Editorial
Tempo de leitura estimado: 4 minutos

MODOS DE SER NA CIDADE EM QUARENTENA

Alguns acontecimentos aceleram o tempo. A nova edição da Revista Z Cultural, “Modos de ser na cidade”, estava já organizada quando a epidemia da COVID-19 modificou, em poucas semanas, os modos como vivemos nas cidades. De repente, estar perto ou longe mudou de significado, e passamos a experimentar uma temporalidade ao mesmo tempo acelerada – acompanhando em tempo real as atualizações sobre números de infectados e mortos e as medidas de governos em todo o mundo para conter a epidemia – e em suspenso – isolados em casa, sem saber quando a cidade voltará a ser lugar de encontro.

Em uma revista dedicada ao contemporâneo, não podíamos deixar de refletir a emergência desse acontecimento. Por isso, preparamos um primeiro volume da nova edição, “Modos de ser na cidade: a cidade em quarentena”, em que reunimos artigos escritos no calor do momento, híbridos de testemunho e reflexão. A antropóloga Valeria Ribeiro Corossacz, professora da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, adota o ponto de vista da mulher em quarentena na Itália, mostrando como “a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional”. Em “A cidade sob ataque ou como sobreviver entre ruínas”, o professor da Sapienza Universidade de Roma Ettore Finazzi-Agrò discute como a cidade enquanto lugar que torna “a existência individual uma coexistência” transforma-se em “enormes lazaretos”, dando lugar a um “espaço constelado por vazios” e a um “tempo parado”. E Luiz Eduardo Soares, antropólogo e professor aposentado da UERJ, usa a metáfora da respiração artificial – última esperança dos infectados pelo novo coronavírus que tenham desenvolvido a síndrome aguda respiratória – para falar do Rio de Janeiro como cidade sem oxigênio. “A pandemia das desigualdades abissais e do racismo estrutural não sufocava, não matava, não atrofiava tantas vidas?”, pergunta Soares. De Berlim, a poeta, fotógrafa e tradutora Adelaide Ivánova contribui com “Ken Loach #2”, poema-roteiro que é antes de tudo uma escuta do outro – no caso, de uma mulher aposentada e solitária tentando se manter em um bairro que passa por “gentrificação”, na iminência da pandemia.

Além das reflexões-testemunhos sobre a pandemia, esta edição publica três artigos do dossiê sobre a cidade. No primeiro, o arquiteto e ativista Alberto Kerdman Bloch fala da ocupação do entorno da Lagoa de Geribá, em Armação dos Búzios (RJ). O segundo é um ensaio em que o professor Marco Chandía Araya busca na literatura latino-americana a imagem do umbral (o limiar, a soleira) para falar da organização da vida urbana no continente. No terceiro, o economista e urbanista Edmar Augusto Santos de Araujo Junior usa a teoria econômica do valor para repensar criticamente as políticas de conservação do patrimônio público. Publicamos ainda um ensaio da historiadora da arte e curadora Andrea Giunta sobre a artista plástica brasileira Rosana Paulino; entrevistas com os arquitetos e urbanistas Tainá de Paula e Sérgio Magalhães sobre os desafios de um projeto de cidade inclusivo; e uma resenha do romance Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018), de Ignácio de Loyola Brandão, por Augusto Guimaraens Cavalcanti.

Adiado pela emergência da crise, o segundo volume de “Modos de ser na cidade”, já preparado e composto pelos artigos que responderam à última chamada da revista, será lançado em breve. Quem sabe, então, a quarentena tenha nos obrigado a repensar a cidade e estejamos a caminho de cidades muito diferentes, renovadas, potencializadas nos seus dons de circulação e convivência com o diferente.

Agradecemos ao fotógrafo Bruno Veiga pela gentil cessão da foto da capa deste volume da revista.

