios, inclusive a daqueles volumes que a crítica despreza ou vê com certa reserva, e cita Os três mosqueteiros e Harry Potter, romances que conquistaram milhões de adolescentes, mas, sobretudo, “lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas” (p. 82). Está liberado o divertimento?

Sobre a obsessão em julgar a ficção unicamente em termos de estética literária, e advogando a importância de analisá-la pelo prisma da sociologia do gosto e do consumo, José Paulo Paes alerta sobre a miopia de nossa crítica “para questões que fujam ao quadro da literatura erudita” (1990, p. 35). Levanta a hipótese de que tal defeito de visão tenha acarretado escassa avaliação de nossa quase inexistente literatura de entretenimento. O cenário nacional, em sua precária cultura letrada e intensa presença do audiovisual, pouco estimulou o surgimento dessa vertente entre nós. Um mercado editorial deficiente aliado à lenta profissionalização do escritor tampouco contribuiu à expansão dessa possibilidade. Passados vinte anos dessa reflexão, a situação apresenta alterações, mas as dicotomias persistem, conforme visto na afirmativa de Martin Page de se sentir livre para escrever bons livros já que publica alguns que dão dinheiro – lembrando que o escritor francês fala de mercado editorial mais robusto que o brasileiro.

Pensando no trânsito fecundo com a cultura de massa, hoje Paes perceberia a forte presença dos escritores/roteiristas atuando no mercado audiovisual, escrevendo roteiros, adaptações, minisséries (estão aí Marçal Aquino e Fernando Bonassi, entre outros, para provar isso). Retomam, portanto, a ligação com meios de comunicação de massa, à semelhança dos autores do século XIX na criação de folhetins para os jornais, conforme lembra Ricardo Piglia ao assinalar que o roteirista seria uma versão moderna do escritor de folhetins (2000, p. 30).

Onde entra Lacerda? Captando espertamente esse movimento entre linguagens, desfrutando da liberdade de visitar texto canônico sem fazê-lo por meio de uma dicção erudita, que afasta o leitor. Não era esse o grande medo de José de Alencar ao publicar seus romances? O escritor cearense incluía prefácios, posfácios, uma abundância de paratextos e recadinhos ao leitor (sobretudo à leitora), a quem procurava adular para que não abandonasse o texto. Naquele momento, preocupava a inexperiência de um público novato, pouco afeito a embarcar na ficção. Hoje, importa seduzir para que, em meio à enxurrada de narrativas da cultura audiovisual, o leitor ainda escolha essa experiência solitária e exclusivista, mas ainda “insubstituível como instrumento de saber e cultura” (p. 36), nas palavras de José Paulo Paes.

Não à toa Lacerda se dirige a um ator inexperiente, necessitando ser “guiado”. Muitos recados a ele – e a nós – concretizarão esse desejo de se comunicar, de dar a ver outra relação com o texto de base: “É hora de seu primeiro monólogo. Você precisa caprichar. Ande pela passarela até a parte mais iluminada do palco, bem junto do público. Você deve olhar no olho dos espectadores e falar: (…)” (Lacerda, 2015, p. 33). Há que se admitir que oxigenar o texto literário não faz mal a ninguém. Um certo à vontade com a escrita sem prestar tributo estéril ao autor consagrado comparece aqui. E Shakespeare não precisaria ainda de homenagens, ou de analistas “shakespeareopatas”, mas de leitores, alguns experientes, outros menos, alguns preguiçosos, outros não.

Sobre a obra do escritor carioca, Sérgio de Sá destaca uma postura atrelada à generosidade, ao desejo de “mais comunicação e menos experimento, porque interessada em falar ao leitor” (Sá, 2009, p. 142). Lacerda faria parte de uma linhagem de autores em que entretenimento e rigor caminham juntos: Balzac, Dickens, Eça de Queirós. Ainda uma vez, como na entrevista de Calvino, a questão do valor: generosidade como princípio literário, vontade de estabelecer com o leitor uma cumplicidade amorosa sem apelar para concessões.

Seria esse desejo de estabelecer uma aproximação vislumbrada no endereçamento dos narradores? Tanto aquele de Se um viajante quanto o narrador de Hamlet ou Amleto? se dirigem a um você, causando sensação de contiguidade: “Você piscou e, quando abre os olhos, percebe que o teatro à sua volta é o típico teatro elisabetano” (Lacerda, 2015, p. 10). E Calvino: “Você está sentado à mesa de um café, esperando Ludmilla e lendo o romance de Silas Flannery que lhe foi emprestado pelo senhor Cavedagna” (1999, p. 144).

E ainda outra forma de aproximação. Rir com Shakespeare, rir de Shakespeare. Sobre a falta de realismo nos deslocamentos físicos das personagens e nas passagens de tempo dos dramaturgos ingleses de quatrocentos anos atrás, o narrador de Lacerda afirma: “Eles não estavam nem aí, e teriam sido reprovados em qualquer oficina de roteiro” (p. 194). Ou “Shakespeare estava se lixando para detalhes realistas” (p. 194). Uma proximidade tão grande permite o tom informal, afinal, estamos em família; trata-se de uma filiação literária.

A literatura alimenta de forma definitiva a criação em forma de retomada de linhagens, seja Calvino homenageando antepassados, ou Lacerda demonstrando a forte presença de Shakespeare em sua formação de leitor. Graça Ramos destaca a intimidade do escritor com os textos shakespereanos, afirmando que o autor inglês funciona como um “amuleto” para Lacerda, por acompanhá-lo em sua vida leitora (Ramos, 2015). Obras como a novela O mistério do leão rampante (1995) e o romance juvenil O fazedor de velhos (2008) presentificam essa relação, sob forma de personagem ou de tema. Curiosa também a visão que Lacerda tem de seu ofício, chamando a atenção para o fato de que estaria do lado oposto de certa tendência literária dos anos 1990 de tematizar o urbano e a violência a partir de uma matriz realista fonsequiana. À semelhança de Calvino em sua recusa de alinhamento à poética neorrealista nos anos 1950, Lacerda transita na contramão e escolhe caminho que incide no mergulho da matéria histórica, mas onde se faz presente um “tratamento humorístico da linguagem erudita”[7].

Trata-se, portanto, de autores (distantes no espaço e em momentos históricos diversos) que em dado momento rejeitam o pacto direto com uma dicção dotada de maior referencialidade. Como Shakespeare, parecem estar se lixando para detalhes realistas. A imagem da guinada em Calvino e da contramão em Lacerda diz muito dessa relação. Mas não se limitam a isso: buscam o divertimento como valor; procuram outro rumo, como sinaliza Eco. Tais antagonismos sinalizam a possibilidade de derivar um tanto essa discussão e contrapor divertimento a outra postura. Convido o velho bardo a dar a deixa: “Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. Seria essa taça de rancor o contrário do riso? Na formulação de Maria Rita Kehl, a partir de diálogo com Nietzsche, o ressentido sustentaria a visão de culpabilizar o outro pelo que lhe falta, tendo como resultado uma mágoa insuperável (Kehl, 2009, p. 15).

Em certo sentido, a presença da comicidade e do divertimento permite alinhar-nos não aos ressentidos – aqueles que acham que o mundo lhes deve algo. Mas sugere aproximação ao lado dos fortes. A aposta equivaleria à postura de rir de si, de zombar e demolir certezas. Afirmação na potência de vida, para pensar com Nietzsche. Uma crença na força dos textos. Se a literatura realiza por vezes esse movimento, apontando para um lado vital, compete à crítica identificar esse desejo por parte de alguns criadores. Umberto Eco e Italo Calvino expressam a busca desse valor de forma direta. Rodrigo Lacerda igualmente põe em prática essa convicção. Caberia a nós, leitores queixosos, eternos lamuriosos pelas ausências – da qualidade dos leitores, da falta de leitura, da ausência de bons livros – um reconhecimento do aspecto afirmativo dessa atitude. Certamente não seremos menos criteriosos ou complexos em função disso. Um brinde ao divertimento. Mais riso, menos siso.

 


* Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou os ensaios O cavaleiro inexistente de Italo Calvino –  uma alegoria contemporânea (1999) e Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (2007). Coorganizou duas coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea e o volume Falando com estranhoso estrangeiro e a literatura brasileira (2016).

 

Referências

BECCASTRINI, Stefano. “Quanto’è comico confrontarsi con l’universo!” In: Calvino & il comico. Milano: Marcos y Marcos, 1994, p. IX-XI.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CALVINO, Italo. Os nossos antepassados. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CLERICI, Luca e FALCETTO, Bruno (org.). Calvino & il comico. Milano: Marcos y Marcos, 1994.

ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FOLLAIN, Vera Lúcia de Figueiredo. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/ 7letras, 2010.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

LACERDA, Rodrigo. “Paiol Literário: entrevista”. Rascunho, edição n. 150. Curitiba, outubro de 2012. Disponível em http://rascunho.com.br/rodrigo-lacerda. Acesso em 21 jun 2016.

LACERDA, Rodrigo. Hamlet ou Amleto?: Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015.

MANGUEL, Alberto. À mesa com o Chapeleiro Maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas. Trad. Josely Vianna Batista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Planeta Argentina/Seix Barral, 2000.

RAMOS, Graça. “Releituras generosas”. Disponível em http://blogs.oglobo.globo.com/graca-ramos/post/releituras-generosas-569567.html. Acesso em 2 jun 2016.

SÁ, Sérgio de. “Rodrigo Lacerda e a arquitetura da generosidade”. In: CHIARELLI, Stefania, DEALTRY, Giovanna, VIDAL, Paloma (org.) O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 137-148.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

 

Notas

[1] “Angústia e humor com Martin Page”, Segundo Caderno, O Globo, 29/02/2016, p. 3.

[2] Em 2011, o presidente norte-americano encerra sua participação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro referindo um único escritor brasileiro, e cita trecho motivacional de Paulo Coelho: “Com a força de nosso amor e nossa vontade podemos mudar nosso destino. E também o destino de muitos outros”.

[3] Conferências Norton, proferidas na Universidade de Harvard entre 1985 e 1986.

[4] Curioso notar, em uma simples busca na internet, a quantidade de vezes em que a trilogia de Calvino é chamada de “divertida”. Isca para o leitor mais jovem?

[5] José Paulo Paes lembra, no âmbito da literatura de entretenimento, a vigência da categoria de gênero. O romance policial, o sentimental, o de aventuras, a ficção científica etc. Nos dez incipit (princípios) de histórias inacabadas, Calvino passeia por eles, jogando com a expectativa do leitor, mas não adere inteiramente a nenhum gênero.

[6] Vale lembrar a esse respeito o envolvimento do autor com o Oulipo – Ouvroir de littérature potentielle (Ateliê de literatura potencial), grupo literário fundado na França em 1960, que pretendia explorar a potencialidade da literatura por meio da elaboração e utilização de regras formais rígidas, as ditas contraintes (restrições). Menos como formas coercitivas, elas funcionariam como ferramentas criativas. A visão do literário em Calvino se associa notadamente à ideia de jogo combinatório, o que nos leva ainda uma vez à proximidade com a diversão.

[7] Cf. entrevista ao jornal Rascunho. Na ocasião, o escritor se referia ao processo criativo de O mistério do leão rampante, mas a perspectiva vale também para Hamlet ou Amleto.

DOIS CONTOS SOBRE LITERATURA E MERCADO

<em>Leitor</em>, de Augusto Herkenhoff
Leitor, de Augusto Herkenhoff

 

Desperdício
Acordou com o corpo dolorido, a boca seca e a impressão de ter esquecido alguma coisa. O contorno impreciso dos móveis, o brilho embaçado de um espelho e a indiferença da cama sob o grande corpo nu lhe lembraram onde estava: dormira sem perceber, depois da intensa atividade física (a editora-chefe costumava ser bastante exigente). Por trás de um mal-estar vagamente líquido – seu estômago ainda estava estufado da cerveja do almoço –, banhava-o a luz do autocontentamento. Mas como sofrera até chegar ali! Depois de atravessar a feiura de uma infância e adolescência remediadas, passara anos dando aulas no pré-vestibular para alunos enfastiados de 15 a 18 anos, dia após dia carregado de trabalhos e provas que nunca terminava de corrigir e que temia fossem contaminá-lo. Viera então o prêmio tão sonhado, justo no momento em que assumia para si mesmo a nobreza da renúncia. Finalmente, começara a vender alguma coisa. Então tivera de ajustar sua atitude, ostentando um leve desprezo pela glória que combinava às maravilhas com a onda de interesse que o atingia: era um escritor talentoso que desprezava as coisas mundanas e permanecia dedicado à causa da literatura. Trazia sempre a barba malfeita, os cabelos desgrenhados e a blusa amarrotada de quem virara a noite lutando com demônios interiores, e oferecia aos que o visitavam no seu bunker em Botafogo a iguaria exótica que fazia a delícia das matérias de jornal: arenque defumado acompanhado de um cálice de conhaque, herança das reminiscências judaicas do avô. Uma vez tinham-lhe dito que um escritor devia ter alguma peculiaridade, e como esta lhe pareceu bastante convincente, não se importava de gastar parte do prêmio no arenque redentor.

Dan Ilitch espreguiçou-se, sentindo a cama lhe faltar embaixo dos pés. Era muito alto; seu corpo crescera tanto e tão rápido que se vergara já aos 15 anos. Assim, cedo parecera mais velho do que era, o que, somado à sua timidez algo lírica, despertava certo interesse nas mulheres, principalmente nas mais velhas. Mais tarde, apaixonara-se e casara-se com uma professora de história do segundo colégio onde trabalhara, mas se separaram três anos depois, por razões que desconhecia: a única coisa que conseguia pensar era na metáfora de um fósforo apagado. A partir da metáfora, começou a escrever furiosamente o que viria a ser o seu grande romance – os dois anteriores tinham sido ignorados pelo público e pela crítica. O prêmio, o prestígio e as vendas o haviam colocado em outro patamar e ele não hesitara em aproveitar a maré. Aos 40 anos, voltara previsivelmente à adolescência que não tivera, o bunker convertido em local de abate. Mas logo aquilo tudo o enfastiara. Para seu desespero, começou a ter dificuldades de ereção: mais de uma vez, teve de gaguejar desculpas para os corpos descrentes ou apiedados em sua cama. E, como uma súbita revelação, percebeu que estava apaixonado pela editora.

Levantou-se num pulo e foi até o banheiro. Não gostava de motéis, mas a editora estava sempre com pressa e determinava seus encontros com o doce autoritarismo que era parte do seu encanto. Abriu o vaso, onde despejou um longo jato enquanto olhava para a parede branca e via o rosto emoldurado pelos cabelos indo e vindo sobre os seios pequenos e perfeitos. Sentiu uma pancada de emoção ao imaginá-la circulando pela Feira, dando entrevistas, falando do seu livro – “o Borges brasileiro”, “labirinto tragicômico de identidades” –, e depois o encontro a dois, comentando e rindo da curadora, dos editores, dos outros autores. Seria um tédio conversar com eles, dar entrevistas, ir a eventos sem a sua presença luminosa.

De volta à casa, foi direto à escrivaninha. Seu santuário. O sagrado ao lado do profano, o mundo inteiro na ponta dos dedos. Isso e mais alguma coisa.

Porém, preferiu não abrir imediatamente o seu início de romance, provisoriamente intitulado Bagatela, porque antes precisava refrescar a cabeça na rede social. De cara, checou sua última publicação na linha do tempo, uma citação de Neruda: versos sobre o silêncio e o vento marinhos. Uma mensagem que podia ser dirigida a pelo menos umas cinco mulheres. Quantas havia pescado daquela vez? No balaio das curtidas, duas lhe provocaram a pequena comoção: uma fã que o vinha acompanhando com avidez e uma escritora que ele mirava há algum tempo. Foi até a página da fã e adejou pelas fotos, todas mais ou menos artísticas: cabelos sobre costas desfocadas na qual brotava a pequena tatuagem tribal; um pé com unhas vermelhas contrastando com um céu de turquesa; quadros de Frida Kahlo; e, mais adiante, um grupo animado de jovens em risos congelados diante de canecas de cerveja. Boa ideia. Na geladeira, pegou uma latinha (Devassa) e levou-a até o computador. Fotos de Londres. Um grupinho de nomes razoavelmente constante comentando citações, compartilhamentos e imagens diversas, desdobrando seus kkkks, emoticons e piadinhas internas. Em outros tempos, entrar na vida do outro daquela forma equivaleria a um estupro. Parecia pornográfico – seria por isso que a rede social era tão excitante?

Vejamos o seu caso: um homem maduro, curvado pela altura e pelos pensamentos (no final do casamento, sua ex-mulher dizia que o ar lá em cima devia ser rarefeito); um escritor cujos únicos filhos eram os livros, relançando uma nova edição do seu premiado romance num evento destinado a consagrá-lo, conduzido pela mulher que adorava, e, no entanto, assaltado pelo tédio e pela desconfiança de si mesmo, como se fosse sempre um outro em seu lugar; ao lado, os pixels de seu livro incomeçado latejam de desejo. Esse gigante, com seu arenque defumado, suas unhas há muito não cortadas, sua cerveja quente, também gosta de brincar. Pornografia e donjuanismo – dois mitos reciclados pela tecnologia – o esperam. Talvez uma mulher do outro lado lhe diga “Meu Deus, como seu talento é grande”, ou “Adoro beber Devassa”… Talvez a deite algum dia na sua cama, abra suas longas pernas e conheça mais uma vez uma mulher – que se transformará rapidamente na mesma de sempre.

Mas, é claro, jamais escreveria sobre isso.

Enquanto se abastece com a quarta latinha de cerveja e mastiga furiosamente um punhado de amendoins, percebe que a tal autora caracterizada no jornal de sábado como uma promessa da literatura e cujo livro havia comprado também havia curtido seu último post, assim como alguns outros anteriores. A foto do perfil mostra olhos ligeiramente estrábicos, inocentes, sobre uma boca semiaberta. Não resiste e abre a janela do chat: dirá que comprou o livro e está ansioso para conhecê-la. Em vez disso, escreve: sua boca é deliciosa. E, no mesmo instante, se arrepende.

Na rua, custou a decidir aonde iria. Não estava com fome, mas cairia bem tomar um café e comer uma torta. Um menino descalço se aproximou engrolando um “tio, me ajuda aí”. Como sempre, sua carteira só tinha cartões de banco, que usava para todas as ocasiões. Apertando o passo, balançou a cabeça algumas vezes ao mesmo tempo que sacudia os bolsos vazios, à guisa de justificativa. Mesmo assim, o menino continuou seguindo-o, sempre repetindo o arrastado “tio, tio, tio…” Uma das suas livrarias preferidas estava bem próxima, e foi lá que entrou em terra firme.

Os livros lhe trouxeram a calma de que tanto precisava. Devagar, foi percorrendo a bancada; ali estava seu último romance e os de alguns de seus colegas. Dan Ilitch nunca deixava de se sentir um impostor ao ver seu livro exposto. Não era como mostrar sua alma; era mais como exibir suas roupas, com um furo nas calças. No centro da livraria, pilhas em formato de estrela de Davi dos mais recentes best-sellers estrangeiros formavam um exército colorido. Pegou um deles, folheou-o sem muito interesse. Lixo. O tipo de narrativa com personagens irritantemente previsíveis e ganchos óbvios como cenouras na frente de coelhos. Passou os olhos pelos romances pretensiosos que vinham assolando a literatura nacional. Escolheu dois livros – o lançamento policial de um autor estrangeiro de que gostava particularmente e o romance de um autor prematuramente consagrado – e levou-os para o balcão, onde poderia lê-los enquanto bebericava o café com biscoitinho. Na verdade, pedia o café por causa do petit four, delicioso e minúsculo, que o acompanhava. Aproveitou para mandar uma mensagem para a editora pelo Whatsapp: quem sabe ela já teria algo a dizer sobre o início do seu romance.

Sua tranquilidade durou pouco. No meio do salão da livraria efervescente, viu aproximar-se um velho escritor, ou escritor velho, que era, ou pretendia ser, um medalhão. Ele agarrou seu cotovelo e começou, sem piedade: grande figura! Por que plagas andas? Ah, vai pedir um café? Vamos, vamos. Adoro o bolinho que vem junto. No celular, o sinal azul indicava que a editora havia lido a mensagem. O medalhão estava louvando a entrevista que lera na primeira página do caderno cultural, na qual o escritor talentoso, ao lado de outros participantes da Feira, falava do presente e do futuro da literatura e do mercado editorial.

Enquanto Dan pensava em como poderia escapar, ia respondendo: claro; parece que as perspectivas são boas; bom, isso é você quem diz; generosidade sua; é mesmo um mistério o que faz um livro vender; conluios editoriais não bastam; magia, talvez; o espírito do tempo… No seu cérebro, contudo, latejava uma frasezinha: foda-se, foda-se… Para o diabo os encontros, as mesas-redondas, as entrevistas. O processo criativo. O próximo romance. O pior é que coisa semelhante o esperava na Feira, um longo desfile de obviedades e frases de efeito disparadas pelo gatilho previsível dos jornalistas – exceto nos momentos que poderia compartilhar com a editora. Nesse ponto, lembrou dolorosamente que há quase um ano não conseguia escrever nada realmente decente. Para desviar a atenção da punhalada familiar que o atingia, mudou o corpo de posição e disse alguma coisa. Você acha?, o medalhão respondeu. Acho! – convicto, mas sem muita certeza do que dissera exatamente; algo como “a informação invadiu o terreno da literatura”. Na tela do celular, nenhuma resposta.

– Hum, interessante… interessantíssimo… – ruminava o medalhão. Seu olhar cintilava de possibilidades, como se considerasse a ideia de utilizar a frase no seu próximo romance.

Uma menina o olhava fixamente do outro lado do balcão. Observando melhor, não era uma menina, mas uma mulher – só a roupa era de garota. De repente, lembrou de onde a conhecia: da sua própria cama. Ele a levara até lá num dia de solidão existencial em que tentava reencontrar a potência recém-perdida, após tê-la seduzido pelo Facebook. Ele respondeu ao aceno como o carioca descolado que era (ou fingia ser) e interrompeu o medalhão: desculpe, desculpe, preciso ir ao banheiro. E correu até o cubículo de elegantes portas negro-piano, onde passou alguns minutos dobrado sobre si mesmo, sufocado por um ataque de ansiedade. Segurou seu pau com agressividade e em poucos minutos tinha terminado. Não fazia muito sentido, mas naquele momento nada parecia fazer sentido: nem a repulsa pelo medalhão, nem o pânico da garota, nem o pavor de nunca mais conseguir escrever, nem a qualidade do seu reduzido número de leitores, nem a perspectiva de ampliá-los. A única coisa que fazia sentido era ela, a editora. Que não respondia. Olhou-se no espelho e abriu a torneira.

Flores de estufa

Imagine ter um jardim florido com as mais variadas espécies durante todas as estações do ano. Isso é possível graças às estufas, estruturas que, além de proteger as plantas contra possíveis ameaças externas, acumulam calor, mantendo uma temperatura maior no seu interior do que ao seu redor.

Parecia uma boa ideia começar com a descrição de uma estufa. Inaugurado em 1884 para abrigar exposições de flores, frutos e pássaros, o Palácio de Cristal – com suas paredes de vidro, o pé direito altíssimo e a diversidade de espécimes presentes – havia se transformado numa estufa humana. O estilo é que parecia inadequado: o tom didático, que deveria ser um contraponto para a linguagem sedutora que se seguiria, não funcionava muito bem. Olhando em torno de si, siderado pelas luzes do salão transparente, o jornalista via plantas, flores multiformes e multicoloridas – pena que seus conhecimentos botânicos fossem limitados. Nada que uma boa pesquisa não pudesse remediar mais tarde.

Orquídeas, por exemplo. Tenros rostos femininos desabrochavam de golas altas, rijas como os rufos da aristocracia do século XVI. Com os rostos corados, erguiam brindes, mexiam sedutoramente os lábios, varriam o salão com a cauda dos vestidos. Eram poucas, mas surpreendentemente parecidas: jovens, brancas, delicadamente maquiadas. Aproximou-se de uma delas, na bancada das caipirinhas. “Acabaram os morangos? Mas quem foi a anta que encomendou…” Claro, aquelas eram as moças da organização; quem mais investiria tempo e dinheiro num traje tão uniformemente elaborado, senão a grife estilosa que aparecia em letras gigantescas no convite da festa (um cartão com letras de feitio rococó em alto relevo dourado)?

Havia mulheres cintilando em gradações variadas de vermelho (rosas), senhoras gordas e folhudas (hortênsias), donas empertigadas (tulipas); havia jasmins doces e perfumados, e singelas margaridas, e a simplicidade dos lírios… além dos cravos de verdade, abotoados na lapela de vários homens de cartola, como devia ser. E todos aqueles homens fantasiados de Pedro II? Dentes de leão, com suas barbas lisas, prestes a se desfazer com o sopro do vento que vinha de fora. Uma lufada ergueu uma daquelas penugens, revelando um peitilho de fardão da Academia Brasileira de Letras – não havia dúvidas, era o medalhão.

Flores de estufa. Pessoas que florescem em ambientes artificiais, controlados, mas que murcham no mundo real. Uma metáfora perfeita do mundo literário e, talvez, da própria literatura. Este sim era um bom ponto de partida.

Olhando em volta, constatou que não conhecia quase ninguém. Apesar do ofício, o jornalista era de uma timidez constrangedora. Em geral, sentia-se mais à vontade em frente ao computador, dissecando os textos com a coragem que nunca tivera de colocar à prova ao vivo e a cores. Para se soltar, pediu uma caipirosca. O barman, um tipo alemão de barba e rabo de cavalo, raspou os últimos morangos, sacudiu o cone metálico e lhe estendeu o copo de plástico decorado com um guarda-chuva azul.

Mesmo considerando o indiscutível toque provinciano de que Petrópolis não conseguia se livrar, via-se numa metrópole em miniatura. Andando pelo salão, era possível ouvir conversas em inglês, em espanhol, sotaques de diferentes regiões do Brasil; altos saxônicos, caboclas perfumadas, grã-finas de membros frágeis, latinos atarracados. Todos com o indiscutível gene das artes, aquele esnobismo casual de quem se sente bem na própria pele, enquanto ele… observava.

Como é possível controlar as condições climáticas dentro da estrutura, não há restrições às espécies que podem ser cultivadas na estufa. Ela oferece o ambiente ideal para plantas de climas diferentes do que predomina no local.

“E ali floriam, como plantas viçosas ou como ervas daninhas, os mais variados botões…”. Porém, por mais que se estendesse nas analogias estruturais e florais, aquilo tinha um limite. Precisava de personagens. E, embora o editor não tivesse formulado claramente, tinha de curvar-se ao que ele chamara de “hierarquia dos escritores” – o que significava o prestígio cultivado no caldo dos prêmios, na popularidade dos blogs e páginas do Facebook, na pose que ostentavam e com a qual eram reconhecidos, enfim, no seu inefável “capital simbólico”. O problema é que, até o momento, não tivera acesso a nenhum dos escritores realmente importantes da Feira. Bebeu três goles da caipirosca e caminhou na direção de uma das Orquídeas, ao lado do pequeno palco de feltro. Aproveitou o momento em que a moça ergueu os olhos do celular:

– Com licença…

Ela estendeu uma mão espalmada, para que ele aguardasse um momento, e voltou ao aparelho. Depois, virou-se e mostrou um rosto liso em que a única dobra era um leve risco entre as sobrancelhas. Ela o conhecia?

– Sou jornalista. Estou fazendo uma matéria. Para o Speculum.

Nenhum sinal de reconhecimento ou interesse.

– Ah, sim. Em que posso ajudá-lo?

Aquelas jovens profissionais haviam adquirido todos os maneirismos das atendentes de telemarketing. Era uma menina comum mas atraente, com um pescoço comprido e um ar preocupado que contrastava adoravelmente com o rosto jovem. Tomou mais dois goles da bebida, pescou um morango com a língua. Pelo andar da carruagem, em breve acharia todas as mulheres bonitas.

– Preciso de escritores. Quer dizer, não sei se me expressei bem… É que não conheço ninguém aqui.

– Entendo.

– Então… você trabalha na organização, não é? Será que poderia me apresentar alguém?

Um garçom passou com uma bandeja de canapés. Ele pescou um de salmão com cream cheese e o engoliu inteiro, praticamente sem mastigar. Perfeito.

– Olha, eu conheço o Markus, da segurança, o Luís, da van, o pessoal da cozinha… Não conheço nenhum escritor. Se quiser me apresentar, agradeço – e deu um risinho maroto.

Interessante. Se quisesse dar uma de Gay Talese, poderia entrevistar os garçons, o Markus, o Luís e, melhor ainda, a própria garota. Debaixo do corpete, pressentia dois peitinhos trêmulos e de auréola rosada. Há quanto tempo não chupava um desses? Os da esposa tinham escurecido lamentavelmente depois do parto, sem falar que podiam esguichar a qualquer momento. Pegou um chope da bandeja de um garçom que passava e bebeu quase a metade. Estava morto de sede.

– E a curadora Maria de Lurdes Braga? Mandei um e-mail pra ela, mas ainda não tive resposta.

– Ah, essa eu sei quem é. Daqui a pouco vai subir no palco. – Consultou a tela do celular. – Em mais ou menos 40 minutos.

Ela pediu licença e saiu na direção da entrada do Palácio. Era melhor ele ficar por ali mesmo. Subiu um dos degraus que davam acesso ao palco, de onde poderia ter uma visão geral da festa. Era como um céu noturno, em que as velas eram as estrelas. Fora os holofotes do jardim, eram elas que desenhavam o panorama do salão. Ligue os pontos, e veja a imagem que se formará.

Iluminação é essencial. Se as folhas estiverem com cor verde garrafa, é sinal de que estão precisando de mais luz. E se estiverem com uma cor amarelada, estão com excesso de luz. 

Percebeu lá na frente, junto à entrada, uma agitação incomum. Uma equipe de televisão abria caminho na aglomeração, riscando-a com um facho de luz. Instalaram-se na lateral direita do salão, junto à exposição de fotos. No epicentro da clareira iluminada, uma mulher pálida, de jeans, camiseta e embrulhada num capote, piscava os olhos nervosamente. Reconheceu a autora da tetralogia de sucesso. Valeria a pena ir até lá? No mínimo, deixaria o seu cartão com ela. Entornou o resto do Prosecco – o último chope que pegara estava intoleravelmente quente – e conseguiu um lugar atrás da clareira. Como era de estatura baixa, teve de se virar com um espaço entre duas cabeças, pelo qual pôde ver metade de um rosto. Sacou seu bloco de anotações e rabiscou algumas linhas taquigráficas (“loira aguada, fotofóbica”) – até agora não conseguira converter seus antigos hábitos à sedução eletrônica.

– Jornalista?

Um homem de cabelos ralos, barba espessa e olheiras profundas espiava por cima do seu ombro. Achou que um pequeno grunhido de confirmação seria suficiente, mas estava enganado.

– Olha só essa mulher. Dá pra acreditar no sucesso dela? Alguém acha que isso é literatura?

– E desde quando literatura tem a ver com sucesso? – falara um pouco para si mesmo, um pouco para o homem. A loira, que começara com monossílabos tímidos, disparara a falar muito rápido, enquanto apertava alguma coisa na mão direita. Ele não conseguia pescar praticamente nada.

– Para onde você escreve?

– Speculum.

As cabeças à sua frente se aproximaram, fechando a fenda estreita pela qual acompanhava a entrevista.

– Ah, sei, sei. Quer saber? Só chamam as pessoas erradas.

O sujeito sacudia a cabeça, consternado. O jornalista tentou se recolocar entre um senhor idoso e uma adolescente, mas o círculo tinha enchido e agora só conseguia ver um emaranhado de cabeças, cujos arranjos – incluindo algumas ridículas coroas imperiais – impediam totalmente sua visão. Só lhe restava engolir mais uma taça de Prosecco.

Não se deve colocar as plantas muito aglomeradas para que haja arejamento entre elas e consequentemente possa se evitar o contágio de doenças ou parasitas.

– Sou escritor, mas não da panelinha – e fez uma careta.

Sua boca cheirava a guimba de cigarro. De fato, viam-se na barba desgrenhada resquícios de cinzas. Desafiando o próprio anacronismo, ainda fumava no século XXI. O homem sorria, esperando a onda de interesse que em breve o atingiria; mas o jornalista permaneceu calado. Àquela altura, a tetralogista estava perdida.

– É tudo panela. Eu, por exemplo. Já escrevi seis livros, mas nunca nenhum crítico se deu ao trabalho de ler nada, nem que fosse pra malhar. Já tive amigos do meio, mas desisti, ninguém se interessa por literatura de verdade. Tô melhor morando em Petrópolis, no sítio, criando minhas galinhas, como o velho Raduan… só que não consegui resistir e vim ver o circo hoje.

A entrevista da loira acabara. O jornalista pediu licença ao candidato a Raduan Nassar e, com o cartão de visitas na mão – feito especialmente para a ocasião –, tentou alcançar a escritora, que havia sido absorvida pela pequena multidão. Apenas alguns segundos depois, a aglomeração se desfez e o foco de interesse se dispersou.

Ocorria aquele fenômeno interessante que era o clímax de tantos eventos sociais: todo mundo parecia esticar o pescoço, farejando algo; quem conversava, procurava com os olhos outras pessoas, sempre mais interessantes que o seu interlocutor. O jornalista não era exceção. Além disso, procurava furos – e, por mais que o escritor ressentido pudesse render um bom personagem, não era suficiente. Precisava de informações sobre o prêmio Ornitorrinco: alguém, algum jurado que pudesse lhe dar uma pista sobre o ganhador, que, a esta altura, já devia estar definido. Merda, onde estavam os escritores importantes da Feira, aqueles rostos que rodopiavam tão animadamente no site? Olhou em torno de si, procurando: as pequenas chamas oscilavam perigosamente; risos espocavam como fogos de artifício; a boca de guimba de cigarro continuava falando, e agora puxava a manga da sua camisa, o que, entretanto, lhe dava uma curiosa sensação de segurança. Percebeu meio alarmado que era sua própria cabeça que rodopiava – enquanto sua outra metade ria, de puro prazer.

Sentiu um pequeno choque no peito. Do bolso da camisa, cheio de esperança, sacou o celular. Era a irmã, comunicando que a transfusão da mãe tinha corrido bem e lembrando-o, com o habitual toque de censura, da escala da semana seguinte.

Foi então que viu o girassol. No centro do fulgor amarelo, ela: olhos levemente estrábicos, tipo esguio, cabelos com reflexos dourados replicando o brilho do vestido.

– Ei!

Saiu quase sem querer. A moça girou o rosto e o fitou com expressão neutra.

– Desculpa. Reconheci você do site. – estendeu a mão. – Carlos Estragão. Jornalista literário.

– Ah!

– Será que poderíamos dar uma palavrinha?

– Claro, claro. Pode ser daqui a um minuto? – Ela sorriu, mostrando dentes pequenos e perfeitos. – Tô procurando o banheiro.

– Hmmm, nesse caso, posso acompanhar você? Até a porta, claro. – Ele levantou os ombros, constrangido. – Entrevista.

– Pode ser. Mas não temos muito tempo, a Lurdinha vai subir no palco daqui a pouco. Qual é o seu jornal?

Lurdinha. Era, portanto, íntima da curadora. E adorava o Speculum. Estava muito feliz com a oportunidade… Um reconhecimento importante, ela que era tão jovem… Poderia segurar minha bolsa, por favor? Não, espera, a maquiagem está aqui.

Tinham andado até o banheiro químico instalado fora do Palácio. A luz de um holofote batia enviesada na sua metade superior, destacando o rosto da moça, uma jovem promessa da literatura. Meu Deus, ela estava mesmo mordendo os lábios? Anos de monogamia – mas talvez fosse mais preciso chamar de nulogamia – podiam provocar alucinações? Ou seria a bebida? Segurou a bolsa (textura aveludada), devolveu-a, postou-se ao lado da porta. A garota tinha escrito um livro erótico (ou quase). Passaram-se alguns minutos. No Palácio, os movimentos das pessoas eram como marés; talvez obedecessem a um padrão regular que poderia ser descrito por alguma equação da física quântica.

– Agora me fala o que você quer saber e te direi tudo! – a promessa da literatura tinha saído do banheiro com uma boca apetitosa, cheirando a framboesa.

Mas ele simplesmente não sabia o que perguntar. Porra, ele era um jornalista ou um rato? Um escritor ou um rato? Um escritor rato? Um rato jornalista? Enquanto as únicas palavras que passavam pela sua cabeça eram essas, chegaram à entrada do palácio, a essa altura lotado. Felizmente, ela preenchera o silêncio com os dados básicos sobre a “sua obra” (aquela era uma época em que pessoas de menos de 30 anos já tinham uma obra). A mochila que ele carregava às costas nunca fora tão inconveniente. Ninguém com mais de três décadas de vida estava de mochila, muito menos carregava o peso morto de dois Gays Taleses e um notebook defasado em quatro anos.

As luzes se apagaram. Ouviu-se o disparo de fogos de artifício, e um uivo de expectativa atravessou a multidão. Buquês dourados e verdes explodiram no céu e através dos vidros. A promessa da literatura pegou na sua mão, enquanto abriam caminho para o palco. Ele é apenas um dedo mais alto que ela. Sua garganta está seca. O palco se inunda de luz. Sobre ele, reina a Princesa Isabel. A curadora.

O cabelo estava penteado com uma grossa trança e o vestido era longo e discreto. Era o que ele uma vez, em uma das suas tentativas literárias, caracterizara como uma mulher no limite: da idade, do corpo, da razão. Um limite que podia ser terrivelmente promissor: o corpo fornido, de uma carnalidade macia, mas ainda consistente; a idade da experiência, mas também do desejo de aventura; o hábito da razão ao lado da consciência da própria loucura. Tivera uma amante assim, quando ainda não era casado (ela era), e nunca tinha encontrado alguém com quem tivesse gostado tanto de trepar.

Mas isso só ocorria com algumas mulheres. Sua mãe, por exemplo, certamente nunca atingira aquele estágio. A vida toda consumida pela organização da casa, pelos serões em frente à TV, pelas mesmas amigas sem graça de sempre. Ele se perguntava o que a movia. Nenhuma paixão, nenhuma questão mais importante do que “quem quebrou o copo” ou “o que fazer para o almoço”. Agora, que estava morrendo, pela primeira vez parecia ter um corpo – fluidos, escaras, fezes, urina. Era no mínimo irônico que a maior intimidade entre eles se desse na iminência da morte. Enquanto olhava Lurdinha mover-se suavemente no palco, entornou o uísque que, não sabia como, tinha parado na sua mão.

“Aqui, todos os verões, se abrigava o homem alto e melancólico, este exilado da alta cultura nos trópicos que era o imperador Pedro II. A grande poeta Elisabeth Bishop, que também amava esta cidade, se declarou uma vez apaixonada por ele: por sua cultura, seu amor às línguas, seu senso moral”. O discurso chegara à apoteose: “Nosso desafio: inaugurar o império das Letras, como sonhou D. Pedro II!”

Uma chuva de aplausos. Através dos vidros, via-se o céu estrelado; o primeiro dia da Feira seria de tempo bom. Do lado do palco, um pequeno grupo aguardava. Lurdinha desceu os dois pequenos degraus, magnífica. Estavam todos ali: Dan Ilitch, mergulhado numa barba lisa de imperador; um mulato atarracado de écharpe, que o jornalista reconheceu como o antropólogo; o embaixador, sentado numa cadeira providenciada pela orquídea do início da festa; dois ou três emissários do mundo jornalístico; enfim, ele mesmo, ao lado da promessa da literatura.

Ela apresentou o jornalista rapidamente e voltou sua corola para as novas fontes de luz. Tentou acompanhar o que diziam, mas era inútil – as vozes pareciam misturar-se, os rostos sorriam para tudo, exceto para ele. Não, ele estava enganado, não era Charles Lúcio o autor de Nuvens na berlinda. Esse era o livro que ganhara o prêmio Kafka no ano anterior. Tentou fazer uma piada, mas o homem já havia se esquecido dele e conversava com a promessa da literatura. “Sucesso”, “estandes”, “chiquérrimo”, “mídia” – as palavras voavam como estilhaços. No fundo do seu copo, dois pedaços de gelo boiavam na água suja. Aquilo o mareou definitivamente. Pediu licença para o nada e saiu arrastando os pés.

Antes que pudesse chegar ao banheiro, viu-se regando um arbusto com as próprias entranhas. Por alguns segundos, até recuperar o fôlego, contemplou algo que parecia um plástico laranja (seria o salmão?). Ao levantar a vista, viu, junto a uma das vigas do palácio, um pequeno furo, raiado em estilhaços, que tinha o indiscutível aspecto de um tiro. Estendeu o dedo e acariciou a marca no vidro, como se pudesse apreender pelo tato a data do incidente. Seria interessante se aparecesse de repente alguém ferido, e tudo se precipitasse numa trama policial.

Já se sentia bem melhor. Correu ao banheiro para se lavar e voltar a tempo de colher mais dados para sua primeira investida jornalístico-literária. Quando retornou, porém, não encontrou mais ninguém. Não se sabe como, em alguns minutos tudo adquirira o aspecto de fim de festa. Clareiras que não eram de luz abriam-se entre os grupinhos remanescentes, copos vazios rolavam no chão. Música ruim ressoava nos vidros. Casais se tocavam com antecipação: sente-se no ar a tensão sexual da qual ele obviamente está excluído.

A maior parte das plantas se adapta bem a temperaturas entre 10º e 40º centígrados. Entretanto, há algumas que suportam temperaturas mais baixas. Assim, é bom observar a variedade da planta que se pretende cultivar para ter certeza que se aclimatará no lugar onde será cultivada. Caso contrário, o cultivo será muito mais trabalhoso, muitas vezes resultando na perda da planta.

Consulta mais uma vez o celular. Conferiu a mensagem da mulher: “Alê parece doente, sabe onde está o termômetro?” Um bafejo da sua velha realidade. A esposa previsível. A mãe arrastando-se entre a não-vida e a morte. Mais de uma vez, pegara-se sonhando com eutanásia. Talvez um dia desligasse os aparelhos e acabasse de vez com aquilo. Tinha a impressão de que era assim também a literatura contemporânea: distraíam-se com todo aquele debate entre narração e experimentação linguística enquanto ninguém tinha coragem de desligar os aparelhos. Algumas vezes parecia que o faziam, mas tudo não passava de uma mímica malfeita para comover os inocentes.

Mas quem era ele para debochar de alguma coisa, se naquele momento sentia o peito tremer (e não era o celular)? Resolvera voltar a pé para o hotel onde estava hospedado – não tão próximo nem tão sofisticado quanto o oficial da Feira, mas ainda assim um ótimo hotel – quando, perto de um cachorro descarnado, percebeu um vulto. Um vulto feminino… os ombros levemente curvados, o volume do penteado atrás da nuca, a respiração suspensa numa pose antiga. Devagar, se aproximou. Parecia a curadora. Adiantou-se. Era a ocasião perfeita de abordá-la. Porém, quando estava a ponto de falar com ela, viu surgir, por trás de uma árvore que até então o escondia, um homem que se agitava terrivelmente. Caminhava em círculos, juntava as mãos, apelava a deus – talvez mesmo ao diabo. Seus braços pareciam prontos a enlaçá-la a qualquer momento, mas, a cada investida ela recuava levemente. E agora? Deveria intervir ou não?  Não pareciam desconhecidos ou inimigos: via-se isso claramente pela sua postura corporal. Chega a sentir ciúmes da intimidade entre os dois.

Não conseguira sequer trocar cartões com os escritores. Por outro lado, tinha um material bruto; qualquer bom escritor conseguiria tirar algo interessante dali. Sente o resíduo de vômito na boca: quem dera estivesse no hotel para escovar os dentes. Devagar, o cachorro se afasta na direção do poste de luz mais próximo. É o caminho do seu hotel, e ele o segue.


* Adriana Armony é escritora, doutora em Literatura Comparada pela UFRJ e professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Publicou, pela Editora Record, os romances A fome de Nelson (2005), Judite no país do futuro (2008) e Estranhos no aquário (2012), premiado com a bolsa de criação literária da Petrobras. Organizou, com Tatiana Salem Levy, a coletânea Primos: histórias da herança árabe e judaica (2010), e tem contos publicados nos jornais Cândido e Rascunho. É pesquisadora do PACC, onde conclui o projeto de pós-doutorado Transescritas.

CRIMES SEM FRONTEIRAS: OS DESLOCAMENTOS NO ROMANCE POLICIAL

Resumo: O artigo traça breve panorama da produção contemporânea do romance policial no Brasil e no mundo a partir das múltiplas possibilidades de deslocamento de espaço e de tempo. O ponto de partida é a relação estabelecida entre “crime” e “viagem” por Ricardo Piglia; por meio de exemplos e associações, é possível perceber as mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas no tradicional gênero literário, com maior diversidade temática e incorporação de tensões sociais, e também discutir o rótulo de “subliteratura” comumente atribuído ao romance policial.

Palavras-chave: Literatura; deslocamento; romance policial.

Abstract: The article provides brief overview of the contemporary production of the crime novel in Brazil and the world from the multiple possibilities of displacement in space and time. The starting point is the relation between “crime” and “trip” established by Ricardo Piglia; through examples and associations, it’s possible to see the changes that have occurred in the last two decades in the traditional literary genre, with greater thematic diversity and incorporation of social tensions, and it’s also possible to discuss the label “subliterature” commonly attributed to the crime novel.

Keywords: Literature; displacement; crime novel.

 

<em>Crédito: Carlos Marcelo/Arquivo pessoal</em>
Crédito: Carlos Marcelo/Arquivo pessoal

En definitiva no hay más que
libros de viajes o historias policiales.
Se narra un viaje o se narra un crimen.
Qué outra cosa se puede narrar?

Crítica y ficción, Ricardo Piglia

Depois de sobreviver a diversas tentativas de assassinato por parte da crítica literária, que tentou também a condenação por irrelevância perpétua, o romance policial decidiu agir em legítima defesa. Escapou do quarto onde foi trancafiado sob a acusação de “gênero menor”, demoliu o muro das convenções rigidamente estabelecidas e ganhou o mundo, ultrapassando os limites aos quais tinha sido confinado desde que passou a ser consumido em larga escala na primeira metade do século 20 a partir da produção incessante de autores como Agatha Christie, Rex Stout, Edgar Wallace e Georges Simenon. Manteve, contudo, a força-motriz: o crime, suas causas encobertas e consequências incontornáveis. “O mistério central de uma história de detetive não precisa envolver uma morte violenta, mas o assassinato continua sendo o crime supremo e traz um peso atávico de repugnância, fascinação e medo” (2012, p. 17), ensina a escritora P.D. James no livro Segredos do romance policial — História das histórias de detetive, antes de definir o assassinato como “o crime definitivo, para o qual jamais haverá reparação” (2012, p. 18).

Considerada uma das grandes damas do suspense, P.D. James conseguiu definir no mesmo livro o motivo de milhões de leitores se sentirem atraídos até hoje por histórias que se passam em grupos sociais impermeáveis às mudanças e com limitações de espaço. “A irritação que pode imergir da intimidade enclausurada e involuntária é capaz de gerar animosidade, ciúme e ressentimento, emoções que, se forem suficientemente fortes, podem ferver e acabar explodindo na destrutiva fatalidade da violência” (James, 2012, p.120). Foi o que fez, por exemplo, Agatha Christie em um de seus best sellers, E não sobrou nenhum (anteriormente editado com o título O caso dos dez negrinhos), no qual uma sequência de assassinatos ceifa vidas de dez personagens isolados em uma ilha.

Mas acontece que a literatura policial não está imune às transformações do planeta. Então, depois da guerra fria, quando houve declínio de interesse pelos romances convencionais na linha “quem-matou?” e ganharam projeção as histórias de espionagem como as criadas pelo inglês John le Carré, o mundo mudou – assim como convenções morais e sociais. Os impasses vivenciados pelos que mergulham em situações-limite, capazes de provocar crimes menos cerebrais e resultantes de explosões súbitas de violência, tiveram como expoentes na literatura os personagens dúbios da norte-americana Patricia Highsmith, em especial o falsário sedutor Tom Ripley, e também as criações do brasileiro Rubem Fonseca, como o advogado criminalista Mandrake, consolidando uma etapa da literatura policial descendente direta do que fizeram Raymond Chandler, Dashiell Hammett e tantos outros expoentes do noir norte-americano a partir da década de 1930, sem tantos pudores nem amarras morais como a produzida pelos europeus da primeira metade do século 20.

Mas, quando parecia que a literatura policial mergulharia no ostracismo, sobrevivendo apenas de reedições ou dos novos títulos dos autores que conseguiram dar nova roupagem a mistérios tradicionais (como o italiano Andrea Camilleri e o espanhol Manuel Vásquez Montalban), nas duas últimas décadas o gênero ganhou surpreendente injeção de vitalidade. E, de novo, as palavras de P.D. James servem como bússola para orientar os caminhos recentemente descortinados, mesmo quando se referem a fórmulas já utilizadas: “A comunidade isolada pode também ser o epítome de um mundo externo mais amplo, e isso, para um escritor, é uma das maiores atrações de uma ambientação ficcional circunscrita, principalmente quando os personagens estão sendo explorados sob o trauma de uma investigação oficial de assassinato, processo que pode destruir a privacidade de vivos e mortos” (James, 2012, p. 120-121).

Para compreender como a literatura policial contemporânea resolveu não mais se isolar, mas enfrentar o “mundo externo mais amplo”, torna-se necessário ressaltar: todo deslocamento tem uma ação como premissa. E, nesse âmbito, faz sentido a associação que Ricardo Piglia estabelece entre a viagem e o crime no ensaio “Sobre el género policial” (2001): os dois atos movem seus protagonistas a lugares diferentes, são capazes de promover profundas e rápidas transformações íntimas. O próprio Piglia, celebrado como um dos grandes pensadores das questões literárias contemporâneas, fez viagem particular em direção ao romance policial e, baseado em fatos reais, voltou com uma obra de grande vigor narrativo: Dinheiro queimado, publicado na Argentina em 1997, adaptado aos cinemas por Marcelo Piñeyro e lançado nos cinemas brasileiros com o título no original em espanhol, Plata quemada. E o fez por meio de prosa límpida, que eleva a tensão, mas não deixa de emitir pertinentes comentários sobre a sociedade na qual o crime emerge:

Matar assim, a frio, porque lhe deu na telha, significava em compensação (para a polícia) que os caras não iam respeitar nenhum dos acordos implícitos que regem a lei não escrita entre a bandidagem e a pivetada, já que estes eram uns pintas-bravas, eram uns bestalhões, uns ex-condenados, uns marmanjos que se arriscam e pouco ligavam se toda a polícia da província de Buenos Aires fosse para cima deles. A confusão indescritível resultante do pérfido ataque não permitiu, nos primeiros momentos, estabelecer o que havia acontecido (diziam os jornais). Foi uma rajada de violência brutal, um estrondo cego. Uma batalha concentrada, que durou o tempo que leva um semáforo para passar do verde ao vermelho. Foi um instante, e depois a rua ficou cheia de cadáveres (Piglia, 1998, p. 32).

A incursão bem-sucedida do escritor argentino no gênero é apenas um dos exemplos contemporâneos das mudanças no romance policial depois das décadas de imobilismo. São diversidades de três naturezas: geográfica, temporal, temática. O deslocamento no mapa-múndi da literatura policial, antes quase que exclusivamente restrito a Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, foi percebido em larga escala a partir do êxito do sueco Stieg Larsson (1954-2004) com o primeiro volume da trilogia Millenium, Os homens que não amavam as mulheres. Sucesso no mundo inteiro, com mais de 60 milhões de exemplares vendidos da trilogia, Larsson engendrou uma trama que obedece aos cânones do mistério – um investigador, ainda que informal (o repórter Mikael Blomkvist), ao menos uma revelação capaz de surpreender o leitor e provocar uma reviravolta no desfecho do livro –, mas adicionou doses de contemporaneidade ao trazer para o protagonismo uma forte personagem feminina (a hacker Lisbeth Salander) e adicionar comentários a respeito de crises financeiras por meio do ponto de vista da vivência e das reflexões de Blomkvist, jornalista especializado em economia.

Muitos críticos, surpresos com a popularidade de autores como Larsson, a norueguesa Anne Holt e o islandês Arnaldur Indridason, arriscaram teorias sobre o êxito escandinavo: a mais recorrente estabelece conexão com o fato de os países nórdicos apresentarem índices reduzidos de crimes violentos. Por isso, o homicídio nestes países europeus é considerado um ponto fora da curva da dinâmica social; não foi banalizado e incorporado à banalidade do cotidiano, como ocorre no Brasil. Em entrevista a José Figueiredo, publicada em 10 de setembro de 2011 no caderno Prosa e Verso do jornal O Globo para divulgação do lançamento da edição nacional de O silêncio do túmulo, Arnaldur Indridason assume a busca de um diferencial inusitado para as suas histórias (“Leitores estão sempre procurando algo diferente, e o que é mais diferente do que um detetive em Reykjavik, Islândia?”) e arrisca uma explicação para a popularidade dos escandinavos: “Na Islândia, alguns dos escritores de livros policiais vêm do jornalismo, e talvez a literatura criminal, com questões sociais, seja uma espécie de jornalismo. Romances policiais oferecem uma excelente maneira de se examinar todos os aspectos das sociedades, e acho que é isso que os escritores escandinavos estão fazendo tão bem. Os leitores estão captando isso”.

As “questões sociais” citadas por Arnaldur Indridason estão presentes de forma consistente na obra do sueco Henning Mankell (1948-2015). Em Assassinos sem rosto, Mankell enxerta o clima de desconfiança em relação aos refugiados de setores conservadores da sociedade sueca em drama criminal ambientado no sul do país. Elementos de xenofobia (“Quando a gente não consegue nenhuma pista, bota a culpa nos finlandeses”; Mankell, 2001, p. 76) também são inseridos de forma harmoniosa em narrativa que segue o cânone policial, com a apresentação de um protagonista (o detetive Kurt Wallander) capaz de despertar empatia pelas virtudes e fragilidades, tiros e perseguições, mais reviravoltas, pistas falsas e resultados surpreendentes. “Todas as investigações criminais bem-sucedidas chegam a um ponto em que o muro se abre. Na verdade não sabemos o que vamos encontrar do outro lado. Mas a solução está lá, em algum lugar” (Mankell, 2001, p. 83).

Ao embutir na trama policial de Assassinos sem rosto as tensões sociais contemporâneas, Mankell incrementa enigma à moda antiga, que poderia estar nos livros de Agatha Christie: o misterioso assassinato de um casal de agricultores que moram em um local isolado no interior do país.

A vinte quilômetros de Lenarp havia um enorme campo de refugiados que em várias ocasiões fora alvo de ataques. Cruzes haviam sido queimadas à noite, no pátio, pedras atiradas contra as janelas, os prédios tinham sido pichados com slogans contra estrangeiros. O campo de refugiados no velho castelo de Hageholm entrara em operação, apesar dos protestos veementes das comunidades vizinhas. E os protestos continuavam. A hostilidade contra os refugiados estava aumentando. (Mankell, 2001, p. 50) investigação de Wallander considera também a hipótese de ódio racial (“Presumo que vamos ter de começar a fuçar esses grupos neonazistas suecos”; 2001, p. 185) e não deixa de levar em conta a percepção de mudanças na realidade sueca: “A insegurança no país é enorme. As pessoas estão com medo” (2001, p. 233).

O escocês Ian Rankin, sucesso na Europa com série de romances protagonizada pelo policial John Rebus, também traz as questões sociais relativas ao seu país para as histórias, como ele revela no livro Rebus’s Scotland – A personal journey:

Os temas que estão na maioria dos meus livros são questionamentos que passam pela cabeça dos leitores escoceses: quem somos, de onde viemos, como nós reagimos ao racismo, ao sectarismo, à anglofobia, à questão da identidade, ao processo político, qual lugar que ocupamos em um cenário maior (Rankin, 2005, p. 121).

O racismo e a imigração ilegal ocupam espaços importantes na trama de um dos romances recentes de Rankin, Fleshmarket Close (lançado no Brasil como Beco dos mortos), refletindo as tensões que ocorrem em outros países. “O que os escritores de policiais podem fazer é explorar não só as razões e as consequências dos crimes, mas também o que estes crimes podem nos dizer sobre a realidade em que vivemos. Sendo um país relativamente pequeno e relativamente reservado, a Escócia pode funcionar como microcosmo de um mundo maior” (Rankin, 2005, p. 129).

No Brasil, deslocamentos capazes de aguçar tensões sociais são especialmente marcantes em O invasor, de Marçal Aquino. Com personagens mais próximos do universo amoral de Patricia Highsmith do que dos convencionais romances policiais britânicos, O invasor explora, de forma notável, as consequências da aproximação problemática (motivada pelo planejamento de uma ação de violência) de personagens de classes sociais distintas, assim descrita no parágrafo inicial do primeiro capítulo: “Mesmo seguindo as indicações de Anísio, demoramos um bocado para encontrar o bar, numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar medonho” (Aquino, 2002, p. 7). A chegada dos dois engenheiros no bar para o encontro com o homem que eles irão contratar para executar o terceiro sócio numa construtora é imediatamente percebida pelo matador: “Quando vocês entraram, nem precisei olhar duas vezes, Anísio disse. Estava na cara que eram os dois bacanas que eu estava esperando” (Aquino, 2002, p. 9). A inversão de papéis, com os dois representantes de classes sociais elevadas “invadindo” o espaço dominado pelo “invasor” Anísio, é uma das armas de Aquino na criação de uma trama em ritmo de thriller, adaptada com êxito para os cinemas pelo autor, Renato Ciasca e Beto Brant, com direção deste último.

Ainda na produção contemporânea nacional, os deslocamentos impulsionam Bellini e o labirinto, mais recente aventura do personagem criado pelo paulistano Tony Bellotto. Depois de nove anos, Bellotto voltou a lançar romance protagonizado pelo detetive particular Remo Bellini. Mas fez um movimento importante: levou a ação, quase sempre transcorrida em território paulistano, para o Centro-Oeste, mais precisamente para Goiânia, capital pouco explorada na ficção nacional.

“Goiânia é uma cidade louca. Eu a visito desde os anos 1980, quando comecei a fazer apresentações com os Titãs por lá e sempre observei que se trata de uma capital cosmopolita com ar de província: carrões convivendo com carroças”, explicou Tony Bellotto, em entrevista ao repórter Ubiratan Brasil, publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 30 de agosto de 2014.

Com o deslocamento, o personagem Bellini ganha força e a narrativa, intensidade. Assumidamente inspirado no cinismo anti-heroico de Philip Marlowe, de Raymond Chandler, Bellini mergulha de corpo e alma em trama ambientada em universo estranho ao personagem e aparentemente pouco familiar ao guitarrista dos Titãs: a música sertaneja. Na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo, Bellotto contou que seu conhecimento do mundo sertanejo vem das excursões que faz com sua banda pelo Brasil. Nasce, portanto, da observação, não necessariamente da vivência. E o olhar é carregado de mordacidade, evidenciando ausência de envolvimento emocional.

Marlon & Brandão grafados em letras gigantes e douradas, simulando a grafia boçal de uma menina apaixonada de treze anos de idade, estampavam uma parede inteira na recepção do escritório da dupla. Sob os nomes, uma foto imensa dos dois irmãos cantores sorrindo, com seus hilariantes cabelos de bagaços de cana, oferecia as boas-vindas a quem entrasse no escritório da M&B Produções, que ocupava um edifício de quatro andares no centro de Goiânia (Bellotto, 2014, p. 25).

A visão irônica de Bellini para o que parece estranho se impõe na construção de um ponto de vista narrativo simultaneamente próximo e distanciado do mundo retratado por Bellotto. Tal decisão autoral contribui para que Bellini e o labirinto explicite, logo no início do romance, o desejo de mudança. Trata-se do trecho no qual Bellini observa, pouco antes de embarcar para a capital goiana para investigar o sequestro de um integrante de dupla sertaneja: “uma das poucas coisas imutáveis em São Paulo é o aeroporto de Congonhas” (Bellotto, 2014, p. 18). E, logo depois de relembrar momentos marcantes da infância paulistana, evidenciando o vínculo com a cidade natal, o investigador anuncia: “Se a montanha não vem a Maomé, Bellini vai a Goiânia” (Bellotto, 2014, p. 19).

Em Bellini e o labirinto, o fascínio do jogo de espelhos estabelecido entre dois gêneros musicais influenciados pela cultura internacional passa pelo detalhamento de excessos – sexo, drogas – usualmente associados aos roqueiros até chegar ao ponto máximo que ilumina o título do livro. Longe de casa, desorientado e perseguido pelos homens que tentava perseguir, Bellini se vê perdido em um imenso canavial – na imaginação do autor, versão contemporânea do labirinto grego. Atingido por um tiro, o detetive caminha por horas até encontrar uma saída diretamente ligada à outra feliz decisão do autor, a de assombrar a sua trama realista com toques fantásticos imaginados a partir das consequências da contaminação de populares pela radiação do Césio 137, ocorrido na capital de Goiás em 1987. A decisão foi explicada por Bellotto na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo: “Foi a maior tragédia nuclear acontecida fora de uma usina atômica e, apesar de ter causado problemas de contaminação e afetar a saúde de diversas pessoas, tornou-se um assunto esquecido”.

Depois de escapar da morte no “âmago do canavial”, o investigador particular admite que a proximidade da morte, catalisado pelo estranhamento do ambiente, teve o efeito de mudança. A partir do episódio longe de casa, o urbano Bellini passa a carregar uma cicatriz interior. “De certa forma, aceitei que Goiânia vai fazer parte da minha vida para sempre. Não, não acredito que a terrível estadia no labirinto tenha me transformado num sentimental. Mas com o passar do tempo as coisas vão adquirindo outros significados, não tem jeito”, explica Bellini, antes de concluir de forma propositalmente ambígua: “Quando saí dali já era noite, e do crepúsculo só restava a escuridão. Caminhei ao seu encontro”.

Ponto alto na trajetória do personagem surgido pela primeira vez em Bellini e a esfinge (1995), Bellini e o labirinto sintetiza tipos de deslocamento que permeiam a produção contemporânea do romance policial. Mas também, como demonstra o trecho reproduzido no parágrafo anterior, exemplifica o principal objetivo dos autores ao investir em deslocamentos: a transformação decisiva de seus personagens. É o que faz o carioca Raphael Montes no romance Dias perfeitos, lançado no Brasil em 2014 e traduzido em diversos idiomas. A ação da história de “amor, sequestro e obsessão”, como o livro é apresentado na orelha, começa no Rio de Janeiro, passa por Teresópolis e chega a momento crucial em praia deserta na Ilha Grande. Lá, os protagonistas, Téo e Clarice, experimentam sentimentos extremos a partir de ações irreversíveis. “Sabia que era uma revelação que poucos experimentavam: amor em estado bruto; a essência da vida. Tudo se reordenava e ganhava sentido” (Montes, 2015, p. 205). Neste momento, Téo abraça Clarice: “Aquele era o momento mais importante da sua vida, ele tinha certeza”. Instantes depois, enterra uma faca nas costas da mulher. “Havia um contraste vibrante: o sangue que saía das costas de Clarice e o sono inabalável dela (…). A faca tremeu dentro da carne e ele teve a impressão que o corpo dela relaxou” (Montes, 2015, p. 207). A decisão do autor de isolar os personagens em lugar ermo, portanto, torna-se essencial para amplificar a radicalidade do ato, ainda mais com a exploração do contraste entre uma paisagem idílica e um acontecimento perturbador.

Mas há outro tipo de deslocamento que chama atenção e não está relacionado com fronteiras geográficas ou ações físicas. São as narrativas que, com habilidade, deslocam aspectos essenciais da trama para a psiquê de seus personagens. E, ao adotar tal procedimento, colocam sob suspeita os próprios fatos apresentados, quando confundidos com versões produzidas pelas imperfeições da memória. No Brasil, as armadilhas do passado são enfocadas de forma exemplar pelo escritor e psicanalista carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza no romance Um lugar perigoso. Em mais uma aventura do delegado Espinosa, um professor universitário se apresenta à polícia e faz declaração inusitada: está disposto a confessar um assassinato que não sabe se cometeu, “convencido que a imagem repetitiva do corpo desmembrado de uma mulher que lhe aflora à memória é o corpo de uma mulher morta por ele há cerca de dez anos” (Garcia-Roza, 2014, p. 96).

O professor de Um lugar perigoso é diagnosticado com uma doença neurológica, a Síndrome de Korsakov, capaz de causar amnésia e provocar consideráveis lapsos de memória. Na inspirada descrição de Garcia-Roza:

A memória do professor Vicente é como uma estrada malconservada, com grande quantidade de buracos, alguns capazes de engolir um carro, o que a torna perigosa e, em certos trechos, intransitável; o professor Vicente é o operário que, solitariamente e com uma máquina de asfalto já danificada pela própria estrada, preenche os buracos refazendo sua suposta continuidade. Não o vejo como um indivíduo perigoso, o que vejo como perigosa é a sua memória (Garcia-Roza, 2014, p. 184).

Os perigos escondidos no que ficou (ou deveria ter ficado) para trás também são um dos temas caros ao cubano Leonardo Padura Fuentes. Logo em Passado perfeito, primeiro volume da coleção As quatro estações, ele conduz o seu personagem, o policial Mario Conde, para uma trama que envolve personagens marcantes na adolescência do investigador. Mas não fica por aí: Padura Fuentes utiliza músicas conhecidas (Strawberry fields forever) como alavanca de lembranças, madeleines proustianas em formato de canções pop:

E agora a estava cantando outra vez e não sabia por quê: queria negar que aquela melodia era a bandeira de suas saudades de um passado onde tudo foi simples e perfeito, e, embora já soubesse o que a letra significava, preferia repeti-la sem consciência e sentir apenas que estava caminhando por aquele campo de framboesas que jamais tinha visto, mas que suas lembranças conheciam tão bem, somente ele e aquela música. “Strawberry fields” vinha sempre assim, sem se anunciar, e empurrava todo o resto (Fuentes, 2005, p. 82).

Em outro romance protagonizado por Mario Conde, O rabo da serpente, Leonardo Padura Fuentes explora o estranhamento que seu protagonista sente ao percorrer o bairro chinês de Havana durante a investigação do assassinato de um idoso oriental:

O mais doloroso seria comprovar como, ao fim daquelas jornadas intensas e suadas no Bairro, o chinês típico e exemplar que Conde fora capaz de conceber se transformaria na imagem de um ser repleto de cicatrizes abertas e de caráter insondável, como as águas profundas de um mar do qual emergissem velhas, mas ainda lancinantes, histórias de vingança, ambição, fidelidade e as borbulhas de inúmeros sonhos frustrados: quase tanto quanto os chineses que chegaram a Cuba (Fuentes, 2015, p. 12).

Em nota assinada pelo autor em 2011 e publicada em 2015 na edição brasileira de O rabo da serpente, Padura Fuentes conta que seu interesse pelo bairro chinês de Havana começou em 1987, quando trabalhava como jornalista e escreveu uma grande reportagem sobre o local. Depois da publicação, continuou fascinado pelos mistérios do bairro e “sua história de rupturas e fidelidades a certas tradições” (p. 158). Decidiu, então, promover mais um deslocamento: transportar para a ficção a sua visão realista da região.

A narrativa é ficcional, embora tenha um forte conteúdo de realidade. Aqui, por trás da aventura policial, está a história de um desenraizamento que sempre me comoveu: o dos chineses que vieram a Cuba (…). A solidão, o desprezo e o desenraizamento são, pois, os temas desta história que não ocorreu na realidade, mas poderia muito bem ter ocorrido (Fuentes, 2015, p. 158).

Mas é em A neblina do passado, lançado em 2005 e no Brasil em 2012, que Leonardo Padura Fuentes mergulha de cabeça no memorialismo para construir um romance que evoca mais claramente o tom proustiano no turbilhão de lembranças trazidas à tona depois que o investigador Mario Conde, agora afastado do cotidiano policial, entra em um dos cômodos de um casarão decadente:

Logo que se abriram as portas da biblioteca, ele foi invadido pelo cheiro de papel velho e recinto sagrado que pairava naquele cômodo alucinante, e Mario Conde, que nos seus distantes anos de investigador policial tinha aprendido a reconhecer os reflexos físicos de suas salvadoras premonições, teve de se perguntar se alguma vez havia sentido um tropel tão avassalador de emoções como o desse instante (Fuentes, 2012, p. 11).

Leonardo Padura Fuentes não se destaca apenas por ser um dos responsáveis pela inserção de Cuba no mapa-múndi da literatura policial. Também brilha ao trafegar com desenvoltura em outras estradas. Assim, tornou-se um dos exemplos contemporâneos representativos de escritores que escapam do confinamento do gênero.

Dotado da mesma capacidade de insurgência, ganhou projeção nas duas últimas décadas o norte-americano Dennis Lehane, autor de uma série de romances protagonizada por um casal de detetives (Patrick Kenzie e Angela Gennaro), mas também romances “independentes”, nos quais explora a diversidade de seu repertório, entre eles uma releitura do terror psicológico (Paciente 47, adaptado aos cinemas por Martin Scorsese e lançado em 2010 com o título Ilha do medo) e um caudaloso romance histórico (Naquele dia, ambientado em Boston, cidade natal do escritor, logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial).

Sobre o lugar a ser ocupado pela ficção de Dennis Lehane no mundo literário e o sucesso das adaptações cinematográficas dirigidas por gigantes como Clint Eastwood e Martin Scorsese, o escritor gaúcho Antônio Xerxenesky estabelece análise pertinente:

O fato de ele (Lehane) ser um escritor tão “adaptável” é um indicativo certeiro de que sua ficção não é muito experimental em termos narrativos, nem tão composta de ação interna (duas coisas que não são bem transferidas para o cinema). De fato, Lehane é um autor comportado. E se tornou um dos maiores nomes da ficção policial contemporânea e, em minha opinião, por um bom motivo: pela sua elegância. Dennis Lehane encarna um tipo de escritor que é simples, acessível e nem por isso simplório ou banal. No grande esquema de classificações hierárquicas e elitistas dos americanos, ele provavelmente seria categorizado como middlebrow. No Brasil, não temos uma palavra específica para este termo (Xerxenesky, 2012).

O próprio Lehane parece ter superado tal dicotomia como demonstrou em entrevista. Ele revelou que, fortemente influenciado por Raymond Carver, tentou escrever contos no início da carreira. “Mas eu estava fingindo. Eu não passava de uma imitação de Don DeLillo. Ele é um gênio. Eu era um imitador” (apud Kidd, 2011), reconhece, com franqueza. Encontrou o veio quando descobriu o que gostaria de explorar: utilizar as palavras para narrar, em nível dramático, histórias marcadas por dilemas irreconciliáveis. E, a respeito da série que criou protagonizada pelo casal Kenzie-Gennaro, Lehane comenta que enxergou com maior nitidez o seu caminho depois de devorar as obras de três escritores, “os três James”: Crumley, Ellroy, Lee Burke. “O que eles me disseram (nos seus livros) foi: ‘Não precisa ficar constrangido. Tudo o que nós fizemos foi pegar todas as questões que estão na ‘grande literatura’ e colocar dentro do gênero” (apud Kidd, 2011).

De fato, não parece fazer muito sentido condenar a produção de Lehane a rótulos como subliteratura quando o autor demonstra pleno domínio da técnica narrativa em passagens como a seguir, retirada de A entrega.

Havia duas fotografias da igreja no jornal, uma delas tirada recentemente, a outra cem anos atrás. O mesmo céu acima. Mas ninguém que estivera sob o primeiro céu ainda estava vivo no segundo. E talvez eles estivessem contentes de não se encontrar num mundo tão irreconhecível comparado àquele em que tinham vivido. Quando Bob era criança, sua paróquia era seu país. Tudo aquilo de que você necessitasse e precisasse saber estava contido nela. Agora que a arquidiocese tinha fechado metade das paróquias para pagar pelos crimes dos padres molestadores de crianças, Bob não podia escapar do fato de que o tempo da hegemonia das paróquias tinha acabado. Ele era aquele tipo de cara, de certa meia geração, uma quase geração – e embora ainda tivessem sobrado muitos deles, agora estavam mais velhos, mais grisalhos, tinham tosse de fumantes, iam fazer checkups e não voltavam mais (Lehane, 2015, p. 97).

Para Xerxenesky, as leituras de Naquele dia, de Lehane, e também dos livros de contos Amor e obstáculos, de Aleksandar Hemon, e Tudo destruído, tudo queimado, de Wells Tower, provocam indagação que surge acompanhada pela possibilidade de resposta: “Será que obras como a de Lehane, Hemon e Tower não representam uma espécie de vanguarda? Em dias caóticos, recuperar o prazer de narrar e buscar uma conexão sincera e direta com o leitor pode muito bem ser um dos caminhos da literatura do futuro” (Xerxenesky, 2012).

O escritor e tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes segue na mesma trilha do gaúcho Antônio Xerxenesky. Em entrevista para divulgação do romance O trovador, ao ser perguntado sobre a produção do gênero policial no Brasil, Garcia Lopes analisou o posicionamento do romance policial no Brasil e as múltiplas possibilidades inerentes ao gênero:

Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, o policial brasileiro ainda tem pouca tradição no nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica, ora considerado como subliteratura ou mera literatura de entretenimento. Acho que o gênero permite levantar importantes reflexões históricas, questões de identidade, moral, corrupção política, relações internacionais, colonialismo, propondo, ao mesmo tempo, uma reescrita da história (apud Portella, 2013).

No romance O trovador, Rodrigo Garcia Lopes demonstrou que é capaz de colocar em prática sua visão sobre o gênero. A partir de uma minuciosa pesquisa histórica sobre a colonização do norte do Paraná na década de 1930, o autor engendrou uma trama que também nasce de um deslocamento. O ponto de partida está na viagem de um tradutor britânico, Adam Blake, que desempenhará a função de detetive, depois de deixar a Inglaterra e chegar ao Brasil. Os sucessivos estranhamentos de Blake diante de uma realidade desconhecida são utilizados por Garcia Lopes para incrementar uma história pontuada pela inserção de personagens históricos e cenários reais, reconstituídos com impressionante riqueza de detalhes, como destacou na orelha o escritor Joca Reiners Terron: “O cenário importa tanto a esta trama quanto seus personagens”.

O viés histórico, utilizado tanto por Rodrigo Garcia Lopes em O trovador quanto pelo carioca Alberto Mussa no inovador e ensaístico A primeira história do mundo (2014), mostra que a pesquisa pode contribuir para a expansão e a renovação da literatura policial. Mas não necessariamente é preciso voltar ao passado para estabelecer diálogo com o público de hoje. Em tempos de narrativas fragmentadas e feéricas, as que são arquitetadas de forma sólida funcionam como antídoto, espécie de “porto seguro” destinado aos que tentam escapar de uma realidade tão estilhaçada. Por isso, de tempos em tempos, o romance que consegue capturar a atenção de leitores cansados de tanto imediatismo, de tantas “novidades”, tem como alicerce a estrutura narrativa policial. E nem é necessário trabalhar com personagens conhecidos para atingir tal status. Coincidência ou não, tanto Lehane (com o drama psicológico Sobre meninos e lobos) como Padura Fuentes (com o romance histórico O homem que amava os cachorros) não precisaram lançar mão de seus personagens mais famosos para atravessar as fronteiras do gênero e da geografia, alcançando repercussão mundial.

Nenhum deles, porém, ainda atingiu o patamar alcançado pelo italiano Umberto Eco com O nome da rosa, nos anos 1980. Quando perguntado sobre a surpreendente decisão de escrever um romance histórico com uma trama de mistério, Eco assim definiu o seu ímpeto, inesperado para um acadêmico já internacionalmente conhecido pela sofisticação de suas análises semióticas: “Eu queria envenenar um monge”. A imagem de um monge envenenado rondava a cabeça do intelectual desde os 16 anos, quando visitou um mosteiro beneditino, como descreve em Confissões de um jovem romancista:

Atravessei os claustros medievais e entrei numa biblioteca sombria onde me deparei com o Acta sanctorum aberto sobre um atril. Folheando o imenso volume em profundo silêncio, com alguns raios de luz filtrados pelos vitrais, devo ter sentido uma espécie de emoção. Aquela foi a imagem seminal. Mais de quarenta anos depois, esse sentimento emergiu de meu inconsciente (Eco, 2003, p. 20).

De certa forma, o sentimento que aflorou em Umberto Eco para escrever O nome da rosa responde ao chamado de Dostoiévski no seminal Crime e castigo, expresso no conselho de Porfiri Pietróvitch a Raskólhnikov durante o embate verbal do juiz de instrução com o universitário: “Deixe-se levar francamente pela corrente da vida, sem raciocinar, afugente as inquietações, que ela mesma o conduzirá diretamente à margem e o porá de pé novamente” (Dostoiévski, 2008, p. 497). E, aos autores contemporâneos de romances policiais, o mestre russo ainda deixou outro conselho nas páginas finais de Crime e castigo: “Já que passou a fronteira, não pense em retroceder”. Uma lição simples sobre a forma mais eficiente de enfrentar uma situação de avanço sem retorno. Tão irreversível quanto a morte.


* Carlos Marcelo é jornalista e escritor, formado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília. Autor dos livros Nicolas Behr – eu engoli brasília (2004, edição do autor), Renato Russo – O filho da revolução (Agir, 2009, terceira edição em 2015 pela Planeta), O fole roncou! Uma história do forró (Zahar, 2012, com Rosualdo Rodrigues) e do romance policial Presos no paraíso, com lançamento previsto para 2017.

 

Referências

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ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU E A RENOVAÇÃO DO CINEMA

Resumo: Partindo do princípio de que a evolução da narrativa cinematográfica é decorrente de uma constante barganha entre tradição e novidade, o artigo propõe o exame do entrelaçamento de duas estratégias que se destacam na renovação do cinema ficcional contemporâneo: ordenamento temporal não-linear e multiplicidade de narrações. Para tanto, foram analisados os quatro primeiros filmes de Alejandro González Iñárritu – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – utilizando método baseado em concepções cognitivistas neoformalistas propostas por David Bordwell, complementado por aportes do crítico da cultura Gilles Lipovetsky.

Palavras-chave: Narrativa fílmica; cinema contemporâneo; globalização.

Abstract: Assuming that the evolution of narrative film is the result of a continuous transaction between tradition and novelty, the article proposes the study of the combination of two strategies that stand out in the renewal of contemporary fiction cinema: non-linear temporal ordering and multiplicity of narrations. Therefore, the first films of Alejandro González Iñárritu were analyzed – Love’s a bitch (Amores perros, 2000), 21 grams (2003), Babel (2006) and Biutiful (2010) – using method based on neoformalist cognitive conceptions proposed by David Bordwell, complemented by contributions of the culture critic Gilles Lipovetsky.

Keywords: Film narrative; contemporary cinema; globalization.

 

<em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em </em>Amores brutos
El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em Amores brutos

O filme deve, cada vez mais, encontrar o seu público, e, acima de tudo, deve tentar, cada vez, uma síntese difícil do padrão e do original: o padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso, mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar.
Edgar Morin

O cinema é primordialmente uma arte voltada para grandes audiências e também uma manifestação cultural complexa. As produções exigem que os filmes tragam alguma novidade, um mínimo de individualidade, que dialoguem com as questões estéticas e morais de seu tempo, mesmo seguindo preceitos de algum gênero ou fórmula mercadológica. Em boa parte de sua manifestação contemporânea, o cinema se mostra alinhado às transformações do capitalismo, do consumo e dos meios de comunicação. A narrativa fílmica está sendo renovada sob forte influência das complexas mudanças político-econômicas suscitadas pela globalização, aliadas ao impacto da tecnologia digital. Uma concentração inédita de alterações significativas em todos os elos da cadeia produtiva – da produção ao consumo – dinamiza o audiovisual, provocando mudanças estéticas, inclusive, no modo de se narrar.

O processo de globalização proporcionou o contato direto entre diferentes culturas e o indireto, por meio da difusão de informações com o desenvolvimento dos meios de comunicação. Esses contatos, por sua vez, provocaram uma interpenetração cada vez mais ampla do imaginário de diferentes países. Se, por um lado, a interpenetração levou à homogeneização e americanização de produtos e culturas, por outro, tornou-se um importante vetor de afirmação da identidade cultural dos países para com o resto do mundo, independentemente do tamanho de suas economias. O embate dessas forças contrárias produziu uma variedade de produtos culturais cada vez mais mestiçados, transculturais e multiformes.

A breve e mutante história da sétima arte é marcada pela intensa mescla de escolhas estéticas que seguem o padrão com outras mais originais. Acompanhando essa tendência da área, realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao se combinarem algumas estratégias articulatórias utilizadas pelo cinema de vanguarda da modernidade com formas tradicionais do cinema clássico, na busca por narrativas envolventes que expressem a complexidade dos dias atuais. O resultado dessa combinação gera narrativas fílmicas que tendem a misturar convenções de gêneros ao contar histórias simultaneamente embaralhadas no tempo, provocando diluição do encadeamento causal e falta de distinção entre ações principais e secundárias. Filmes com essas características valorizam o sensorial e o emocional na construção das tramas e acabam por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão. No território de experimentação dos limites, cânones da narrativa clássica são subvertidos lançando mão de repertório de desconstrução da narrativa do cinema moderno, sem renunciar à comunicabilidade com um público amplo. Dessa forma, o cinema contemporâneo promove um de seus laboratórios de inovação mais dinâmicos no qual se destaca a obra do mexicano radicado nos Estados Unidos Alejandro González Iñárritu, laureado em dois anos consecutivos com o Oscar de Melhor Diretor, em 2016, por O regresso (The revenant), e, em 2015, por Birdman ou a inesperada virtude da ignorância (Birdman or the unexpected virtue of ignorance).

Em parte expressiva da cinematografia recente, a clara diferenciação entre a ação principal e as complementares foi estilhaçada em uma narrativa marcada por dispersão, descontinuidade e fragmentação dos padrões de narração. Uma das principais tendências dessa renovação combina, em sua elaboração, aspectos de multiplicidade e complexidade visando incrementar sua imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão das histórias apresentadas. Filmes que apresentam essas características foram enquadrados por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009) em uma tipologia denominada multiplex. Essa vertente do cinema é marcada pela incorporação de aspectos característicos da hipermídia[1], tais como: fragmentação, hibridização, não-linearidade, excesso de informação e alta velocidade dos fluxos de trocas.

Duas das estratégias mais recorrentemente adotadas pelo cinema multiplex reduzem a previsibilidade da narrativa por meio da associação de multiplicidade de narrações com ordenações temporais não-lineares. A combinação dessas duas estratégias no processo de renovação da linguagem do cinema provoca o afrouxamento da relação de causalidade entre as cenas. O espectador, ao percorrer o trajeto fragmentado e errático da trama, é demandado a fazer um esforço muito mais intenso para acompanhar a narrativa do que o exigido pelo cinema clássico, tendo que investir mais energia para interpretar os fragmentos espaço-temporais recebidos e ordená-los no processo de inferir a história. A coerência da narrativa é restabelecida pela utilização de elementos estruturantes, fios condutores, que viabilizam a legibilidade e a fruição do discurso audiovisual.

A proposta desse estudo é analisar um conjunto restrito, porém expressivo, de filmes ficcionais contemporâneos da indústria cinematográfica hegemônica que apresentem multiplicidade de narrações e não-linearidade, e que abordem questões relacionadas à globalização. Com base nesse critério, a escolha do corpus recaiu sobre alguns dos títulos de Alejandro González Iñárritu, tanto por suas características estéticas, bem como pelas temáticas abordadas. Seus quatro primeiros filmes – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – apresentam uma combinação singular das manipulações formais de instâncias da narrativa cinematográfica e tratam dos principais temas da globalização na sociedade contemporânea: movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização, presença da mídia e da tecnociência no cotidiano.

A reflexão proposta pretende examinar, na obra inicial de Iñárritu, variadas combinações entre estratégias de ordenação temporal não-linear e de multiplicidade de narrações, que são utilizadas pelo cinema ficcional contemporâneo para emular, em sua narrativa, aspectos de pluralidade e complexidade presentes na globalização. Os filmes do diretor apresentam multiplicidade em sua narração sob diversos aspectos – multiplot ou multitramas e multiprotagonismo. Esses filmes também apresentam formas distintas de organização temporal não-linear – episódica permeada; errática com ordenação emocional; cíclica com linearidade interna nos enredos e não-linearidade entre os múltiplos plots; e com flashforward estruturante.

A forma da organização discursiva da “trilogia da morte” de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se em um modo narrativo fílmico definido por David Bordwell (2008) como “narrativa de rede” (network narrative), no qual encontros acidentais ao acaso engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas, enredando uma teia complexa. Esse modo narrativo é uma marca do cinema transnacional atual.[2]

A análise dos filmes de Iñárritu objetiva integrar forma e conteúdo, abordar a narrativa principalmente como processo sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de David Bordwell (1985; 2005; 2006; 2008), complementada pela crítica da cultura aportada principalmente por Gilles Lipovetsky (2009). Em certos momentos, foi necessário investigar a narrativa como estrutura e destacar a função das partes na construção do todo. Paralelamente, a narrativa foi abordada como representação e a análise enfocou as conexões do mundo diegético da história com a realidade.

Entretanto, antes de um aprofundamento na análise dos filmes em foco, faz-se necessária uma reflexão sobre a utilização de estratégias de multiplicidade e não-linearidade na narrativa audiovisual contemporânea e seu impacto nos espectadores.

Multiplicidade de narrações, não-linearidade e engajamento do espectador

Um dos aspectos marcantes das transformações experimentadas pela narrativa contemporânea é o da multiplicidade que, segundo Italo Calvino (1997, p. 117-138), configura-se como um conjunto de “redes de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (Calvino, 1997, p. 121). Com muita propriedade, Arlindo Machado faz uma conexão sintética da acepção de Calvino com o universo audiovisual dos nossos tempos:

Se for possível reduzir a uma palavra o projeto estético e semiótico que está pressuposto em grande parte da produção audiovisual mais recente, podemos dizer que se trata de uma procura sem tréguas dessa multiplicidade que exprime o modo de conhecimento do homem contemporâneo. O mundo é visto e representado como uma trama de complexidade inextricável, em que cada instante está marcado pela presença simultânea de elementos os mais heterogêneos e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que torna mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas as operações (2008, p. 238).