Revista Z Cultural

especial
Tempo de leitura estimado: 17 minutos

MINHA CIDADE: ESPAÇO E TEMPO COLETIVOS NA ITÁLIA DO CORONAVÍRUS

Não é fácil escrever neste momento contando o que estamos vivendo na Itália, contando com um estado de suspensão. A cada dia que passa se torna claro que é o começo de uma nova normalidade que não conhecemos. Na verdade, o que posso fazer é escrever o que estou vivendo, me posicionando, como aprendi a fazer sempre enquanto antropóloga feminista.

A minha experiência do isolamento é determinada por minha cor branca, por minha classe média, por meu emprego público e por meu gênero, mas no começo foi antes de tudo situada geograficamente.

Disponível em: https://www.davidrumsey.com/luna/servlet/workspace/handleMediaPlayer?lunaMediaId=RUMSEY~8~1~282758~90054266

Moro em Roma, mas trabalho numa universidade em uma das regiões mais atingidas pela epidemia, a Emilia Romagna. Antes que Roma parasse, assim como o resto do país, eu parei de pegar o trem para ir trabalhar, recebi indicação de começar a gravar as aulas em casa, quando as escolas de Roma ainda estavam abertas.

Experimentei antes das pessoas que conheço em Roma a dimensão prevalente desta epidemia: não enfrentamos essa emergência toda/os da mesma condição. Há quem sofre mais no isolamento, quem sofre menos, há quem pode continuar trabalhando, quem não pode, quem perde o emprego, mas mesmo assim estamos juntos, de uma forma única e nova para nós. A saúde de um cidadão qualquer é importante para a minha saúde, o coletivo se tornou prioridade sobre as individualidades e para o que muitos concebem simplesmente como “minhas liberdades”.

Relembrando o que aconteceu: dia 21 de fevereiro é descoberto o primeiro paciente Covid-19 no Norte da Itália, a partir daquele momento algumas cidades são fechadas, ninguém sai, ninguém entra, mas o resto do país continua normalmente. Dia 4 de março fecham todas as escolas do país, dia 8 o país inteiro se torna “zona vermelha” e o primeiro-ministro pede para os italianos ficarem em casa. Dia 11 todos os estabelecimentos comercias não essenciais são fechados, ficam abertas lojas de comida e farmácias. Dia 22, frente ao crescimento dos contágios e das mortes e com as greves espontâneas do/as trabalhadoras dentro de várias fábricas, o primeiro-ministro decide fechar a produção de bens não essenciais e não estratégicos para a economia do país.

Essas datas não são suficientes para entender o tempo psicológico de uma experiência completamente nova, em que cada um demorou o seu próprio tempo para entender realmente o que estava acontecendo, como essas decisões iam afetar a própria rotina. Coisas banais, que fazíamos automaticamente, não são mais banais nem permitidas. Desde dia 11 de março já foi mudado quatro vezes o modelo de declaração necessário para sair de casa, há controles da polícia nas ruas de carros e transeuntes.

Os primeiros dias foram marcados pela campanha #euficoemcasa, a que todos foram chamados a aderir com senso de responsabilidade, fazendo um esforço coletivo para limitar os contágios e aliviar o fluxo de doentes para os hospitais. Fomos bombardeados por mensagens, áudios, entrevistas, artigos e vídeos nos contando a tragédia dos hospitais, onde médicos deviam escolher (e ainda devem) quem entubar e quem não entubar, quem poderia viver e quem não. Mas é possível falar em uma comunidade nacional que, coletivamente, cada um fazendo sua própria parte, enfrenta o contágio? Por quem é formada essa comunidade nacional?

A responsabilização dos indivíduos que não devem sair de casa, que não devem passear, foi logo tema de reflexões e alvo de críticas: e quem não pode deixar de sair? Quem precisa trabalhar, ou ajudar uma pessoa dependente? A lei prevê e autoriza esse tipo de motivação para os deslocamentos, mas o que acontece com quem não tem casa, ou com os/as que estão presos nos centros de detenção para pessoas estrangeiras consideradas “ilegais”. O que acontece com as mulheres que vivem violência doméstica? O que acontece com as pessoas com transtornos mentais, ou com equilíbrio mental que requer um momento diário fora de casa e afastado das relações familiares? A retórica #euficoemcasa exclui quem não pode ficar em casa de forma segura e saudável, narra uma realidade parcial, tentando produzir um sentimento de coletividade a que muitos/as aderiram com convicção, inclusive pelo alívio psicológico por se sentir parte de uma coletividade, enquanto estamos numa condição de solidão e isolamento forçados, prolongados e sem saber quanto tempo vai durar.