A profusão de sons e imagens, acelerada em permanente fluxo de combinação e recombinação, dissolveu as fronteiras materiais e formais entre suportes e linguagens. Parte dessas figuras mutantes em movimento são, inclusive, reciclagens de material proveniente dos meios de comunicação de massa, cujas origens se perdem na composição desse tecido discursivo complexo. Trata-se de uma estética marcada pela saturação, pelo excesso, com máxima concentração de informação em um mínimo de espaço-tempo. Lipovetsky e Serroy (2009) defendem que a “imagem-movimento”[3] e a “imagem-tempo”,[4] propostas por Gilles Deleuze (1983; 2007), já não conseguem abarcar algumas das principais tendências do audiovisual contemporâneo e propõem acrescentar uma nova categoria: a “imagem-excesso”, que busca fazer o espectador balançar em um fluxo de imagens-sensação e que não enfatiza seu engajamento por meio de um encadeamento racional.

Se é possível falar de hipercinema é porque ele é o do nunca bastante e do nunca demais, do sempre mais de tudo: ritmo, sexo, violência, velocidade, busca de todos os extremos, e também na multiplicação dos planos, montagem-corte, prolongamento dos filmes e saturação da faixa sonora (Lipovetesky e Serroy, 2009, p. 67).

Os excessos estéticos do cinema contemporâneo relativizam um dos princípios fundantes da narrativa clássica que é o encadeamento de cenas em uma relação de causalidade. A justaposição das cenas de um filme orientada por princípio causal intervém na configuração das principais instâncias constitutivas da narrativa: o tempo, o espaço, as personagens e a narração. Em geral, o público está habituado com narrativas que têm uma construção linear e sente satisfação ao acompanhar o desenrolar progressivo das tramas. O espectador sente-se parte das histórias ao entender o que contam.

Quando um filme rompe a ordenação causal esperada e dificulta – ou mesmo impede – que a audiência usufrua da “hospitalidade” que essa experiência narrativa oferece, a tendência inicial é o estranhamento. Em uma parcela crescente de filmes recentes, a compreensão clara da história deixou de ser uma exigência e de significar eficiência narrativa. A disseminação em grande escala da cultura do divertimento do cinema de ação, com suas imagens-excesso e sua preponderância do sensorial-emocional sobre a intelecção, trouxe um estímulo involuntário às experimentações narrativas. Filmes com essas características cultivam no público uma sensibilidade receptiva a construções menos comprometidas em seguir o encadeamento causal. Abriram-se possibilidades de se testar outros padrões narrativos que procurassem levar o espectador a vibrar para além do que está sendo narrado, como assinalam Lipovetsky e Serroy, ao comentar o cenário atual do audiovisual: “Não mais a direção linear da narrativa, mas uma rede complexa e multicultural na qual as pessoas se perdem numa trama feita de flashes descontínuos e impressões sucessivas” (2009, p. 101).

Alguns realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao assimilarem estratégias narrativas avessas ao cinema clássico, tais como: minar o encadeamento causal, enevoar a distinção entre ações principais e secundárias, misturar as convenções dos gêneros, contar várias histórias simultaneamente embaralhadas no tempo e, mesmo assim, ser capaz de urdir uma narrativa envolvente e apta a expressar a complexidade da atualidade. Nessa exploração de possibilidades narrativas menos acomodadas às normas convencionais e mais ousadas na valorização de conexões sensoriais e emocionais, o cinema acaba por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão.

Duas das principais estratégias utilizadas para revigorar a narrativa cinematográfica estão associadas a duas instâncias: à narração, a maneira de contar a história com multiplicidade de enunciações; e ao tempo narrativo, a ordem dos acontecimentos da história apresentados pela trama. A multiplicidade faz-se presente nas narrativas contemporâneas por meio da narração de mais de uma história em um mesmo filme (multiplot) ou de histórias com vários personagens principais (multiprotagonistas), mas, também, por variações na ordenação temporal na trama. E chega-se a representações complexas da realidade por meio da combinação dessas pluralidades de narrações e multiplicidades temporais.

Vários diretores têm experimentado formas alternativas de combinar os tempos da trama e da história. Quentin Tarantino dinamizou bastante a relação entre o público e o filme quando concebeu uma noção de tempo não-linear em Pulp fiction – tempo de violência (Pulp fiction, 1994). Outros realizadores ousaram estruturar filmes na ordem cronológica inversa, em que a trama apresenta a fábula começando com seu último evento e segue na “contramão” da linha do tempo, até o encerramento com o seu primeiro acontecimento, como em Amnésia (Amnesia, Christopher Nolan, 2000) e Irreversível (Irreversible, Gaspar Noé, 2002). Iñárritu optou por exigir ainda mais do espectador quando montou 21 gramas (21 grams, 2003) com os eventos encadeados por um critério emocional de forma tão embaralhada no tempo que não se consegue detectar um padrão de ordenação das cenas.

Outra variação de ruptura da linearidade por meio de manipulação temporal é a utilização do flashforward, um salto repentino à frente. O flashforward também opera nas discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa. A antecipação tem caráter provocador ao “deixar-nos vislumbrar o desfecho antes de nós captarmos todas as cadeias causais que levam a ele” (Bordwell, 1985, p. 79, tradução nossa).[5] Dessa forma, suscita a curiosidade e engaja o público no esforço de relacionar o trecho antecipado com os outros eventos da trama e ordená-lo na busca do entendimento da fábula.

Recentemente, nota-se um aumento na utilização de flashforward logo na abertura dos filmes, apresentando, de início, uma cena marcante sem, contudo, explicá-la. Iñárritu abre Amores brutos com um flashforward da colisão de automóveis que é o entroncamento do filme, a única cena na qual os três protagonistas se encontram no mesmo tempo e espaço. Esse evento repete-se quatro vezes no filme, permitindo ao espectador elucidar as relações temporais das três tramas que compõem a narrativa.

A estratégia de ruptura da temporalidade e da causalidade linear por meio de uma antecipação (flashforward) possui efeito dinamizador da narrativa ao engajar o espectador no desafio de ordenar os acontecimentos para compreender a história. Na narrativa clássica do cinema, a aparição de um evento antes do seu lugar normal na cronologia, o flashforward, é bem menos comum do que o retorno ao passado, flashback.

Essencialmente, o flashback e o flashforward são igualmente constituídos por uma discrepância entre a ordem dos eventos na história e no enredo, mas desempenham funções diferentes, com impactos distintos na estrutura fílmica. O flashback, apesar de poder gerar suspense por meio do retardamento na realização de acontecimentos, tem basicamente a função de complementar informações sobre a intriga ou os personagens. Volta-se no tempo para oferecer uma nova leitura, explicar. Por sua vez, o flashforward desempenha a função de provocar a curiosidade do espectador. Projeta-se no futuro para suscitar questionamentos de como um personagem chegou àquela situação ou o que significam aquelas imagens que não fazem sentido. Portanto, o flashback e o flashforward têm funções quase opostas: enquanto um explica e responde, o outro questiona e provoca.

O flashback foi bem mais utilizado no cinema clássico e parte do moderno, por se tratar de uma estratégia narrativa que pode ser ancorada na subjetividade dos personagens. Dessa forma, conecta-se internamente na trama, mantendo o ilusionismo da onipresença e onisciência do espectador. Por outro lado, o flashforward é um recurso que explicita uma intervenção externa direta do autor na narração e, por isso mesmo, é mais utilizado no cinema de arte moderno e contemporâneo, os quais permitem, e até mesmo valorizam, a intrusão autoral para “esquentar” a interação do espectador com o filme em contraposição ao realismo buscado pelo cinema clássico.

Outras estratégias, bastante utilizadas nos últimos anos para incrementar a imprevisibilidade da narrativa, não atuam na instância temporal, mas na da narração. A que está mais em voga é a da multitrama, em que múltiplos enredos (multiplot) são abordados com o mesmo peso narrativo. Dessa forma, esses filmes contam duas, três ou mais histórias entrecruzando personagens com diferentes graus de ligação ou nenhuma conexão. O filme marco dessa tendência é Short cuts – Cenas da vida (Short Cuts, de Robert Altman, 1993), em que um grupo diversificado de moradores de Los Angeles se cruzam ao acaso. O mesmo diretor havia realizado um filme de estrutura similar quase 20 anos antes, Nashville (Nashville, Robert Altman, 1975). Entretanto, Nashville não teve o reconhecimento merecido na época do lançamento por ser um filme esteticamente à frente de seu tempo. Short cuts ganhou notoriedade por estar mais sincronizado com a percepção da sociedade no momento que surgiu.

A composição em mosaico dos filmes multiplot pode oferecer uma representação multifocal de uma rua, como em Magnólia (Magnolia, de Paul Anderson, 1999); de uma cidade,[6] a Cidade do México de Amores brutos de Iñárritu; ou de todo o planeta, como em Babel, também de Iñárritu. “São filmes que traduzem a fragmentação e as novas segmentações do mundo através da heterogeneização estrutural da narrativa” (Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 98). Alguns cineastas apresentaram seus filmes com múltiplas tramas de uma forma mais ousada dividindo a tela e projetando histórias diferentes simultaneamente, como em Time code (Time Code, Mike Figgis, 2010) que repartiu a tela em quatro para exibir suas quatro tramas.

Outra variação bastante interessante da estratégia de imprimir multiplicidade à narração é, ao invés de mostrar várias histórias simultâneas, apresentar apenas um enredo, só que, por diferentes pontos de vista de várias personagens principais com o mesmo peso narrativo, constituindo o multiprotagonismo. Foi como fez, por exemplo, Ang Lee ao revelar as relações afetivas entre pais e filhos de duas famílias vizinhas convivendo com o adultério em Tempestade de gelo (The ice storm, 1997). Iñárritu, em 21 gramas, também contemplou com o mesmo peso narrativo as três personagens envolvidas em uma história de vingança relacionada com um transplante de coração – o receptor do órgão, a viúva do doador e o responsável pela morte do doador.

Se elementos que sustentam a legibilidade da narrativa – encadeamento causal e ordenação temporal linear – são alterados, relativizados, ou tornam-se muito complexos, como acontece com a narrativa multiplex, faz-se necessário compensar de alguma forma essas lacunas e excessos para que o espectador continue acompanhando o fluxo do discurso audiovisual. Se não há mais um único protagonista para se acompanhar da crise à resolução da trama e a relação de causa e efeito entre as cenas ficou nebulosa ou mesmo desapareceu, outros recursos precisam ser aplicados para manter a unidade da narrativa. O primeiro desafio é conseguir estabelecer coerência, apesar do afrouxamento ou rompimento da causalidade. A solução estruturante mais utilizada é estabelecer fios condutores – os “fios de Ariadne” do labirinto da narrativa cinematográfica multiplex – que permitam ao espectador fazer conexões e orientar-se no trajeto da narrativa.[7]

Os fios condutores podem ter naturezas bem diferentes e origens em todas as instâncias constitutivas da narrativa. Um fio condutor pode estar relacionado com uma ação, ser um evento; pode estar ancorado no espaço, ser um lugar; ou pode ser deflagrado no tempo, pelo compartilhamento de um momento. A amarração pode se dar também pela combinação de fios condutores de naturezas distintas, ou, mesmo, constituído por elementos mais sutis. Exemplo já citado, Iñárritu usa a repetição de um acidente de carro como um dos principais fios condutores para orientar a fruição da narrativa em Amores brutos, permitindo que o espectador relacione o tempo das três tramas do filme.

David Bordwell destaca a relevância da repetição como princípio geral para garantir a inteligibilidade na experimentação em Hollywood: “quão mais complexo são os dispositivos, mais redundante a narrativa precisa ser”[8] (2006, p. 77-78). A repetição coloca-se como recurso indispensável no preenchimento das lacunas abertas pela flexibilização do encadeamento causal e oferece informações para que o espectador seja capaz de estabelecer as conexões necessárias para a compreensão das histórias dos filmes. A recorrência mais comum verificada é a de ações que revelam novos aspectos e perspectivas em cada reapresentação, facilitando o entendimento da narrativa como um todo. Também é usual o emprego de repetição de materiais narrativos de outra natureza, como os temas – solidão, incomunicabilidade, conflito de classes etc. – na amarração dos vários enredos. Além da repetição, outra força aglutinadora da narrativa multiplex é o magnetismo do paralelo entre as múltiplas tramas que estimula o espectador a, constantemente, buscar associações entre personagens, objetos, situações e ideias.

A relevância do exame minucioso da obra de Iñárritu não reside apenas na consistência com que articula algumas das estratégias narrativas mais inovadoras adotadas no cinema ficcional, mas também no fato de criar representações sobre aspectos cruciais da complexidade da sociedade atual. Em sua filmografia, destacam-se as influências do sistema econômico sobre as interações pessoais, como, por exemplo, o impacto das relações de trabalho globalizadas na existência de indivíduos comuns. Nesse sentido, visando integrar a maneira de se narrar com seu teor, a seção seguinte versa sobre o relacionamento entre forma e conteúdo nos filmes de Iñárritu.

<strong>Figura 1 –</strong> <em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em</em> Amores brutos.
Figura 1 – El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em Amores brutos.
<strong>Figura 2 –</strong> <em>Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em</em> Babel.
Figura 2 – Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em Babel.
<strong>Figura 3 –</strong> <em>Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de</em> Babel.
Figura 3 – Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de Babel.
<strong>Figura 4 –</strong> <em>Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme</em> Biutiful.
Figura 4 – Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme Biutiful.
<strong>Figura 5 –</strong> <em>Octavio quer fugir com a cunhada</em> <em>e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em</em> Amores brutos.
Figura 5 – Octavio quer fugir com a cunhada e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em Amores brutos.
<strong>Figura 6 –</strong> <em>Paul larga a mulher para viver</em> <em>paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em</em> 21 gramas.
Figura 6 – Paul larga a mulher para viver paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em 21 gramas.

Forma e conteúdo na obra de Iñárritu

O exame da primeira narrativa de rede do diretor, o multiplot e multiprotagonista Amores brutos (2000), destaca a força aglutinadora suscitada pela expectativa de que situações, ações e personagens tendam ao paralelismo entre elas, o que estimula o espectador a estabelecer conexões e preencher algumas lacunas deixadas pelo afrouxamento da causalidade no encadeamento da trama. Conforme verificou-se na análise da estrutura do filme, dividida em capítulos permeados, a coesão do paralelismo é dinamizada pela combinação tanto de estratégias narrativas que conformam a macroestrutura da trama, como outras que operam na microcomposição das cenas, compondo um arranjo em que seus efeitos se potencializam.

A investigação mostrou que abrir uma cena em plano de detalhe, assim como começar o filme com um flashforward, são estratégias narrativas provocadoras, que levantam perguntas, em vez de prover informações explicativas, incitando uma postura mais ativa da audiência. Essas duas estratégias também operam em consonância com a de postergar a apresentação das personagens principais, já que estimulam o espectador a fazer inferências, elaborar e testar hipóteses no esforço de apreender quem são os protagonistas e como se relacionam com as personagens secundárias. Tais estratégias formais são mais do que meros artifícios para prender a atenção do espectador, pois urdem uma teia narrativa coesa que revela um cenário urbano multifacetado marcado pelas experiências de personagens contraditórios, complexos, pertencentes a diversos extratos sociais.

Por sua vez, a estratégia narrativa radical adotada por Iñárritu na tessitura de seu segundo filme, 21 gramas (2003) – também multiprotagonista, mas com apenas um enredo –, rompe o encadeamento causal e temporal de um jeito tal que o espectador tem dificuldades em decifrar seu padrão de ordenação e adota a emoção como principal fio condutor de sua organização aparentemente aleatória. A evolução da trama tende a apresentar as consequências antes das causas das ações, gerando choques a cada corte de uma cena para outra, subvertendo as expectativas de relação de causa e efeito e continuidade entre ações consecutivas. As emoções das personagens, destacadas pela predominância de planos fechados com pouca profundidade de campo, reverberam uns nos outros por meio da montagem.

Com o objetivo de viabilizar a absorção da complexidade da estrutura de 21 gramas, o diretor lançou mão de recurso articulatório inédito em sua obra, a adoção de um narrador intradiegético. As reflexões de Paul (Sean Penn, figura 1) no leito de morte estabelecem o ponto de vista do fluxo de consciência que elucubra a história do filme, sem comprometer a imprevisibilidade da trama. Gradualmente, o espectador vai identificando se os eventos acontecem antes, durante ou depois do atropelamento, ponto de encontro causal e temporal da trama, como se fossem os devaneios de Paul semiconsciente, tal qual ele surge no início do filme. Durante a projeção do filme, a audiência vai acumulando e processando informações, compensando a falta de sentido imediata de seu encadeamento, e, ao final, consegue conformar seu sentido integral e fechado, suscitando uma reflexão sobre solidão, acaso, questões morais e, mais uma vez, o cruzamento de destinos aparentemente desencontrados. Iñárritu justificou a adoção dos sentimentos como principal fio condutor da ordenação aparentemente aleatória do filme, para evitar a previsibilidade e destrinchar o teor melodramático intrínseco ao argumento original do filme.

Após a travessia real da fronteira entre México e Estados Unidos para realizar 21 gramas, Iñárritu alça um voo ainda mais amplo para fechar sua trilogia da morte com Babel (2006), filmado em três continentes. A análise revelou que a ordenação temporal não-linear engendrada entre as quatro linhas narrativas do filme é abrandada pelo predomínio do encadeamento lógico e cronológico entre as sequências da mesma história. As transições entre os blocos de sequências das histórias do filme operam como “fronteiras” entre seus universos diegéticos com potencial tanto de separá-los por contraste como aproximá-los por intelecção e emoção.

As passagens entre as diferentes histórias acumulam amarrações. Constituem um jogo incessante que estimula o espectador na compreensão de um todo interligado. Além das estratégias macroestruturantes aplicadas na urdidura de Babel, a trilha sonora desempenha um papel articulador proeminente no filme, pelo ecletismo e radicalismo na combinação de seus elementos. A sonoridade do filme chama a atenção tanto pelo virtuosismo com que realiza pontes musicais adicionando novas camadas de sentido nas transições entre os blocos das histórias, como também pelo arrojo com que a edição de som estabelece trechos em silêncio absoluto, associados à percepção de uma personagem surda-muda, Chieko (Rinko Kikuche, figura 3).

Mesmo com sua narrativa puxando os limites convencionais do padrão mainstream, Babel estabelece seu diferencial como produto cultural e consagrou-se com uma grande bilheteria mundo afora. Apesar da abordagem de temas pouco usuais para filmes de grande circulação, como as assimetrias e tensões nas relações entre países ricos e pobres, o filme combina habilmente estratégias narrativas do cinema de arte com outras mais clássicas, que garantem a compreensão e o prazer de uma ampla audiência. Um exemplo claro dessa combinação entre o convencional e o alternativo está na configuração do elenco do filme, que escala as estrelas hollywoodianas Brad Pitt e Cate Blanchett, facilitando a receptividade do grande público, e compensando o estranhamento causado pela atribuição de papéis de destaque a atores não profissionais, principalmente no enredo marroquino.

Apesar da ruptura com o padrão de narrativas de rede anteriores, foi possível identificar na análise de Biutiful, único enredo com apenas um protagonista, o prosseguimento coerente do estilo autoral característico do diretor, tanto na utilização de estratégias formais, como em suas escolhas temáticas. No filme, a antecipação da derradeira cena como a primeira exibida pela trama repercute em toda a estrutura da narrativa. Solidão e morte seguem como motes proeminentes e a complexidade faz-se presente, por meio da ramificação e do entrelaçamento de linhas narrativas que tratam de relações familiares e de trabalho e do adensamento da construção e evolução das personagens. A diversidade comparece mais uma vez nas etnias, nacionalidades e línguas faladas em uma Barcelona marcada pelos impactos cruéis das relações de trabalho globalizadas em meio às interações afetivas entre nativos espanhóis e migrantes ilegais africanos e chineses.

O engenhoso atrelamento da capacidade do flashforward em antever lampejos do futuro com a característica mediúnica do protagonista possibilitou a abertura para a inclusão de imaginário surreal inédito no universo narrativo de Iñárritu, até então calcado exclusivamente no realismo. A fantasmagoria surge na representação dos espíritos dos mortos que o protagonista, Uxbal (Javier Barden, figura 4), é capaz de ver e o flerte com o surrealismo corporifica-se na inserção de mamilos nas nádegas de dançarinas de boate.

Além das estratégias narrativas específicas utilizadas na orquestração de cada filme descritas acima, notou-se a aplicação de alguns outros recursos articulatórios importantes permeando toda a filmografia estudada, entre os quais vale ressaltar o uso de repetições e de objetos circulantes. Ao analisar o emprego de objetos circulantes, observou-se que eles incrementam a dinâmica entre enredo e personagem. Em Amores brutos, o cachorro Cofi deixa de pertencer a Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) e passa para El Chivo (Emílio Echevarría, figura 1). O coração de Michael é transplantado para Paul em 21 gramas. O liame entre as histórias de Babel é fortalecido pelo trânsito circular de um rifle.

Outro recurso usado em todos os filmes de Iñárritu analisados foi o da repetição de variações de cenas, ações, imagens, frases e diálogos, que colaboram na sutura das fraturas temporais e causais comuns a suas tramas. O uso de repetições, também frequente na narrativa clássica, ganha destaque no cinema multiplex pela relevância das conexões que promovem ao assumir a função de indexador temporal e liame de causalidade. Algumas das repetições têm impacto marcante na organização da narrativa como as quatro apresentações da colisão de carros em Amores brutos, a repetição da cena do embate físico dos três protagonistas no motel em 21 gramas, a reprise do telefonema de Richard (Brad Pitt) quando liga do hospital de Casablanca para sua casa em Babel e a duplicidade da passagem de Uxbal da vida para a morte no início e no final de Biutiful.

Em seus quatro primeiros filmes, Iñárritu tece um painel nada apologético da globalização focado nas desventuras de famílias menos favorecidas, cujos membros se encarregam de trabalhos ilícitos ou informais, como o jovem Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) de Amores brutos, que encontra na rinha de cães possibilidades de ganhos financeiros significativos. No mesmo filme, El Chivo (figura 1), um ex-guerrilheiro revolucionário, tem como ocupação mais rentável assassinar por encomenda na megalópole Cidade do México. Em 21 gramas, Jack (Benicio Del Toro), um ex-presidiário latino, convertido e pregador, desestrutura-se ao matar acidentalmente um pai e duas filhas, perde a fé, afasta-se de sua família e retorna aos trabalhos forçados dos condenados. Imerso em uma África arcaica, uma criança pastora de cabras dá um tiro desatinado em uma turista americana, Susan (Cate Blanchett), deflagrando conexões em quatro países – Marrocos, Estados Unidos, México e Japão – em Babel. O incidente do disparo leva à extradição, dos Estados Unidos, de uma empregada doméstica mexicana, Amelia (Adriana Barraza, figura 2), por ter atravessado ilegalmente a fronteira com o México para assistir ao casamento de seu filho, levando consigo o casal de crianças de seus patrões americanos. Em Biutiful, o até bem-intencionado Uxbal (Javier Barden, figura 4) ganha seu sustento explorando africanos no comércio e intermediando trabalho escravo de chineses em Barcelona.

Apesar das similaridades na utilização de multiplicidade de protagonistas e enredos e manipulações temporais no conjunto de filmes em análise, cada um possui sua maneira específica de ser contado. Os três primeiros filmes de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) são estruturados em torno de um evento acidental, cujos efeitos se ramificam em direções diferentes ao tecer uma tapeçaria humana de vidas independentes, mas interligadas. Celestino Deleyto e María del Mar Azcona destacam que:

O acaso aleatório se caracteriza não apenas como um dispositivo deflagrador que faz vidas separadas afetarem umas às outras de formas inesperadas, mas também como um elemento temático importante que paira sobre os padrões da narrativa fragmentada dos filmes. Em vez de simplesmente um receptáculo para a história, a forma torna-se uma parte intrínseca dela (2010, p. 20, tradução nossa).[9]

A trilogia inicial de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se no modo narrativo definido por Bordwell (2006; 2008) como “narrativa de rede” (network narrative), que engloba filmes nos quais encontros acidentais de diferentes tipos, ao acaso, engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas conformando uma rede complexa de relações diretas e indiretas (2008, p. 189-250; 2006, p. 72-103). “Em todos os filmes de Iñárritu, essas conexões são estabelecidas por meio da violência, sugerindo como ela permeia a cultura humana, com ações descuidadas de uma pessoa impactando muitas outras” (Parshal, 2012, p. 73, tradução nossa.).[10] Intersecções ao acaso – acidentes de carro em Amores brutos e 21 gramas, e um tiro em Babel – possuem muita relevância na estruturação das tramas e evidenciam a proeminência da narração ao orquestrar manipulações temporais e variações na perspectiva das personagens. A narração dos filmes em análise enfatiza a centralidade do acaso na construção dessas narrativas de rede que se ambientam em grandes cidades como lugares privilegiados para enredar suas múltiplas tramas.

Iñárritu é o cineasta que imprimiu com mais consistência na tela diversos aspectos e impactos da globalização na sociedade. Babel apresenta um amplo mosaico que revela as ligações sociais, políticas, econômicas e afetivas da nossa “aldeia global” (Mcluhan; Fiore, 1968). Em sua textura rizomática, um tiro detona atrelamentos em três continentes – África, América e Ásia. Uma turista americana é alvejada acidentalmente por uma criança de Marrocos, com uma arma presenteada por um japonês, e tem seus filhos levados pela empregada mexicana a cruzar a fronteira entre os Estados Unidos e seu país natal.

Embora Babel seja o filme mais emblemático da presença da globalização na obra de Iñárritu, outros aspectos desse amplo fenômeno também estão presentes em todas as outras películas. O mundo cão dos bairros pobres da Cidade do México, onde vagam Octavio e El Chivo em Amores brutos, choca-se literalmente em uma batida de carros com o “mundinho” efêmero e descartável da moda e das celebridades midiáticas da modelo espanhola Valeria (Goya Toledo) e de seu amante Daniel (Álvaro Guerrero), editor de uma grande revista. O contraste entre o universo de pobreza e violência de dois dos três enredos do filme com um terceiro, marcado pela riqueza e frivolidade, espelha as desigualdades marcantes nos grandes centros urbanos globalizados, onde esses extremos interagem caoticamente. O acesso ao consumo de bens e serviços de luxo não garante a segurança dos afortunados que usufruem suas benesses, e tudo pode se perder a qualquer instante em um lance do acaso ou a intervenção de alguma ação criminosa.

Em Biutiful, Iñárritu aborda a problemática da ilegalidade do trabalho gerada pelos fluxos migratórios de populações em busca de melhores condições de vida na Europa. Seu personagem principal, Uxbal, um nativo espanhol, ganha o sustento intermediando o trabalho escravo de chineses e explorando africanos no comércio informal em Barcelona, Espanha. Nessa megalópole europeia, os contrários também convivem lado a lado, com trocas violentas como na Cidade do México de Amores brutos. Entretanto, em Biutiful, Iñárritu mostra que, apesar dos conflitos que existem entre os mais bem afortunados e os marginalizados do poder econômico, há uma interdependência cruel entre eles, uns precisam dos outros.

Por sua vez, 21 gramas urde uma imbricada trama de vingança na qual dois personagens em melhor posição na escala social – a viúva de classe média alta Cristina (Naomi Watts) e seu amante, o professor universitário (Sean Penn, figura 6) que vive com o coração transplantado do ex-marido de Cristina – unem-se para matar o pobre coitado Jack (Benício del Toro) que desgraçou a própria vida ao atropelar e matar as filhas e marido de Cristina. Essa história inusitada e saturada do excesso retórico do cinema mexicano tem como pano de fundo um tema muito valorizado na contemporaneidade globalizada: a interferência da tecnociência na existência humana. A trama mostra dilemas sobre a vida e a morte gerados pelas possibilidades intervencionistas da medicina atual. O filme explora, além do enredo de vingança, as consequências afetivas e questões morais e éticas relacionadas com o transplante de coração, a inseminação artificial e a postergação da morte por meio da medicina. O próprio título do filme não deixa de ser um irônico questionamento da capacidade da ciência na compreensão da existência.

<em>Valéria se envolve em acidente de trânsito em</em> Amores brutos
Valéria se envolve em acidente de trânsito em Amores brutos

Considerações finais

O estudo da narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu, sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de Bordwell, complementada pela crítica da cultura aportada por Lipovetsky, proporciona uma visão das vinculações existentes entre a experimentação estética desse cineasta e características da sociedade globalizada da primeira década do século XXI. As análises dos quatro primeiros filmes do diretor evidenciam que suas diversificadas combinações entre multiplicidade de narrações – multiplots e multiprotagonismo –, com distintas maneiras de ordenação não-linear do tempo, são capazes de enredar tramas hábeis na representação de questões pujantes da contemporaneidade.

Embora tenha realizado filmes de ampla circulação mundial, tanto em festivais como no circuito comercial, produzidos em diversos países e alicerçados em acordos com empresas midiáticas transnacionais, o diretor mexicano foi capaz de manter a independência autoral e a unidade artística da sua filmografia. Ao tratar de temas banalizados no cinema mainstream, como relações familiares, sexo e violência, oferecendo, porém, uma peculiar abordagem humanista marcada por sua identidade cultural original, o cinema multiplex de Iñárritu destaca-se no panorama mundial ao expor contrastes e conflitos universais de um mundo caótico interligado por fluxos de informações e pessoas.

O exame minucioso das narrativas dos filmes em questão aponta para a busca de uma harmonia entre forma e conteúdo, na qual questões políticas e sociais cruciais dos dias de hoje são tratadas com densidade sem, contudo, menosprezar a necessidade de encontrar maneiras criativas de contar histórias que despertem e renovem o interesse do espectador durante a fruição do filme. Visando aumentar a imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão dos filmes, Iñárritu explora as discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa, as diferenças entre a ordem em que os acontecimentos aparecem na trama (plot, syuzhet) e seu lugar na história (story, fabula). Para tanto, embaralha o tempo dos eventos, fazendo com que a narrativa evolua em ramificações e círculos com conexões inesperadas.

Portanto, Iñárritu promove um diálogo fecundo entre inovação e tradição no cinema contemporâneo, ao combinar aspectos formais de multiplicidade e complexidade, com alguns traços proeminentes do tempo no qual vivemos, tais como fragmentação e hibridização. Ao abordar criticamente temáticas envolvendo movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização e presença da mídia e da tecnociência no cotidiano, o diretor tece narrativas nas quais a clara diferenciação da ação principal das complementares é estilhaçada e embaralhada de maneira instigante. O que se vê na tela é uma mistura de padrões de narração convencionais com outros mais experimentais, alguns oriundos de movimentos cinematográficos vanguardistas da modernidade, sem perder a comunicabilidade com um público amplo.


* Mauro Giuntini é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e cineasta. Defendeu a tese de doutorado “A narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu” no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB (2015). Mestre em Cinema e Vídeo (MFA) pela School of The Art Institute of Chicago (1994), leciona disciplinas de audiovisual há 20 anos. Realizador audiovisual desde a década de 1980, dirigiu os filmes ficcionais de longa-metragem Simples mortais (2007) e Até que a casa caia (2015).

 

Referências

BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985.

BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea de cinema: volume 2 – documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac, 2005, p. 227-301.

BORDWELL, David. Poetics of cinema. New York: Routledge, 2008.

BORDWELL, David. The way Hollywood tells it: story and style in modern movies. Berkley: University of California Press, 2006.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 3ª ed., 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento: cinema I. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo: cinema II. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DELEYTO, Celestino; AZCONA, María del Mar. Alejandro González Iñárritu: contemporary film directors. Illinois: University of Illinois Press, 2010.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. 5ª ed. Campinas-SP: Papirus, 2008.

PARSHAL, Peter. Altman and after: multiple narratives in film. Plymouth: The Scarecrow Press, 2012.

 

Notas

[1] A hipermídia é um sistema de registro e exibição de informações informatizadas por meio da interatividade ramificada (estrutura de galhos de árvore), que permite acesso aos materiais que o constituem – textos, imagens estáticas ou em movimento, sons, softwares etc. – a partir de hiperlinks que acionam outros documentos e assim sucessivamente. A rede mundial de computadores (World Wide Web) é uma das implementações mais populares de hipermídia. Um caso particular de hipermídia, o hipertexto usa apenas um tipo de mídia, texto com interatividade e hiperlinks que conduzem a outros dados.

[2] Em seu livro Poetics of cinema, Bordwell (2008, p. 245-250) apresenta uma extensa lista com filmes dos cinco continentes lançados até meados de 2007 que seriam narrativas de rede. A lista contém filmes dirigidos por cineastas famosos como Michael Haneke, Amos Gitai, Wong-Kar-wai, Krzysztof Kieslowski, Hou Hsiao-hsien, Alain Resnais, Rodrigo Garcia, Claude Lelouche, Otar Iosseliani, Atom Egoyan, entre tantos outros.

[3] Quando surgiu o cinema, a qualidade que diferenciava sua imagem das demais era o movimento. Gilles Deleuze (1983) considerou a imagem-movimento uma das duas grandes modalidades de cinema e distinguiu suas variações no cinema clássico.

[4]Termo proposto por Gilles Deleuze (2007) para designar a imagem do cinema pós-guerra, principalmente as relacionadas ao neorrealismo italiano e à nouvelle vague francesa, marcada por uma “ruptura dos vínculos sensório-motores”, desvinculando o tempo da noção de movimento do cinema clássico.

[5] No original: “it lets us glimpse the outcome before we have grasped all the causal chains that lead up to it (Bordwell, 1985, p. 79).

[6] Os exemplos são muitos: temos Los Angeles, em Crash – No limite (Crash, Paul Haggis, 2005), ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2005; Londres, em Wonderland (Michael Winterbotton, 1999); e até mesmo Brasília, em Simples mortais (Mauro Giuntini, 2007).

[7] Apesar de não ter sido formulada como conceito teórico, essa noção de “fios condutores” é lançada por Ken Dancyger (2003). O autor afirma que “a carreira de assassinatos de Mickey e Mallory é o fio condutor de Assassinos por natureza (Natural born killers, Oliver Stone, 1994); a batalha de Guadalcanal é o fio condutor de Além da linha vermelha (The thin red line, Terrence Malick, 1998); a crise de identidade é o fio condutor de Pulp fictiontempo de violência (1994)” (Dancyger, 2003, p. 420).

[8] No original: “The more complex the devices, the more redundant the storytelling needs to be” (Bordwell, 2006, 77-78).

[9]  No original: “Random chance features in them not only as a triggering device that makes separate lives affect one another in unexpected ways but as a major thematic element looming over the film’s fragmented narrative patern. Rather than simply a vessel for the story, the form becomes an intrinsic part of it” (Deleyto; Azcona, 2010, p. 20).

[10] No original: In all Iñárritu’s films this connection is established through violence, suggesting how it permeates human culture, with careless actions by one person impacting many others(Parshal, 2012, p. 73).

COREOGRAFIA DA ADORAÇÃO: O GESTO TEOPOÉTICO EM MALICK

Resumo: Percorrendo um caminho fenomenológico do devaneio sob a tutela de Bachelard, este artigo pretende tratar o sistema gestual encontrado nos filmes do diretor norte-americano Terrence Malick por um prisma teopoético. Embasados nos conceitos de gestus de Brecht e suas problematizações deleuzianas, notamos que a excêntrica metodologia de Malick para capturar imagens revela uma tentativa de ligar-se ao divino, criando um discurso próprio por meio de elementos fílmicos como o gesto.

Palavras-chave: gesto; teopoética; cinema; Terrence Malick.

Abstract: Throughout a phenomenological path of rêverie, under the blessing of Bachelard studies, this article intends to deal with the gestural system found on american filmmaker Terrence Malick’s films, through a theopoetic prism. Grounded on Becht’s concept of gestus and Deleuze’s problematizations, we notice that Malick’s eccentric methodology of image capturing reveals an attempt of connecting to the divine, creating a specific form of speech using film elements such as the gesture.

Keywords: gesture; theopoetics; film; Terrence Malick.

 

<em>Gestual de </em>O novo mundo<em> compreende toque, carinho e </em><em>romance entre Capitão Smith e Pocahontas</em>
Gestual de O novo mundo compreende toque, carinho e romance entre Capitão Smith e Pocahontas

A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de sensações que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior.
Roland Barthes

A experiência do cinema, em si, é transcendental. A tela metamorfoseia-se em um compêndio de sensações, emoções e sentidos com possibilidades infinitas de destacar seu espectador para um plano virtual, imaginário ou espiritual – uma outra dimensão. Naturalmente, este é um atributo da arte de maneira geral. Destacamos o cinema, pois é nosso interesse maior para fins de observação. O cinema peculiar de Terrence Malick, diretor norte-americano que assina obras como Além da linha vermelha (1998) e A árvore da vida (2011), não disfarça seu aspecto transcendental – aqui já utilizando o termo na sua ordem escolástica. Filósofo existencialista, tradutor de Heidegger, os filmes de Malick têm sido um grande campo de estudos que aproxima filosofia e cinema. De outro lado, eles também inspiram reflexões que passam pela ordem do espiritual, ao absorver temáticas que envolvem o sagrado, a devoção e a sacralidade. Esse segundo aspecto está imbuído de pistas que podemos encontrar com certa homogeneidade por todos os seis longas-metragens do diretor lançados comercialmente até 2014[1].

Dentre os recursos estilísticos do cineasta, encontramos o uso recorrente da voz over (ou em off), a música erudita sacra, a câmera flutuante, as paisagens naturais e, claro, a performance dos seus atores. Aqui, pretendemos nos deter em um sistema gestual do qual os personagens de Malick estão imbuídos. Mais do que a expressão de cada ator para viver cada personagem, o gesto nos filmes de Malick carrega uma elevação, um discurso que envolve a relação com o divino. Percebemos esta construção como teopoética.

Rapidamente, antes de chegarmos à teopoética, nos cabe visitar algumas questões ligadas a espiritualidade e religião. Criaturas vivas que somos, animadas (dotadas de alma), carregamos a tríade emoção-razão-linguagem em nós – se não, como prefere Carl Jung, somos por ela carregados.

A espiritualidade não é algo que possuímos, que está em nós, mas ao contrário, nós é que estamos nela, ela é que nos possui com seu poder, sua força (Jung, 2011, p. 48).

Bachelard, ao analisar os escritos de Balzac, nos inspira a realizar correspondências entre o céu e a terra, sendo este tema “elemento fundamental da cosmologia balzaquiana” (Bachelard, 1990, p. 104). Tomamos emprestadas as relações da filosofia bachelardiana acerca da verticalidade encontrada no lirismo de Balzac para compreender a união entre o natural e o espiritual nos filmes de Malick. Quanto à religião, diante dessa evidência do transcendente, ela cumpre um papel mediador.

Religare é a palavra latina que origina o termo religião. Se se consegue a instância dessa religação, talvez se atinja o patamar mais complexo da relação entre o homem e a transcendência. Atinge-se a potência mais radical, o universo dos “impossíveis”, alcançados até hoje somente pelos místicos ou pela fantasia (Castro, 2013, p. 22).

Assim, nos cabe encontrar uma cosmologia que não só revele seu weltanschauung[2], conferindo-lhe reflexão baseada nos símbolos recorrentes no cinema do elusivo cineasta Terrence Malick e em como seu peculiar processo de construção da imagem corrobora o processo de análise da poesia no cinema, mas também pressuponha um impasse ao colocar o discurso sob uma ótica teológica. Como anteviu São Tomás de Aquino, no relato do dominicano Pie Duployé em sua tese de doutoramento (Estraburgo, 1964), a imagem pode ter valor fundamental para a compreensão do poético:

As realidades poéticas não podem ser compreendidas pela razão por causa de uma deficiência de verdade que está nelas; as realidades divinas não podem ser compreendidas pela razão por causa de sua superabundante verdade. Realidades poéticas e realidades divinas, por razões opostas, são obrigadas a apelar para imagens. A relação que a teologia mantém com as imagens e a literatura de uma época define exatamente a relação que a teologia mantém com a cultura dessa época. Uma teologia sem imagens é uma teologia sem cultura.[3]

A teopoética permeia tanto as relações intersemióticas e interdisciplinares do campo científico, como fornece elementos problematizadores para o entendimento de uma teocentricidade na arte. O termo tem origem na academia americana. Mais precisamente, teria sido usado pela primeira vez em um discurso do poeta Stanley Romaine Hopper em 1971, na Society for the Arts, Religion and Contemporary Culture (Pennsylvania). Hopper também usaria o conceito de teomitologia, tendo principal interesse encontrar traços da religiosidade na literatura secular.[4] Algo que o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel levaria ao limite, partindo da seguinte reflexão de Kurt Marti: “Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição”[5]. Em sua pesquisa, Kuschel investiga os aspectos do discurso sobre divino e moral religiosa na literatura alemã contemporânea, passando por obras de Thomas Mann, Hermann Hesse e Franz Kafka, com sua inescrutabilidade do mundo.

Introduzimos, portanto, Deus. Esse elemento será recorrentemente referido ao longo das próximas páginas. No entanto, buscamos tratar a este nome (Deus) e também ao Diabo com um cuidado especial. Não há intenção de se colocar o registro deste theos como forma de compreender uma verdade absoluta. Ao nos referirmos a Deus, buscamos um sentido poético (ou teopoético) partindo de uma lógica que não consegue compreender toda a complexidade da manifestação do ser transcendental nas diversas culturas e matrizes religiosas. Vamos nos ater à específica tradição judaico-cristã. E esta escolha se deve tanto a um interesse particular na poética bíblica (que envolve desde a Torah judaica às cartas paulinas cristocentradas), quanto às sugestivas temáticas do cinema de Malick. Eis uma forma sucinta de explicarmos essa ideia:

Deus está no vento: vem, vai, não pode ser colocado em jaulas de papel ou de palavras (…) Depois que vai, a única coisa que resta é a memória de seu toque sobre minha pele. Eu só posso falar sobre isto: reverberações no meu corpo, assim que é tocado pelo vento; às vezes um frio, outras uma sensação de calor, arrepios… Não teologia. Poesia. Se você preferir – teo-poética (Alves, 1991, p. 161).

Não estamos, portanto, buscando a Deus ou à sua natureza inspirada ou baseada nas concepções judaico-cristãs. Afinal, a ausência de uma teopoética engajada, defende Wilder, resvalaria em um encorajamento de pietismo evangélico ou de liberalismo inefetivo. Para Wilder, a teopoética surge como um termo discreto para se referir a um tipo de linguagem religiosa. E é isso que procuramos.

Teopoética é uma ativa e substancial perspectiva que gera uma linguagem capaz de revelar parte da natureza do divino neste mundo, facilitando enxergar as qualidades do divino no dia a dia. Não é prescritivo e não presume enjaular a totalidade da natureza de Deus (Keefe-Perry, 2009, p. 590, tradução nossa[6]).

De certa forma, no entanto, por um processo menos didático e mais onírico – para nos reaproximarmos de Bachelard –, propomos aqui fazer o mesmo com o conjunto fílmico de Malick, em conversas generalizantes com outras obras carregadas de elementos que permitem uma universalização da aplicação do conceito de teopoética no cinema.

Recorramos ao complexo de Jonas. Com a finalidade de propor um devaneio sobre a profundidade, trazemos esse conceito recorrente na psicologia contemporânea e nos manuais de autoajuda, mas a partir do pensamento de Bachelard. Embora haja um fator fortemente psicologizante – inclusive no ensaio de Bachelard –, aqui propomos partir da formulação das imagens reveladas pelo princípio de Jonas, o profeta bíblico engolido por um peixe. Com efeito, propõe Bachelard que “um complexo é sempre a articulação de uma ambivalência. Em torno de um complexo, a alegria e a dor estão sempre prontas a trocar seu ardor” (Bachelard, 1990, p. 174). O Jonas de dentro do ventre do grande peixe sintetiza a sensação do cós de uma caverna ou do subterrâneo do mar. Quando nesta posição de afundamento absoluto, escuridão total e de paredes opressoras (do ventre, da rocha, das águas), impõe-se uma morte inevitável. O ventre é como um sarcófago, de onde não há saída. É a “visão de um abismo antropófago” (Bachelard, 1990, p. 129). No entanto, o ventre propõe, em sua imagem, uma dialética fundamental: sintetiza o espaço de segurança, conforto, abrigo, energia e felicidade do feto. Há, portanto, dois ventres: aquele de onde saímos e o outro, para o qual voltamos. Infância e morte. “O ventre é para a humanidade um peso terrível; rompe a todo instante o equilíbrio entre a alma e o corpo” (Hugo apud Bachelard, 1990, p. 129). Buscamos aqui investigar esse movimento de alma e corpo gerado no ventre. Um retorno ao âmago, à profundidade. Do arquétipo de Jonas, não interessa aqui o devaneio sobre a gula – o processo de se engolir sem mastigar –, mas as imagens que nos permitem o vislumbre da expressão mais primitiva da natureza: o gesto.

Com o gesto, não conseguiremos avançar sem antes recorrer à noção de gestus, cunhada por Brecht. O dramaturgo alemão elevou o gestus à condição de essência do teatro. O gestus seria uma atitude, diferente da teatralidade, embora se dê diretamente por meio desse conteúdo de significações corporais às quais Barthes se refere na epígrafe deste capítulo. Embora para Brecht o gestus configure uma qualidade social e política, Deleuze observará que não lhe são negadas outras possibilidades, uma vez que pode ser bio-vital, metafísico, estético e, por que não, teopoético, como havemos de sugerir.

O que chamamos de gestus é o vínculo ou o enlace das atitudes entre si, a coordenação de umas com as outras, mas isso só na medida em que não depende de uma história prévia, de uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo contrário, o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias (Deleuze, 2010, p. 230-231).

Esse enlace surgiria em consequência de uma teatralização, de um efeito dramático. É o que Deleuze aponta quando utiliza o exemplo de Cassavetes para mostrar que a relação dos personagens ou a construção deles próprios não deve surgir da intriga. Antes, a história nasceria por meio delas, em uma exigência de um “cinema de corpos” (p. 230-231). O resultado final seria o espetáculo, ou uma dramatização que abarca toda a intriga. Neste cinema de corpos, busca-se a cerimônia, o aspecto litúrgico e sensível da experiência fílmica. Trata de um escapismo à mera narratologia; não intenta encontrar-se, mas prioriza o ensaio. Terra de ninguém e Dias de paraíso, dentre os filmes de Terrence Malick, apresentam elementos que os levam a uma compreensão narrativa. Seus encontros apontam para um ritmo que, a partir de Além da linha vermelha, virá a se consolidar experimentando a linguagem corporal antes de enquadrá-lo em determinada estrutura dramática. Voltamos ao “impoder do pensamento”[7], à incomunicabilidade que confere ao corpo um novo sentido, uma “imagem-cristal” (Deleuze, 2010, p. 228), fenômeno que se referencia ao que se dá a ver e sobre o que se transforma diante da luz. Contudo, a cerimônia final à qual o espectador de Malick está submetido passa ainda pela teatralidade que, para Barthes, seria um estado de suspensão ou mesmo de divagação e contradição.

Barthes busca impor o modelo do distanciamento brechtiano. O “teatro múltiplo” de Brecht é aquele que mostra, que cita e repete, é o teatro que recorta os gestos, compõe as figuras, interrompe as narrativas, é o teatro que não visa a exprimir o sentido, mas a transformar o real. É o teatro do gestus (Bident, 2012, p. 64).

<em>Mrs. O'Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em</em> A árvore da vida
Mrs. O’Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em A árvore da vida

Do gestus ao gesto teopoético

Definir um gestus como teopoético requer que voltemos mais uma vez a alguns fundamentos da teopoética para, em seguida, relacioná-los às evidências que coletamos da experiência do cinema de Malick. Primeiramente, voltemos a confrontar a religião. No cinema de Malick, há evidências claras sobre a influência da cultura judaico-cristã (desde as figuras dos padres às citações bíblicas ou à construção dos personagens invariavelmente onustos de culpa e aspectos morais). Mas Malick não se posiciona ingenuamente diante dos preceitos eclesiásticos. Há uma dubiedade salutar: a longa sequência da formação do mundo em A árvore da vida recebeu leituras por parte da crítica como uma representação criacionista; teólogos, como Leithart (a quem recorremos algumas vezes), afirma se tratar de uma abordagem evolucionista. Os dinossauros representam o grande objeto de impasse para se definir a que matriz pertence a abordagem de Malick. Afinal, embora os gigantes pré-históricos representem um sinal de evolução na história biológica da Terra, as mais liberais correntes científicas que versam sobre a criação admitem haver um processo evolutivo – incluindo o entendimento de que, antes de sua extinção, os dinossauros deixaram um legado genético que perdura até hoje. “As diferenças são de ordem filosófica”, disse-nos Ruy Carlos de Camargo Vieira, presidente da Sociedade Criacionista de Brasília, durante visita realizada em junho de 2014 às dependências do instituto. Kuschel irá nos lembrar de que os escritores – tomamos a liberdade de abranger os diretores de cinema, devido à semelhança da finalidade do ofício desempenhado, de se contar histórias por meio de arte e linguagem – refletem a complexidade do mundo moderno em suas obras.

Escritores são habitantes de diversos mundos (…) Há muito tempo esse mundo deixou de estar estruturado de forma monolítica: ele é constituído pela concomitância de coisas contraditórias, pela simultaneidade do que antes parecia pertencer a campos diversos da realidade. Daí resultaram amálgamas espirituais novos e desenvolveram-se novas fusões culturais – especialmente no que diz respeito à religião (Kuschel, 1999, p. 215).

Encontramos com frequência nos filmes de Malick esse impulso original derivado das contradições em ambivalência e que, com efeito, envolvem a melancolia formadora e o assombro do porvir. A começar pela própria câmera flutuante da qual falamos; ela propõe um gestual próprio dinamizado por sua potências verticais de voo e de queda. A natureza também nunca está passiva. As águas que correm, os ventos que sacodem as folhas das árvores, o fogo que consome, a vida incidental de aves, cães, insetos recortando diálogos ou as imagens da dura narrativa. Assim vamos buscando imaginar como Terrence Malick cria seus isomorfismos. O mise-en-scène de Malick é construído pacientemente, por meio de uma artesania que respeita os caprichos da natureza e reflete toda essa harmonia e contradição de ordem espiritual, onde começamos a reconhecer os fenômenos dos instantes de Malick, os polos ambivalentes que quase se tocam (Bachelard, 1994, p. 187).

John Toll, diretor de fotografia de Além da linha vermelha, dirá na história oral biográfica do cineasta que “por ser um filme de Terrence Malick, muita gente simplesmente já supõe que todo mundo fica sentado esperando a hora mágica” (Maher Jr., 2014, p. 118, tradução nossa). São horas a fio nas locações, com toda a equipe técnica e atores submetidos a uma espera e a um ensaio natural do convívio dos atores-personagens entre si, como se a própria natureza ou estado de espírito devessem pautar a forma dos acontecimentos quando a câmera for ligada. Jonas está à deriva e espera-se o peixe que irá devorá-lo, para então seguir com a história. O que percebemos é que o interesse de Malick está na qualidade gestual que pretende extrair de seus atores (e de seus diretores de fotografia). O desafio é naturalizá-los. Em Além da linha vermelha, O novo mundo e A árvore da vida, ocasiões em que Malick filmou longas sequências protagonizadas por crianças, Maher Jr. contará que a ordem do diretor era de que a meninada atuasse em looping, interagindo com os adereços de cena, com o solo, com o espaço e entre si sem se importar com o “corte”, como relata Jack Fisk, seu designer de produção em todos esses filmes citados e nos dois seguintes (incluindo Cavaleiro de Copas, 2016).

Terry, como diretor, está sempre aberto e alerta às coisas que estão ao seu redor. Às vezes ele está filmando, um pássaro interessante voa e ele começa a subir em uma árvore e apontar as câmeras em sua direção. Ou então nós elencamos cachorros para o filme e ele os deixa brincando lá fora e os filma longamente, com as crianças interagindo. Algumas vezes são apenas brincadeiras sobre a grama. Para Terry, é um importante simbolismo da vida (Maher Jr., 2014, p. 163, tradução nossa[8]).

Conseguimos, por meio dos relatos e da observação dos filmes de Malick, identificar quatro categorias nas quais se adota um sistema gestual que tanto se repete de filme a filme, como teatraliza essa jornada transcendente que reconhecemos como teopoética. Típicos do cinema do diretor, os momentos de brincadeiras lúdicas. Em todos os filmes, Malick propõe uma infantilização do amor teatralizadada por meio de cenas que não servem a determinado propósito narrativo. São momentos de suavidade ou de distração que cumprem uma função estilística ao remeter à ideia apocalíptica da Nova Jerusalém. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos. Já não haverá morte. Não haverá mais luto, nem clamor, nem sofrimento, pois o mundo antigo desapareceu” (Bíblia, Apocalipse 21:4). Em Terra de ninguém, Kit (Sheen) e Holly (Spacek) se desligam do mundo opressor e da culpa irremediável em seus momentos de dança. No acampamento improvisado em meio à mata, eles colocam o rádio de pilha para dançarem (uma leitura também da urbanidade que carregam consigo); em meio à escapada para as terras más de Montana, a aflição da fuga não lhes cerceia uma valsa debaixo da noite que se impõe.

Mas é em Dias de paraíso que Malick inaugurará os momentos de brincadeira.  Linda (Linda Manz) faz uma amizade com outra garota em meio aos campos de trigo. Elas se divertem capturando gafanhotos. Logo Bill (Gere) entra no jogo, escapando de Linda, correndo e rindo. Linda e Abby (Adams) correm atrás do pavões. Mais uma vez Malick recorre aos encantos do gesto de dança. Em um momento na floresta, Abby imita as garotas de Baker Hall para o Fazendeiro (Shepard), que a observa sentado em um tronco. Sob uma casinha de madeira em meio ao campo, durante uma refeição, Bill lança pedaços de comida em Linda. Ela sai correndo e ele a persegue dando corda à brincadeira. Além da linha vermelha resumirá esses momentos lúdicos à relação de Private Witt (Caviezel) com as crianças nativas da ilha de Guadalcanal, embora ele muitas vezes apenas as observe, como se ele não pertencesse (ou merecesse) estar ali. Smith (Farrell), em O novo mundo, assume postura semelhante. Ele não brinca, também, de certa forma, lhe é negada a Nova Jerusalém. Ele observa Pocahontas (Kilcher). Acompanhamos por uma câmera gravitacional subjetiva a corrida saltitante da bela índia sobre a relva verde. Deitado sobre o chão, Smith tenta pegar os pés de Pocahontas. Ela se desvia. Anda sobre um tronco deitado e joga folhas sobre Smith. Ele sorri. Apenas John Rolde (Christian Bale), o outro homem branco a se apaixonar por Pocahontas, consegue compartilhar das brincadeiras de Pocahontas. Ao arar a terra para a plantação, ele a levanta e a carrega. Em seguida joga seus cabelos para trás, enquanto mastiga um talo da grama. Ao final, Pocahontas se reconecta com a natureza, embora paramentada com um pomposo vestido vitoriano, diverte-se ao se molhar com a água do lago, corre pela grama, rodopia.

Os gestos de inflexão como contração, como ato de estar fora de si mesmo se reproduzem eletrificados pelos jump cuts, que como curtos-circuitos, focam uma lógica intelectual com conexão emocional com uma aura que lembra a infância. A infância como proclamação de pura alegria, representada em gestos infantis, miríades, danças e fogos de artifício explodindo, cujo crepitar sugere uma relação mantida na memória a conflagração original do Big Bang (Chakali, 2014, p. 131, tradução nossa[9]).

A árvore da vida e Amor pleno terão seus momentos lúdicos esparramados ao longo de toda a projeção, o que também alimenta uma percepção mais clara da insuperável crise espiritual dos personagens. Logo em uma das primeiras cenas, Mrs. O’Brien (Chastain) senta-se no balanço de onde observa os filhos correndo com o cachorro e caindo no chão. Ela corre descendo a rua fugindo dos meninos. Mrs. O’Brien molha os filhos com água da mangueira. Eles revidam e a casa é só sorrisos. A rigor, a Nova Jerusalém está claramente definida como aquela casa dos O’Brien, porém, desde que o pai não esteja por lá. As brincadeiras de Mr. O’Brien (Pitt) tolhem todo o sentimento lúdico e espontâneo. Quando ele ensina os meninos a boxear, não há alegria no semblante deles.

Há muita dança em Amor pleno. Marina (Kurylencko) está sempre bailando, na rua, no supermercado, na mata, dentro do apartamento, na piscina. Neil (Affleck) adota uma postura mais indiferente – a exemplo da maioria das figuras masculinas de Malick, uma forma de desvelar o machismo presente na cultura judaico-cristã. Quando Jane (Rachel McAdams) laça a atenção de Neil, a liturgia do ritmo se repete. Sobre os trilhos, ela corre, desequilibra-se graciosamente, ri para ele. As mulheres provocam Neil. Marina mesmo, na ausência do aconchego do seu marido, dança com um galo no colo e o provoca. Marina, sobretudo, está filmada em panorâmica durante quase toda a projeção. A montagem caleidoscópica de Malick aqui ganha um aspecto ainda mais evidente. No momento em que a filha de Marina, Tatiana (Tatiana Chiline), observa o movimento dos brinquedos aéreos do parque de diversões temos ali um símbolo do epicentro das crises de Amor pleno: uma gangorra de sentimentos e de gestos – ora violentos, ora carinhosos.

Tais brincadeiras vão muitas vezes se confundir com um segundo elemento fundamental para a coreografia do cinema de Malick: as carícias. Ao seu modo rebelde à James Dean, Kit demonstra afeto a Holly em Terra de ninguém. Há uma masculinidade que não lhe permite uma expressão gestual mais delicada – afinal, quando Kit tira a virgindade de Holly, o que se vê é apenas ela a terminar de abotoar o vestido. Kit não dá bolas e ela mesma ainda não entende muito bem os códigos do pós-coito. Também demonstrando a força de homem, Kit coloca-se como protetor de sua amada. Ao serem ameaçados ele toma a dianteira, assume uma postura heróica. Em Dias de paraíso, os momentos de Bill e Abby ganham notas mais dissonantes. Deitados sobre o campo de trigo, ele pinça com os dedos alguns fiapos de sua roupa. Já desposada pelo Fazendeiro, ela encontra Bill no rio, o refúgio dos esposos agora amantes. Ele lava os pés dela. Em um riacho, Bill e Abby levantam a barra de suas vestimentas, chutam a água, beijam-se e abraçam-se. Logo ele tenta levantar sua saia, ao que ela, sorrindo, lhe retribui com tapas gentis. Com o coração de Abby mais inclinado para o Fazendeiro, ela permite ser tocada suavemente pelo novo marido e até se refugia, no seu novo ninho de amor, da fúria de Bill, que o levará de volta ao seu ciclo assassino – no começo do filme, Bill, Abby e Linda fogem de um trabalho na mina devido às consequências das atitudes violentas dele.

Essa tensão entre violência e delicadeza permeará toda a obra de Malick, ressaltando aspectos contraditórios que nos permitem a leitura da verticalidade das transações emocionais no cinema do diretor. A guerra de Além da linha vermelha tem vários momentos de respiro, que não deixam de ser pesarosos. Embora os gestos demonstrem certa paz, o espírito inquieto se revela pela voz over atribulada, ressentida ou desesperançosa. São assim os momentos de Private Bell (Ben Chaplin) com sua esposa Marty (Miranda Otto) nos flashbacks que nos transportam de Guadalcanal para a vida urbana e pacífica de casa. Ele a abraça por trás, toca seus seios. Ele deita em seu colo. Em seguida, toca de todas as formas possíveis seu rosto, como que para decorá-lo e carregá-lo como lembrança. Os movimentos que Bell e Marty protagonizam aqui são como se coreografados em uma quase-dança. Ela beija e a afasta, segurando seus braços, a aproxima de volta fugindo ao naturalismo. Os momentos de Smith e Pocahontas em O novo mundo também são peculiares. Eles se tocam para se conhecer no íntimo, conhecer a história de seus povos. O toque que se permite é das culturas. No entanto, Malick insiste em esperar. O toque torna-se sedutor e logo os lábios começam a se aproximar, ainda que não se toquem. Os dedos de Smith correm sobre o braço de Pocahontas até que as mãos se unam. Ele encosta o rosto em seu peito. Ela acaricia sua cabeça. “Tudo está perfeito. Deixa que eu me perca. Flua em mim como um rio”, diz Pocahontas, em off.

Por força temática, talvez, em Amor pleno Malick consegue explorar o sexo como celebração desse louvor proclamado pelo arcabouço gestual de seus personagens. As brincadeiras dos amantes culminam algumas vezes em atos de preliminar sexual. Em meio à briga do casal Marina (Olga Kurylencko) e Neil (Ben Affleck), no apartamento vazio, eles se inspiram a recuperar o primeiro amor. Ele a sufoca gentilmente com o tecido suave e transparente da cortina. Eles se jogam ao chão. Beijam-se. Neil desliza pelo corpo esguio de Marina coberto por uma camisola azul escuro. Sugere-se um ato de sexo oral. Mas o semblante de Marina não reflete mais prazer. A melancolia volta a dominá-la. Neil não está mais lá. As mãos de Marina esticam o curto vestido para baixo e suas pernas se fecham. O sexo não se consuma. Neil reencontra sua antiga paixão, Jane. Marina permite-se um encontro casual íntimo com um rapaz que encontrou na rua, como ato de vingança. Quando os corpos de Neil e de Marina se tocam novamente, ambos estão em uma piscina pública. Há mais gente ao redor. Neil aproxima-se sorrateiramente por trás de Marina. Sussurra em seu ouvido. A câmera de Malick mantém seu compromisso com a suavidade. Os gestos permanecem fluidos, segundo a coreografia do toque gentil, embora a abordagem de Neil seja violenta. Marina fica evidentemente apavorada. Mas em silêncio. Ela afunda-se, recobre-se das águas para tentar fugir do marido transformado em agressor. Logo ela o abraça por baixo do lençol líquido da piscina. Ele retribui. Recomeçam as brincadeiras quando Neil tenta tirar seu biquíni. Eles sobem à superfície. Corte seco para o bar. Ele a evita. Com rispidez, vira o queixo de Neil para que ele a olhe. Na voz over, ela pergunta: “Você me quer como sua esposa?” E voltam as brincadeiras lúdicas, as lembranças triviais superdimensionadas pela coreografia. Neil empurra Marina em um carrinho de supermercado. Entre as estantes, ela o seduz abrindo o casaco. E foge graciosamente dele, evidentemente constrangido, mas com um sorriso. Outro corte, e Marina sai às pressas de casa anunciando ao bairro: “Ele está me matando”. Neil a acompanha a seguir. A violência está sempre presente, mas os gestos mantêm a singeleza da coreografia. A violência emudece a música. Ela se humilha perante o macho. Beija seu pé. Começam juntos a limpar a casa. Logo voltam as brigas. Ele a segura com um dos braços. Com o outro arranca a cortina. A sinfonia suave acompanha a reconciliação. As mãos de Marina socorrem a mão ferida de Neil. Ela beija sua mão ensanguentada. Em seus últimos gestos, entre a cortina preta transparente, Marina evoca: “Meu Deus que guerra cruel. Vejo duas mulheres em mim. Uma cheia de amor por ti. A outra me puxa em direção à terra”.

No lugar onde as figuras gesticulam volatilmente como a inconsistência de areia recai uma impotência diante do compromisso de romper com o arsenal de indecisão dos personagens, nos quais ainda brilha um gesto simples e infantil (…) A espiritualização da Natureza compartilhada pelas esferas do profano e do sagrado se representa no amor (Chakali, 2014, p. 132, tradução nossa).

O amor deixa vestígios de três ordens: fileo (fraternal), eros (erótico-carnal) e ágape (divinal). Os dois primeiros transcorrem por um fluxo horizontal – entre iguais (família, amigos, amantes). Por convenção do imaginário coletivo e de uma tradição da religiosidade oriental, o amor-ágape trata de uma relação vertical: o homem, preso à força gravitacional do eixo terrestre, invoca o ser superior, no alto, no além. Quando Bachelard diz que “a meta é a verticalidade” (Bachelard, 1994, p. 184), conclui que o instante poético possui uma perspectiva metafísica. O gesto do consolo e da compaixão, nossa terceira categoria, seria essa expressão que se descola da horizontalidade humana para alcançar a verticalidade divina. “Na saudade risonha vivida pelo poeta, parece que realizamos a estranha síntese da saudade e do consolo” (Bachelard, 1990, p. 110). Afinal, a compaixão pressupõe uma alteridade. Malick costuma expressá-lo por meio de close-ups nas mãos, como em Além da linha vermelha. Vemos a mãe moribunda que estica a mão para a filha; a garota que toca o coração da mãe e abre um sorriso. O novo mundo exibe gestos de solidariedade, quando os indígenas enfim acolhem Capitão Smith o tocam no peito, o testam mas o dignificam. Em A árvore da vida temos o compêndio mais completo do uso das mãos. No início, diante da perda de R.L., seu filho, Mrs. O’Brien recebe o toque das mãos de uma idosa do convívio íntimo da família e também de uma mulher negra, que também não identificamos. O anonimato pode ser uma potência ao se fazer o bem. Ao final, são as mãos de R.L. em seu reencontro com o Jack (Sean Penn) que o aliviam da culpa do passado. Toca-lhe as mãos, os ombros, a cabeça. Jack retribui o toque a um garoto da vizinhança, que fora vítima de um incêndio. E ainda há o gesto muito significativo da vida primitiva na Terra. Um dinossauro com sua pata toca a cabeça do outro que estava prostrado sobre as pedras de um riacho e o liberta. “Quando a compaixão evolui, o mundo está pronto para o clímax da criação, uma criatura com mãos” (Leithart, 2013, p. 59, tradução nossa).

Em Amor pleno, Padre Quintana (Bardem) visita os enfermos, como parte de sua rotina clerical. Toca-os. A senhora moribunda estica a mão e Quintana a segura. De sua voz em off repete a Lórica de Proteção de São Patrício (“Cristo antes de mim, Cristo depois de mim, Cristo em mim, Cristo acima de mim, Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda, Cristo no coração”). Quintana se reconcilia com Deus: “Brilhe através de nós”. O pedido de perdão de Neil a Marina se dá também pelo gestual. Não há troca de olhares, embora os olhos de Marina pareçam surpresos com o gesto de Neil. Ele se ajoelha diante dela, coloca a cabeça em seu colo. Ela o afaga. “Esse amor que nos ama”, conclui ela.

<em>Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em</em> Amor pleno
Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em Amor pleno

Do gesto à coreografia

Para uma coreografia da adoração ser completa, resta-nos envolver a questão da musicalidade, o que dá liga a toda a coreografia. A Lacrimosa, do Réquiem for a friend, de Zbigniew Preisner, conduz o maior de todos os gestos de Malick: a criação evolutiva do universo. Sem recorrer a quase nenhum recurso tecnológico (à exceção da recriação dos dinossauros e das criaturas marinhas), Malick recria o início da existência terrena com suas mãos. Ou melhor, as mãos de Douglas Trumbull (reconhecido diretor de efeitos especiais de 2001: Uma odisséia no espaço). Utilizando-se de grandes tanques cheios de líquidos, tintas e demais fluidos e ingredientes químicos, Trumbull promoveu o espetáculo da Terra com ajuda da objetiva em alta velocidade de Emmanuel Lubezki em favor de se louvar a artesania proposta pelo Gênesis. “Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito” (Bíblia, João 1:3).

A concepção musical de Malick se estrutura pela criação de árias e hinos de características de uma liturgia esclesiástica. O canto gregoriano Passion, de Carl Orff, sonoriza a sequência do incêndio da casa do pai de Holly em Terra de ninguém. Revela essa primeira potência poética, através do fogo consumidor, lastro inconsequente da paixão ardente dos jovens foragidos: o som sugere uma opulência, enquanto é vista a destruição material de objetos e memórias daquela casa. O fogo terá significado semelhante em Dias de paraíso no momento das queimadas dos campos de trigo para combater a praga de gafanhotos, quando há uma trilha sonora de suspense e ação dialogando com as imagens contemplativas de Malick. No momento em que ele adota uma câmera na mão e reproduz na montagem a correria e a luta dos trabalhadores para conter o fogo, a música cessa. Há apenas vento e chama. No mesmo filme, a trilha sonora também ocupa lugar de mediadora da ação humana com a natureza. Mais uma vez acompanha uma cerimônia. Neste caso a música de Ennio Moriconne imprime à montagem uma harmonia na trama e em sua aura. “A alegre trilha de Morricone acompanha a dissolução de uma série de imagens que casam Abby e o Fazendeiro não apenas entre eles mas com os próprios ritmos da natureza” (Rybin, 2013, p. 82, tradução nossa[10]). Power notará que a música de Dias de paraíso providencia “oportunidades metafóricas de expressão”. Ele cita especificamente o uso do tema The aquarium, de Camille Saint-Saëns. “Há vários instantes ao longo do filme em que a ideia de um aquário é usada simbolicamente, inclusive quando a música não está sendo executada” (Power apud Patterson, 2007, p. 105, tradução nossa[11]). Power se refere à ideia da fazenda como um paraíso artificial, um ambiente seguro, porém, visto de fora, uma jaula (neste caso, de sentimentos).

Além da linha vermelha incutirá o canto da tribo entoado em seu dialeto próprio (tok pisin) às sinfonias clássicas sacras, um dos marcos da postura devocional que a música exerce no cinema de Terrence Malick. A harmonia de louvor preenche os vazios da solidão de Private Witt na ilha. A música apresenta-se na forma de acúsmetro,[12] abordando a beleza natural do cenário e dos nativos até enxergarmos a formosura da dança e das vozes a capella. O uso da música aqui está intimamente ligada à diegese sonora do complexo fílmico. Como fizera em Dias de paraíso, seu trabalho sonoro mais complexo em significados, Além da linha vermelha apresentará um claro avanço tecnológico, dado o avanço do sistema Dolby, aliando a música a uma colagem de sons de elementos da natureza, criando uma atmosfera psicológica e metafísica ao redor das paisagens e dos personagens.

Não há coreografia sem música no cinema de Malick; até o silêncio na trilha ressoa. A musicalidade completa a coreografia. Nos sons mudos, os gestos ganham novos significados, novas potências e reforçam a envergadura poética de seu discurso imagético. Tarkovski diria que, para o universo poético do filme, a música deve cumprir um papel maior do que a de intensificadora do impacto da cena. Ela deve renovar a imagem, produzir uma inflexão lírica e até providenciar uma distorção do material visto. “Ao mergulharmos no elemento musical a que o refrão dá vida, retomamos inúmeras vezes as emoções que o filme nos despertou, e, a cada vez, a nossa experiência é aprofundada por novas impressões” (Tarkovski, 1990, p. 190).

O próprio cinema está dotado de uma particular natureza rítmica em sua teoria. Como a imagem, os diálogos e a montagem, a música enaltece a ritmicidade da trama, como irá notar Laurent Guido. Para ele, a forma como Malick se utiliza do imaginário da pastoral americana e dos traços culturais da sociedade judaico-cristã anglo-saxônica transforma seu arcabouço de referências sonoras em um sistema de representação cultural em todos os seus filmes – até O novo mundo, pelo menos.

Evocar seriamente a suposta musicalidade do cinema, mais precisamente a que diz respeito aos elementos visuais, retorna com o objetivo de abordar a noção de ritmo que regula a ordem de movimento. A esse parâmetro é atribuído um papel central no último filme de Malick [O novo mundo]. Em grande parte, a singularidade por si só se origina efetivamente na maneira particular de entoar o fluxo narrativo por um ritmo amplo e constante. Se a sucessão visual parece à primeira vista ter uma certa descontinuidade, se estabelece principalmente por viajar nos planos que delineiam o espaço de digressão (um parênteses na história que está sendo contada), a instalação é de fato governada por princípios estilísticos visando imprimir um movimento uniforme, homogêneo ao conjunto das imagens (Guido, 2007 p. 56, tradução nossa[13]).

O resultado, conforme Guido, é uma forma fluida, quase orgânica em que os métodos de corte convencionais com base nos planos de linearização espaço-temporais não são sistematicamente rejeitados (daí o uso frequente de reverse shot em blocos sequenciais facilmente identificáveis…), mas são integrados em uma composição audiovisual cuja lógica discursiva se revela complexa tanto pela multiplicidade de informações e pontos de vista quanto pela unidade subjacente constantemente sugerida pela sucessão harmoniosa dos planos. Guido irá se ater também à herança sempre presente da estética pós-romântica dentro do cinema hollywoodiano, por meio da influência de Wagner sobre os modos de construção do espetáculo de massa. “É necessário assinalar as linhas existentes entre o romantismo alemão e a tradição especificamente americana à qual Terrence Malick faz referência desde o início de sua carreira” (Guido, 2007, p. 58, tradução nossa[14]).

A música em Malick evoca, portanto, como que uma cerimônia religiosa, uma liturgia com aspectos de adoração. “Venha, espírito, cante a história do nosso povo”, clama Pocahontas à sua Terra-mãe em um plano contra-plongée no qual ela ergue os braços ao céu azul. Havemos de notar que a volta de Malick constantemente a esse tema, um lugar-comum da prece legada ao firmamento, não busca apenas uma representação, senão apontar uma direção de seu gesto de louvor – um cântico da história de seu próprio povo –, a expressão de uma teopoética, uma vez que assume suas vias de contradição e de elevação.

 <em>Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em</em> Amor pleno
Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em Amor pleno

* Guilherme Lobão é jornalista e mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

 

Referências

ALVES, Rubem. Theopoetics: longing and liberation. In: GETZ, I. E COSTA, R. (oprgs.). Struggles for solidarity, PP. 159-171. Philadelphia: Fortress Press, 1991.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

Bíblia – Tradução Ecumênica. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

BIDENT, Christophe. Le geste théâtral de Roland Barthes. Paris: Ed. Hermann, 2012.

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WILDER, Amos Niven. Theopoetic: theology and the religious imagination. Philadelphia: Fortress Press, 1976.

 

Notas

[1] Ensaio adaptado da dissertação de mestrado Pegadas de dinossauros: uma expedição teopoética pelo cinema de Terrence Malick, defendida em dezembro de 2015, na UnB.

[2] O termo alemão foi cunhado pelo filósofo e etnolinguista alemão Wilhelm von Humboldt como definição de uma cosmovisão ou visão de mundo.

[3] São Tomás de AQUINO, Summa theologiae, g IIg, q. 102. a. 2, ad 2, cit. apud Pie DUPLOYÉ, La religion de Péguy, p. X-XII.

[4] Segundo Wilder (WILDER, Amos Niven, Theopoetic, Philadelphia: Fortress Press. 1976), Stanley R. Hopper teria cunhado o termo teopoética e suas demais derivações (teopoesia e teomitologia) pela primeira vez no discurso “The literary imagination and the doing of theology”, proferido na referida sociedade e posteriormente publicado no livro The way of transfiguration: religious imagination as theopoiesis. Eds. R. Melvin Keiser and Tony Stoneburner. Louisville: Westminster/John Knox, 1992. 207-29.

[5] Este é o titulo original do livro Os escritores e as escrituras: retratos teológicos-literários, de Karl-Josef Kuschel, que utilizamos ao longo da pesquisa.

[6] No original: “Theopoetics is an active, embodied perspective, generating language that reveals some of the nature of the divine in this world, making it easier to see the divine in the everyday. It is not prescriptive and does not presume to have encapsulated the full nature of God”.

[7] Termo criado pelo dramaturgo e poeta Antonin Artaud e utilizado por Deleuze para se referir às vibrações e choques, que eclodem dentro do sistema da imagem-movimento.

[8] No original: “Terry as a director is always open and aware of the stuff that’s around him. Sometimes we’ll be shooting a film anda n interesting bird will fly by and he’ll start crawling on a tree and directing the câmeras toward that bird. Or we cast dogs for this film and then He would let the dogs play outside and shoot a loto f footage of them interacting with the kids. Some of it it is just playing in the Grass. For Terry, it’s an important symbol of life”.

[9] No original: “L’inflexion gestuelle comme contraction de l’être hors de soi est définitivement passée dans le montage électrisé par des jump cuts qui, tels des courts-circuits privilégiant le raccord émotionnel sur la logique intellectuelle, font sautiller d’une strate à l’aure l’enfance rememorée. L’enfance comme ex-clamation et purê joie d’ek-sister se ventile alors en myriades enfantines de gestes, danses et jeux explosant en feux d’artifices dont le crêpitement aurait gardé en memoire l’embrasement originel du Big Bang”.

[10] No original: “Morricone’s joyous score acompanies the dissolve to a series of images that marry Abby and the Farmer not only to each other but to the very rhythms of nature”.

[11] No original: “There are several instances throughout the film when the Idea of an aquarium is used symbolically, even when the piece of music itself is not being played”.

[12] Chion utiliza o termo para referir-se à voz “sem corpo” no cinema. Uma ilustração bem didática que ele usa é o som de pisadas de bota ouvido em uma cena na qual não aparece ninguém andando de botas. A sugestão sonora é de que aproxima-se alguém caminhando, permitindo a formação de uma expectativa ou imagem mental do que ainda há de aparecer na tela. Cf. CHION, Michel. The voice in cinema. New York: Columbia University Press, 1999.

[13] No original: “voquer sérieusement la musicalité supposée du cinéma, plus précisément celle qui concernerait les éléments visuels, revient en fin de compte à aborder la notion de rythme qui règle l’ordonnance du mouvement. Ce paramètre se voit attribuer une fonction centrale dans les derniers films de Malick. Pour une large part, la singularité de ceux-ci s’origine effectivement dans leur manière particulière de scander le flux narratif par une rythmique ample et régulière. Si la succession visuelle affiche de prime abord une certaine discontinuité, établie le plus souvent par des plans en travelling qui esquissent l’espace diégétique, le montage y est en effet gouverné par des principes stylistiques visant à imprimer un mouvement homogène à la suite des images”.

[14] No original: “Il est nécessaire de signaler les liens existant entre le romantisme allemand et une tradition poétique spécifiquement américaine à laquelle Terrence Malick se réfère depuis ses débuts”.

AUTOCOMPOSIÇÃO EM DESCOBRI QUE ESTAVA MORTO, DE J. P. CUENCA

Em entrevista a Bella Jozef, na década de 1990, César Aira disse algo que se tornou, nas décadas seguintes, cada vez mais significativo: “Tenho de falar do que chamo ‘mito pessoal do escritor’. Para mim, significa baixar a um nível de comunicação os mal-entendidos que se vão acumulando dentro de uma comunidade em que a conversa familiar se baseia. O mal-entendido número um é classificar alguém de escritor”. E continua, tornando o mal-entendido um sistema de crenças próprio do universo da literatura: “Esse sistema de crença que se forma em uma comunidade, estabelecendo que alguém vai ser um escritor, é o que chamo o mito pessoal do escritor. Isso é a única coisa importante. A obra é insignificante, qualquer escritor renunciaria a sua obra se não tivesse necessidade de escrevê-la para criar um mito” (1999, p. 41-42). Muito própria de César Aira, essa última frase, ao afirmar a insignificância da obra a inscreve como única coisa importante, a única capaz de sustentar o mal-entendido que faz de um escritor um escritor. Poderíamos derivar aqui para a diferença entre obra e texto na famosa acepção de Barthes: “a obra segura-se nas mãos; o texto, na linguagem” (2004, p. 277), mas o que me levou a citar essa entrevista de Aira foi a recente conversa que tive com João Paulo Cuenca a propósito da exibição de seu filme A morte de J. P. Cuenca e do lançamento de seu livro Descobri que estava morto (Tusquets, 2016).

Ambos, filme e livro, partem de um acontecimento na vida do escritor (um mal-entendido): em 2011, ele descobre que há um atestado de óbito em seu nome, inclusive com o reconhecimento do corpo, encontrado na Lapa, e assinado por uma certa Cristiane Paixão Ribeiro em 2008. Se o filme parte de uma investigação dessa morte e desse reconhecimento de corpo, à maneira de um documentário, derivando para o ficcional retomado de seu primeiro romance, Corpo presente (Planeta, 2003), o livro expõe o acontecimento como uma notícia que vai transformando o corpo entre a festa, a investigação e a queda (capítulos do romance), flertando com o gênero policial, porém investindo numa profunda transformação existencial da personagem. Essa personagem, então, é João Paulo Cuenca. Reforçado pela sua imagem no filme, o nome do autor se cola de maneira irrevogável à personagem real desse acontecimento inicial, ainda mais atestado pelas falas de amigos, críticos e outros personagens que compartilham filme e vida do escritor.

João Paulo Cuenca, de toda forma, ainda bem antes dessa narrativa-performance, foi um autor mais importante do que seus livros. Sua primeira participação na Festa Literária de Paraty (Flip) foi a de um autor ainda sem livro, em 2003. Primeiro veio a imagem, a fala, e depois o livro Corpo presente. Da mesma maneira, o autor é conhecido como curador (outra palavra para crítico) em festivais no país e por ter sido comentarista de literatura na Globo News durante seis anos (2008-2014). Ainda, ganhou visibilidade como cronista dos jornais Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, O Globo e depois da Folha de S. Paulo. Presente na seleção da revista Granta e com livros traduzidos em 8 países, é um dos escritores brasileiros com maior visibilidade no cenário nacional e internacional. Um dos escritores mais cosmopolitas, esteve presente em vários festivais pelo mundo e fez conferências nas universidades europeias de maior importância. Tudo isso se sabe acompanhando as notícias que a imprensa dá de seus feitos. Nem precisaria ler os livros. Este último, porém, nos faz um resumo bastante real do que tem sido desde seu início uma das marcas da carreira literária de João Paulo Cuenca:

Ser um escritor me ocupava tanto tempo que eu já não podia escrever mais nada – o texto tinha sido substituído pelo personagem no palco de alguns festivais. O projeto anunciado no texto da Granta me parecia irrecuperável. Toda vez que eu me sentava para tocar adiante, traçava umas frases soltas, fazia planos e esquemas como um atleta aposentado. Mas aquilo não dava em nada, era tudo difuso e frio (2016, p. 140).

A morte de J. P. Cuenca, assim, veio a calhar. Se o episódio (ainda que fosse invenção, o resultado é o mesmo) do atestado de óbito foi uma espécie de propulsor do romance e do filme, a necessidade de matar uma imagem foi o que deu corpo ao projeto desde uma vivência (ainda que também performada) da depressão até a ritualística de uma morte encenada (ainda que também vivida até onde se pode viver uma morte). O autor já morto e ainda vivo é a jogada final, parece, de um ciclo da trajetória literária de Cuenca, um final bem costurado com o livro inicial, não deixando espaço para continuação do mote, como a desenhar um oroboro e produzindo outros significados de Corpo presente, agora com Descobri que estava morto. O corpo presente como na acepção da missa de corpo presente. O último ritual antes do enterro.

São várias as passagens que permitem notar essa costura do último com o primeiro livro, mais visível, porém, no filme. O primeiro livro fecha o filme, prometendo um novo nascimento do autor/personagem, promessa não tão explícita no livro, que dá voz a outro nascimento, o da crítica Maria da Glória Prado, como a última palavra a dar sentido ao livro do autor morto. Talvez um devir-mulher ou um devir-feminino na nova escrita de J. P. Cuenca. Talvez uma Carmen rediviva “a andar nua por essa necrópole sem fim, pisando seus pés pequenos sobre os mortos, esmigalhando pedaços de carne e tropeçando em ossos” (2003, p. 22). Essa Carmen que no primeiro livro, assim como no filme “Cuida de mim como se trata um filho retardado: corta minhas unhas, assoa meu nariz e perdoa minhas imundícies – tudo o que esqueço ou tenho preguiça de fazer. Lembra compromissos, horários, me acorda, me dá o norte, a única coisa parecida como uma rotina na minha vida” (p. 117). Se essa Carmen cuida do corpo presente do autor, Maria da Glória, em Descobri que estava morto, cuida do corpo presente da escrita, como uma curadora, como uma crítica, como aquela que une o fio da escrita e o fio da vida:

O limite entre a resistência e a desistência é muito estreito. Às vezes, é quase invisível. Também a fronteira entre o pessimismo e a coragem costuma nos confundir. São territórios limítrofes, em geral desérticos e habitados por nômades ou suicidas. Produto de um fenômeno cultural do nosso tempo – o conceito de autoria como performance –, J. P. Cuenca (1978-2016) parece ter vagado sobre esse solo infértil. Neste derradeiro livro, ele é personagem literário, narrador da própria história; é um tipo real que rouba sua identidade e morre num prédio ocupado na Lapa – e que por isso se torna ficcional –; e, por último, é o escritor que deixa inacabado o rascunho de um romance. Os três são personagens de ficção e personagens reais ao mesmo tempo. E os três estão mortos (2016, p. 233-234).

O conceito de autoria como performance, sob o olhar dessa crítica-personagem-do-autor, teria tornado o autor um produto derivado. Nesta personagem fica patente a crítica como instituição, sempre atacada pelo autor que, ao mesmo tempo quer seduzi-la, e um certo preconceito visto por dois ângulos: a evidência de uma literatura que se alimenta desse conceito e que, portanto, produz sua própria legibilidade na performance escrita dos autores, desautorizando a crítica que concebe esse terreno como infértil; e o da própria crítica que insiste, mesmo com o livro nas mãos, em desfazer essa literatura que se retroalimenta da imagem do autor. Mostra ainda, a declaração da morte do autor “J. P. Cuenca (1978-2016)” como uma questão que ficcionaliza a própria teoria da literatura em seus idos da década de 1960 contra a evidência do corpo do autor retornando sempre com mais força na literatura atual. Esse corpo presente e incômodo que se declara morto, se documenta, e que retorna desestabilizando o próprio conceito de literatura, que cada vez mais se expande a ponto de um autor como Bolaño considerar que os melhores autores da literatura latino-americana são os poetas suicidas da década de 1970, que nunca produziram um livro: “O melhor da América Latina são nossos suicidas, voluntários ou não” e “Isso o sabia Rodrigo Lira, que como tantos poetas latino-americanos morreu sem publicar nunca” (2004, p. 98). Ou como disse Aira, “o que menos importa é a obra”. Ela, em Cuenca, é o receptáculo desse corpo performado, agora, talvez, esgotado. E não é sem propósito que seu último livro termina com a crítica assinando mais uma vez o atestado de óbito do autor como personagem de sua literatura, tendo começado, porém, numa imagem perfeita do trabalho de se autocompor, a de um trabalho artístico de Óscar Muñoz:

Era um vídeo que mostrava a mão de um homem desenhando um rosto no chão de concreto. O desenho era feito com um pincel molhado apenas com água. Seus traços desapareciam à medida que evaporavam – parecia ser um dia quente como aquele que eu enfrentava, talvez com o mesmo entorpecente sol do meio-dia. A mão do homem voltava aos traços recém-apagados, ele tinha que se desdobrar para retocar todas as partes do rosto que iam desaparecendo. O vídeo acompanhava esse trabalho de recomposição durante uma hora (2016, p. 21).