Outro momento de produção de união que encheu muitos corações de força foi quando os/as italianas tocaram ou cantaram música nas janelas abertas no mesmo horário (18 horas). Em muitos casos foi tocado o hino nacional, mas aconteceram variações interessantes, como “Bella Ciao”, a música da Resistência ao fascismo. Mas quem está na condição de poder tocar uma música, de cantar? Enquanto na minha cidade, em muitos bairros, esse foi um momento de união e solidariedade entre pessoas que não se conheciam, para os habitantes das cidades mais atingidas não era imaginável ter um momento de música. O luto, a morte e perda de pessoas queridas ou conhecidas, a angústia pelas contagiadas, pelas muitas pessoas com febre e tosse em casa sem ser devidamente atendidas, e o medo pelos trabalhadores nos hospitais, tudo isso podia tornar o espaço da música coletiva uma farsa. E o que dizer das revoltas nos cárceres depois que foram vedadas as visitas como medida para conter o propagação do vírus, durante as quais morreram detidos, muitos por overdose de remédios que foram roubados da farmácia da prisão. De novo, nos perguntamos por quem é formada essa comunidade nacional.

Quando, apesar das restrições aos movimentos individuais, o número dos contágios continuava subindo, sobretudo nas regiões mais ricas do país, que são as mais atingidas, e aumentavam as notícias sobre greves auto-organizadas nas usinas e fábricas, ficou claro que responsabilizar o indivíduo contribuía para esconder, disfarçar duas questões:

1. O sistema da grande produção não queria parar de produzir – o capitalismo não quer parar – e a rede de saúde pública dessas regiões, sobretudo da Lombardia, que se definia como “excelente”, não estava preparada para lidar com essa situação.

2. A configuração de uma realidade em termos de saúde versus capitalismo, que também outros países (fora a China) estão enfrentando, demonstrou as resistências dos proprietários dos meios de produção em parar de produzir e se concretizou na persecução individual de quem está fora de casa, aparentemente sem motivo.

Como se toda/os pudéssemos da mesma forma contribuir para a diminuição dos contágios. A prefeitura de Roma chegou ao cúmulo de lançar um aplicativo para que os cidadãos possam denunciar, em forma de verdadeira delação, grupos de pessoas na rua.[1] Nas cidades, carros da polícia circulam com megafones mandando ficar em casa. Enquanto isso, há pessoas que devem ir trabalhar sem as devidas medidas de segurança, porque a economia não pode parar.

O desafio então em que me encontro, junto a muitas outras pessoas, é procurar o equilíbrio necessário entre participar individualmente com os nossos atos ao esforço de conter o contágio através do isolamento e distanciamento social, mas também reconhecer como esse esforço, sem adequadas medidas, se transforma em um mecanismo de reprodução das opressões e das desigualdades de classe, raça e gênero.

Se de um lado esse vírus parece ser democrático na sua forma de contagiar (quem mais tem vida social, mais é exposto), do outro sabemos que ser curado depende de outros fatores: o acesso aos serviços médicos, e antes de tudo a presença de serviços médicos adequados.

A Itália, como outros países, está experimentando os resultados de décadas de cortes à saúde pública praticados por governos de esquerda e de direita. A escassez de recursos públicos para a área da saúde é o resultado da adesão incondicional da classe que nos governou à economia neoliberal, propagada pela União Europeia. Médicos e enfermeiros são a categoria mais atingida em termos de mortes pelo vírus, por falta de medidas de segurança. Se nos parece impossível pensar que pode existir uma alternativa a esse sistema, então temos que reler Mark Fisher. O medo que os mais poderosos têm de perder os privilégios é para nós o motor para pensar que outra sociedade é possível, para mudar.