O que faz Cuenca em todos os seus livros é retocar essa imagem exposta no jornal, na televisão, na Flip, recompondo-a a seu gosto e sempre com um autodesprezo digno de nota. Autodesprezo que se converteria em traço afirmativo para uma certa crítica avessa ao esplendor televisivo e jornalístico. Autoimagem que flerta com o maldito, com o fracassado, com o esbravejador sempre a acusar autores, críticos, jornalistas e especialmente políticos, bem como toda a ideia que remeta a homem bem-sucedido ou mesmo discurso bem-sucedido (do Rio, do Brasil, das Olimpíadas, do Jornal, das gentes que aparecem nas colunas sociais). Há várias passagens dignas de nota em Descobri que estava morto, mas quero sublinhar uma que me permite retomar a conversa autor-crítica. Depois de uma fala num seminário sobre literatura brasileira em Brown, no qual troca o discurso sempre repetido do valor de humanidade da literatura, de seu valor afirmativo, citando Antonio Candido e Mário Vargas Llosa, por aquele do antipoder, diga-se, mais alinhado com Blanchot, e mesmo com os estudos culturais que retiraram do discurso da literatura a sua centralidade, o autor-personagem se encontra com Maria da Glória, a crítica-personagem já citada aqui e que faz o posfácio do livro. Entre tantas coisas (quase sempre positivas) que a crítica-instituição já disse de J. P. Cuenca, ele escolhe dar voz àquela demolidora (talvez de Alcir Pécora). Diz Maria da Glória:

O que você escreve é confuso, os capítulos dos seus romances são sempre curtos e truncados, irresolutos, às vezes incompreensíveis. Tem certo wit e espírito da época, mas não acho que sejam fruto do trabalho mental exaustivo que marca os livros e autores que ganham prêmios por aí. Ou seja: você é um diletante que não faz muito bem o dever de casa. Com todo respeito, claro.” E depois, definitiva: “Parece que você procura a tragédia, mas acaba dando de frente com a farsa. Com o kitsch, até. E aí me parece que a tragédia maior é a falta de tragédia. O mistério maior é a falta de mistério. É um vazio sobre outro (2016, p. 159).

É interessante que assim, parodiada, a crítica que diz que essa literatura é menor do que a imagem do autor faz crer se torna mais um discurso desautorizado pelo livro que se tem em mãos – em uma medida ou em outra sempre uma produção bem-sucedida – já que tira sua matéria justamente das acusações dessa crítica. Mas, no posfácio, lugar de legitimação desobstruído pela morte do autor, a crítica nasce enquanto assinatura e ocupa o lugar do autor morto. Um lugar que acusa e legitima ao mesmo tempo.

A morte de J. P. Cuenca encenada, performada e vivida em alguma medida neste seu mais recente trabalho, parece encenar, assim, a saída da temática do cinema (resolvida com o longa-metragem), uma constante em todos os seus livros, para uma entrada no discurso crítico-teórico da literatura. Como a pedir passagem para uma imagem já desgastada na tela em sua entrada na crítica universitária. Ou pelo menos faz um convite para a conversa entre a literatura e a crítica e nisso ensaia o desenho de uma nova imagem. No livro, há uma sofisticada denúncia: a cidade demolida, roubada; o jornal frívolo, cínico; a falta de motivação para permanecer vivo e atuante fora da existência íntima, uma recusa de engajamento; e a constatação da denúncia vã. Tudo isso apoiado pela epígrafe do defunto-autor Brás Cubas: “A franqueza é a primeira virtude de um defunto”. O morto, e também a literatura, pode dizer tudo. Mas, parece, não têm poder algum além de dizer. A crítica expõe uma falha – a do excesso de visibilidade? A da vaidade? A da existência vã? – e exige um novo desenho para a literatura e para a imagem do autor, ao mesmo tempo se fazendo visível ela própria pelo que lhe permite a literatura.


* Ieda Magri é professora adjunta de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Ninguém (7 Letras, 2016), Olhos de Bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007).

 

Referências

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JOZEF, Bella. Diálogos oblíquos. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1999.

LEGADOS DE GAMES, ADVERGAMES E MEGAEVENTOS ESPORTIVOS

Resumo: Os megaeventos esportivos passaram a fazer parte da rotina da sociedade brasileira, sobretudo os Jogos Olímpicos e Paralímpicos com produtos para consumo, que são criados para diferentes perfis etários e consumidores, principalmente na área de games. O objetivo deste artigo é realizar um levantamento dos games, além das tendências de advergames e Olimpismo dos principais megaeventos de 2016. Aplicou-se a classificação em relação ao gênero; ao design dos jogos; à tipologia das personagens e às suas perspectivas, além da leitura sobre as marcas (advergames) e representação dos valores olímpicos. Como resultado foi encontrado somente o jogo “Mario & Sonic e os Jogos Olímpicos” com base em apenas um evento, sem trabalhar conceitos do Olimpismo. Conclui-se que os valores e a diversidade das Paralimpíadas poderiam ser explorados como tendência de legado de megaeventos no país.

Palavras-chave: Megaeventos esportivos; legados; games.

Abstract: The mega sport events became part of the routine of the Brazilians especially the Olympic and Paralympic Games in Rio de Janeiro. Associated with these coming events, products for consumption are created for different age profiles, goals and consumers, principally in the market for games. The objective of this article is to search games, advergames and Olympic Education related to the two sport mega events in Brazil in 2016. It was applied a classification to investigate the subjects, design, the characters, perspectives, research of brands (advergames) and elements of the Olympic values. The findings revealed that just the game ‘Mario and Sonic and The Olympics’ focused on one only event without include concepts of the Olympism. In conclusion, the Educational Values and the diversity of Paralympics could be explored as part of sport mega-event legacy.

Keywords: Sport mega events; legacies; games.

 

Os Jogos Olímpicos são fruto da premissa de que seres humanos criam e interagem através de jogos (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Assim como jogos em geral, esportes também são caracterizados a partir de regras, valores e relações entre indivíduos. Parte-se da ideia de que o jogo é caracterizado por uma ação voluntária, que tem início e fim, ocorrendo assim com uma limitação e determinação de tempo e de espaço. O jogo faz uso de regras livres e consentidas, mas sobretudo obrigatórias, que duela entre sentimentos de tensão e de alegria (Huizinga, 2004). Estas caracterizações também se aplicam a outros princípios, como por exemplo a gestão de um megaevento. Os Jogos Olímpicos da Era Moderna completam 120 anos no corrente ano dos Jogos Rio 2016. Torna-se interessante entender, a oportunidade de combinação de marcas conforme menciona Nelson, Keume e Yaros (2010) e as nuances do game, jogos olímpicos e megaeventos, quando se está diante de uma potencial proposta educativa, no que se refere ao evento e aos produtos ligados ao mesmo.

Os megaeventos esportivos passaram a fazer parte da rotina da sociedade brasileira e, sobretudo da cidade do Rio de Janeiro. Desde 2002, o país recebeu os Jogos Sul-Americanos, passando pelos Jogos Pan-Americanos Rio 2007, até a chegada dos três maiores eventos esportivos, como a Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014, Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Associados a esta tendência, inúmeros produtos para consumo antes, durante e depois do eventos são gerados, para diferentes perfis etários. A temática de legados veio a tona na sociedade e ganhou força por meio da imprensa local e internacional. As referências de legados geradas a partir dos Jogos de Londres 2012, produziram um novo tipo de cobrança aos comitês organizadores e aos governos, no que se alude aos legados e as responsabilidades sociais. O que mais se discutiu foram os legados tangíveis ou estruturais, ou seja, aqueles que são ligados as instalações dos eventos. Todavia, os legados intangíveis ou imensuráveis são os que chamam a atenção pela diversidade e riqueza de oportunidades de exploração, e neste nicho se encontram os games e o envolvimento de novos stakeholders aos maiores megaeventos esportivos.

No ano de 2010, o Comitê Olímpico Internacional criou os Jogos Olímpicos da Juventude que teve sede em Singapura, com uma necessidade de se aproximar de modelos de negócios que interagissem com a classe mais jovem, ou seja,  futuros consumidores do megaevento esportivo (IOC, 2010). Essa tendência de atrair jovens consumidores é comumente encontrada no mercado de games que se reinventa constantemente (Dahl; Eagle; Báez, 2009), assim como fez o IOC e algumas empresas que utilizam advergames (Lee; Youn, 2008; Terlutter; Capella, 2013). Entretanto, não foi desenvolvido nenhum game eletrônico para o evento, apenas utilizou-se do que já existia no mercado para difundir e fixar as marcas olímpicas e, assim sendo, os organizadores passaram também a dialogar com os  novos mídia e redes sociais. Contudo, a necessidade das grandes empresas cada vez mais reproduzirem a linguagem contemporânea dos jovens e envolver outros formatos de mídia fez com que dois anos antes dos Jogos da Juventude, em 2008, ocorresse o lançamento dos primeiros games utilizando as marcas registradas da instituição. Transferindo o usuário a uma realidade mais próxima de um ambiente competitivo no mundo virtual. A partir do Youth Olympic Games rediscutiu-se até mesmo o modelo tradicional do esporte, alterando-se regras de modalidades para que os valores educacionais e filosóficos dos Jogos fossem atingidos, sem que se perdesse o cunho comercial e a importância do jogar e competir.

O ato de jogar está inerente nas relações sociais entre seres humanos e sobretudo de forma política de se portar na sociedade. Parte do entendimento do que vem a ser o jogo está presente nas leituras sobre o lazer como destaca Pimentel (2012), que sugere uma atenção especial para a releitura do ócio.  O jogo de uma maneira geral permite a “atuação ativa”, ou seja o consumidor é parte do espetáculo, realiza e participa da ação, interage diretamente com o movimento a ser realizado; ou a “atuação passiva”, na qual o usuário é um espectador e não interfere ou não dispensa gastos calóricos em sua atividade. Pimentel retrata que o estar “ativo” se conecta a uma realidade higienista da realização da “atividade física no tempo livre como uma forma de manutenção da saúde, especialmente na prevenção de doenças crônico-degenerativas e diminuição do estresse” (Pimentel, 2012, p.300). O que antes com os jogos eletrônicos era entendido como jogos mais estáticos para o consumidor mudou com os videogames de sétima geração em diante, que se utilizam de devices[1] para leitura dos movimentos corporais estimulando assim um novo modo de jogar, interagir e se movimentar (Walz; Deterding, 2014). O que se entende como um novo momento para os games, recebe diferentes tipos de nomenclaturas como fitness game, exergaming ou exer-gaming segundo Oh e Yang (2010); e vem sendo utilizado para estimular uma juventude mais ativa (Sun, 2012), menos sedentária (Robinson, 1999), para aprendizagem de gestos motores (Ditore; Raiola, 2012) e reabilitação (Brookey; Oates, 2015; Sant’ana;  Medrado, 2013), sobretudo utilizando jogos de esporte para o fitness, lazer, entre outros (ACSM, 2013).

Mesmo com a existência das plataformas e devices que permitem uma leitura do movimento corporal, nem todos os Jogos de esporte estão disponíveis em tal formato, e nem por isso, se permitem receber uma classificação rígida de “atuação passiva”[2], visto que as novas máquinas permitem outros tipos de interação e atuação, como por exemplo, a conexão por voz, foto, texto entre plataformas ou redes sociais conectando dois ou mais usuários.

Na área de entretenimento, os games possuem uma entrada ligada as macro brands dos megaeventos, ou seja, as companhias após a compra de direitos de imagem utilizam as logomarcas e tendências dos advergames para gerar Jogos Temáticos, Sazonais e de Gêneros diferentes. O objetivo do presente artigo é realizar um levantamento dos games ligados aos dois  principais megaeventos do ano de 2016, Jogos Olímpicos e Paralímpicos, a serem realizados na cidade do Rio de Janeiro. Aplicou-se a classificação em relação ao gênero e os subgênero; design dos Jogos; a tipologia das personagens, associado a uma leitura sobre o posicionamento publicitário de marcas (advergames) e representação dos valores olímpicos dentro dos jogos digitais. Como resultado primário foi encontrado apenas o  jogo da série Mario & Sonic e os Jogos Olímpicos Rio 2016, vide figura 1. De acordo com a Nintendo (2016)  tem lançamento oficial programado para 18.02.2016 em Tóquio, ao valor de ¥5.076 ienes, o que seria equivalente R$168,63 de acordo com a conversão do Banco Central do Brasil (2016), vide cotação de 29.01.2016 de 1 IENE/JPY (470) = 0,03324 REAL BRASIL/BRL (790). De acordo com a Epic Plat Brasil (2016, p.1), os jogos da dupla com a temática Olímpica são detentores do “título no Guinness World Records Gamer’s Edition como o jogo cross-over de personagens mais vendido na história, com 7.09 milhões de vendas só em sua primeira versão para Wii e 4.22 milhões para a mesma no portátil DS”

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Figura 1: Capa e anúncio oficial de lançamento
Figura 1: Capa e anúncio oficial de lançamento

Jogos digitais e Cultura

Jogos e cultura podem ser analisados por dois aspectos (Salen; Zimmerman, 2004). Primeiro, pelo viés representativo, como uma reflexão da própria cultura e de valores. Segundo, pelo ponto de vista do potencial transformativo do jogo, através da participação dos jogadores. Desta forma, jogos e cultura coexistem em um determinado contexto.

A apropriação cultural de elementos dentro do jogo pode ser uma maneira de promover significado para os jogadores (Vasalou et al., 2014). Por outro lado, cultura e jogos persuasivos, como os advergames, podem ser traduzidos por elementos compostos por heróis, símbolos, rituais e o contexto do jogo, dentro e fora do ambiente digital (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015). Isso mostra que jogos digitais não podem ser estudados sem levar em consideração três aspectos: as características do jogo, do jogador e do contexto.

Os jogos digitais ganharam espaço na sociedade como artefatos culturais (Ranchhod; Wanick, 2014). A aplicação de jogos em diferentes cenários trouxe conceitos como os serious games e jogos persuasivos, com o objetivo de modificar comportamentos e atitudes em diferentes áreas, tais como saúde, educação e marketing (Connolly et al., 2012). Dentro do grupo dos jogos persuasivos também pode-se encontrar os advergames (Bogost, 2007), ou seja, jogos com intuito de passar uma mensagem publicitária.

Advergames

Advergames são jogos criados em torno de uma mensagem persuasiva (Svahn, 2005; Bogost, 2007). A aplicação de jogos para publicidade geralmente inclui marketing de marcas para consumo. Neste contexto, games que simulam Jogos Olímpicos podem funcionar como veículos de publicidade, como maneira de engajar o público com o evento. Advergames podem ser desenvolvidos de diversas maneiras, inclusive a partir de Jogos de Realidade Alternada (ARG), ou seja, jogos que não estão totalmente presos a uma interface digital.

Advergames possuem persuasão como tema central. De acordo com Bogost (2007), jogos persuasivos como advergames possuem uma retórica de processo (procedural rhetoric), caracterizada pela utilização de regras e processos digitais de maneira a persuadir o jogador. Porém, estudos de jogos devem levar em consideração os dois lados: o design e a apropriação que o jogador faz do game. Além disso é importante considerar o contexto do jogo. De acordo com Mäyra (2007), a apropriação de significado pelos usuários não pode ser separada do contexto social e cultural. A consideração de um contexto pode ser explicada através do tema dos jogos. Por exemplo, marcas podem se utilizar de eventos, como a Copa do Mundo, para promover uma mensagem mais significativa para o jogador (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015). Dessa forma, megaeventos como Jogos Olímpicos podem ser considerados como um contexto a ser estudado.

Devido ao uso dos advergames para promover marcas, o jogo está geralmente centralizado através de uma mensagem publicitária (Wise et al., 2008). Em outras palavras, o game é a peça publicitária e o controle e a manipulação de uma marca dentro do jogo influenciam a intenções de compra (Lee; Park; Wise, 2013). Exemplos de advergames são o jogo online Magnum Pleasure Hunt, o jogo de Playstation, Pepsiman para a Pepsi, Human Curling, da marca BIC e Fiat Uno Colour Race, criado para iPhone (Freitas; Patriota, 2011).

Um dos principais temas em advergames é a integração do jogo com a marca. Essa congruência pode ser traduzida a partir de diferentes níveis de integração, inclusive através de representações emocionais da marca dentro do jogo (Wuts et al., 2012). Outra maneira de entender essa integração é a partir dos níveis associativo, demonstrativo e ilustrativo (Bogost, 2007). O nível demonstrativo promove a interação com a marca ou o produto de maneira mais objetiva e integrada. Por exemplo, um jogo de corrida que promove a marca de um carro.  Já o nível ilustrativo mostra a marca ou o produto dentro do jogo, mas não há integração entre o gênero e a categoria da marca. Dessa forma, o entendimento desses níveis de integração é importante para a análise e o design de advergames.

No caso dos Jogos Olímpicos há uma restrição em relação ao uso de marcas. O uso de símbolos, elementos gráficos e não gráficos com relação aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos com propósito comercial, por exemplo, só podem ser usados pelo Comitê Olímpico, os patrocinadores, licenciados oficiais  e emissoras de TV detentoras de direitos. Dessa forma, a integração dessas marcas dentro do jogo deve ser analisada com cautela. É possível que a integração dessas marcas seja mais objetiva, colocando o nome dos patrocinadores de forma mais “aparente” dentro do jogo, fato que não ocorre no Mario & Sonic. São apresentados apenas os símbolos de propriedade do Comitê Olímpico Internacional e do Comitê Organizador Rio 2016, mostrando que o game tem um nível de relação macro apenas com os gestores do evento e não apresenta nenhuma relação micro com outras marcas patrocinadoras.

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Figura 2: Ambiente de jogo valorizando as marcas (Rio 2016, Aros Olímpicos e Mascote)
Figura 2: Ambiente de jogo valorizando as marcas (Rio 2016, Aros Olímpicos e Mascote)

Jogos digitais e jogos olímpicos

Inspirados nos jogos olímpicos de 1984, o gênero de games de esportes nasceu a partir da combinação de uma variedade de práticas esportivas e não apenas uma modalidade (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Em outras palavras, jogos digitais esportivos simulam as modalidades. Foi o início das série de games para cada tipo de evento com jogos de inverno, mundiais etc (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Essa transição dos eventos esportivos para os videogames trouxe uma apropriação do contexto e da cultura para dentro do mundo digital.

Um exemplo de videogames inspirados nos Jogos Olímpicos é a série Mario & Sonic nas Olímpiadas. As séries Mario & Sonic tiveram início em 2007 e 2008, com as Olímpiadas em Beijing. Desde então, em torno de 5 versões do jogo estão disponíveis. Esses tipos de jogos tendem a ser sazonais, mesmo que na oitava geração de consoles.

O grande trunfo dessa combinação é a rivalidade implícita entre Mario, personagem da Nintendo, e Sonic, personagem da Sega. Desde 1983, com o lançamento de diversos jogos, a Nintendo se posicionou como uma das maiores empresas de game consoles no mundo (Wolf; Iwatani, 2015). Essa posição mudou com a entrada da Sega na arena dos consoles, com o lançamento do Mega Drive e da personagem Sonic (Wolf; Iwatani, 2015).

Valores

O movimento olímpico tem um discurso que envolve o esporte, a comunicação e a promoção dos ideais universais sobre paz e educação (Roche, 2006). O “olimpismo” desenvolvido pelo pedagogo Pierre de Coubertin em 1890 “enfatiza o papel do desporto na cultura global, a compreensão internacional, a convivência e educação social e moral” (Parry, 2006, p. 65).

Enquanto os valores Paralímpicos compreendem: a igualdade, a coragem, a determinação e a inspiração. Segundo o Comitê Paralímpico Internacional (2005) o esporte ensina valores e oferece às pessoas, independentemente da sua capacidade física, a oportunidade de ver o melhor dentro de si.

O conceito de olimpismo e educação olímpica surgiu após Coubertin identificar uma firme conexão entre o desporto e o crescimento do interesse da cultura popular. Através da sua recomendação registrada na Carta Olímpica (1894) se originaram os valores do olimpismo: excelência, amizade e respeito. Araújo e Gastaldo (2014) argumentam que o olimpismo busca exaltar qualidades do corpo, mente e espírito se relacionando diretamente com o esporte, a educação e a cultura, visando ao respeito em valores éticos e a superação de si mesmo.

Análise

A seleção do objeto de estudo se deu através de um levantamento dos jogos lançados no mercado Japonês, Norte Americano e Brasileiro. O critério de inclusão foi que o game tivesse relação com os megaeventos que se realizarão no Rio de Janeiro, principalmente para as plataforma de sétima e oitava geração. O modelo de análise aplicado tem como princípio o entendimento da integração entre a marca Rio2016, outras possíveis marcas e os valores olímpicos.

A investigação dos valores dentro do advergame é crucial para o entendimento da proposta de advergames no contexto dos Jogos Olímpicos e como formação de legados. Considerando essa perspectiva, os objetivos da análise são: a) identificar as representações dos valores olímpicos dentro do advergame; b) explorar as possiblidades de integração entre marcas dos Jogos Olímpicos dentro do advergame; c) analisar as perspectivas do design de jogos (advergames) como legado olímpico.

Para isto, selecionamos elementos que estão atrelados ao jogo: as personagens, as características do cenário, os NPC (personagens que não estão sendo controlados pelo jogador), a narrativa e as mecânicas do jogo, conforme a Figura 5.

Elementos dos advergames

Interface visual, mecânicas do jogo, narrativa, contexto e a mensagem publicitária são componentes de advergames que podem ser estudados por um viés cultural (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015b). Considerando a interface visual, elementos como o cenário, cores e personagens podem ser incluídos como parte da estética do jogo. Dentro do jogo, as personagens têm um papel fundamental na apropriação de significado pelos jogadores, principalmente através da aceitação dos objetivos da personagem e do controle da personagem (Gee, 2008). Essa interligação entre jogador e personagem pode acontecer de forma aberta, a partir de escolhas dentro do jogo, ou de forma fechada, a partir das limitações da narrativa (Caetano, 2013). Essas características foram consideradas na análise do jogo (ver Figura 3).

Figura 3: Modelo de análise de Advergames no contexto dos Jogos Olímpicos
Figura 3: Modelo de análise de Advergames no contexto dos Jogos Olímpicos

Personagens

Durante uma partida, os jogadores podem escolher tanto a personagem da Nintendo ou da Sega, enquanto competem em cada modalidade. A escolha das personagens é uma grande representação da inclusão dos jogos e da valorização das diferenças. O visual do game é em 3D e pode ser jogado tanto em Nintendo 3DS e WiiU, que são consoles móveis.

No caso das modalidades (Figura 4), é possível ver que há uma predeterminação das personagens de acordo com as habilidades requeridas pela modalidade. Por exemplo, na modalidade corrida, Sonic é uma das principais personagens a ser escolhida. No caso da ginástica olímpica, a personagem é Rosalina. Esse fato está relacionado às habilidades de cada personagem em si. Os jogadores têm a liberdade de selecionar as personagens de acordo com força, diferentes habilidades e rapidez, conforme o Quadro 1.

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Figura 4: Detalhamento das modalidades constante na tela inicial do jogo
Figura 4: Detalhamento das modalidades constante na tela inicial do jogo

Há um grande número de personagens nesta versão do jogo (40), se comparado às versões anteriores (16) da série dos jogos Mario & Sonic, sendo 20 relacionados ao Mario e os outras 20 personagens relacionadas ao Sonic. Por exemplo, Rosalina é uma personagem que aparece no Super Mario Galaxy em 2007 e só foi incluída na série olímpica na edição Mario & Sonic Rio 2016, conforme o Quadro 1. Dessa forma, a inclusão de novas personagens está ligada ao desenvolvimento das outras séries durante os anos anteriores. Entretanto, pode ser que o aumento do número de personagens também esteja relacionado à inclusão de diferentes personalidades. Com isso, o jogador tem mais possibilidades de escolhas, o que pode trazer uma sensação de autonomia, autorrepresentação, identidade, inclusão, conexão do imaginário social e controle dentro do jogo.

Considerando as características das personagens, podemos ver que a conexão entre a personagem e o jogador é uma relação fechada. Como cada personagem possui uma habilidade específica e está mais propenso a ter um melhor desempenho em uma modalidade, essa conexão se torna atrelada à narrativa do jogo.

No time Mario, a maioria das personagens possui características de rapidez. As personagens com a aparência mais pesada e com volume corporal avantajado possuem mais característica de força. Já as personagens que possuem as proporções corporais mais humanas possuem um destreza superior. No time Mario, há dois personagens que são versões esqueleto de outras personagens. Já no time Sonic, há mais personagens femininas do que no time Mario. O time Sonic tende a ser mais versátil, com personagens que podem demonstrar mais de uma modalidade. Essa variação pode trazer uma sensação de inclusão de diversidades. No entanto, ainda há uma diferença entre os gêneros das personagens.

Além disso, dentro do jogo Mario & Sonic, o jogador pode escolher na sua representação, a personagem Mii, criada e customizada pelo usuário. No game, o Mii pode se travestir de Mario, Sonic, Toad, entre outros. Estão disponíveis roupas relacionadas à cultura brasileira (por exemplo, fantasia de carnaval), sendo ainda possível a escolha da fantasia da mascote dos Jogos Olímpicos, Vinicius. Essa personalização é importante em termos de autorrepresentação,  autoestima, autonomia e senso de controle dentro do jogo, conforme a figura 5:

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Figura 5: A personagem Mii em modo história (mini-game) e com fantasia customizada
Figura 5: A personagem Mii em modo história (mini-game) e com fantasia customizada

NPCs

Dentro do jogo é possível distinguir pelo menos dois tipos de personagens: a personagem controlada pelo jogador, geralmente um avatar e os NPC (non-player character), ou as outras personagens que fazem parte do jogo mas não são controlados pelo jogador diretamente. Interações com os NPCs são importantes, principalmente em jogos educacionais. Por exemplo, interações com NPCs podem trazer mais informação para o jogador ter um bom desempenho dentro do game (Frazer, 2008).

Os NPCs apresentados dentro do Mario & Sonic são geralmente personagens da Nintendo e muitas vezes são componentes da torcida. Por exemplo, a personagem Toad, da série do Mario aparece como NPC no jogo. Isso pode estar relacionado com as características físicas da personagem (cogumelo). O mesmo acontece com o NPC Shy Guy, que é um fantasma com poucos atributos físicos. Além disso, dependendo da modalidade, os NPCs podem ser juízes em cada modalidade. Se o jogador estiver jogando sozinho, NPCs podem tomar forma de uma das personagens, de maneira a deixar a partida mais equilibrada.

Time Mario Time Sonic
Habilidade Rapidez, agilidade 10 14, sendo que 7 também têm destreza e força
Destreza 4 7
Força 6 5
Tipo Humano 7 2
Animal 13, sendo que 2 são esqueletos 17
Outros 0 1 (Robô)
Gênero Feminino 5 7
Masculino 13 11
Indefinido 2 2

Quadro 1: Personagens em todas as versões de Mario & Sonic nos Jogos Olímpicos

Mecânicas e modalidades

As mecânicas do jogo são praticamente uma simulação das modalidades dentro do game através da animação das personagens. Para cada modalidade há uma diferente mecânica e um controle diversificado. Há feedback rápido, sons e animação de pontos de acordo com a interação do jogador com o ambiente. Também há a contagem do tempo, a posição da personagem de acordo com os outros participantes e a vibração da torcida. Em algumas modalidades, como o tiro com flecha também é possível ver o replay da ação do jogador.

Além disso, é possível que as mecânicas estejam atreladas também às habilidades de cada personagem. Se a personagem é rápida, é possível que ela possa ter um melhor desempenho em corrida, o que pode levar a uma mecânica mais robusta. As ações que os jogadores devem seguir para prosseguir no jogo também são semelhantes à modalidade. Por exemplo, se a modalidade é corrida, o jogador deve ser rápido o suficiente movendo os botões do 3DS. Todas as ações estão interligadas.

Dentro do game também há a possibilidade de jogar episódios menores (mini-games), através do modo história. Nos mini-games encontram-se modalidades como maratona, badminton, salto com vara, canoagem e argolas. Nessas provas é possível conquistar roupas e poderes, inclusive disputar as provas convencionais com o Mii.

Cenário

O cenário é importante para trazer a adaptação do jogo para a cidade olímpica. Na modalidade tiro com arco, há a figura do sambódromo no fundo de maneira a ilustrar um dos maiores pontos turísticos do Rio de Janeiro. Na modalidade de salto, também é possível identificar o estádio Maracanã. Isso mostra que o jogo não apenas serve como uma maneira de divulgar o evento, mas também de modo a promover a cidade olímpica. Gráficos, animações, som e a tipografia implementada nos jogos ajudam a construir a narrativa do jogo (Bizzocchi; Lin; Tanenbaum, 2011). Dessa forma, o cenário também funciona como uma representação da narrativa do jogo.

Além do cenário do jogo principal, também é possível jogar episódios menores (mini-games) com a personagem Mii. Nos cenários desses mini-games são valorizadas áreas da cidade como o Corcovado com o Cristo Redentor, as praias do Leblon, Ipanema e Copacabana, a Urca com o Pão de Açúcar, o Aterro do Flamengo, o Centro (Porto Maravilha), o estádio do Maracanã e a Floresta da Tijuca. Com isso, o jogador tem a oportunidade de se locomover nas ruas do Rio de Janeiro, resolvendo pequenas questões em troca de ganhar roupas exclusivas que fornecem status e habilidades para as personagens. A integração entre incentivos, customização e prêmios em mini-games pode fazer com que o jogador se sinta mais engajado dentro do jogo principal. Essa estratégia pode funcionar como publicidade turística, de modo a divulgar os pontos principais do Rio de Janeiro. A publicidade turística em games por meio de advergames tem sido uma tendência cada vez mais utilizada (Celtek, 2014).

Narrativa

A introdução de Mario & Sonic Rio 2016 mostra as personagens em ação e a música ao fundo muito semelhante ao samba brasileiro. A disposição dos elementos, e até mesmo o nome, Mario & Sonic, traz como narrativa a competição como um dos temas. Há uma rivalidade implícita entre as personagens das séries do Mario e das séries do Sonic. Até mesmo as cores vermelho e azul (respectivamente Mario & Sonic), trazem uma ideia de rivalidade. Dessa forma, os NPCs que suportam as personagens do Mario são os outros personagens da série como a Princesa Peach, Luigi, Yoshi e Toad, por exemplo.

Além disso, há uma narrativa implícita entre as personagens de cada time. Cada grupo possui ambos os heróis e os vilões de cada série. Por exemplo, Mario e Bowser, que são originalmente rivais nas séries Super Mario e outras, jogam no mesmo time.

Mensagem e valores

A principal mensagem do jogo é promover os Jogos Olímpicos através de um ambiente lúdico e interativo como os videogames. Além disso, um dos principais objetivos é educar o público sobre as características da cidade olímpica e os valores olímpicos. A comunicação dessa mensagem se dá por vias interativas a partir do videogame.

Nesse contexto, a comunicação com o público é crucial. É comum encontrar nos comitês organizadores dos Jogos Olímpicos os guias oficiais que promovem e dirigem o evento e distribuem informações sobre a relação com o público; orientações de segurança; propostas de compartilhamento de valores do esporte e do evento; além de outros conteúdos que preparam profissionais e voluntários para trabalhar neste megaevento. No caso do jogo Mario & Sonic, não encontramos a comunicação sobre segurança ou qualquer referência ao trabalho voluntário envolvido nos Jogos Olímpicos. Por que não criar um mode em que o usuário possa ser o árbitro, ou gestor do evento, ou mesmo um voluntário na função Mii ou nos mini-jogos? Isso permitiria trazer o game mais próximo da realidade do que são os Jogos Olímpicos.

Além disso, a mensagem educativa, orientada para os valores é um objetivo da realização dos Jogos Olímpicos e da criação de legados, principalmente em escolas. Considerando eventos anteriores, Pequim apresentou em números o maior programa de educação olímpica devido à grande quantidade de alunos matriculados no sistema regular de ensino e a tradução do conteúdo para a língua local. No entanto, o programa educacional chinês só existiu de modo físico ignorando o ambiente virtual, fato já utilizado para os jogos de Londres 2012 e Rio 2016. Dessa forma, a incorporação da mensagem olímpica dentro de videogames como Mario & Sonic pode ser uma estratégia eficaz de comunicação de valores, já que os videogames são artefatos interativos e lúdicos.

Sendo assim, é possível otimizar a prática de programas educacionais através de games, como por exemplo, utilizar o jogo Mario & Sonic em escolas. Uma outra possibilidade é expandir as funções de exer-gaming, oferecendo mais movimentação corporal e um desgaste mais efetivos de calorias em jogo esportivo.

Valores educacionais integrados aos valores olímpicos e paraolímpicos são jogo limpo, respeito, busca por excelência, alegria e equilíbrio (ver Figura 4). No advergame, encontramos a oportunidade de ver o melhor de si em cada tarefa, colaboração, senso de participação, amizade, tradição e cultura popular, a superação de si mesmo, determinação, senso de controle, competição e respeito (ver Quadro 2).

A oportunidade de superação e o senso de controle podem estar relacionados à escolha das personagens. Contudo, personagens femininas parecem estar mais atreladas a certas modalidades, como a ginástica olímpica. A quantidade de personagens femininas também é um ponto a ser levado em consideração. Isso pode ilustrar uma certa falta de igualdade entre gêneros. Por outro lado, a escolha das personagens pode estar ligada às suas proporções corporais. Como as Princesas Peach e Rosalina possuem mais características físicas humanas (antropoformóficas), a animação e a mecânica da ginástica olímpica parece mais fácil de se adaptar à personagem.

Competição, colaboração e amizade estão representadas pelos times e as personagens. Por exemplo, em ambos os times (Mario & Sonic) há a presença dos vilões e dos heróis. Esse dualismo dentro de cada time é interessante do ponto de vista de amizade e respeito das diferenças. A presença da torcida com as personagens de cada série também mostra apoio e participação.

A determinação é representada pelas mecânicas do jogo. Por exemplo, cada movimento certo ou errado terá efeito no jogo. Além disso, é possível repetir a ação mais de uma vez. Isso mostra que o jogador pode melhorar sua colocação a qualquer momento, repetindo as tarefas dentro do jogo. Esse conceito é muito semelhante à ideia de fluxo (flow), ou seja, a relação balanceada entre habilidade e desafio (Csikszentmihalyi, 1996). Isso mostra que a repetição dentro do jogo é uma maneira do jogador melhorar suas habilidades e, com isso, receber incentivos e prêmios.

Marcas

A integração entre as marcas e o jogo pode ser analisada de forma associativa, demonstrativa ou ilustrativa. No caso do Rio 2016, é possível encontrar a marca no fundo do jogo, de maneira associativa. Isso pode ser representado pela utilização das cores azul, amarelo e verde no fundo de algumas modalidades, semelhante às cores utilizadas pela marca Rio 2016. Também é possível ver a mascote do Rio 2016 em partes do jogo. A tipografia utilizada no chão do cenário da pista de atletismo ou no fundo da piscina, por exemplo, também é uma maneira de fazer uma associação à marca Rio 2016. Porém essa estratégia é mais subjetiva, pois os rótulos não aparecem por inteiro. Há outros elementos secundários no cenário do jogo que também exibem as marcas registadas. Balões, banners em postes, e outros artefatos no chão também mostram a marca Rio 2016. Em algumas modalidades do jogo há balões espalhados no céu com as personagens da série da Nintendo e a mascote.

Além disso, a cor dégradé de amarelo para laranja em algumas paredes do cenário faz associação às cores da marca. Inclusive, as curvas utilizadas pela marca também estão presentes nos objetos e formas do cenário. Os pictogramas oficiais também são utilizados em cada uma das modalidades esportivas dos jogos. A Mascote oficial Vinicius[3] também aparece em balões, backdrops e outdoors do cenário. No jogo a mascote é passiva, não podendo ser escolhida para jogar, quando diante de tantos valores culturais[4], e com tanta riqueza de história criada, poder-se-ia melhor explorá-la.

Além disso, partes da cidade e ambientes que remetem ao Rio de Janeiro podem ser vistas nas telas de transição. De acordo com o Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016, o jogo apresenta o megaevento por meio da digitalização gráfica das arenas esportivas, oferecendo uma  “verdadeira prévia de como serão as estruturas, as cores e o clima das áreas de competição” (Rio2016, 2015).

Elementos do advergame Características do jogo Valores
Personagens • O jogador pode escolher entre as personagens das séries Mario e/ou Sonic
• Cada personagem tem uma habilidade diferente
Oportunidade de ver o melhor de si
NPCs • Podem ser da série do Mario ou Sonic
• Estão geralmente no fundo do jogo ou podem atuar como juízes nas competições
Colaboração; senso de participação; amizade
Cenário • Possui as cores da marca oficial dos Jogos Olímpicos
• Ilustra a cidade olímpica (Rio de Janeiro)
Tradição, cultura popular; transição
Mecânicas • Simulam as modalidades/esportes
• Feedback rápido para o jogador
• Mecânicas diferentes para cada modalidade
Superação de si mesmo; determinação; senso de controle; competição
Narrativa • Mario & Sonic participam dos Jogos Olímpicos no Rio
• Há uma rivalidade implícita
• Os times podem se tanto das séries Mario e/ou Sonic
Competição; colaboração; valores éticos; respeito
Marcas • Marcas oficiais do Comitê Olímpico e do Rio2016 Tradição; cultura popular; olimpismo

Quadro 2: Análise dos elementos do advergame e valores

Considerações finais

A apropriação de jogos digitais que promovam valores olímpicos é uma maneira de expandir a mensagem olímpica para diferentes públicos, inclusive jovens. Os games representam uma excelente ferramenta para que instituições esportivas como IOC e FIFA se conectem à linguagem do jovem, transmitindo valores olímpicos, paralímpicos e educativos. É possível que em contextos educativos, a utilização de jogos digitais, como os Jogos Olímpicos, possam promover valores de amizade e respeito, principalmente através do design das personagens, do cenário e das mecânicas dos jogos.

Pelo viés comercial, é possível que os advergames que promovam os Jogos Olímpicos possam trazer uma boa exposição para a marca, construindo uma relação entre a marca, os valores e os consumidores. Sobretudo através da utilização das marcas patrocinadoras do megaevento. Neste caso, a função dos consumidores vai além da compra do produto; há participação e um cunho social atrelado aos valores olímpicos. Essa característica mostra que advergames podem ser estudados também como forma de publicidade social.

Apesar da existência de valores como respeito, amizade, colaboração e determinação, o game Mario & Sonic poderia ter explorado os Jogos Paralímpicos. Modalidades como o goalball, voleibol sentado, bocha, judô, entre outras, poderiam ser inseridas no game apresentando vias de inclusão social de pessoas sem deficiência na prática do esporte adaptado. De todas as séries Mario & Sonic, nenhuma foi criada com o intuito de divulgar os Jogos Paralímpicos e muito menos evidenciado os valores Paralímpicos ou educacionais mencionados no artigo. Nos cenários alternativos para cada esporte em que se permite a participação do Mii e outros personagens customizados, poder-se-ia utilizar personagens Paralímpicos ou atribuir outros valores educativos omitidos pelo jogo.

Considerando a perspectiva das personagens, também encontramos três aspectos a serem explorados: igualdade de gêneros, diversidade e amizade. Comparando os gêneros das personagens, encontramos um maior número de personagens masculinos. Isso mostra que ainda há espaço para personagens femininas em jogos como Mario & Sonic. Há também um número pequeno de personagens com gênero indefinido. Poderiam ser criadas personagens com deficiência ou com características intrínsecas ao quadro clínico Paralímpico, como por exemplo uma personagem que não enxerga ou que não se locomove sem um dispositivo (cadeira de rodas, skate ou carro). Além disso, todo o jogo ocorre em narrativa de terceira pessoa e poderia explorar modos especiais em primeira pessoa, até mesmo para analisar a possiblidade de aplicação de exer-games utilizando outros devices.

As habilidades das personagens parecem estar associadas às características corporais de cada um. Nesse caso, há uma grande relação entre personagens antropomórficas com modalidades como a ginástica olímpica. Isso mostra que no campo do design de personagens é importante considerar precedentes de antropomorfismo, gênero e aparência.

Ainda considerando as características das personagens, há uma narrativa implícita sobre conceitos de amizade, já que vilões e heróis jogam no mesmo time. Desta forma, os jogadores que não estão familiarizados com os jogos Mario ou Sonic podem não entender a mensagem.

O grande trunfo de advergames como Mario & Sonic é a associação com temas contextuais, como os Jogos Olímpicos. Contudo ainda é necessário explorar as variações entre o entendimento da mensagem do jogo de acordo com o repertório de cada jogador. No futuro, esperamos aplicar nosso modelo de investigação em outros jogos semelhantes ao Mario & Sonic e promover uma análise comparativa. Além disso, também pretendemos entender as perspectivas dos jogadores de diferentes classes sociais, cidades e culturas em relação a advergames que promovam os Jogos Olímpicos e outros jogos esportivos.


*Leonardo José Mataruna-dos-Santos é pesquisador da Coventry University, pesquisador e pós-doutor (PACC-UFRJ), research fellow do Carnival Project, European Union’s, FP7/2007-2013/under REA grant agreement n° 612614.

**Vanissa Wanick é doutoranda na University of Southampton (Bolsista CAPES), MBA em Marketing Empresarial (UFF) e BA Design (PUC-Rio).

***Andressa Fontes Guimarães-Mataruna é MA Peacebuilding (CovUni), jornalista (UNESA) e Carnival Project (UFRJ-EEFD).

 

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Notas

[1] Nintendo Wii, PlayStation Move e Microsoft Kinect.

[2] Jogos da Década de 1980 da plataforma Atari 2600 que não utilizavam sensores de movimentos exigiam um certo preparo físico do jogador, visto que simulavam algumas provas do atletismo nos Jogos Olímpicos como o caso do game “Decathlon” desenvolvido pela Activision® (1983), que exigia um esforço físico do usuário e da durabilidade dos Joystics, sobretudo na prova de 1.500m. (ver: VideoGamesRevisited, in: https://www.youtube.com/watch?v=zR35dNOSY7Y)

[3] A Mascote leva o nome do poeta Vinicius de Moraes. Depois de 21 dias de votação popular pela internet, Vinícius e Tom (mascote paralímpica) venceram a disputa com 44% dos 323.327 votos (Globo Esporte, 2014).

[4]  Nos Jogos Olímpicos Rio 2016, a mascote tem o slogan “contagiar o mundo com a minha alegria e celebrar a amizade entre os povos nesse super evento esportivo” (RIO2016, 2016; Globo Esporte, 2014).

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

AS INTERFACES DE REALIDADE VIRTUAL NO SÉCULO XXI

Resumo: O artigo pretende mostrar a evolução das interfaces e tecnologias de realidade virtual até o atual momento de expansão e verificar o que as levaram a uma suposta queda no início dos anos 1990. Devido ao desenvolvimento da indústria dos jogos digitais, novas formas de interação estão sendo pesquisadas e apresentadas ao público. Será mostrada a aplicação da realidade virtual em contextos diferenciados dos jogos digitais, além de relatar uma breve experiência com realidade virtual do grupo de pesquisa em arte, ciência e tecnologia, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças – CNPq/UEMG).

Palavras-chave: Realidade virtual; interfaces; jogos digitais.

Abstract: The article shows the evolution of virtual reality interfaces and technologies to the current moment and verifies what led them to an alleged decline in early 1990. Due to the development of the industry of digital games, new forms of interaction are being researched and presented to the public. It will also be shown the application of virtual reality in different contexts of digital games, in addition to reporting a brief experience of the research group in art, science and technology, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças – CNPq/UEMG).

Keywords: Virtual reality; interfaces; digital games.

 

Este artigo realiza um breve histórico do desenvolvimento e avanços tecnológicos da realidade virtual até o atual momento em que aparenta se encontrar em expansão. Devido aos avanços em pesquisa e desenvolvimento da indústria dos games, a realidade virtual e suas tecnologias de imersão parecem estar em crescimento. Nos anos 1990, essa tecnologia prometia ser uma tendência, mas os altos custos de produção limitaram a sua utilização e interesse apenas para comunidades científicas específicas[1].

Entre os anos 1990 e meados da primeira década do século XXI, outras formas de interação e linguagens foram exploradas em razão do crescente acesso à Internet e a dissipação de dados em redes virtuais. Os interesses pela realidade virtual diminuíram cada vez mais, assim como a atenção de pesquisadores e centros científicos abordaram cada vez menos o tema. Porém, é importante ressaltar que os esforços de inovação, bem como os interesses variados, não cessaram por completo. Isso é algo que este trabalho pretende demonstrar com a exposição de eventos contínuos em uma “história da realidade virtual”.

As atuais pesquisas na área de realidade virtual estão realinhando seu foco para o desenvolvimento e crescimento da área, principalmente para as perspectivas de criação de videogames com maiores níveis de realismo, novas tecnologias e artefatos de imersão.

O desenvolvimento de interfaces: realidade virtual em expansão

Desde o seu início, a realidade virtual tem como intenção algo grandioso. A possibilidade de experimentar outras realidades, de ser transportado para qualquer outro espaço sem precisar sair de seu próprio lugar. Simular um mundo próprio, com regras próprias, repleto de diferentes formas de vida. Ela é parte de um sistema em que o homem interage com a máquina, mas é na mente onde tudo acontece. Antes mesmo do desenvolvimento das atuais tecnologias de realidade virtual e imersão, tentativas na história já mostravam o interesse do homem em dominar tais artefatos.

No século XVII, a igreja utilizou as projeções de Athanasius Kircher feitas com o princípio óptico da chamada câmara obscura, um dos primeiros exemplos na história. Athanasius criou a visão “viva” do inferno que foi motivo de grande espanto e serviu, para muitos cristãos, como argumento poderoso contra o pecado. Ele tornou possível a imagem mental do inferno e de demônios através do emprego de fumaça, a inclusão de insetos estranhos, que ampliados pareciam monstros. Utilizou da simulação para transformar em realidade um mundo fictício. A imagem até então nunca vista pelos fiéis poderia ter provocado uma sensação de imersão em outra realidade. O espaço da igreja pretendia proporcionar ao observador o conhecimento do possível, ou seja, a existência virtual do mundo infernal (Giannetti, 2006, p. 150).

Quando se pensa em realidade virtual, muitos autores remetem ao desenvolvimento da estereoscopia e às primeiras imagens em terceira dimensão, assim como outros apontam para experiências interfaceadas para fora do corpo. O princípio da estereoscopia apresenta a cada olho a imagem correspondente ao seu ponto de vista. Com isso, é possível simular a sensação de profundidade e de relevo, pois os olhos humanos são distantes entre si em alguns centímetros, não possuem o mesmo ponto de vista do mundo (Arantes, 2005, p.114).

Para a maioria dos autores, foi entre os anos de 1950 e 1960 que os pioneiros deram início ao desenvolvimento de instrumentos estereoscópicos para imersão e simulação gráfica. Convém destacar o Sensorama de Morton Heilig, em 1950, como uma espécie de teatro sinestésico. Nele, uma cabine imersiva, um assento vibratório, um guidom, um dispositivo de visualização binocular, um conjunto de ventiladores, alto falantes estereofônicos e um dispositivo nasal simulavam a experiência de conduzir uma moto por lugares específicos dos Estados Unidos (Rejane, 2001, p. 29).

<em>Sensorama, de Morton Heilig </em><em>/ </em><em>Fonte: Morton Heilig Website (</em><a href="http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html">http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html</a>)
Sensorama, de Morton Heilig / Fonte: Morton Heilig Website (http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html)

No ano de 1962 no MIT, Ivan Sutherland desenvolveu o programa de manipulação direta denominado Sketchpad. Com o uso de uma caneta, podia desenhar diretamente sobre o tubo de raios catódicos e visualizar a imagem quase em tempo real. Esse foi um grande avanço nas pesquisas de computação gráfica na época. Mais tarde, entre 1966 e 1970, Sutherland desenvolveu o Head-Mounted Display, uma versão de um capacete de visualização estereoscópica mais avançado, que permitia a interação com imagens infográficas situadas diante dos olhos do observador (Giannetti, 2006, p. 121).

Em 1968, Sutherland publicou um artigo na Universidade de Harvard, denominado “A Head-Mounted Three Dimensional Display”, em que descreve o desenvolvimento de um capacete estereoscópico rastreável. O capacete apresentava dois mini displays CRT que projetavam as imagens diretamente nos olhos do usuário e era possível rastrear os movimentos de cabeça através de uma interface mecânica e ultrassônica. Os desenvolvimentos de Sutherland fizeram um marco na história da realidade virtual, estabelecendo assim o conceito de imersão.

A realidade aumentada, tão comum nos dias de hoje, teve como base a criação do capacete interativo por vídeo, desenvolvido pelos engenheiros da Philco, juntamente com o capacete interativo por computação gráfica de Sutherland. Em ambos haviam tecnologias de rastreamento. Algumas décadas depois disto, a utilização de vídeo, rastreamento e computação gráfica integrados – e interagindo em tempo real – foi o que permitiu o desenvolvimento de aplicações de realidade aumentada (Kirner, 2008).

Em meados dos anos 1970, uma série de artefatos começou a ser desenvolvida para a evolução da realidade virtual. Em 1977 a luva Dataglove foi concebida para contribuir com os aspectos multissensoriais da realidade virtual, sendo comercializada apenas em 1985, pela empresa VPL Research. Em 1981, a Força Aérea Americana possibilitou aos pilotos um simulador de Cockpit em que era possível utilizar um capacete de visão óptica com visão aumentada e informações do avião, indicação visual dos mísseis disponíveis para disparo. O capacete possuía um visor de acrílico e permitia misturar a visão da cena com a projeção sobreposta das imagens geradas por um display CRT dentro do capacete. Esse foi um dos primeiros projetos de realidade aumentada, seu custo foi na faixa de milhões de dólares.

Em 1989 a luva Power Glove foi lançada para o videogame Nintendo, desenvolvida pela empresa Mattel, mas não obteve sucesso no ramo dos videogames sendo adaptada para sistemas de realidade virtual baseados em computadores do tipo Personal Computer (PC).

O aparecimento das CAVEs (Cave Automatic Virtual Environment), um sistema de realidade virtual por projeção em paredes como alternativa ao uso de capacetes, foi demonstrado no evento SIGGRAPH’92, em 1992, desenvolvido na Universidade de Illinois, em Chicago, por Carolina Cruz-Neira. A partir de 1992 empresas de computação gráfica como a Silicon Graphics Inc. e Sense8 Co. começaram a produzir ferramentas e softwares para o desenvolvimento de aplicações em realidade virtual.

Softwares como WorldToolKit e Iris Inventor utilizavam uma biblioteca de funções próprias em linguagem C e em C++ para modelagem e visualização 3D, o que possibilitou aumentar a produtividade e qualidade das aplicações. Também permitiu a fundação estrutural do que viria a ser a linguagem VRML (Virtual Reality Modeling Language). Na comunidade acadêmica, conferências e workshops surgiam para discutir as fronteiras de pesquisa em realidade virtual sendo que no ano de 1995 o evento IEEE VR foi criado através da junção das conferências VRAIS’93 e Research Frontiers in Virtual Reality IEEE Workshop.

Em 1999 o ARToolKit, um software livre escrito em C que permitia o rastreamento por vídeo, despertou no mundo o interesse pela área de realidade aumentada e surgiram diversas outras ferramentas livres voltadas para aplicações em realidade virtual e realidade aumentada junto ao crescimento da Internet e aplicações nativas para Web.

No Brasil, o desenvolvimento na área de realidade virtual data do início dos anos 1990 com defesas de mestrado e doutorado, publicações, eventos e criação de grupos de pesquisa. Visitas de pesquisadores como a do Prof. Claudio Kirner (UFSCar) aos EUA permitiram a aproximação e o aprofundamento na área. O primeiro grande evento do campo foi o “1º Workshop de Realidade Virtual – WRealidade virtual’97” realizado na Universidade Federal de São Carlos e permitiu promover a integração de pesquisadores, profissionais e estudantes interessados.

Atualmente, o evento encontra-se em seu 17º encontro intitulado “SVR2015 – XVII Simpósio de Realidade Virtual e Realidade Aumentada” tendo evoluído e incorporado outros simpósios de temas específicos como o de realidade aumentada. O SVR2015 conta com diversos tópicos de interesse desde sistemas e ferramentas de realidade virtual e realidade aumentada, interação 3D, humanos virtuais e avatares, jogos em realidade virtual e aumentada, impactos sociais, econômicos e técnicos da realidade virtual e aumentada, dentre outros.

Novos grupos de pesquisa se formaram, assim como centros de realidade virtual foram instalados em grandes empresas no Brasil. Equipamentos de grande porte foram comprados em universidades e novos cursos de pós-graduação passaram a formar mestres e doutores na área. Empresas como Petrobras e Embraer investiram em centros de tecnologia aplicados à realidade virtual, assim como universidades investiram e desenvolveram seus próprios sistemas Cave. Atualmente, com a criação de diversos cursos de graduação tanto em nível tecnológico quanto de Bacharelado em Jogos Digitais, Produção Multimídia, Computação Gráfica, Artes Digitais além das tradicionais formações em Ciência da Computação, Sistemas de Informação e engenharias, a área de realidade virtual se encontra em plena expansão. Sistemas de captura de movimento, captura e edição de vídeo, criação de efeitos visuais e desenvolvimento para plataformas móveis lideram as tendências de investimento da indústria (Kirner, 2008).

Esse histórico apresentado visa salientar a evolução e o desenvolvimento da realidade virtual até o atual cenário, no qual a realidade virtual se encontra de fato em expansão. A seguir discutimos se de fato houve uma queda da realidade virtual iniciada nos anos 1990 em relação a esta contemporânea expansão.

Realidade virtual: da queda ao crescimento?

Durante as décadas passadas, os desenvolvedores e comunidades basearam seus trabalhos em tendências da realidade virtual compatíveis com os recursos da época. Trabalhos em modelagens tridimensional com baixa qualidade de renderização, gráficos primitivos em 3D, estudos iniciais em interface do usuário e simulações visuais com pouca interação foram feitos. Atualmente, o campo da realidade virtual se encontra em expansão devido ao acesso às atuais ferramentas de desenvolvimento de games e da indústria cinematográfica.

Esta seção pretende apresentar a expansão da área de uma perspectiva específica. Salienta as possíveis causas do menor interesse pela realidade virtual nas últimas duas décadas. Porém, não significa que houve retrocesso do interesse pela realidade virtual ou pela realidade aumentada. Como se viu acima, nessas mesmas décadas houve continuidade das pesquisas para desenvolvimento e inovação, bem como pesquisas conceituais e teóricas.

A revolução que a realidade virtual prometeu no início dos anos 1990 com o surgimento dos primeiros PCs não obteve êxito devido a inúmeros fatores. Basicamente a indústria não estava preparada para tais ideais. Os altos custos de desenvolvimento da época não permitiram uma maior expansão em termos industriais. Em meados dos anos de 1990, em razão ao crescente acesso à Internet e a dissipação de dados em redes virtuais outras formas de interação e linguagens foram exploradas (Rocha, 2010). Muitos pesquisadores abandonaram a área de realidade virtual e migraram para os estudos da recente World Wide Web, assim como toda a atenção da indústria estava redirecionada para a Internet e suas possibilidades.

De acordo com a discussão realizada pelo professor Mark Bolas (2011), do Instituto de Tecnologias Criativas da University of Southern California (USC), existe uma questão determinada pelo “hype”. Hype é uma palavra inglesa que sugere a promoção extrema de uma ideia, pessoa ou produto, como se estivesse entrando em moda. Houve uma hype em torno da realidade virtual nos anos 1990 e isso acabou por impossibilitar a realização de suas promessas.

Esse é um fenômeno comum observado no diagrama Hype Curve Gartner (Gráfico 1), desenvolvido por Jeremy Kemp no Gartner Inc., empresa americana de pesquisa em Tecnologia da Informação. O gráfico mostra que quando um novo potencial tecnológico é criado, cria-se também um interesse midiático e publicitário em cima desse novo potencial, assim como o desenvolvimento de conceitos muito novos a respeito do potencial. Nesta etapa, muitas vezes ainda não existe viabilidade comercial comprovada para o potencial e também não existem produtos usáveis. O segundo ponto do gráfico mostra um pico inflacionado de expectativas acerca do potencial desenvolvido, com resultado de uma quantidade de histórias de sucesso produzidos pela publicidade e também muitas histórias de fracasso. Neste ponto algumas empresas prestam atenção e outras podem não prestar. O terceiro ponto é chamado de “Vale da Desilusão”, que é quando muitas implementações e interesses falham em sua entrega. Os investimentos permanecem apenas para aqueles que conseguem mudar o potencial e assim atender os consumidores de tendências, os chamados Early adopters. O quarto ponto do gráfico refere-se a uma inclinação a respeito de como o potencial tecnológico pode beneficiar a empresa e se tornar mais amplamente entendido. Novas gerações de produtos começam a surgir a partir de fornecedores de tecnologia e mais empresas começam a financiar projetos pilotos. Ainda assim, neste ponto, empresas mais consevadoras continuam cautelosas. Por fim, surge um platô de produtividade, em que os consumidores de massa começam a fazer uso do potencial tecnológico. Os critérios para acesso e a viabilidade estão mais claramente definidos. O mercado consegue enxergar a ampla aplicabilidade para a tecnologia.

Gráfico 1: Hype Cycle Diagram, de Jeremy Kemp. Fonte: Bolas, 2011.
Gráfico 1: Hype Cycle Diagram, de Jeremy Kemp. Fonte: Bolas, 2011.

Esse diagrama descreve o cenário da realidade virtual nos anos 1990 e sua atual estabilidade vista pelo mercado e pela indústria, principalmente pelo mercado dos jogos digitais. Muitos fatores contribuíram para essa estabilidade nas últimas décadas. A evolução dos processadores e das tecnologias de telecomunicações permitiram o desenvolvimento de novas tecnologias computacionais e uma perspectiva mais madura em relação ao futuro.

Atualmente, os hardwares específicos para processamento gráfico, como as placas de vídeo 3D, atingem altíssimo desempenho quando comparados com os hardwares dos anos 1990. Os telefones celulares possuem telas de ultra definição imagética, tecnologias e sensores wireless avançados para conexão com rede de dados e Internet de alta velocidade, sensores de posicionamento global (GPS), assim como outros sensores: giroscópios; acelerômetros; pedômetros; barômetros; e magnéticos. As câmeras dos celulares filmam em resolução comparada ao cinema digital com resoluções acima do limite para o olho humano. Dispositivos de baixo custo, como caixas de papelão, estão transformando os telefones celulares em óculos e capacetes de realidade virtual além das grandes empresas investirem no desenvolvendo de suas próprias interfaces de realidade virtual.

Os desenvolvedores de jogos persistiram em criar experiências com maior nível de engajamento. Os cenários e mundos virtuais possuem magnífica capacidade de simular detalhes. O crescimento de áreas como visualização científica avanços da computação distribuída e jogos em rede como World of Warcraft e outros Massively Multiplayer Online (MMO) também contribuíram para a estabilidade da realidade virtual.

Além da evolução tecnológica, as sociedades ao redor do mundo estão mais confortáveis com a ideia de virtualidade do que nos anos 1990. A maioria das pessoas possuem aparelhos celulares e usam a Internet para se comunicar através de aplicativos, mensagens instantâneas e e-mails, assistem a filmes em formato digital, jogam jogos on-line e possuem contas em redes sociais. Não se pode mais deixar de notar a importância de artistas digitais que utilizam as tecnologias de modelagem 3D e realidade virtual. São pessoas que estão diretamente ligadas à indústria cinematográfica, de produção de jogos digitais e que seguem carreiras inteiras na construção de mundos e ambientes virtuais, objetos em 3D, entretendo milhares de pessoas. Parece que a sociedade nunca esteve tão bem receptiva e engajada com a realidade virtual.

Podemos ensaiar que não houve de fato uma queda no crescimento da realidade virtual. Houve um desenvolvimento industrial tímido no uso e aplicações da realidade virtual quase gerando uma pausa. O desenvolvimento que houve nesses anos, pelos motivos apontados acima, não teve uma publicidade tão grande quanto a que estamos vendo no contexto dos jogos que, em outras oportunidades, tentou incluir a realidade virtual sem muito êxito. Esse menor investimento na realidade virtual é invertido agora, como veremos a seguir.

Realidade virtual, jogos e indústria

A indústria dos jogos está investindo largamente em tecnologias e interfaces para melhor uso da realidade virtual. No ano de 2016, o famoso evento americano de maior influência em tendências tecnológicas para o consumidor – o Consumer Technology Association (CES) – fez história apontando para este (e para os próximos anos) as tecnologias de imersão em realidade virtual e a produção de conteúdo para os mesmos. O foco do evento foram as novas interfaces para a realidade virtual imersiva, ou seja, os sistemas que estão sendo desenvolvidos por grandes empresas da área como Oculus, HTC e Sony, assim como novos hardwares para jogos, softwares e acessórios projetados para aparelhos celulares, computadores e consoles de videogame. O mercado de jogos e realidade virtual vai expandir em 77% sobre sua previsão de 2015, segundo os relatórios da Consumer Technology Association (CTA), grupo que organiza a CES (Baig, 2016).

Quando os dispositivos móveis, tais como os telefones celulares, são utilizados como interfaces binoculares para realidade virtual, permitem a massificação do acesso a esses conteúdos. A exemplo dessas interfaces, as empresas Google e Samsung apresentam soluções de baixo e médio custo para acesso à realidade virtual. O modelo da Samsung, o Samsung Gear VR, apresenta um sofisticado dispositivo plástico com a presença de sensores e lentes para estereoscopia, que utilizado juntamente a um aparelho da marca permite acesso de qualidade na execução de aplicativos e conteúdo para realidade virtual. No entanto, é preciso lembrar que apenas os aparelhos celulares mais robustos da marca são compatíveis com essa solução. A Google apresenta uma solução de baixo custo chamado Google Cardboard. Ela consiste em um modelo feito em papelão acrescido de 2 lentes de aumento e um sistema de imã magnético que serve como interface ao usuário. O modelo está disponível na página da empresa na Internet e é possível desenvolver a sua própria solução doméstica com a utilização de um aparelho celular (Baig, 2016).

Outras interfaces binoculares também foram apresentadas ao público durante o evento. As mais esperadas, principalmente pelo público dos games, foram os sistemas de realidade virtual Oculus Rift, HTC Vive e o projeto da Sony, Project Morpheus, que funciona com o console PlayStation 4. Estas são interfaces robustas que exigem maior processamento gráfico do hardware presente. Com o foco principal na imersão em jogos digitais, essas interfaces permitem maior interação com os elementos dos jogos, pois são dotadas de sensores e joysticks integrados ao sistema de imersão corporal. Um exemplo é o HTC Vive que sinaliza ao usuário, através de sinais gráficos na tela, a aproximação de seu usuário a possíveis obstáculos fora do ambiente virtual, evitando possíveis acidentes. Outra interface, neste caso para realidade aumentada, é o produto da Microsoft, HoloLens. Um capacete com sistema de projeção holográfica que mistura realidade virtual com o mundo exterior, o que permite visualizar uma realidade mista (Baig, 2016). É importante ressaltar que essas interfaces mais robustas também são utilizadas para outras aplicações e experimentos de realidade virtual, ampliando sua utilização não apenas ao desenvolvimento de jogos digitais.

A rede social Facebook, que no ano de 2014 comprou a empresa desenvolvedora da interface Oculus Rift, diz pretender transformar o uso de sua rede social através da possibilidade de compartilhar experiências mais significativas com seus usuários. A empresa diz ser importante se utilizar da realidade virtual para desenvolver uma presença mais intensa em comparação ao atual meio para disseminação das mídias em sua rede. Se atualmente é possível compartilhar fotos, vídeos e informações digitais diversas, com a adoção da realidade virtual novas formas de narrativas e interações deverão ser experimentadas (Schnipper, 2014).

Um novo mercado também está surgindo, é o de empresas mediadoras nos processos de compra e venda de produtos digitais utilizados no universo da realidade virtual. Modelagens tridimensionais, algoritmos e técnicas de renderização de imagens, animações, jogos e personagens para mundos virtuais estão sendo comercializados através de plataformas de varejo utilizando realidade virtual. Mas grandes empresas varejistas de produtos não virtuais também estão investindo em experiências em realidade virtual para potencializar vendas de produtos em suas lojas de departamento (Baig, 2016).

Outra tendência que também está fazendo com que a realidade virtual expanda são as empresas produtoras de conteúdo para realidade virtual. Hoje é possível acompanhar a transmissão de jogos de basquete assim como assistir a campeonatos de golf utilizando realidade virtual. A evolução das câmeras de vídeo, que passam a gravar em 360º e em 3D, permite aos produtores reinventar as maneiras de contar histórias, além de gerar novos desafios para a indústria de cinematografia em 360º (Baig, 2016).

Com esses exemplos vemos não apenas que o uso da realidade virtual está em expansão, como esse uso está extrapolando o campo da indústria dos jogos, utilizando esta para impulsionar as vendas, assim como o desenvolvimento e o (re)conhecimento das tecnologias aplicadas. Vimos essa estratégia quando do lançamento e popularização da tecnologia do sensor Kinect, da Microsoft (em 2010).

Outras aplicações da realidade virtual

Assim como o sensor Kinect, da Microsoft, é utilizado para outras aplicações, as novas interfaces de realidade virtual também estão sendo utilizadas para outros experimentos. Empresas, pesquisadores e artistas em todo o mundo estão possibilitando novos usos para essas interfaces.

Companhias de engenharia e arquitetura estão promovendo o uso da realidade virtual para simular passeios virtuais em novos empreendimentos. Apartamentos modelos e show room virtuais estão sendo utilizados também como um fator potencial de conversão para vendas. O cliente pode visitar o apartamento ou condomínio sem sair de sua própria casa. A visualização científica de projetos também se utiliza das capacidades da realidade virtual e é possível fazer simulações, possibilitar treinamento em segurança do trabalho e operações pesadas com maquinário específico.

A indústria cultural também aproveita as novas possibilidades de midiatização de seus produtos, na promoção de filmes blockbusters até a imersão completa em shows de rock. Também é possível se passar por super-herói ou participar de um terremoto na Ásia.

O caráter realístico e imersivo da realidade virtual vem permitindo ao usuário se colocar no papel do outro. Psicólogos no laboratório Virtual Human Interaction Lab, da Universidade de Stanford (EUA), estão conduzindo diversos projetos utilizando realidade virtual com o objetivo de gerar empatia nos usuários. Através das capacidades da tecnologia, os alunos podem ver a sua aparência e comportamentos refletidos em um espelho virtual como alguém que é diferente, e pode experienciar um cenário a partir da perspectiva de qualquer uma das partes de uma interação social.

Estudos estão sendo feitos utilizando a realidade virtual para ensinar empatia com as pessoas com deficiência, com cor de pele diferente, com diferentes objetivos econômicos, e de diferentes faixas etárias. Outro projeto, chamado Comportamento Sustentável do mesmo laboratório da Universidade de Stanford, permite aos usuários experimentarem um mergulho em um coral repleto de vida que poderá se acabar, caso o nosso comportamento perante a poluição não mude.

Muitas pessoas não têm a oportunidade de realizar um mergulho desse nível e a experiência permite visualizar diversas fases da acidificação dos oceanos. O laboratório também possui um projeto de pesquisa sobre um ambiente virtual de aprendizagem, em que o ambiente virtual permite maior foco e atenção com os objetivos de classe. O engajamento da tecnologia possibilita melhor interação entre conteúdo e alunos.

Algo similar ao que é desenvolvido em Stanford é realizado desde 2009 pelo professor e pesquisador Mel Slater, do Departamento de Ciências da Computação da University College London, onde estuda “a exploração da realidade virtual no estudo do julgamento moral”[2].

Outro trabalho que também pretende ensinar empatia às pessoas é o da estudante Yifei Chai, do Imperial College London que desenvolveu um sistema de realidade virtual com o objetivo de proporcionar aos usuários a sensação de estar no corpo de outra pessoa e também de poder controlá-lo. Enquanto um participante utiliza uma interface binocular de realidade virtual, outro utiliza um suporte de cabeça com uma câmera instalada e também uma roupa com estimulação elétrica. Ambos corpos são rastreados por um sensor de movimento. A câmera alimenta a interface binocular, e a pessoa que usa a interface binocular, consegue olhar para seu próprio corpo e ver o corpo da outra pessoa, além de controlar os movimentos do corpo do outro participante (Stuart, 2014).

Artistas estão propondo manifestações e performances utilizando realidade virtual para mostrar seus trabalhos. Uma instalação artística, The Machine to be Another, do BeAnotherLab, permite a troca virtual de gêneros entre os participantes. É possível utilizar o corpo do outro participante através de um sistema de câmeras e óculos para realidade virtual. O conceito de troca e personificação do corpo virtual, chamado digital embodiment (Munster, 2006), é muito utilizado em realidade virtual, principalmente nos jogos digitais. Ao assumir um personagem ou avatar em um jogo digital a noção de si mesmo é alterada para uma noção diferenciada de controle.

Outro artista, Thorston Wiedemann, testou sua capacidade de permanecer na realidade virtual por 48 horas dentro de vários mundos no Games Science Center em Berlim (Alemanha). Dentre suas atividades, Thorston jogou tênis contra si mesmo, criou bonecos de neve através de uma ferramenta de desenho virtual, às vezes fazia cócegas em um gato enquanto resolvia quebra cabeças, viajou para lugares mágicos com seus amigos virtuais, posou com seu terno rosa como o presidente dos Estados Unidos na casa branca entre outras atividades (Pangburn, 2016).

Experiência entre arte e realidade virtual

Através da atuação do grupo de pesquisa em arte, ciência e tecnologia, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças[3] – CNPq/UEMG), pretende-se fazer um breve relato de experiência com a realidade virtual oriunda de projeto de pesquisa sobre curadoria e espaços de exposição com a presença da tecnologia digital.

A partir desse interesse na tecnologia digital, e com o projeto em desenvolvimento, surgiu a oportunidade de investigar a utilização de tecnologias imersivas de realidade virtual, o que gerou uma pesquisa de desenvolvimento tecnológico e inovação que está se iniciando em 2016. A equipe (Pablo Gobira, Antônio Mozelli e William Fernando de Melo Silva) está produzindo um ambiente de realidade virtual simulando a representação do corpo humano em transformação. Através da utilização de modelagem computacional 3D, um dos objetivos específicos do projeto é criar formas semelhantes ao de um corpo humano e permitir a imersão do interator nesse ambiente. Porém, as formas modeladas simulam o corpo do interator em envelhecimento.

Os primeiros modelos em computação gráfica foram produzidos utilizando o software de modelagem tridimensional Blender e realizamos a programação da aplicação em ambiente de desenvolvimento Unity. Os primeiros testes foram realizados com o kit de estereoscopia Google CardBoard e também nos modelos de aparelhos celulares LG Nexus 5 e Samsung Galaxy S4 Mini com sistema operacional Android, versões Jelly Bean e KitKat.

Com a pesquisa, e a concepção da instalação em realidade virtual imersiva com intensa exploração dessas tecnologias, foi possível propor outro experimento em realidade virtual. Criamos uma galeria virtual que representa a galeria de arte da Escola Guignard (UEMG). O experimento da galeria proporcionou a realização do exercício de curadoria das obras advindas do projeto de extensão Sala de Estar[4].

Para a criação da galeria virtual, foi necessário modelar tridimensionalmente o espaço real tendo como referência a planta baixa da Escola Guignard. Foram criadas texturas para o chão e paredes da galeria utilizando as referências fotográficas do local real. Após a construção do modelo 3D da galeria, foram digitalizadas diversas obras de artistas que participaram do projeto Sala de Estar e postas virtualmente dentro do espaço da galeria, de acordo com o arranjo proposto em projeto curatorial. Através de programação, foi possível criar um passeio virtual pelo ciberespaço da instalação, em que através dos movimentos da cabeça do interator foi possível realizar a navegação virtual na galeria.

Como resultado do experimento da Galeria Virtual, foi criada a exposição Saindo da Sala que já foi exposta duas vezes, uma durante o encerramento do projeto Sala de Estar e outra durante o 17º Seminário de Pesquisa e Extensão da UEMG[5].

Considerações finais

Inúmeras utilizações parecem ser possíveis com as interfaces de realidade virtual, e certa estabilidade parece ter sido alcançada devido aos avanços da indústria e à adoção massificada das tecnologias. É possível ainda que o hype descrito por Bolas (2011) possa estar em manifestação e que algumas dessas interfaces, principalmente para os jogos digitais, estejam apenas chamando a atenção de consumidores ávidos por novidades. Mas não é mais possível desconsiderar as outras manifestações além daquelas da indústria dos jogos.

A perspectiva futura para o desenvolvimento e o uso dessas interfaces são desafiadoras, entretanto, muitas aplicações já são referências. Na perspectiva de desenvolvimento tecnológico, é necessário readaptar os atuais modelos de projeto e design de interação para ambientes virtuais. Novos elementos para imersão foram acrescentados no desenvolvimento. A possibilidade de navegação em um ambiente virtual diferencia-se de um ambiente multitoque em 2 dimensões, por exemplo (Malaika, 2015).

A possibilidade de personificar outros tipos de corpo, digital/virtual embodiment, permite ao usuário novos meios de expressão e controle sobre o objeto virtualizado. Pesquisas em interface cérebro-computador lideram as inovações do que pode ser o futuro dessas interações. Uma delas é o recente anúncio de desenvolvimento do NESD (Neural Engineering System Design) da Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency), uma interface neural que poderia transmitir áudio e vídeo em comunicação do cérebro com a máquina[6].

Os avanços tecnológicos das interfaces de realidade virtual no século XXI estão de fato ocorrendo e convergindo com outras descobertas. Vimos neste artigo que a indústria, principalmente aquela dos jogos digitais, passou a ter grande interesse em desenvolver produtos para o público em geral. Confirmamos, por fim, que as aplicações da realidade virtual ao ultrapassar as fronteiras do campo dos jogos para outras áreas garantem a continuidade de estudos não apenas sobre a realidade virtual ou realidade aumentada, mas de se estudar as potencialidades das realidades diversas.


* Pablo Gobira é professor doutor da Escola Guignard (UEMG), coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Poéticas Fronteiriças (Lab|Front/CNPq) e pesquisador e gestor de serealidade virtualiços da Rede Brasileira de Serealidade virtualiços de Promoção Digital (Rede Cariniana) do IBICT/MCTI. Coorganizou os livros Jogos e Sociedade: explorando as relações entre vida e jogo (Crisálida, 2012) e Lado B[enjamin] (Crisálida, 2011).

** Antônio Mozelli é bacharel em Ciência da Computação (Fumec) e graduando em Artes Plásticas da Escola Guignard/UEMG.

 

Referências

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BAIG, Edward C. CES 2016 will be virtual reality showcase. USA Today, 2 jan. 2016. Disponível em <http://www.usatoday.com/story/tech/columnist/baig/2015/12/31/ces-2016-virtual-reality-showcase/77564238/> Acesso em: <24/01/2016>

BOLAS, Mark. Keynote remixed: what happened to virtual reality. ISMAR, 2011. Disponível em: <http://projects.ict.usc.edu/mxr/blog/keynote-remixed-what-happened-to-virtual-reality/> Acesso em: <12/01/2016>

GIANNETTI, Claudia. Estética digital. Sintopia da Arte, a Ciência e a Tecnologia. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.

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MALAIKA, Yasser. Interaction Design in VR: The Rules Have Changed (Again). Anais… In: Game Developers Conference Europe, 3-4 ago. 2015. Disponível em: <http://www.gdcvault.com/play/1022810/Interaction-Design-in-VR-The> Acesso em: <12/01/2016>

MUNSTER, Anna. Materializing New Media: Embodiment in Information Aesthetics. England: Dartmouth College Press, 2006.

PANGBURN, DJ. This Guy Just Spent 48hours in virtual reality. The Creators Project, 14 jan. 2016. Disponível em: <http://thecreatorsproject.vice.com/blog/48-hours-in-vr> Acesso em: <24/01/2016>

REJANE C. A. Cantoni. Realidade virtual: uma história de imersão interativa. (Tese de doutorado) São Paulo: Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2001.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. Anais… In: 9º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2010.

SCHNIPPER, Matthew. The Rise and Fall and Rise of Virtual Reality: coming Monday – An Oculus Rift in every home? The Verge, 20 Ago. 2014. Disponível em: <http://www.theverge.com/a/virtual-reality/> Acesso em: <12/01/2016>

STUART, Keith. What a virtual reality art show could say about the future of games. The Guardian, 20 nov. 2014. Disponível em: <http://www.theguardian.com/technology/2014/nov/20/virtual-reality-art-future-games> Acesso em: <24/01/2016>

 

Notas

[1] Este artigo é um dos resultados de pesquisa apoiada pela Fapemig, pelo CNPq e pela PROPPG/UEMG, aos quais agradecemos.

[2] Ver: http://www0.cs.ucl.ac.uk/staff/M.Slater/Mel_Slaters_Home_Page/Home.html

[3] Ver: http://www.labfront.tk

[4] Ver: http://projetosaladestar.wix.com/projetosaladeestar

[5] Ver: http://www.uemg.br/seminarios/noticia_detalhe.php?id=7334

[6] Ver: http://www.darpa.mil/news-events/2015-01-19

 

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

PENSAMENTO FRONTEIRIÇO E ESTÉTICA DESCOLONIAL

Resumo: O artigo, tendo por base a condição degradante na qual se encontram os indígenas na fronteira-sul de Mato Grosso do Sul (Brasil) com os países lindeiros Paraguai e Bolívia, e cuja realidade pode ser ilustrada por produções artísticas de artistas indígenas, detém-se na discussão acerca de conceitos fundamentais para uma crítica de base fronteiriça, como “opção descolonial”, “razão subalterna”, “exterioridade”, entre outros. Ancorado numa metodologia de base bibliográfica tão somente, a discussão ancora-se em pressupostos teóricos que vêm sendo discutidos por meio da publicação dos Cadernos de Estudos Culturais (NECC/UFMS), bem como por publicações arroladas na forma de livro por intelectuais da zona de fronteira-sul. Por fim, o trabalho, ao propor uma discussão assentada num pensamento crítico fronteiriço, pretende pensar conceitualmente uma crítica biográfica fronteiriça que vem se erigindo dessa zona de fronteira pouco conhecida e estudada no país.

Palavras-chave: Crítica biográfica fronteiriça; pensamento fronteiriço; estética descolonial.

Resumen: El artículo, basado en las condiciones degradantes en las que se encuentran los indígenas en la frontera-sur de Mato Grosso do Sul (Brasil) con los países fronterizos Paraguay y Bolivia, y cuya realidad puede ser ilustrada por las producciones artísticas de artistas indígenas, se atiene a la discusión de los conceptos fundamentales para una crítica de base fronteriza, tales como “la opción descolonial”, “la razón postcolonial”, “exterioridad”, entre otros. La discusión está anclada en una metodología de base bibliográfica, cuyos presupuestos teóricos por algún tiempo siguen siendo analisados a través de la publicación de los Cuadernos de Estudios Culturales (NECC/UFMS) y otras publicaciones presentadas en forma de libros por intelectuales de la zona de la frontera sur. Por fin, el trabajo propone una discusión asentada en un pensamiento crítico fronterizo, para pensar conceptualmente una crítica biográfica fronteriza erigida en esta región de frontera poco conocida y estudiada en Brasil.

Palavras-clave: Crítica biográfica fronteriza; pensamiento fronterizo; estéticas descoloniales.

 

Talvez ainda não se tenha mostrado suficientemente que o colonialismo não se contenta em impor a sua lei ao presente e ao futuro do país dominado. O colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, em esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila (Fanon, 2005, p. 243-244).

Todo um sistema de conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, (…) que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que deve suas forças apenas à aspereza com a qual é combatido por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento desse saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que a crítica realiza a sua função (Foucault apud Mignolo, 2003, p. 44).

A opção descolonial é pensada não mais a partir da Grécia, e sim a partir do momento em que as histórias locais do mundo foram interrompidas pela história local da Europa, que apresenta a si mesma como projeto universal. A criação da ideia de América ‘Latina’ foi parte deste processo expansivo universal (por exemplo, uma América Latina e não uma América Cristã ou Hispânica, como foi o ideal de colonização castelhana). Hoje, esta ideia está em processo de ‘desmontagem’ precisamente porque aqueles que foram negados – e àqueles que, no melhor dos casos, foi dada a opção de se integrar à colonialidade – hoje dizem: ‘Não, obrigado, mas não; minha opção é descolonial’” (Mignolo, 2005, p. 216-217).

Meu título alude ao livro Os condenados da terra (2005), de Frantz Fanon, no qual o autor antilhano se debruça acerca da complexa relação entre colonizador x colonizado no Ocidente. Considerando a mesma relação, aqui os condenados da fronteira compreendem os sujeitos subalternizados da fronteira-sul do estado de Mato Grosso do Sul com os países lindeiros Paraguai e Bolívia, tendo como sujeito que se destaca por sua condição de exclusão os indígenas e, por figura ilustrativa desse povo em minha discussão, os Bugres esculpidos pela artista popular e indígena Conceição dos Bugres.

Todavia, antes de chegar ao belo livro de Fanon, quero me deter em uma passagem de Walter Mignolo, por entender que ela compreende e situa a discussão que proponho:

Percebam que a minha visão de modernidade não é definida como um período histórico do qual não podemos escapar, mas sim como uma narrativa (por exemplo, a cosmologia) de um período histórico escrito por aqueles que perceberam que eles eram os reais protagonistas. “Modernidade” era o termo no qual eles espalhavam a visão heróica e triunfante da história que eles estavam ajudando a construir. E aquela história era a história do capitalismo imperial (havia outros impérios que não eram capitalistas) e da modernidade/colonialidade (que é a cosmologia do moderno, imperial e dos impérios capitalistas da Espanha à Inglaterra e dos Estados Unidos (Mignolo, 2008, p. 316-317. Grifos meus).

A passagem de Mignolo situa a prática da exclusão efetuada por uma narrativa discursiva belamente construída de forma a deixar de fora, sem dó nem piedade, todos aqueles sujeitos que já tinham sido, por antecipação, condenados a não fazer parte da história ocidental narrada como verdade absoluta inconteste. Nesse sentido, arrolaram-se a narrativa literária, a discursiva, a artística, a histórica, a política, culminando, por conseguinte, numa narrativa do poder cuja regra é presidida pela rubrica da obediência epistêmica. Tomar o projeto da modernidade não como um período histórico, mas como uma narrativa de um período histórico é assegurar o direito de aprender a desaprender o referido projeto global imperial narrado e assegurar o lugar das histórias locais que simplesmente foram relegadas para fora daquele projeto sumariamente excludente. Essa prática resulta numa opção descolonial epistêmica desvinculada dos conceitos e discursos cristalizados que resultaram num saber, ou conhecimento, originalmente migrado dos centros do saber e do poder para as bordas ainda pouco civilizadas. Os condenados da terra (Fanon), ou os condenados da fronteira, são exatamente aqueles sujeitos (?) que foram excluídos de tal projeto moderno, daí não terem podido ajudar a construí-lo.

O texto de Mignolo, desde o título, Desobediência epistêmica, trata da condição dos sujeitos condenados da fronteira com relação ao saber epistemológico imperial moderno. E a saída crítica para a discussão, tanto para o crítico quanto para o problema em si, situa-se numa opção descolonial epistemológica capaz de produzir um fazer descolonial que não endosse apenas a visada moderna nem os discursos de natureza hegemônica que estão acostumados a se agregar para repetir a exaustão um saber de ordem acadêmica e disciplinar. De acordo com Mignolo, “pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais” (Mignolo, 2008, p. 291). Não é presunçoso de minha parte lembrar que eu penso, trabalho e escrevo de dentro da condição de sujeito da fronteira-sul – cuja fronteira, circunscrita ao estado de Mato Grosso do Sul com os países lindeiros Bolívia e Paraguai, congrega sujeitos condenados pelo estado, pela pobreza, pela terra e pela exclusão sumária de um poder econômico que a cada dia e cada vez mais os tange para o outro lado de uma fronteira porosa. Habito a fronteira[1], assim como todos aqueles sujeitos que estão condenados a errar sobre sua instabilidade. Reconheço, todavia, que minha condição de habitar é, sobretudo, de ordem epistemológica, já que minha preocupação intelectual centra-se em discutir a condição de vida dos sujeitos que se encontram na condição de atravesados (Anzaldúa) por uma herança e errância para as quais foram sumariamente subjugados pelo sistema colonial moderno.

Na sequência de seu texto, Mignolo lembra-nos de que é das exterioridades pluriversais que rodeiam a modernidade imperial ocidental que as opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força. Nessa direção, entendo que não bastaram as boas intenções discursivas, filosóficas, teóricas e críticas migrarem de Dentro (centro) para Fora (fronteira) para começar a resolver o problema da condição do sujeito condenado (subalterno) que sobrevive e pensa a partir do fora. Em uma leitura pós-metafísica, Juliano Pessanha ajuda-nos a compreender a relação existente entre Dentro X Fora:

Se a metafísica da presença pensou apenas o Dentro, devemos, agora, começar a pensar o Fora. E devemos fazê-lo não porque seja apenas uma novidade ou um pensamento diferente no mercado das ideias. Não: pensar o Fora não é produzir mais um pensamento para enriquecer o estoque da cultura, mas operar uma mutação na nossa maneira de existir. Somos, hoje, eticamente forçados a pensar diferente, porque estamos, pela primeira vez, numa situação capaz de perceber a violência e a agressão que dormitavam no pensamento metafísico (Pessanha, 2000, p. 102).