Uma das questões sobre as quais temos que refletir, e que é resultado da produção feminista, é o quanto o doméstico é político, o quanto o espaço doméstico é central na reprodução de relações de opressão de raça, gênero e classe. As mulheres são as que estão pagando o preço mais alto da emergência, tendo que fazer frente a todas as necessidades que antes eram organizadas fora de casa ou através da ajuda de pessoas externas ao núcleo doméstico.[2] Se parece que as mulheres morrem menos do que os homens, a suspensão da normalidade (como por exemplo o fechamento das escolas) implica em aumento do trabalho e cuidados feito pelas mulheres.

Calcula-se que na Itália há 2 milhões de trabalhadoras domésticas, na maior parte estrangeiras e não regularizadas, que não foram até agora incluídas nas medidas tomadas para ajudar quem ficou sem poder trabalhar.

Como no resto do mundo, também na Itália o trabalho doméstico tende a não ser formalizado e é exposto a diversas formas de exploração. Não incluir nas medidas de compensação salarial as trabalhadoras domésticas é uma escolha política que atinge de forma violenta as mulheres de classe popular e muitas vezes de origem estrangeira, na base do argumento, mais ou menos implícito, que trabalho doméstico não é trabalho como os outros. Esse argumento, que afeta de forma diferente a vida de todas as mulheres que cumprem trabalho doméstico, nesse momento específico tem como consequência também invisibilizar o trabalho das mulheres que vão assumir “naturalmente” as tarefas que não são mais cumpridas pelas trabalhadoras domésticas[3]. Há quem considere que a própria trabalhadora doméstica deve continuar trabalhando nesses dias de isolamento, porque a limpeza da casa não pode ser organizada de uma forma nova e mais igualitária dentro da família. Temos que registrar como é difícil para muitos empregadores aceitar pagar o salário e deixar a trabalhadora também cumprir o isolamento.

Nessa nova vida, como é o tempo de trabalho dentro de casa de um casal heterossexual com filhos? Quem atende às necessidades das crianças? Quantas interrupções no trabalho de cada um dos parceiros? Quem cuida da casa quando todos estão sempre em casa? Se essa experiência de isolamento, de suspensão da economia e da rotina poderia representar um momento de transformação radical, isso não pode ser afirmado só em relação à economia global capitalística, porque sabemos que não existe a dicotomia produção/reprodução.

A revolução radical que muitos dizem podermos realizar a partir desse momento de crise do capitalismo globalizado (penso por exemplo em Žižek[4]) não pode acontecer se não focarmos também na revolução dentro das nossas casas, nas nossas unidades domésticas, onde o trabalho repetitivo, cansativo do ponto de vista físico e psicológico, deve ser repensando numa perspectiva feminista.

Como sabemos, a casa não é um lugar seguro para muitas mulheres, apesar de ser um abrigo para muitas frente à opressão de raça, classe e religião que vivem na sociedade. Os dados dizem que, desde a atuação das medidas de isolamento, caiu brutalmente o número de crimes na rua, e aumentou o número dos crimes dentro de casa. Para as mulheres e crianças que sofrem violência doméstica, para as pessoas LGBTQ que vivem em famílias que negam suas escolhas, ficar em casa significa não poder ter acesso às relações sociais que reconhecem a violência que estão vivendo. Para essas pessoas são as relações fora de casa que representam justamente uma segurança. As feministas de “Non una di meno” (“Nem uma a menos”, movimento nascido em 2016) lançaram uma campanha, #euficoemcasamas, para denunciar as implicações para muitas mulheres de ficarem dentro de casa.[5]

A campanha visa abrir espaços virtuais em que se possa comunicar o que as mulheres vivem, as mudanças na relação com o espaço e o tempo, denunciar e conseguir apoio para sair da violência doméstica entrando em abrigos institucionais e denunciar as formas de legitimação da violência de gênero e homo-transfóbica a que assistimos no Facebook e em outras redes sociais. Além da questão da violência sexual e física, o isolamento forçado aumenta a dependência econômica de muitas mulheres, o que por sua vez as torna mais vulneráveis do ponto vista da autonomia sexual.

Não podemos aceitar que haja mulheres que devem escolher entre defender a própria saúde e defender a própria pessoa da violência de gênero. O que vemos nessa crise mundial é que falta uma análise adequada de como sexo e gênero impactam nos contágios, nas mortes e na vida de quem enfrenta a existência na epidemia. Na Itália se calcula que as mulheres representam 1/3 das mortes por Covid-19, mas não sabemos o porquê, inclusive porque a cada dia que passa fica mais claro que os dados que temos não são confiáveis (como, quem recolhe os dados?). Falta saber também como origem nacional e classe impactam nos contágios. Precisamos de uma análise e de uma política de intervenção que considerem a imbricação das relações sociais em que vivemos.

Outro aspecto impactante desses dias é o fato de que muitas pessoas estão lidando com o luto sem poder se despedir de quem morreu. Os doentes que entram nos hospitais não recebem visitas, os médicos ligam para as famílias para dar notícias, inclusive para informar sobre a morte. Quando isso acontece, a família não pode recuperar o contato com o morto, os enterros são proibidos para evitar concentrações e às vezes não há espaço suficiente para guardar todos os caixões.[6]

É comum acontecer da família não saber para onde o corpo foi levado, onde foi enterrado. Em muitos casos não há notícias, o que leva a uma relação com o luto completamente nova, que se caracteriza por ser uma experiência ao mesmo tempo individual e coletiva, feita em ausência de relações e contato físico.

Como sabemos, por lei hoje não podemos nos abraçar, nos tocar, chorar no ombro de alguém, não é possível a experiência concreta do carinho. Ainda não sabemos os efeitos desta nova maneira de viver o luto nas comunidades mais atingidas, a falta de relações e de um ritual culturalmente reconhecido como apropriado para se despedir do morto é uma novidade para a nossa sociedade. Neste momento de emergência e crise é possível que as pessoas que perderam alguém querido se concentrem no presente, nas necessidades atuais, inclusive a de não serem contagiados, mas quais os efeitos no tempo de um luto sem relações, sem rituais de despedida?

Muitos apontam para o fato de que na maior parte os mortos são pessoas idosas, como se essa informação nos ajudasse a resistir e ter esperança, e racionalmente isso faz sentido (e essa é a lógica que levou os médicos a considerarem, em falta de recursos para todos, optar por curar os pacientes mais novos). Mas o sofrimento invade nossos corações.

Surpreendi-me ao ouvir umas das mensagens que o presidente da República enviou aos italianos nesse momento, dedicada exatamente à importância que as pessoas idosas têm nas famílias, sobretudo para as crianças. Em que sentido os idosos são importantes para nós? Não é só uma questão de afetos, é também uma configuração de práticas cotidianas, que são feitas de afeto, de presenças nos espaços públicos e privados, um modo para todas as gerações de imaginar o que significa “vida”. Fora das escolas primárias vemos um grande número de avós esperando a saída dos netos, e há quem chame atenção sobre a intensidade de contato entre crianças e idosos na nossa sociedade para explicar o alto número de mortos e contagiados em comparação a outros países europeus. A presença dos avós para cuidar das crianças aponta como a organização do trabalho produtivo e reprodutivo determina que não seja previsto para os pais (sobretudo os homens) o tempo do cuidado, o tempo para a reprodução da vida.

Enfim, não podemos deixar de lembrar também que muitos desses idosos recebiam uma aposentadoria, que talvez ajudasse membros da família mais novos que sobreviveram ao contágio.

O que estamos vivendo é certamente uma experiência que nos permite entender, de uma forma nova e dramática, algo que ensinamos nos cursos de antropologia: a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional. Somos humanos porque feitos de relações e de cultura, a nossa vida é feita de relações, e está sendo muito difícil proteger a vida de um vírus através do isolamento, da falta de contato físico.

Nessas semanas, descobri que a casa pode não ser mais o lugar da intimidade: o que me falta é a intimidade que experimento quando ando na rua, nos trens, quando cruzo pessoas, quando os olhares não são o meio para calcular quantos metros temos entre nós.