Numa visada pós-colonial, como a que estou propondo aqui, ainda não bastaria a saída estratégica defendida pelo autor na medida em que pensar o Fora seria operar uma mutação na nossa maneira de existir, ou seja, não basta, digamos, pensar o Dentro junto do Fora e o Fora junto do Dentro: “lá onde está o Fora, que se leve o Dentro; lá onde saturou o Dentro, que se leve o Fora” (Pessanha, 2000, p. 109). Não, não basta uma disjunção contínua. É preciso assumir a pensar a partir da exterioridade, por exemplo, discursiva, e para fazer isso é necessária uma opção descolonial. Vejamos, de acordo com Mignolo, o que significa e implica pensar descolonialmente: “significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica vis-à-vis à hegemonia que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade”, e “implica pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais” (apud Nolasco, 2013, p. 118). Os condenados da fronteira já reivindicaram para si o direito epistêmico de poder retrucar “não, obrigado, mas não; minha [nossa] opção é descolonial” (apud Nolasco, 2013, p. 118). Por conseguinte, pensar descolonialmente significa pensar a partir da exterioridade – e não mais tão somente a relação dentro x fora, centro x periferia ou até mesmo a partir da postulação salvífica e messiânica de que o discurso moderno erigido nos centros hegemônicos pode alcançar o sujeito que está fora e sua exterioridade – e por meio de uma abordagem epistêmica subalterna porque, somente assim, pode-se perceber e entender que a opção descolonial empregada criticamente revela “a identidade escondida sob a pretensão de teorias democráticas universais ao mesmo tempo que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela hegemonia das categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente” (apud Nolasco, 2013, p. 118).

Essa discussão acerca do projeto moderno e da opção descolonial, do que é da ordem da exterioridade e da interioridade, dos saberes disciplinares e dos saberes subalternos, retoma o debate, proposto por Mignolo, acerca do “universal/particular” e a “noção de insurreição dos saberes subjugados” proposta por Foucault. Os saberes subjugados foucaultianos corroboram a discussão crítica sobre os saberes subalternos, apesar de o filósofo não estar pensando em uma visada pós-colonial. De acordo com ele, os saberes subjugados deveriam ser compreendidos como

algo que de certa forma é totalmente diferente, isto é, todo um sistema de conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, (…) que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que deve suas forças apenas à aspereza com a qual é combatido por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento desse saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que a crítica realiza a sua função (apud Mignolo, 2003, p. 44. Grifos meus).

Assim como Mignolo faz por todo o seu livro, o filósofo francês, ao trabalhar a distinção entre saberes disciplinares e saberes subjugados, estava preocupado em “questionar a própria fundação do saber acadêmico/disciplinar e especializado” (Mignolo, 2003, p. 45). Depois de nos lembrar que a genealogia propunha a “união de ‘saber erudito e memórias’”, Mignolo volta a citar Foucault, para quem o que a genealogia especificamente fazia era

apoiar o direito à atenção dos saberes locais, descontínuos, desqualificados, ilegítimos, contra as pretensões de um corpo unitário de teoria que pretendia filtrar hierarquias e ordená-las em nome de um saber verdadeiro e uma ideia arbitrária do que constitui uma ciência e seus objetos (apud Mignolo, 2003, p. 45).

Saberes condenados, saberes subjugados, saberes subalternos são compreendidos por um “saber diferencial” (Foucault) ou por uma relação diferencial (Mignolo). Para este, diferencial significa “um deslocamento do conceito e da prática das noções de conhecimento, ciência, teoria e compreensão articuladas no decorrer do período moderno” (Mignolo, 2003, p. 167). Em outro momento, mas levando em conta meu lócus geoistórico cultural periférico de onde proponho minha reflexão crítica como agora, afirmei que diferencial “também pode significar o modo como desloco (traduzo) as leituras críticas das quais me valho, como a do próprio Mignolo pensada em inglês e dos Estados Unidos sobre a América Latina, para pensar de forma diferencial a periferia em questão” (Nolasco, 2013, p. 91). Enfim, é numa relação diferencial, de diferença colonial e não de “diferença” no sentido derridaiano do termo, que podemos alcançar e provocar uma quebra epistêmico-discursiva descolonial, como forma de rechaçar os postulados teórico-críticos do pensamento crítico moderno e sem desconsiderar os direitos epistêmicos, biográficos e históricos dos sujeitos “pensantes” condenados pelo sistema colonial moderno.

Vejamos a resposta epistêmica dada pelo pensamento crítico de fronteira ao pensamento crítico moderno que teima em pensar que pode contemplar as histórias locais e os discursos subalternos em suas especificidades e sensibilidades biográficas e locais:

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial, em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica (Grosfoguel, 2010, p. 480-481).

Chego, agora, ao livro Os condenados da terra (2013), de Frantz Fanon. Retomo a passagem aposta como epígrafe, na qual o autor afirma que “o colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, em esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila”. O que está em discussão na passagem de Fanon é o jogo estabelecido entre dentro e fora ou, mais precisamente, entre exterioridade e interioridade, entre pensamento colonial moderno e pensamento fronterizo. Quando o sujeito colonizador prende o sujeito condenado em suas redes discursivas, visando esvaziar o seu cérebro de todo conhecimento e aprendizagem, ele na verdade não está fazendo outra coisa senão afirmar sua interioridade por meio da negação da exterioridade do sujeito condenado ao fora. Ocorre um processo denegativo consciente: negar a exterioridade equivale tão somente em afirmar sua interioridade. Nessa direção, e tendo por base a migração do pensamento disciplinar e acadêmico, bem como dos conceitos que simplesmente migram dos grandes centros para as bordas, por meio de um discurso castrador que ignora a diferença colonial, vamos encontrar os sujeitos subalternos condenados a um discurso hegemônico imperial que teima em achar que pode representá-los, escamoteando, por conseguinte, as histórias locais e as sensibilidades biográficas e locais que se encontram amalgamadas nas especificidades culturais e na própria vida desses sujeitos. Cada vez mais, e num crescendo, nos dias atuais tem emergido, sobretudo por meio de intelectuais ameríndios, uma proposta epistemológica fronteriza como forma de barrar os projetos globais coloniais que ainda são alimentados sobretudo nas academias dos grandes centros do país e do mundo. Cheios de boas intenções salvíficas e messiânicas, tais projetos simplesmente não contemplam o que é da ordem das especificidades culturais e discursivas dessa cultura outra e seus respectivos sujeitos condenados à condição de fronteiridade.

Na sequência de sua discussão, Fanon pontua a importância do papel do intelectual, sobretudo quando se está em jogo a “alienação cultural” imposta pela época colonial, pela dominação colonial ao colonizado:

a reivindicação do intelectual colonizado não é um luxo, mas exigência de um programa coerente. O intelectual colonizado que situa o seu combate no plano da legitimidade, que quer apresentar provas, que aceita desnudar-se para melhor exibir a história do seu povo, é condenado a esse mergulho nas entranhas do seu povo (Fanon, 2005, p. 244).

Tendo a fronteira-sul como lócus geoistórico cultural de minha discussão, cuja paisagem se desenha por traços territoriais e epistemológicos, entendo que, mesmo que a condição do intelectual da zona de fronteira não seja a de um “colonizado”, ou a de um “condenado”, e que muito menos faça parte do povo subalterno em questão, como os ameríndios, a condição sine qua non para se pensar melhor é a de se pôr na de um pensador que pensa da fronteira e cujo lócus produz sua específica epistemologia, rechaçando, por conseguinte (o que não quer dizer ignorar),  quaisquer resquícios de uma epistemologia moderna assentada em conceitos estereotipados formulados do outro lado do Atlântico. Inclusive para pontuar, mostrar e discordar das forças e poderes, ingênuos ou equivocados, que quase sempre os sujeitos subalternos passam a ocupar diante de sua representação na sociedade, tal julgamento ou análise crítica deve ser feita tendo por base as especificidades de uma epistemologia que emerja do lócus em questão. Em toda e qualquer situação, é de dentro da exterioridade que o intelectual, seja ele condenado ou não, pode alcançar os “direitos epistêmicos” pelos quais os sujeitos condenados mantêm sua consciência fronteiriça viva e em ação cada vez mais. Pôr-se na condição de exterioridade é aceitar o risco de não levar na bagagem os postulados conceituais pensados dentro de um sistema colonial moderno preconceituoso, elitista e sumariamente excludente. De acordo com Mignolo, “el proceso de desprendimiento requiere de um asentamiento epistemológico diferente que describo aqui como la geo- y corpo-política del conocimiento y del entendimiento. Estas son las epistemologias de la exterioridad y de las fronteras” (Mignolo, 2010, p. 42. Grifos do autor). Se, por um lado, não temos uma exterioridade nesse mundo capitalista da modernidade, por outro lado, é bom que se entenda que não se trata de um fora ontológico, mas, sim, de um fora conceitual criado pela própria retórica da modernidade, adverte-nos o crítico. O projeto moderno criou a exterioridade para se alimentar dela e, assim, melhor eliminá-la. Produzir e se alimentar da exterioridade equivale a, para retomar a epígrafe de Fanon deste texto, esvaziar o cérebro dos sujeitos condenados ao fora.

A saída estratégica, ou melhor, epistemológica, para pensar de modo a subverter a visada moderna imperante nas bordas seria a de o intelectual se por ou assumir que pensa a partir da exterioridade. Em meu caso, considerando que habito na fronteira sul, onde o Brasil fora Paraguai, por exemplo, logo habito, penso e escrevo da exterioridade. Na esteira da reflexão de Mignolo, reconheço que é do fato de habitar na exterioridade que surge e que produzimos uma epistemologia fronteiriça enquanto um método de pensar descolonialmente, bem como as trajetórias das opções descoloniais (ver Mignolo, 2010, p. 44-45). Para Mignolo,

a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que vem de damnés, na terminologia de Frantz Fanon, ou seja, da perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho: reprodução de vida aqui é um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista. Essa é a opção descolonial que alimenta o pensamento descolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem coexistir (Mignolo, 2008, p. 296).

A passagem ilustra a realidade nua e crua da zona de fronteira–sul na qual me encontro e penso, especialmente porque, nela, além de encontrar um lócus fronteiriço atravessado pelas imposições discursivas de poder do estado e dos latifundiários, mais os desmandos da Lei e os negócios clandestinos atravessados na luz do dia, deparamo-nos com os sujeitos indígenas que se encontram numa condição de atravessamento sem fim: há uma ferida aberta que sangra sem parar, sobre as terras do campo, como que a nos lembrar da condição belicosa na qual se encontram esses sujeitos condenados a pisar em terra estranha. Quer seja no campo ou nos centros das cidades, tais sujeitos parecem ter suas vidas teleguiadas pelo olhar imperial de um colonizador travestido de senhor protetor, bem como sua representação amalgamada num discurso acadêmico e disciplinar que não se cansa de falar de sua exterioridade, mas com um objetivo escolástico preciso: reforçar sua interioridade. Via de regra, não há muita diferença entre os discursos que intentam tratar, discutir sobre os sujeitos condenados neste lócus fronteiriço, quer o discurso advenha da academia, quer sai dos palanques municipais e estaduais. Tirante os poucos intelectuais ameríndios locais que representa seu povo, a preço de pagarem com a própria vida, os discursos assentados numa política de proteção e defesa do sujeito condenado aqui nesta zona de fronteira não faz outra coisa senão reproduzir a morte, posto que tais discursos dominantes estão articulados de tal forma que não geram políticas para que tais sujeitos exerçam sua representação. Ainda sobressaem a política e os discursos ancorados no desejo de “ajudar” os sujeitos condenados, ao invés de uma prática política, ou método discursivo-descolonial, articulados a partir de uma epistemologia fronteiriça do fora. Grosso modo, não basta mais falar pelo outro, ainda mais quando esse outro é um sujeito condenado por antecipação pelo sistema colonial moderno, sobretudo porque, apesar de sua condição de exclusão, jamais ignorou sua história local, suas especificidades culturais, sua língua, sua cultura e suas tradições ancestrais ameríndias. É nesse sentido que entendo que os “saberes subalternos” de Mignolo, os “saberes subjugados” de Foucault e os “saberes de damnés” de Fanon ajudam-nos a pensar por fora de uma epistemologia moderna, cujos conceitos sempre partiram de dentro para fora, como se a fronteira também não tivesse reproduzido sua vida e seu saber, seu próprio conhecimento, suas histórias locais com suas sensibilidades locais e biográficas, mesmo que durante anos enterrada viva na escuridão.

Vítimas do epistemicídios

<em>Bugre</em>, de Conceição dos Bugres / Acervo pessoal do autor
Bugre, de Conceição dos Bugres / Acervo pessoal do autor

O projeto de uma epistemologia do Sul é indissociável de um contexto histórico em que emergem com particular visibilidade e vigor novos atores históricos no Sul global, sujeitos coletivos de outras formas de saber e de conhecimento que, a partir do cânone epistemológico ocidental, foram ignorados, silenciados, marginalizados, desqualificados ou simplesmente eliminados, vítimas de epistemicídios tantas vezes perpetrados em nome da razão, das luzes e do Progresso (Nunes, 2010, p. 280).

Vítimas do epistemicídios é a metáfora perfeita para contemplar e compreender o lugar deliberadamente construído por uma crítica local moderna, um discurso cultural, estatal e até mercadológico para por e ascender esteticamente os “Bugrinhos” esculpidos pela artista popular e indígena Conceição dos Bugres. Apesar de ainda não ser uma palavra dicionarizada, epistemicídios significa (episteme = conhecimento + cídio = morte) morte de conhecimentos outros, que não apenas aquele propalado pela epistemologia moderna e defendido pelas ciências. Levando-se em conta a ancestralidade das histórias locais ameríndias latinas que estão na origem dos Bugres, mais as sensibilidades biográficas e locais inscritas na vida de Conceição e talhadas nos corpos esculpidos, o ato epistemícidio no discurso crítico estético e beletrista dá-se por sua inversão: quanto mais este discurso acadêmico e disciplinar procurou apontar o valor estético da obra de Conceição, enaltecendo-a  enquanto obra de arte, mais  aqueles traços que fundam uma epistemologia fronteiriça ou outra, como a questão ameríndia e biográfica por exemplo, foram sumariamente excluídos da discussão crítica. O trabalho crítico de metaforizar, isto é, de encobrir os Bugres com um manto sagrado e estético reforça uma leitura colonial que protege, no mal sentido da palavra, as histórias locais inscritas nos corpos esculpidos, impedindo-as, por conseguinte, de que elas narrem sua específica história subalterna. Quando falo da questão ameríndia e biográfica, não quero dizer com isso que a crítica moderna desconhece a real trajetória da artista, mulher e indígena Conceição dos Bugres; muito pelo contrário, estou pontuando que tal crítica ignora esses dados pelo fato de não levar em conta a condição e lugar de onde a artista se predispõe a pensar sua produção. Em toda e qualquer circunstância, uma preocupação estética não se sobreleva nos Bugres. Não estou dizendo com isso que a artista não teve tal preocupação. Pode até ter tido. Mas daí atrelar sua produção aos valores presididos pela estética moderna, há uma grande diferença. Sua produção traz uma herança colonial inscrita em seu corpo que, historicamente, passa pela heterogeneidade específica da América Latina, incluindo, de modo particular, a cultura ameríndia, passando pelos maias, incas e astecas. Toda uma cultura fronteiriça se desenha nos vincos dos corpos totêmicos dos Bugres. Não é demais lembrar que a estética moderna simplesmente ignorou tais culturas e suas respectivas produções culturais. Enfim, não aferimos o conhecimento subalterno alojado no corpo dos Bugres se não nos predispusermos a pensar por fora de toda a epistemologia moderna assentada nos postulados do grego e do latim. Talvez, não por acaso, a mulher indígena e artista Conceição dos Bugres tenha, valendo-se de uma prática ancestral, encoberto os corpos de sua “cria” com cera de abelha, visando, assim, protegê-los de todo ato epistemicídio vindo de longe. “Aprender a desaprender” (Mignolo) equivale a aprender a desencobrir os sentidos e os valores modernos e estéticos que se incrustaram nos corpos, discursos e produções humanas, visando alcançar as histórias locais e os loci de onde emergem formas outras de pensar aqueles que foram sumariamente excluídos pelo sistema colonial moderno.

Quadro de Hilton Silva / Acervo pessoal do autor ''Ameríndios'' aplica-se aos povos ''nativos'' que habitavam a terra quando chegaram os espanhóis e portugueses (Mignolo, 2003, p. 430).
Quadro de Hilton Silva / Acervo pessoal do autor
”Ameríndios” aplica-se aos povos ”nativos” que habitavam a terra quando chegaram os espanhóis e portugueses (Mignolo, 2003, p. 430).

O quadro do artista plástico e filho de Conceição também não foge à regra e capta o lado sombrio dos sujeitos (produção da mãe e dele e o lugar ocupado por ambos os artistas, quer estejam retratados/consignados dentro do quadro, quer se encontrem fora, como o próprio Hilton) enquanto vítimas ainda de um epistemicídio travestido pela rubrica da boa amizade fraternal, ou das exposições patrocinadas pela Cultura do estado, ou até mesmo pelas academias, além de toda uma divulgação massmediática que se arvora de um poder judicativo equivocado e moderno. As marcas para uma discussão de ordem pós-colonial ou subalterna ensaiam-se dentro, apesar de a obra encontrar-se numa situação de fora (exterioridade), da própria produção artística, incluindo as sensibilidades locais e biográficas de Hilton e o lócus geoistórico cultural de onde emerge sua obra plástica. Antes de avançar na discussão proposta, devo pontuar que uma produção plástica como a de Hilton Silva demanda uma consciência crítica acerca de um biolócus que atravessa sua produção de ponta a ponta, assim como todas as demais produções culturais pensadas a partir da fronteira-sul. Vida e obra, vivência e experiência, trajetória do sujeito e atravessamento, errância e hospitalidade ancoram e são ancorados pelos traços que se bifurcam e se entrecruzam na tela, lembrando ao outro que a presença do biolócus (vida + lugar) traduz a natureza compósita e porosa da fronteira que a obra plástica, de forma especular, sustenta como insígnia de um povo, de uma língua, de uma cor e de uma epistemologia que resiste aos olhares imperiais que procuram contornar com o saber, o valor e o discurso colonizadores o que não pode ser alcançado em sua completude e complexidade étnica, plástica e conceitual.

Considerando que o artista filho Hilton retrata a casa, o espaço de trabalho da mãe Conceição, percebemos, por meio de seu ato artístico, que ele retoma e consigna as impressões deixadas por Conceição e recriadas por ele. Ou seja, o trabalho de Hilton, como artista e filho, sinaliza o retorno dele a uma interioridade que, na verdade, pertence à exterioridade excluída pela boa estética moderna ocidental. Aliás, é da exterioridade que fala a obra do artista. Nessa direção, a obra de Hilton pertence e abre um arquivo fronteiriço sobre o qual a razão e o pensamento modernos não chegaram para abrir, por mais que tivessem boa intenção, inclusive estética. Somente uma leitura assentada na opção descolonial e que propusesse um aprender a desaprender (Mignolo) poderia alcançar o lócus e o bios de onde se erige todo o projeto subalterno do artista fronteiriço Hilton Silva.

Em Mal de arquivo (2001), Derrida nos lembra que o sentido de “arquivo” vem do arkheîon grego e significa uma casa, um domicílio, um endereço, lugar onde os magistrados de reuniam (Derrida, 2001, p. 12). O quadro de Hilton consigna o a casa de Conceição, o lugar em que ela trabalhava, ali onde as coisas de fato começavam. Longe de endossar o conceito etimológico do arkheîon grego, o arquivo que a obra de Hilton abre começa na fronteira-sul (físico, geográfico e, sobretudo, epistemológico), lugar onde os deuses subalternos, ou artistas da fronteira comandam e propõem as leis específicas de sua casa e de sua obra. Se o arquivo, como quer o filósofo, guarda a idéia de consignação, de reunião, então podemos ver que Hilton, no quadro destacado, consigna de tudo, desde Bugres, achas de lenha, santos, vela, quarto da mãe, fauna e flora, serrote, facão, machado, objeto pessoais, entre outros, como forma de, assim, erigir um corpus biolócus que configura a condição de subalternização na qual se encontra seu povo e, ao mesmo tempo, põe em funcionamento uma epistemologia capaz de desvelar as histórias locais enterradas vivas pelo sistema colonial moderno imperante na fronteira e nos trópicos latinos.

As belas impressões desarquivadas pelo filho sobre a mãe no quadro, se, por um lado, denunciam a prática de um epistemicídio frequente, por outro, remetem o outro para “memórias da morte” enterradas vivas e histórias locais subalternas e esquecidas que precisam ser desarquivadas nas discussões contemporâneas, sobretudo nos lugares de onde essa produção cultural e artística está emergindo na sociedade. O arquivo que a obra de Hilton propõe e abre, diferentemente do conceito de arquivo moderno (Derrida), parece não sofrer do “esquecimento”: ele não faz outra coisa senão lembrar-se (manter viva) o tempo todo de sua história familiar ignorada pelos postulados da memória moderna ocidental. Se, por um lado, Derrida, relendo a psicanálise freudiana, afirma que “não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior” (Derrida, 2001, p. 22), por outro, uma produção artística subalterna como a de Hilton Silva, produzida exatamente na interioridade da exterioridade não contemplada pelo arquivo do mal, vai nos mostrar e comprovar não sofrer de nenhum mal de arquivo, de nenhuma pulsão de morte, de nenhum esquecimento, nem muito menos trabalhar contra seu próprio conceito de arquivo, entrevendo, por conseguinte, que toda a discussão acerca da subjetividade proposta pela psicanálise freudiana não alcançou a exterioridade, na qual essa produção artística se situa, e cuja exterioridade pode ter sido reforçada também  pelos postulados da ciência do desejo do século 20 no ocidente e em quase todo o resto do  mundo.

A exterioridade está plasmada dentro do espaço biográfico que a obra de Hilton Silva e a de Conceição dos Bugres amalgamam e consignam, como forma de barrar toda e qualquer discussão crítica assentada nos postulados de uma estética moderna elitista, dualista, excludente e conservadora. A partir de um olhar crítico assentado numa opção descolonial e numa epistemologia fronteiriça, por exemplo, a exterioridade torna-se interioridade, isto é, exatamente a compreensão daqueles traços do bios, as sensibilidades e as histórias locais não alcançados pelo sentido produzido por uma política do discurso do dentro. O quadro de Hilton parece nos mandar de volta para casa, para a fronteira, parece nos lembrar de nossa condição fronteiriça, advertindo-nos em nossos ouvidos: “No, gracias, pero no; mi opción es decolonial” (Mignolo, 2005, p. 217).

 

<em>Bugre</em>, de Mariano Neto /Acervo pessoal do autor La opción descolonial no es solo uma opción de conocimiento, uma opción académica, uma matéria de <em>estudio</em>, sino uma opción de vida, de pensar y de hacer. Es decir, de vivir y convivir com quienes encuentran que la opción descolonial es la suya y con quienes han encontrado opciones pararelas y complementarias a la descolonial (Mignolo, 2015, p.468-469).
Bugre, de Mariano Neto /Acervo pessoal do autor
La opción descolonial no es solo uma opción de conocimiento, uma opción académica, uma matéria de estudio, sino uma opción de vida, de pensar y de hacer. Es decir, de vivir y convivir com quienes encuentran que la opción descolonial es la suya y con quienes han encontrado opciones pararelas y complementarias a la descolonial (Mignolo, 2015, p.468-469).

 

A plêiade de Bugres esculpidos por Mariano Neto retoma a linhagem dos Bugres feitos por Conceição e continuados por seu esposo, mais os realizados pelo próprio Hilton Silva. A genealogia familiar indígena mantém viva a plêiade de Bugres esculpidos e inseridos no mercado e na cultura do dinheiro de nossa época. Mas não quero me deter em nenhuma questão atinente a valor, seja ele econômico ou estético, apesar de entender que os Bugres esculpidos por Mariano vêm preenchendo e estendendo o lugar outrora ocupado por todos os demais Bugres esculpidos anteriormente. Por seguirem a pegada do bios e do lócus fronteiriço incrustada em seu próprio corpo, os Bugres de Mariano Neto também barram os conceitos racializados e patriarcais, como os de identidade e de estética, e propõem uma visada descolonial sem precedentes na cultura local fronteiriça da capital Campo Grande, onde são esculpidos, e de toda a fronteira-sul. Se aos olhos do estado, do mercado e do mundo turístico da região eles não passam de enfeites de geladeira e de souvenires exóticos levados para longe, a política identitária, ou melhor, a “identidade em política” (Mignolo) proposta pelo trabalho de Mariano propõe um aprender a desaprender que balança a razão moderna e seus valores estéticos imperiais que grassam na capital e no cerrado. O diálogo ininterrupto que os Bugres de Mariano mantêm com os demais Bugres da família escava um lugar específico para um fazer artístico que é correlato a um fazer descolonial, como forma de manter na opção/ação a herança de um pensamento ameríndio, ou fronteiriço, advindo da fronteira-sul. Somente uma epistemologia fronteiriça pode captar o projeto descolonial que vive nas mentes dos artistas da fronteira e gravado na memória dos corpos talhados e encobertos propositalmente com cera para que sua identidade não seja maculada por teorias democráticas e universalizantes. É de uma consciência bugresca fronteiriça que fala os Bugres de Mariano Neto[2]. A vida “natural” exuberante, de um lugar onde Arte aqui é mato (tudo é considerado arte), mais a profunda memória subalterna e toda a cosmologia ameríndia de seu povo ancestral latino e mais a própria língua vividas pelo artista e amalgamadas dentro de sua produção artística oferecem-nos a possibilidade de compreender o lugar e a memória de quem se é (ser) e de onde se está (estar) (ver Mignolo, 2008, p. 303). Os Bugres e sua memória bugresca, Mariano e seu fazer sinalizam uma discussão estética conceitual aberta ao pluri-tópico e ao pluri-versal, e não mais ao mono-tópico e ao uni-versal nos quais estava assentado todo o pensamento filosófico europeu, incluindo a estética, posto que sua herida abierta (Anzaldúa)[3] continua a sangrar por todo o mundo de forma “diversa e diversificada”.

O epistemicídio indígena operacionalizado no estado pelas forças latifundiárias, estatais, discursivas e epistemológicas tem a cor matizada e vermelha, contrapondo-se ao crepúsculo da fronteira e ao sangue derramado no campo pela luta por terra. Aqui na fronteira a ferida colonial está aberta e os povos indígenas não habitam suas terras prometidas. Os Bugres esculpidos na cidade trazem a marca dessa herança cultural esculpida em seus corpos e seus vincos simbolizam essa ferida aberta que nem sangra mais. Os olhos vazados dos Bugres apontam a direção de uma epistemologia outra que capta e traduz todo seu bios e seu lócus, suas sensibilidades e histórias locais, ao mesmo tempo em que barra o olhar imperial advindo da epistemologia moderna que não fez outra coisa senão castrar a diferença colonial.


*Edgar Cezar Nolasco é pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC/UFRJ (2013); professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e tem várias obras publicadas, entre elas: Perto do coração selbaje da crítica fronteriza (2013) e Michel Foucault: entre o passado e o presente, 30 anos de (des) locamentos (2015), este em coautoria. Email: ecnolasco@uol.com.br

 

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: la frontera (the new mestiza). São Francisco: Aunt Lute Books, 2007.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. de Cláudia de Moraes Pinto. Rio de Janeiro:  Relume Dumará, 2001.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. de Enilce Alberfaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

MIGNOLO, Walter. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antologia, 1999-2014). Espanha: Edicions Bellaterra, 2015. 514p. Epílogo, p. 457-469

MIGNOLO. Walter. Desobediência epistêmica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialid. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2010.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.

MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y opción descolonial. Trad. de Silvia Jawerbaum y Julieta Barba. Barcelona: Gedisa Editorial, 2005.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

NOLASCO, Edgar Cézar. Perto do coração selbaje da crítica fronteriza. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

OLIVEIRA, Marcos Antônio de. Paisagens biográficas pós-coloniais: retratos da cultura local sul-mato-grossense. Tese de doutorado apresentada no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP: [s.n.], 2014.

 

Notas

[1] Faço alusão ao livro Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (2015), de Walter Mignolo.

[2] Acerca de uma Poética Bugresca, ver a tese em Artes de Marcos Antònio de Oliveira, intitulada Paisagens biográficas pós-coloniais: retratos da cultura local sul-mato-grossense, defendida no Instituto de Artes da UNICAMP em 2014.

[3] “The U. S. Mexican border es uma herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds. […] Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, no distinguish us from them. A border is a dividing line, a narrow strip along a streep edge. A borderland is a vague and undetermined place a created by the emotional residue of na unmatural boundary” (Anzaldúa, 2007, p. 25).

Recebido em 5 de julho de 2016.
Aprovado em 8 de setembro de 2016.

PERSPECTIVAS DIDÁTICAS PARA A TRADUÇÃO/LOCALIZAÇÃO DE VIDEOGAMES

Resumo: Estruturar uma disciplina envolvendo tecnologias aplicadas à tradução e localização de videogames em cursos de graduação em tradução é uma tarefa bastante complexa nos dias de hoje, particularmente devido ao escasso acesso a materiais autênticos. Este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, com vistas a refletir sobre as possíveis demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores.

Palavras-chave: Call of Duty; tradução e localização de videogames; ensino de tradução.

Abstract: Designing a course involving the translation and localization of videogames in undergraduate programs in translation is a complex task in today’s reality, particularly due to short access to authentic materials. The main focus of this work is to describe how to manipulate linguistic assets of the first Call of Duty game installment, trying to shed some light on potential translation demands of entertainment software and its incorporation in the translator training.

Keywords: Call of Duty; translation and localization of videogames; translation training.

 

Foi-se o tempo em que o professor de tradução ocupava uma posição central na sala de aula e os alunos permaneciam sentados em suas carteiras ouvindo a tradução “correta” de um texto. Um tempo em que o professor de tradução apresentava o texto, geralmente literário ou técnico, sempre no formato impresso, e os alunos produziam as traduções em papel almaço. Um tempo em que a participação dos alunos restringia-se a escutar a tradução oficial, lida pelo professor, copiá-la da lousa ou reproduzi-la em seus computadores pessoais, geralmente em formato .doc. Como alunos, professores ou pesquisadores versados nos Estudos da Tradução, muitos de nós tivemos essa experiência. Também sabemos que abordagens dessa natureza para o ensino de tradução ainda existem em várias partes do mundo (Delisle, 1998; Colina, 2003; Kiraly, 2014). No entanto, esse cenário se encontra em processo de total transformação, principalmente em nível de organização curricular de ensino de tradução no Brasil e no exterior, atingindo a prática docente em sala de aula.

Hoje, tornou-se imperativo que as aulas de tradução – assim como várias outras (Belanga-Fernández, 2010; de Pablo, 2007) – estejam ancoradas em abordagens centradas nos alunos e que haja um processo ativo de ensino e aprendizagem de tradução através do uso de variados aparatos tecnológicos. Nesse novo paradigma, professores e alunos estão fora de suas carteiras, trabalhando lado a lado, envolvidos em diferentes tipos de atividades práticas não mais restritas ao texto impresso e ao papel almaço. Em comparação ao que se tinha antigamente, as aulas de tradução de hoje estão irreconhecíveis[1].

Atualmente, a dinâmica de trabalho em sala de aula de ensino de tradução consiste em traduzir textos literários, científicos, técnicos, jurídico-comerciais, dentre tantos outros publicados nos mais diversos formatos e extensões de arquivos, com o aporte de sistemas sofisticados de memória de tradução (softwares específicos para produção e edição de traduções, bem como armazenamento de bancos de dados terminológicos e corpora compilados). O objetivo, em linhas gerais, é usar a tecnologia para aumentar a produtividade do tradutor e a qualidade de seu trabalho.

Também faz parte da dinâmica de sala de aula traduzir, com suporte tecnológico, materiais audiovisuais para o cinema, para a televisão, para a mídia impressa e on-line ou para empresas que fazem uso de vídeos corporativos de modo geral. A tradução de sites da internet igualmente integra a lista de exercícios do aprendiz de tradução, que passa a ser capacitado não somente a traduzir hipertextos de conteúdos variados (Pym, 2010; Jiménez-Crespo, 2013), mas também a lidar com uma grande gama de softwares específicos para a tradução e edição de páginas de internet e de todos os formatos digitais que ela reúne.

E as mudanças não param por aí. A incorporação de recursos tecnológicos ao trabalho do tradutor, em consonância com os avanços da internet, também possibilita a tradução de softwares utilitários (Sandrini, 2008), como, por exemplo, programas e aplicações que armazenam dados, que manipulam imagens, que editam textos (e.g., o pacote do Microsoft Office), bem como de softwares de entretenimento, ou videogames, objeto de estudo deste trabalho.

Desde as pinball machines, criadas em 1970, à criação do Pac-Man pela empresa japonesa Nintendo em 1980, que posteriormente teve como produção mais famosa o Super Mario Bros, somadas ao desenvolvimento, entre os anos de 1990 e 2000, do Unicode e de distintas plataformas, como PC, PS2, PS3 e PS4, PSP, Xbox (360), GC, GBA, Nintendo DS (Wii), Wii U, incluindo os smartphones, a bilionária indústria de videogames tem atraído usuários das mais diversas idades e nacionalidades. Isso sem contar a arena on-line que possibilitou às empresas o acesso à opinião dos jogadores de MMO, agregando sofisticação cada vez maior aos videogames, que hoje reúnem arte gráfica, arte fílmica, literatura, ciências da computação e interação audiovisual.

Um dos principais desafios que emerge é como ensinar tantos conhecimentos e habilidades para compreender o emaranhado de arquivos que compõem esses materiais multimodais (Silva, 2014) a serem traduzidos/localizados para outro país, já que a principal estratégia dessa indústria é o alcance de outros mercados com a promessa de garantir jogabilidade e experiência de gameplay similares entre todos os públicos (Chandler; Deming, 2012; Coletti; Motta, 2013; Souza, 2012, 2014). A despeito da rápida expansão da indústria de videogames e da existência de numerosos cursos de formação de tradutores em todo o mundo, muitos cursos universitários em nível de graduação ou pós-graduação ainda não incluíram a tradução de videogames em suas matrizes curriculares (O’Hagan; Mangiron, 2013).

Bernal-Merino (2008) explica que as principais razões para a ausência da prática de tradução de videogames na sala de aula de tradução são: o número reduzido de professores que trabalham com essa temática e que têm que dispor de tempo para explorar as tecnologias disponíveis usualmente utilizadas na extração dos arquivos executáveis dos softwares; a falta de investimento tecnológico por parte das instituições de ensino; e a dificuldade de se estabelecerem parcerias entre as universidades e a indústria de localização de videogames. Para o autor, a junção desses fatores faz com que a tradução e localização de softwares de entretenimento sejam estudadas apenas em nível teórico. Quando muito, trabalha-se com traduções descontextualizadas – em arquivos passíveis de serem abertos em editores de texto comuns – de materiais linguísticos dos videogames, sequer abordando questões inerentes à sua multimodalidade (Gambier, 2006), e/ou aos seus aspectos técnicos e tecnológicos, sobretudo em termos de manipulação de software (Bernal-Merino, 2008, 2014), e/ou às inúmeras possibilidades narrativas (Mäyrä, 2008), haja vista que não existe uma sequência linear exata para muitos videogames, como os de RPG (role play game).

Nesse contexto, este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, distribuída pela Activision Blizzard desde 2003, com vistas a refletir sobre as demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores. Trata-se de uma proposta didática, de viés naturalista, que busca apresentar formas de manipulação textual de um videogame, com vistas a “alimentar” e “amadurecer” a formação do tradutor-localizador de videogames. Este trabalho constitui-se como um primeiro passo para a futura estruturação de uma disciplina voltada especialmente à tradução e localização de videogames[2], que exigirá a adoção de uma metodologia no mínimo compatível com os estudos que circundam a tradução, localização e multimodalidade.

No caso da instituição à qual pertencem os autores deste trabalho, o Curso de Bacharelado em Tradução do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL/UFU), criado no âmbito do Reuni, possui em sua matriz curricular duas disciplinas destinadas ao ensino e à aprendizagem de ferramentas tecnológicas de apoio ao tradutor, intituladas Treinamento de Tradutores e Novas Ferramentas I e II. Com o número cada vez maior de oferta de ferramentas de tradução – on e off-line –, optou-se por dividir o conteúdo das disciplinas da seguinte forma: na disciplina I, o aluno é instrumentalizado a trabalhar com os principais sistemas de memória de tradução, conhecidos internacionalmente como as principais CAT Tools (computer-assisted translation tools); na disciplina II, dedica-se à prática de tradução e localização de websites e softwares utilitários e de entretenimento, sendo dedicadas apenas três unidades didáticas à tradução de videogames.

Por que o primeiro videogame da série Call of Duty (2003)?

A resposta a essa pergunta é relativamente simples e pode ser depreendida de outras indagações: como conseguir softwares inéditos, arquivos executáveis e todos os outros elementos da linguagem de programação que fornecem a interação entre o videogame, a plataforma e o usuário? Como seguir o exposto por Kiraly (2000), que já afirmava, há mais de uma década, que as aulas de tradução que não estiverem baseadas em materiais autênticos e em situações do mundo real são desmotivadoras e sem propósito?

Central nisso é destacar que as empresas desenvolvedoras dos videogames não cedem seus arquivos, seja para uso didático ou não, por questões de sigilo e direitos autorais. A título de ilustração, em contato recente feito pelos pesquisadores deste trabalho junto à Synthesis Brasil, responsável pela tradução e localização do videogame Far Cry 4, a empresa informou que, com o intuito de evitar ilegalidades, apenas fornece os arquivos aos tradutores profissionais envolvidos no projeto, os quais, por sua vez, assinam contratos de sigilo e recebem os textos fragmentados em tabelas do Word ou Excel, de forma não linear, organizados em colunas independentes e sem quaisquer referências ao contexto do videogame. O desafio pedagógico dos professores é como abordar e ensinar essa temática nos cursos de tradução sem o manuseio e a experiência tradutória de materiais reais, que poderiam simular o que o mercado exige do tradutor-localizador.

Para Gouadec (2003) e Bernal-Merino (2014), o tradutor não é um simples agente na linha de produção de localização de software, mas sim um profissional-chave que dará sustentação para todo o processo de localização. É, sim, um profissional que terá de lidar com mais de dez diferentes plataformas de adaptação cultural e linguística de um único videogame, com especificidades técnicas que acrescentam complexidade ao hardware e software, bem como gigantescos glossários de termos técnicos. Ainda, para Bernal-Merino (2008, 2014), um tradutor-localizador dessa mídia tem de: entender da tradução do videogame em si, com uma variedade de textos em múltiplos formatos em áudio e vídeo, com seus manuais de instalação e arquivos de ajuda; traduzir o site oficial do videogame, lidando com a linguagem HTML e JavaScript, além da linguagem propagandística que envolve o material de divulgação do videogame; traduzir os patches (ou programas extras) que aumentam a funcionalidade do videogame, o que demanda que o profissional da tradução conheça sua ambientação e personagens.

Diante dessa variedade de textos e formatos de arquivos, percebe-se o quanto o processo de tradução de um videogame pode ser complexo. Para Yuste-Frías (2014), um tradutor de videogame não é somente o sujeito que traduz os textos que serão dublados ou lidos nas legendas, mas também o primeiro agente paratradutor e, por conseguinte, o melhor localizador, aquele que deveria decidir pela edição definitiva de todos e de cada um dos paratextos que envolverão o videogame na tela, bem como daqueles que irão prolongá-lo fora dela.

Diante disso, fez-se necessária uma escolha para a exploração pedagógica dessa temática. Após realizada uma busca na internet, percebeu-se que o videogame Call of Duty (2003) para PC encontrava-se disponível na íntegra, com todos os seus arquivos de texto, áudio e vídeo, o que possibilitou seu uso para fins didático e de manipulação textual para tradução. Além disso, trata-se, nas palavras de O’Hagan e Mangiron (2013, p. 15), da série mais rentável da história dos videogames, ultrapassando as bilheterias das séries cinematográficas Harry Potter e Star Wars.

Do gênero de tiro em primeira pessoa (first person shooter), o primeiro videogame da série Call of Duty foi produzido pela empresa estadunidense Activision Blizzard e lançado em 2003. A série, inicialmente desenvolvida para Microsoft Windows, expandiu-se rapidamente para outras plataformas, como PlayStation, Wii, XBOX, dispositivos portáteis e, também, Macintosh. Em Call of Duty 1, 2 e 3, a produção é ambientada na Segunda Guerra Mundial. Call of Duty 4 (Modern Warfare), lançado em 2007 e seguido de Modern Warfare 2 (2009), narra uma guerra fictícia. Por sua vez, Call of Duty Black Ops, lançado em 2010, revela um cenário futurístico e é seguido de Black Ops II (2012), que se ambienta em 2025. Em seguida, Call of Duty: Ghosts foi lançado em novembro de 2013 e Advanced Warfare, em 2014. Em abril de 2015, a Treyarck, empresa desenvolvedora do videogame, anunciou o lançamento de Black Ops III.

Para fins didáticos, dos tipos principais de projeto de tradução e localização de videogames descritos por Bernal-Merino (2008) e O’Hagan e Mangiron (2013), quais sejam, full localization (i.e., localização completa, que consiste na tradução dos boxes e documentos do videogame, de seu website e até mesmo em marcas culturais de recursos midiáticos) ou partial localization (i.e., localização parcial, que, como o próprio nome demonstra, consiste na tradução de apenas algumas partes do videogame), acreditou-se ser possível implementar em sala de aula apenas este último, isto é, tradução e localização parcial do jogo. No exemplo tratado aqui, ilustra-se apenas a manipulação do menu principal do videogame. Para O’Hagan e Mangiron (2013), seria necessário, para se traduzir em sala de aula um jogo completo (full localization) pensar em disciplinas exclusivas para tradução e localização de videogames que sejam no mínimo compatíveis com sua sofisticação.

A estrutura do videogame e a manipulação textual

Para a realização da tradução do videogame Call of Duty, é necessário fazer com que o aluno entre em contato com alguns conceitos básicos sobre a estruturação dos arquivos. Na maioria dos casos, os videogames para PC possuem uma pasta chamada “local”, que contém as strings (linhas ou cadeias de texto) do videogame. Neste caso, pode-se editar o conteúdo desses arquivos, que, em se tratando de Call of Duty, encontram-se no formato XML, viabilizando a utilização da aplicação Notepad++[3] para a tradução, configurando-se, assim, como um exemplo simples de manipulação textual.

Todas as strings estão compactadas em um arquivo-pasta de extensão “.pk3” – semelhante a um arquivo “.rar” ou “.zip” –, que contém várias pastas e/ou arquivos compactados. Para manipular esses arquivos, é necessário o uso do software PakScape[4]. Para realizar a extração das strings do videogame, segue-se o seguinte caminho: C:\Program Files\Call of Duty\Main. Dentro da pasta “Main” estão os arquivos “.pk3”. O arquivo de interesse é o arquivo “localized_english_pak1.pk3”, no qual estão contidas as strings para tradução. Ao se abrir o arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” por meio do software “PakScape”, são exibidas as pastas e os arquivos (resultado similar ao da abertura de um arquivo “.rar” com o programa Winrar).

Expandindo a pasta “english”, através do botão “+” em “localizedstrings”, os arquivos serão apresentados com a extensão “.str”. No exemplo a seguir, o arquivo a ser editado será o “menu.str”, que, como o próprio nome indica, possui as strings do menu principal do videogame (Figura 1).