Sinto falta da minha cidade onde as relações anônimas, mas sempre sociais, constituíam também a minha intimidade.


* Valeria Ribeiro Corossacz é professora associada de antropologia da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, Itália.

Notas

[1] Cf. https://www.romatoday.it/politica/coronavirus-segnalazioni-assembramenti-comune-roma.html.

[2] Esse aspecto não é específico da Itália, ver “COVID-19: the gendered impacts of the outbreak”, em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30526-2/fulltext.

[3] Cf. https://elan.jus.unipi.it/blog/towards-a-caring-democracy/

[4] ŽIŽEK, Slavoj. Um golpe como “Kill Bill” no capitalismo. In: DAVIS, Mike et al:  Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos, 2020.

[5] Cf. https://nonunadimeno.wordpress.com/2020/03/28/iorestoacasamalotto-tutti-i-giorni-lancio-della-campagna-di-non-una-di-meno/.

[6] Na cidade de Bergamo, a mais atingida, 310 foram os mortos levados para fora da cidade para serem cremados (notícia no Rádio Jornal RAI1 do dia 29 de março de 2020).

especial
Tempo de leitura estimado: 11 minutos

A CIDADE SOB ATAQUE OU COMO SOBREVIVER ENTRE RUÍNAS

E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. […] Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem – Deus me diga?

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

Estes eram homens e mulheres, menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. […] Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo.

Clarice Lispector, “Brasília”

Viver numa cidade – e não importa, agora, o seu tamanho – significou, até hoje e em via de regra, conviver com os outros, tornando a existência individual uma coexistência. A vida urbana, em suma, sempre foi basicamente ligada ao que Heidegger definiu como mitsein, o “ser com”, o que significa ainda compartilhar experiências, ideias e práticas, tempos e espaços vitais, até chegar à definição daquilo que o sujeito é ou deveria ser. E tudo isso acontecia graças ao confronto com o Outro, que podia levar, por sua vez, tanto à identificação empática com ele, quanto à discriminação e à exclusão daquilo que se considerava diferente e hostil.

A cidade era, nesse sentido – e retomando as teorias de Roberto Esposito –, o espaço comunitário por excelência dentro do qual, todavia, podia agir um mecanismo ao mesmo tempo imunitário ou discriminatório, gerado pelo medo daquilo que se apresentava como novo ou estranho/estrangeiro. A cidade, qualquer cidade, produzia ou reproduzia, nessa perspectiva, o paradigma político, ou talvez biopolítico, que sustenta as relações de poder no mundo contemporâneo. Essa oscilação entre a inclusão e a exclusão tornava a dimensão urbana – sempre até ontem, antes da “grande doença” – mais complexa e bastante diferente da imagem totalmente disfórica (e, a meu ver, implicitamente eufórica) que nos deu, por exemplo, Émile Verhaeren no seu Les villes tentaculaires, e não correspondia mais, de resto, à visão ainda mais antiga que, da vida urbana, nos ofereceu Baudelaire.

O ritmo e o crescimento das cidades, com efeito, fizeram com que elas ocultassem aos poucos, nas suas dobras ou atrás das suas esquinas, a forma horizontal originária, para dar lugar a uma dimensão sempre mais vertical, tanto em sentido físico quanto metafórico, tanto arquitetônico (“concreto”, na ambivalência do termo) quanto social. Os arranha-céus, que despontaram inúmeros nos espaços esvaziados de cortiços e casebres, podem ser considerados, em princípio, exatamente os emblemas duma relação do alto para o baixo que distingue os incluídos dos excluídos no contexto urbano – sem apagar, porém, o movimento expansivo da urbs monstruosa e tentacular, espraiando casas e homens num território sempre mais vasto.