 Figura 1: Instantâneo da tela do software PakScape / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa PakScape
Figura 1: Instantâneo da tela do software PakScape / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa PakScape

É importante ressaltar que não existe um padrão de extensão de arquivos traduzíveis em videogames, o que depende do desenvolvedor/programador. Vários videogames incluem ainda os arquivos de vídeo e legendas, como em um filme, o que torna a tradução impossível sem o apoio do desenvolvedor/programador. A esse respeito, Bernal-Merino (2008, 2014) afirma que a indústria de videogames infelizmente não criou uma única ferramenta de localização capaz de traduzir os softwares de entretenimento. No caso de Call of Duty utilizado aqui como exemplo, o videogame para PC disponível na internet possui arquivos em pk3, que podem ser abertos pelo software PakScape; no entanto, isso não é possível com a maioria dos softwares.

Em seguida, cria-se uma pasta separada fora do programa “PakScape”, no local de preferência do usuário. Então, copia-se o arquivo que se deseja traduzir, que, neste exemplo, é o arquivo “menu.str”. Após editado (no caso, traduzido), esse arquivo deverá ser salvo, usando o programa “PakScape”, dentro do arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” em substituição ao arquivo anterior”.

Para edição (i.e., tradução), deve-se clicar com o botão direito do mouse sobre o arquivo “menu.str” e selecionar a opção “Edit with Notepad++” (assumindo que o programa já esteja instalado com as configurações padrões; do contrário, é necessário instalar o programa pela primeira vez ou novamente). Após aberto no programa “Notepad++”, o arquivo será exibido da forma apresentada na Figura 2.

Figura 2: Instantâneo do arquivo a ser traduzido no software Notepad++. / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa Notepad++.
Figura 2: Instantâneo do arquivo a ser traduzido no software Notepad++. / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa Notepad++.

As strings a serem traduzidas estarão sempre seguidas da palavra “LANG_ENGLISH” e entre aspas, conforme destacado em retângulo na Figura 2. Neste caso, a string a ser traduzida é a palavra “Yes”. Nesta fase, já é possível fazer a tradução.

Aqui cabem duas observações: (i) não se pode abrir arquivo “.str” (neste caso, “Menu.str”) em outros editores de texto como o Microsoft Word, pois ele adiciona recursos de formatação que não são aceitos pelo videogame Call of Duty; e (ii) não se pode alterar as aspas utilizadas para delimitar a string (por exemplo, aspas normais por aspas inglesas), pois quaisquer alterações podem inserir bugs e, por conseguinte, comprometer a jogabilidade.

Após o término das traduções, deve-se salvar o arquivo e copiá-lo no software PakScape (neste caso, “Menu.str”) para a pasta “localizedstrings/english”. O programa exibirá uma caixa de diálogo perguntando se o arquivo deve ser substituído. Clica-se na opção “Yes to all”. Após clicar em “Yes to all”, é necessário clicar no menu “File” e, depois, na opção “Save” do programa “PakSapace”.

Na Figura 3, pode-se observar a tradução de parte do menu “Choose skill level” (“Escolha seu nível de habilidade”), em que as palavras “Back” e “Greenhorn” foram substituídas, respectivamente, por “Retornar” e “Iniciante”. Observa-se, assim, como se pode manipular as strings de texto em uma aula prática de tradução de videogames.

Figura 3: Tradução do menu principal, na aba “Choose skill level”. / Fonte: instantâneo de Call of Duty traduzido pelos autores com o aporte do software Pakscape.
Figura 3: Tradução do menu principal, na aba “Choose skill level”. / Fonte: instantâneo de Call of Duty traduzido pelos autores com o aporte do software Pakscape.

Demandas tradutórias para a prática de tradução de videogames em sala de aula

Neste trabalho, buscou-se descrever uma forma simples de manipulação do componente textual do videogame Call of Duty, com o propósito de evidenciar, sob uma perspectiva tecnológica, as demandas tradutórias de um tradutor-localizador de videogames. Tal descrição possibilitará a construção mais coerente e eficaz de uma unidade didática destinada a esse tipo de material. Como não é possível obter um videogame autêntico diretamente de uma empresa desenvolvedora por questões comerciais, de sigilo e de direitos autorais, optou-se por utilizar um videogame disponível na internet e que pode ser baixado livremente, com seus arquivos originais de texto.

Para o caso concreto de construção de uma unidade didática destinada a esse fim, destaca-se, pelo menos no contexto atual ora descrito, a tradução apenas dos peritextos (e.g., títulos, índices/menus e textos de apresentação) que introduzem o texto a ser traduzido. Sabe-se que os hipertextos dos videogames, compostos de textos, imagens e sons (as unidades verbo-ícono-sonoras), inseparáveis no processo de localização, também necessitam ser trabalhados em sala de aula, mas, por questões de tempo disponível na disciplina, ainda não foram contemplados. No entanto, vale lembrar que, como o perfil dos alunos é heterogêneo, havendo aqueles mais afeitos e aqueles mais avessos à tecnologia, é importante uma abordagem por tarefas de crescente nível de complexidade (Hurtado-Albir, 2007). Nesse sentido, o exemplo ora mostrado parece ser uma base adequada para que se possa vir a trabalhar, caso possível, em níveis mais avançados de manipulação de software, inclusive dos materiais midiáticos dos videogames.

De todas as maneiras, a tradução apenas do menu do videogame, no exemplo aqui descrito, pode ilustrar os caminhos e/ou cuidados necessários para se lograr uma tradução eficaz, a qual não apenas se restringe ao componente linguístico propriamente dito, mas também inclui as especificidades de um software que, se respeitadas, garantem a jogabilidade. Inclusive, é possível fazer alterações em strings a fim de mostrar aos alunos como é importante se ater ao conteúdo linguístico que pode ser alterado.

Considerações finais

O processo de tradução e localização de um videogame envolve adaptar as necessidades do produto ao mercado. Esforços devem ser feitos no sentido de estabelecer parcerias entre a universidade e o mercado de trabalho, com vistas a acompanhar a crescente evolução dos videogames. Ao que tudo indica, o caminho nessa direção é árduo, mas nos parece ser o ideal se quisermos de fato trabalhar com materiais autênticos e, mais que isso, acompanhar a esteira do desenvolvimento tecnológico, que segue cada vez mais rápida. Igualmente, esse esforço é necessário se também quisermos desenvolver boas práticas (best practices) de tradução e localização de videogames, o que certamente ultrapassa o uso de planilhas do Microsoft Excel com fragmentos de texto a serem desvendados por tradutores desmunidos de uma de suas principais armas: o contexto.

Principalmente por não se tratar de um freeware, um software de domínio público ou software disponibilizado sob uma licença creative commons (que permite livre distribuição e uso, com algumas ressalvas), lembramos a importância da legalidade e ética no que diz respeito ao uso de softwares em sala de aula. O exemplo ora apresentado faz uso apenas de uma parte ínfima do software, restrita à sala de aula e, portanto, sem qualquer distribuição ou alteração de código-fonte. Acreditamos que iniciativas dessa natureza talvez possam convencer a indústria de que uma pareceria é viável sem infringir o sigilo e os direitos autorais. Essa parceria é fundamental se de fato desejamos transcender o componente linguístico e abordar todos os aspectos envolvidos na tradução e localização de games, o que inclui, dentre outros, a multimodalidade, a narrativa não linear e o manejo de tecnologias amigáveis (user-friendly) e outras nem tanto. Certamente, todas as partes envolvidas (distribuidores, desenvolvedores, usuários, pesquisadores, professores e tradutores-localizadores) têm muito a aprender com base no conhecimento compartilhado e na troca de experiências.

* Marileide Esqueda é professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
** Igor A. Lourenço da Silva é professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutor em estudos linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.

 

Referências

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Notas

[1] A despeito do fato de a tecnologia, principalmente aquela relacionada aos sistemas de memória de tradução, ter transformado as dinâmicas de sala de aula, Kiraly (2014, p. 3) explica ainda haver a necessidade de se repensar o ensino teórico e prático de tradução, com vista a não formarmos autômatos.

[2] Apesar dos atuais debates que rondam tal denominação, Dunne (2015) define a localização como o processo pelo qual determinado produto ou conteúdo digital desenvolvido em uma localidade é adaptado linguística e culturalmente para ser vendido em outros países. No caso da tradução e localização de videogames, o termo está associado à expansão e alta rentabilidade na produção de videogames e consoles, que fazem com que a indústria vise atingir o maior público possível ao redor do mundo, havendo a necessidade da adaptação à cultura e ao cotidiano dos jogadores, objetivando oferecer uma experiência de jogo completa ao usuário.

[3] Notepad++. Disponível em: <https://notepad-plus-plus.org>. Acesso em: 31 jan. 2016.

[4] PakScape. Disponível em: <http://jkhub.org/files/file/89-pakscape/>. Acesso em: 31 jan. 2016.

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

THE BINDING OF ISAAC E O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE

Resumo: A interatividade do digital encontra seu precedente na leitura de ficção, conforme apontado por Wolfgang Iser. Este trabalho se baseia nos “jogos persuasivos” de Ian Bogost e em alguns conceitos de Espen Aarseth para tratar do videogame independente The Binding of Isaac, de Edmund McMillen. Por fim, sugerimos como a experiência estética proporcionada por este jogo pode dialogar com o conceito de eterno retorno em Nietzsche e Deleuze.

Palavras-chave: Jogo eletrônico; literatura; filosofia; teoria da recepção; Nietzsche.

Abstract: The interactive quality of digital works has its precedents in the reading of fiction works, as per Wolfgang Iser’s reader-response theory. This paper borrows concepts forged by Ian Bogost (“Persuasive Games”) and Espen Aarseth to talk about the independent video game The Binding of Isaac, by Edmund McMillen. Finally, we draw parallels between the aesthetic experience offered by this game and the notion of eternal recurrence in Nietzsche and Deleuze.

Keywords: Video games; literature; philosophy; reader-response theory; Nietzsche.

 

Este trabalho procura estabelecer uma ponte entre os modelos do ato de leitura de Wolfgang Iser e os códigos de interação dos videogames para então se concentrar em um caso particular: o do videogame independente The Binding of Isaac e seu remake, The Binding of Isaac Rebirth, de Edmund McMillen. Por fim, vamos sugerir como a experiência estética proporcionada por estes games pode dialogar com o conceito de eterno retorno em Nietzsche e Deleuze.

Partimos da hipótese de que a interatividade se funda numa tradição de muitos séculos. Explicitar essa genealogia será a tarefa inicial do presente trabalho, apoiando-se, para isso, na teoria da recepção de Wolfgang Iser e no trabalho inovador de Ian Bogost, Persuasive Games (2007), que trata dos videogames como continuação (e concretização) dos esquemas formativos da retórica clássica. Também faremos referência a Espen Aarseth (1997) e seus conceitos precisos para qualificar certos fenômenos dos jogos eletrônicos. Por fim, apoiando-nos nessa base teórica, vamos propor uma leitura do videogame The Binding of Isaac e seu remake (2011, 2014) como dispositivo retórico que convence seu usuário a se engajar numa versão lúdica do eterno retorno conforme proposto por Nietzsche e relido por Deleuze.

Tratar a interatividade do digital como um fenômeno totalmente inédito é, a nosso ver, uma concepção errônea. Não vamos nos alinhar ao pensamento de quem, como Astrid Esslin (2014), alega que ficção literária e videogames seriam fenômenos fundamentalmente diferentes, o que faria com que as ferramentas de teoria de literatura resultassem ultrapassadas e inúteis para a análise dos jogos eletrônicos. Para Esslin, a relação autor-leitor seria necessariamente “assimétrica”, pois o autor de literatura é um “titereiro” [puppet master] e o leitor, “passivo” (2014, p. 27-28); e em decorrência disso a interatividade proporcionada por games e livros seria de um tipo diferente. Não concordamos com a premissa, pois nos alinhamos à visão de Wolfgang Iser sobre a ficção literária; mas mesmo que concordássemos com a premissa, não vemos como ela levaria à conclusão, pois a suposta desigualdade de poder entre autor e leitor apontada pela autora seria idêntica nos videogames, também criados por um autor e deixados “em repouso” até que um jogador os peguem para jogar. Dizendo de outro modo, não entendemos como a interação mental seria necessariamente uma relação de poder assimétrica e a interação física não.

Além disso, para Esslin, cada nova partida do mesmo jogo eletrônico varia muito mais entre si do que cada nova leitura de um mesmo texto fixo de ficção, e portanto isso pediria a criação de novas ferramentas teóricas e total desconsideração das antigas (2014, p. 28). Desta vez, concordamos com a premissa, mas não com a conclusão. A nosso ver, esta é uma visão superficial, que descarta todas as contribuições – nem tão recentes assim – da semiose, da cibernética e da teoria de comunicações para a análise de fenômenos comunicacionais. Pensamos que jogos eletrônicos e literatura têm mais pontos em comum do que se pensa, e que pode ser imensamente frutífero compartilhar também algumas de suas ferramentas teóricas, com as devidas adaptações para os diferentes suportes e mídias.

A teoria iseriana de ficção e o videogame

Vamos começar falando de Wolfgang Iser, que com sua teoria da recepção nos mostrou que a leitura de obras de ficção é tudo menos “passiva”. Uma vez tomado o texto que o autor deixou “em repouso”, o leitor passa a tecer com este texto uma rede intricada de presunções, expectativas e surpresas que não merece outro nome senão o de interativa. E é esta interação entre texto e leitor a verdadeira experiência estética que chamamos de literatura – e não um sentido armazenado no texto que o leitor absorve “passivamente”.

O arcabouço teórico de Iser, ambicioso e abrangente, nos permite compreender a possibilidade de efeito, impacto e influência de obras ficcionais na vida real (e vice-versa). Em O ato de leitura (1978), Iser nos apresenta os traços básicos dessa teoria.

A ideia central de O ato de leitura é de que não há um sentido armazenado no texto, mas que é a interação texto-leitor que provê a experiência estética literária, a qual será diferente não só de leitor para leitor, como também numa segunda leitura (e subsequentes).

Textos literários “iniciam ‘performances’ de sentido” com suas estruturas fixas, mas cada leitor real específico entrará com seu repertório de convenções, valores e experiências (de vida e de leitura) armazenadas, procurando preencher as lacunas intencionais do texto. Sendo assim, cada leitura compila um sentido diferente para o mesmo texto; traz algo único ao mundo.

O leitor será continuamente desafiado pelo texto em suas projeções do que acontecerá na trama e nas memórias do que já foi lido, e por sua mente vão passar imagens ricas, polimorfas, sem um sentido fechado. Mas a novidade dessas experiências impele o leitor a buscar a determinação do discurso – e é este discurso que fecha o sentido (1978, p. 22-3).

Nesse momento de transmutação em discurso, a experiência deixa de poder ser chamada de estética, já que “a palavra ‘estético’ é um constrangimento para a linguagem referencial, pois designa uma lacuna nas qualidades definidoras da linguagem em vez de uma definição” (1978, p. 22, tradução nossa). E se algo é transformado em discurso, assumiu um significado, pressupondo um referente fixo, justamente o que a experiência estética se define por não ter.

Cada experiência estética é única, pois é o resultado do encontro entre o leitor em dado momento de sua vida e a obra. Embora o texto da obra literária geralmente não mude – exceções feitas a experiências literárias como a da Oulipo, de Raymond Queneau e Georges Perec, e a outras formas de cibertexto –, o próprio Iser nos diz com todas as letras que a experiência pessoal sempre mutante do leitor, que forma seu repertório, afetará a experiência estética da leitura: “Em uma segunda leitura, ocorrências familiares aparecem sob nova luz; às vezes nos parecem corrigidas, às vezes, enriquecidas” (1972, p. 285).

Agora levemos estas ideias para a análise do jogo eletrônico. Assim como no livro, não há um sentido armazenado no jogo eletrônico “em repouso”; é a partir da interação com o repertório pessoal do usuário que ele ganhará um sentido. E, tal e qual um livro, o jogo eletrônico não funciona sozinho; o mundo do jogo vai sendo sintetizado e mostrado ao usuário conforme ele o navega, em uma revelação gradual semelhante à que se encontra na literatura.

Para navegar um livro de ficção linear em papel é preciso virar a página, um esforço trivial; já em um livro não tradicional o esforço pode ser mais significativo. Em Cent Mille Milliards de Poèmes, de Raymond Queneau, o leitor se depara com um soneto todo “fatiado” verso a verso, de forma que para desfrutar da obra segundo a proposta dela mesma, deve virar a página para mudar um ou vários versos, constituindo assim novos e diferentes poemas. O fato de o usuário precisar apertar botões e alavancas físicos para jogar um jogo eletrônico é uma instrumentalização de uma interação que já existia em casos como o da Oulipo – Espen Aarseth (1997, p. 1) chama essa interação física não trivial de extranoemática.

É importante notar que, no videogame, a experiência que o usuário tem dos textos, imagens e sons oferecidos é coordenada por decisões autorais codificadas em linguagem de programação. Estas decisões e suas implicações podem ou não ser notadas pelo jogador, mas, de qualquer modo, após aprender os comandos de controle, ele vai procurar entender os desafios do mundo do jogo para melhor enfrentá-los. Dizendo de outra forma, ele vai inferir as regras do comportamento do jogo a partir de sua interação[1]. O jogador sabe que precisa fazer coisas com os comandos disponíveis e sob as restrições daquele mundo que avancem sua experiência do mundo do jogo. E ele sabe isso devido a seu repertório de experiências com outros jogos; se não sabe, é preciso aprender. Está aí mais uma similaridade com a fruição de literatura segundo Iser.

Aarseth (1997, p. 62-65) estabelece uma tipologia do cibertexto que pode nos ser útil, com algumas adaptações para tratar do caso dos videogames, que são multimídia. Primeiramente ele estabelece uma diferença entre scriptons e textons: o primeiro seria o texto conforme existe em seu suporte; o segundo é o texto que efetivamente lemos. Ele dá o exemplo dos Cent Mille Milliards de Poèmes de Queneau, que tem apenas 140 scriptons que se combinam em até 100 trilhões de textons possíveis.

No caso do Oulipo, os parâmetros de sintetização dos textons eram expressos ao leitor na forma de linguagem e deviam ser por ele aplicados aos scriptons. Já os parâmetros que regem a sintetização do equivalente aos textons nos videogames tomam a forma de scriptons legíveis pelo computador. Ou seja, as regras subjacentes à sintetização de uma partida de um jogo eletrônico não são legíveis em forma de texto literário, e nem os jogadores devem se preocupar em aplicá-las ao desenrolar do jogo; os computadores arcam com a responsabilidade de constituir a superfície interativa da obra.

Aarseth (1997, p. 62-65) também nos ilumina quanto à navegação pela superfície dos textons, que, em nosso caso particular, são a superfície do jogo eletrônico. Ele fala de uma “função navegadora” (traversal function) que pode ser classificada em sete categorias, segundo a proposta do próprio cibertexto para a sua leitura: dinâmica, determinabilidade, transitoriedade, perspectiva, acesso, vinculação e funções do usuário.

Com esta classificação, chamamos atenção para o fato de estar previsto nas regras de cada jogo eletrônico que o mundo apresentado “reagirá” e “mudará” conforme as ações do jogador; quer dizer, o fato de que tudo o que acontece no mundo virtual foi previsto, codificado e testado (não exaustivamente) pelo autor – do mesmo modo que um texto de ficção, até o de texto fixo e linear, nunca pode ser exaustivamente testado (em todos os seus possíveis efeitos) pelo seu autor.

A superfície do jogo eletrônico (o equivalente aos textons de Aarseth) varia de partida para partida, mas a obra subjacente (os scriptons, ou o código de programação que molda o jogo) não muda – exceto em casos de falha no planejamento autoral (que resultem em defeitos tais como personagens “presos na parede”) ou interferências posteriores no código por parte do usuário (como os programas mods). Esses casos seriam equivalentes, no caso de um livro de papel, a erros de impressão ou interferências artísticas posteriores sobre o suporte, ausentes da experiência originalmente prescrita para a obra.

Esperamos, com tudo isso, ter estabelecido o quanto a ficção literária e o jogo eletrônico compartilham características essenciais, e em que grande medida dependem de sua interação com o usuário. Agora vamos falar das diferenças.

A verdadeira novidade nos jogos de computador, segundo Ian Bogost (2007), é que o computador é a primeira mídia que permite a representação de processos por meio de processos. Segundo ele, processos reais vistos como causais – sejam eles materiais, como o funcionamento das engrenagens de um relógio, ou culturais, tal como o atleta que entrega o jogo por dinheiro –

podem ser recontados através da representação. No entanto, a representação procedural tem uma forma diferente da representação escrita ou falada. A representação procedural explica processos com outros processos. A representação procedural é uma forma de expressão simbólica que utiliza processo em vez de linguagem. […] A representação procedural em si requer a inscrição em uma mídia que de fato encene processos em vez de meramente descrevê-los (2007, p.9).

Bogost nos lembra (2007, p. 10) que atores humanos também encenam processos (o balconista, o supervisor, o militar, até mesmo a criança, que realiza o processo de “amarrar o sapato” ou o de “pôr a mesa”). Mas o ser humano não é uma boa mídia de expressão de processos: o corpo se cansa, precisa de incentivos e não tolera repetição excessiva, ao contrário do computador, que é feito para isso.

Sendo assim, para Bogost, certos programas de computador são

agentes expressivos, dedicados a esclarecer, explorar ou comentar processos humanos na mesma linha que a poesia, a literatura e o cinema. Não importando seu conteúdo, esses programas de computador usam processos para expressão, e não com vistas a alguma utilidade. Enquanto prática inscritiva, a proceduralidade não está limitada à fabricação de ferramentas (2007, p. 11).

Alguns destes programas são cibertextos “puros”, sem multimídia; outros, jogos eletrônicos com som, imagem e texto. Mas todos eles têm em comum a encenação de processos na forma de outros processos.

Apoiando-se em diversos teóricos, tais como Kenneth Burke, Bogost (2007, p. 20-40) procura expandir o conceito de retórica, originalmente oral e com função persuasiva, até incluir nela o domínio escrito, visual e, por fim, procedural, abarcando também a função de expressão autoral. Ele busca, assim, justificar sua identificação de tropos (lugares-comuns) afins aos da retórica nas narrativas procedurais digitais; mas não é este o nosso intuito aqui. Queremos, em vez disso, ousar uma analogia talvez surpreendente.

A retórica sofistíca era uma prática procedural inscrita em seres humanos e praticada pelos mesmos com um intuito instrumental: a persuasão do público, seja para os fins que for, considerando estes fins tácita e automaticamente morais devido à aprovação da maioria. Platão começou uma prática inscritural diferente, que registrava diálogos filosóficos em linguagem escrita e permitia sua circulação. A maioria desses diálogos tinha como personagem o seu mestre, Sócrates, e boa parte deles procurava, de uma forma ou de outra, desenterrar e questionar os pressupostos tácitos da experiência humana (inclusive a retórica sofística). Posteriormente, seu discípulo Aristóteles (segundo Bogost, 2007, p. 17-18) reenquadrou a retórica como passível de persuadir o público para fins filosoficamente corretos – também inscrevendo seus procedimentos de composição em linguagem escrita. Cremos ser possível, nessa linha, enquadrar a ficção como uma prática procedural inscrita em linguagem e praticada pelos seres humanos com intuito primariamente expressivo.

Para Bogost (2007), o intuito dos jogos eletrônicos não é exclusivamente expressivo, dado que ele intitulou seu livro Persuasive Games [Jogos persuasivos]. Jogos eletrônicos seriam um tipo de ficção peculiar, que também pode persuadir além de expressar. Isso está em sintonia com sua dupla qualidade que identificamos: de inscrição linguística e procedural, e de interação tornada singular não só pela sintetização procedural da partida a partir das interações como também pelo repertório pessoal de cada usuário.

Passemos agora a um caso particular: o do jogo eletrônico The Binding of Isaac (2011), seu remake (2014) e continuação (2015), todos concebidos por Edmund McMillen.

The Binding of Isaac: um estudo de caso

Recentemente, os jogos eletrônicos criados por estúdios independentes e equipes pequenas, em geral com gráficos mais simples que os das grandes companhias, têm tido mais oportunidade de fazer frente aos gigantes da indústria devido às plataformas de distribuição digital de jogos, como o Steam (2002). Há também uma profusão de sites de crowdfunding, que permitem a qualquer pessoa contribuir financeiramente para a realização de um projeto artístico de qualquer natureza. Isso permitiu uma espécie de renascença dos jogos eletrônicos independentes, que primam por permitir mais expressão autoral e admitir ideias mais ousadas e potencialmente polêmicas (Anthropy, 2012).

Um recente jogo eletrônico independente disponibilizado na plataforma Steam se chama The Binding of Isaac (2011), de Edmund McMillen. O jogo foi refeito em 2014 como The Binding of Isaac Rebirth, e em 2015 foi liberada uma continuação deste remake com o nome de Afterbirth. Trata-se de um jogo para adultos que, além de oferecer desafio extranoemático considerável ao jogador, proporciona-lhe uma experiência estética expressiva sobre fanatismo religioso e traumas infantis (e sua superação), baseada nas experiências pessoais de seu autor (conforme suas entrevistas ao documentário Indie Game: The Movie, de 2012).

A história do jogo Isaac é levemente inspirada no episódio bíblico em que o patriarca Abraão recebe de Deus a ordem para sacrificar seu único (e tardio) filho, Isaque. Abraão toma todas as providências para obedecê-Lo, mas Deus o manda parar no último instante. Isaque sobrevive, dando origem à nação de Israel. Já o jogo The Binding of Isaac [A amarração de Isaque, em tradução livre] se passa nos tempos atuais e, em seu prólogo, nos apresenta uma mãe fanática religiosa que, enquanto assiste um programa de TV cristão, ouve o que parece ser a voz de Deus mandando castigar e por fim matar o seu único filho, Isaac. Ela obedece a voz, indo atrás dele com uma faca. O menino foge e se esconde da mãe no porão – e é neste cenário que se passa o jogo propriamente dito.

No porão, Isaac luta contra monstros que assolam a imaginação infantil, como insetos, centopeias e criaturas mitológicas, e sua arma são suas lágrimas, que voam pelo cenário. Cada vez que o chefe de um nível é vencido, Isaac desce por um alçapão: do porão para as cavernas, daí para o útero materno e, por fim, para o inferno. Há grande presença de simbologia religiosa e freudiana no jogo, e vários finais alternativos que enfatizam essas influências: em um, Isaac luta contra a mãe, e em outro, contra Satã; por fim, chega a lutar contra si próprio.

Tela do jogo The Binding of Isaac
Tela do jogo The Binding of Isaac

O visual do jogo, em contraste com seu tema pesado, é simples e cartunesco, quase infantil – e, de fato, há inúmeras insinuações de que se trata de um mundo de pesadelos imaginado e desenhado pelo pequeno Isaac para fugir de sua vida problemática.

O ''testamento'' infantil deixado por Isaac quando se perde o jogo
O ”testamento” infantil deixado por Isaac quando se perde o jogo

Mas além de se expressar com palavras, sons e imagens, o jogo também se expressa através de processos, conforme nos aponta Ian Bogost (2007). No caminho, Isaac pode encontrar itens que melhoram ou pioram seus atributos e parâmetros (como velocidade, tamanho, sorte) bem como os de suas lágrimas-projéteis (como o dano que infligem, altura, diâmetro). Há também itens que ficam ao lado de Isaac, ajudando-o de diversas formas (inclusive lançando tiros).

Alguns dos itens encontráveis pelo personagem são claras referências a abusos infantis, como o “cinto” e a “colher de pau”, cujo efeito é fazer Isaac correr mais rápido. Há também itens como a “carne podre” e o “jantar” (cuja imagem é uma lata de comida de cachorro), que aumentam o número de corações que medem a saúde de Isaac – o tornam mais forte. Muitos dos novos itens que Isaac encontra ao longo do jogo alteram também sua aparência inicialmente pueril. Por exemplo, pegar o item “cabide de arame” não só aumenta as lágrimas de Isaac como faz com que seu rosto apareça atravessado por um cabide. (O item é uma referência ao livro autobiográfico Mamãezinha querida [Mommie Dearest], de Christina Crawford, a filha adotiva de Joan Crawford, contando sua infância de abusos nas mãos da atriz. Numa das mais famosas cenas do livro, que depois virou filme, Christina conta como foi surrada com um cabide de arame pela mãe.) Mais e melhores itens, menos abusivos e mais empoderadores, vão sendo liberados conforme o jogador realiza tarefas dentro do jogo e conforme o número de vezes que conseguiu chegar até um final. Alguns itens alteram radicalmente as lágrimas de Isaac: o “entortador de colheres” [spoon bender] permite que suas lágrimas voem em direção aos inimigos, perseguindo-os. O item “Brimstone”, ou “enxofre”, transforma as lágrimas em um raio laser cor de sangue, que pode ser disparado após um período de “carga” (ficar segurando o botão de tiro). Há itens, como o D6 (dado de seis lados), que permitem que o jogador troque um item recém-encontrado por um novo, sorteado aleatoriamente.

Destacamos um ponto-chave, e que orienta nossa análise do jogo em questão: a aleatoriedade é uma característica crucial de The Binding of Isaac. Cada nível do jogo é gerado aleatoriamente, ou seja: a cada nova partida, as salas, os itens e os inimigos de cada fase estão distribuídos de forma diferente. Até mesmo os efeitos das pílulas de diversas cores – que Isaac encontra e pode tomar ao longo do jogo – diferem de partida para partida. Além disso, dentro do jogo, determinadas ações e itens podem aumentar ou diminuir a chance do aparecimento de salas e itens especiais – sem necessariamente garantir que isto aconteça. Por exemplo: não ter dano na saúde principal (medida em corações vermelhos) durante toda a fase aumenta significativamente a chance de aparecer uma sala especial em que um Anjo ou um Demônio lhe oferecem itens extras (Gamepedia, 2015).

Sala do Demônio [Devil Room]
Sala do Demônio [Devil Room]

Nesta aleatoriedade dentro de cada fase, The Binding of Isaac se distingue da maioria dos jogos eletrônicos. Afinal, a maioria deles oferece bônus difíceis de achar e extras a serem destrancados, mas a experiência individual de cada fase é a mesma. Na maioria dos outros jogos, o mapa da fase, o número de inimigos que sai de trás de determinada pilastra (sempre a mesma pilastra) e os itens úteis encontrados em cada lugar são os mesmos e em mesmo número. No máximo, há variações segundo o nível de dificuldade (no modo “difícil” encontram-se menos itens e mais inimigos do que no “fácil” – mas o mapa da fase continua o mesmo).

Em The Binding of Isaac e seu remake, Rebirth, chegar até um final não configura uma vitória definitiva, como se, cada vez que se escapasse do abuso, isso não prevenisse abusos futuros – o ciclo continua. De início, a aleatoriedade gerada por computador parece espelhar as arbitrariedades humanas do abuso infantil e do fanatismo religioso, fazendo muitas vezes o jogador se sentir “injustiçado” pelo jogo – e desejar mais ainda vencê-lo, com Isaac, começando então outra partida do zero. Como há vários finais diferentes, e a cada final e tarefa cumprida liberam-se novos itens mais empoderadores, o jogador se sente compelido a terminar o jogo várias vezes, conhecendo diferentes formas de infelicidade do protagonista, encontrando novas combinações de itens domésticos e símbolos religiosos que o traumatizaram e o assombram em seus pesadelos – diferentes combinações que podem alterar radicalmente a experiência e a estratégia recomendada para ganhar o jogo. Esta experiência tem algo em comum com a célebre frase de abertura de Ana Karênina, de Tolstói (1971, p. 13): “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.

Um bom romance, como Ana Karênina, assim como um bom jogo, recompensa a (re)exploração minuciosa e persistente com belezas, benesses e desafios. O recurso significativo extra dos jogos em relação à literatura, para além de vídeo e som, é que, assim como o leitor lê o texto e com ele tece uma experiência estética significativa, no jogo o jogador lê também o processo e com ele tece uma experiência estética significativa. Conforme dissemos, o jogador procura entender os desafios do mundo do jogo para vencê-los, inferindo as regras de seu comportamento a partir de sua interação; mas um jogo eletrônico de qualidade desafia os próprios pressupostos que estabeleceu, tirando o jogador de sua zona de conforto recém-conquistada. Por exemplo, o jogo pode oferecer uma “parede falsa” que, ao contrário das demais do jogo, pode ser atravessada pelo protagonista, levando a uma área secreta. Isso recompensa o jogador que é desconfiado por natureza e/ou aquele que já jogou jogos suficientes para saber que a “parede falsa” é um recurso autoral bastante comum[2]. Essa desconfiança quanto às próprias inferências sobre regras no mundo virtual do jogo ecoa questões filosóficas históricas sobre indução e causalidade; no mundo virtual, elas encontram expressão artística. David Hume nos fez nos perguntar se o sol ter nascido todos os dias de nossa vida até hoje significa necessariamente que devemos acreditar que o sol nascerá amanhã (2011, p. 71-85); o jogo eletrônico mostra que é possível, mesmo que todas as paredes virtuais até agora não tenham permitido nossa passagem, que uma delas o permita. Ou seja, nos tira de nossa zona de conforto, aquela que muitas vezes nós mesmos criamos em nossa mente; põe em xeque um hábito mental humano (distinguir causas que levam a determinados efeitos e confiar em acontecimentos passados como guia dos futuros), exatamente como a boa literatura. Em Dom Casmurro (Machado de Assis, 1997), Bentinho apresenta Capitu como leviana e manipuladora desde criança (“como a fruta dentro da casca”, p. 250), o que a teria levado a traí-lo com Escobar e ter um filho parecido com o amante, o que por sua vez levou Bentinho a virar Dom Casmurro. Fica a cargo do leitor julgar se essa cadeia causal tão “clara”, ou mesmo os fatos narrados, estão corretos e em qual medida, derivando daí implicações conforme seu repertório pessoal. Quer dizer: uma obra apresentar uma cadeia de causas e efeitos na superfície não significa que devamos tomar essa cadeia pelo valor de face. Ela pode conter subsídios para que seu leitor construa nuances ambíguas e levá-lo ao autoquestionamento.

Em alguns vídeos exibidos após o jogo ser ganho, Isaac consegue escapar de sua mãe; em outros, é mostrado preso dentro de um baú ou até mesmo desaparecido (um cartaz com sua foto aparece preso em um poste, com a legenda “Missing” – “Desaparecido”). Mas o final é o menos importante. O que importa mesmo é o processo em que o jogador se põe a repetir, se não ad aeternum, pelo menos centenas de vezes a vida infeliz de Isaac sob o jugo da mãe abusiva e os traumas já instalados em sua cabeça: a mesma vida, revivida inúmeras vezes.

Jogo como processo e playground filosófico

Em nosso estudo privilegiamos a leitura do jogo nesta chave – segundo a qual o processo de se chegar até lá é mais importante do que o final ou o princípio. Podemos então associá-lo com este trecho de Nietzsche em A Gaia Ciência (2014, p. 205, fragmento 341):

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim lhe falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?” pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

Note-se que Nietzsche, neste trecho, não está tratando de reencarnação nem falando dos repetitivos ciclos da vida. Ele está propondo um exercício mental sobre o querer: o querer pela metade seria uma indignidade, e o teste definitivo para saber se realmente queremos o que dizemos querer seria imaginar a vida que levamos, fruto destas decisões, sendo revivida para todo o sempre. Seria este o eterno retorno segundo Nietzsche; um conceito ligado ao de amor fati, o amor pelo destino que nos sobrevém:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! (2000, p. 166, fragmento 276).

Não precisamos ser ingênuos a ponto de acreditar em “intenção de autor” para propor esse nexo. Mesmo que Edmund McMillen não tenha tido a intenção de modelar seu jogo como uma espécie de playground do eterno retorno, defendemos que a obra pode ser lida assim – como um dispositivo retórico que cumpre esta função educativa: a de ensinar o ser humano a amar o destino que se lhe sobrevém, por mais difícil que seja, e a não lamentar o resultado do lançamento dos dados. Em termos nietzscheanos: ensiná-lo a ser um bom jogador.

Abolir o acaso pegando-o com a pinça da causalidade; em lugar de afirmar o acaso, contar com uma finalidade; todas essas são operações do mau jogador. Elas têm sua raiz na razão, mas qual é a raiz da razão? O espírito de vingança, nada mais que o espírito de vingança, a aranha! O ressentimento na repetição dos lances, a má consciência na crença numa finalidade. […] O universo não tem finalidade, não existe finalidade a esperar, assim como não há causas a conhecer, é esta a certeza para jogar bem (Deleuze, 1976, p. 22).

Como o jogo ensina isto? Primeiramente, chamar a experiência extranoemática em The Binding of Isaac de “esforço não trivial”, como na definição de Aarseth (1997, p.1), seria um eufemismo; trata-se de um esforço considerável, contínuo e repetitivo. O jogo é notavelmente difícil (conforme assinala o resenhista Dan Stapleton, 2014) e muitos jogadores experimentados se batem com ele sem conseguir sair das primeiras fases – ao menos nas primeiras vezes. É preciso ser firme em sua vontade de vencer; e aprender a tomar as pequenas surpresas aleatórias do jogo como parte da diversão, e não como um sofrimento, trabalho ou injustiça.

Cada nova experiência dos mesmos processos (a vida de Isaac, na forma de uma partida) pelo jogador tem pequenas diferenças, e em dois níveis. Num nível, devido à aleatoriedade inerente ao jogo, novos itens e perigos são apresentados em novas combinações a cada partida, tornando-a única. No outro nível, que corresponderia à segunda leitura (e subsequentes) de um livro de ficção, o jogador vai melhorando em sua percepção devido à experiência das partidas anteriores. E esta melhoria se dá em pelo menos dois quesitos: 1) na habilidade extranoemática do jogador, por conhecer o comportamento dos inimigos, as peculiaridades dos itens, das fases, dos controles do jogo; e porque o hábito melhora suas próprias respostas físicas, fazendo-o reagir ao jogo mais “automaticamente”, sem precisar pensar conscientemente no que deve fazer; 2) no fato de o jogador aprender a encontrar prazer naquela experiência cheia de aleatoriedade e dificuldade que antes lhe parecia penosa.

Deleuze nos disse, sobre Nietzsche, queSe o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda dotá-la de um movimento centrífugo violento que expulsa tudo o que ‘pode’ ser negado, o que não suporta a prova” (2000, p. 120). A prova no caso de The Binding of Isaac é o próprio jogo, penoso de início mas que, na repetição, ou pela repetição, nos ensina a gostar dele – ou então a deixá-lo de lado de uma vez.

Além disso, a crítica que The Binding of Isaac faz ao sacrifício (no caso, o de Isaque) pregado pelo cristianismo em favor de uma abordagem lúdica, provavelmente saída da cabeça de uma criança, mas nada piedosa (nem com a criança, nem com o jogador, nem com a mãe de Isaac), é perfeitamente condizente com Nietzsche, assim como o toque de aleatoriedade e a total ausência da imagem de Deus no jogo (há anjos, demônios e Satã, mas não um deus). Isaac também enfrenta a si próprio como “chefe de fase” num dos últimos capítulos do jogo, Cathedral. O objetivo do jogo parece ser a autossuperação: de Isaac por ele mesmo, e do jogador por ele mesmo.

Por fim, gostaríamos de notar duas formas como o autor de The Binding of Isaac declarou-se contrário a formas de burlar certos aspectos fortuitos do jogo. Edmund McMillen refez o jogo original (de 2011) em 2014, intitulando o remake de The Binding of Isaac Rebirth. Pouco depois de lançar o remake, o autor queixou-se de jogadores que conseguiram destrancar e divulgar o segredo mais bem guardado do novo jogo em apenas 109 horas – porém não jogando conforme as regras, e sim perscrutando o código com uma técnica chamada datamining (Klepek, 2015).

Assim como no jogo original, algum tempo após o lançamento da nova versão o autor ofereceu um pacote de expansão, ou downloadable content (DLC). O pacote, chamado The Binding of Isaac Afterbirth, disponibiliza novas fases, personagens, itens e modos de jogo e é distribuído mediante pagamento. Desta vez, quem tentou o datamining não obteve grande resultado; McMillen disse que instruiu a equipe a “enterrar” bem fundo no código os segredos do jogo. E os jogadores que baixaram o pacote logo após o lançamento estranharam que menos da metade dos novos itens prometidos estava disponível; 109 horas depois, McMillen liberou uma atualização que disponibilizava os novos itens restantes, assumindo que se tratava de uma brincadeira com uma ponta de vingança pela descoberta prematura e trapaceira do grande segredo do lançamento anterior (Klepek, 2015).

Por último, em The Binding of Isaac Rebirth, o jogador pode optar por digitar um código e escolher a partida específica que se vai jogar, tornando a experiência de jogo bem mais previsível: a ordem das salas, dos inimigos e dos itens será idêntica toda vez que o mesmo código for digitado. Porém, toda vez que o jogador optar por digitar um código para obter mais controle sobre sua experiência, naquela partida nenhum novo prêmio, conquista ou item será destrancado. É uma troca: para se obter uma medida de controle sobre o jogo (e uma menor dificuldade), renuncia-se a outra coisa. Mais uma vez, o jogo se expressa através de seus processos. É como se dissesse: “se é apenas a experiência lúdica que você deseja, é bom querer mesmo, pois você não ganhará bens duradouros, bens que transcendam esta partida”. Ou: “desta vida (ou partida) nada se leva.” Tudo o que podemos querer com o ato de jogar a partida predeterminada pelo código digitado estará circunscrito aos limites dela.

Desta forma, o jogo The Binding of Isaac persuade o jogador a permanecer ali, naquela roda-viva, treinando, tentando, melhorando, submetido aos seus mecanismos aleatórios, e tudo isso majoritariamente pelo pathos e ethos de seus próprios processos, em vez de somente pelo magnetismo de suas palavras ou sons ou gráficos, e nem mesmo por alguma revelação contida em seu final. O argumento aqui não é de que o jogador irá se tornar uma pessoa melhor, mas que, ao menos naquela instância, aprenderá a querer de verdade o que diz querer – ganhar o jogo – ou a desistir. E quem procurar um jeito de burlar o destino que cada partida traz não será recompensado.

“‘Por azar’, é esta a mais antiga nobreza do mundo: eu a restituí a todas as coisas; eu as livrei da servidão do fim”, diz-nos Nietzsche pela boca de Zaratustra (2000, p. 131). E mais adiante: “Um pouco de sensatez é possível, mas eu encontrei em todas as coisas esta benfeitora certeza: preferem bailar sobre os pés do acaso”. De fato, muitos jogadores de The Binding of Isaac o preferem.


* Simone Campos é graduada em Comunicação Social – Produção Editorial e Jornalismo pela UFRJ, mestre em Literatura Comparada e Teoria da Literatura pela UERJ e doutoranda em Literatura Comparada pela UERJ. Publicou o artigo Amazon: the guardians of Eden na coletânea O jogador de mil fases (org. Arthur Protasio e Guillerme Xavier). Também é escritora de ficção (No shopping, A vez de morrer) e tradutora (A garota no trem, O livro das estranhas novidades).

 

Referências

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Mídias audiovisuais

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Notas

[1] Há uma “lei” do Oulipo bem conhecida: a de que “um texto escrito segundo uma restrição descreve a restrição” (Roubaud, 1998, p. 42).

[2] A “parede falsa” aparece em inúmeros jogos eletrônicos, de Heretic (1994) a Antichamber (Bruce, 2013), passando por The Binding of Isaac (2011) e seu remake (2014).

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.