Esse distanciamento entre as classes não só não salvou os privilegiados do contato com aqueles que não “têm poder nenhum” (como diria Guimarães Rosa), mas produziu, por paradoxo, uma multiplicação infinita dos choques imaginados por Baudelaire, até eles perderem o seu caráter de revelação do inesperado. O choque, de fato, o encontro ou o confronto com o diferente, não era mais um episódio isolado, mas um mecanismo multiplicado e esperado de relações entre os indivíduos ou entre as classes – classes que, por sua vez, perderam aos poucos os seus confins exatos, embora continue até hoje a existir uma massa indefinida de outsiders, de excluídos e misérrimos que não pertencem a nenhuma categoria. Para dar um exemplo brasileiro, o fato de virar uma esquina e passar do luxo e da maravilha da Sala São Paulo – patrimônio cultural e arquitetônico das elites – para a região de Cracolândia inutilizava qualquer surpresa, neutralizando-a. Tratava-se, no fundo, de uma convivência que, descontando a permanência das diferenças, misturava-as, todavia, num microcosmo onde a comunidade se tornava a outra face da imunidade, numa coexistência sempre regulamentada por um Poder soberano que canonizava os comportamentos justos e errados, legitimando-se pela força da Lei.

Aquilo que eu quero dizer, no fundo, é que a cidade contemporânea, pelo menos até ontem, questionava e punha em dúvida as categorias clássicas, confundindo o horizontal e o vertical, o dentro e o fora, criando um curto-circuito entre as noções estabelecidas de cidadão (membro da pólis, com os seus requisitos políticos) e de habitador da cidade (de quem circula por ela sem a ela pertencer, de quem mora nela sem demorar). Um discrime, todavia, que a atual situação de contágio geral da população parece anular (visto que todos estão sujeitos à pandemia, que, como nos diz a raiz da palavra, é um fenômeno patológico que diz respeito a toda a população, ao dêmos), mas que, na verdade, continua a se repropor no momento em que o slogan atual “stay at home”, repetido de forma obsessiva, exclui justamente aqueles que não têm casa e que, sendo “sem-teto”, aparentam não pertencer (e, de fato, não pertencem) ao dêmos.

A epidemia generalizada, mudando o aspecto e o ritmo da cidade, suspendendo o seu tempo e esvaziando os seus espaços comunitários, coloca, portanto, novas e inesperadas questões sociais e políticas (ainda relacionadas, então, com a pólis) que devem levar não só a repensar a cidade como coexistência de muitos, mas a reavaliar direitos e deveres individuais. Assistimos, em outras palavras, a uma subtração ou a uma limitação das prerrogativas próprias de todos os cidadãos – daqueles que moram na rua como daqueles que demoram nas suas casas e nos seus arranha-céus –, visto que todos estão obrigados, diante duma Lei pensada para salvaguardar a “saúde pública”, a se submeter às ordens impostas pelo Poder. O problema sociopolítico reside, justamente, nessa compulsória imposição dos deveres, nessa supressão ou limitação dos direitos.

Num artigo recente, Giorgio Agamben questionou, justamente, o atual estado de exceção que, em aparência, limita fortemente a autodeterminação do sujeito, tomando conta da nossa vida tanto individual quanto – e sobretudo – coletiva. Essa “abolição do nosso próximo”, enquanto possível portador do contágio, seria, na opinião do ilustre filósofo, uma medida autoritária que levaria, justamente, à anulação daquela convivência que é o princípio sobre o qual se rege a dimensão urbana. Se é verdade, por um lado, que a pandemia, proibindo os contatos entre as pessoas ou a circulação no espaço urbano, leva a uma desfiguração completa (social, política, econômica…) das cidades – e basta olhar para o esvaziamento completo de praças e ruas, que tem transformado os “espaços públicos” em lugares desertos e imóveis, ao ponto de lembrar um quadro metafísico, à la manière de De Chirico –, devemos, por outro lado, considerar que os regimes que se mostraram e se mostram mais reticentes em tomar medidas mais rigorosas são em geral (com a exceção da China, onde tudo começou) os regimes populistas, soberanistas ou até pseudofascistas, como os Estados Unidos de Trump, a Grã-Bretanha de Johnson e, não por acaso, o Brasil de Bolsonaro.

Se podemos, então, concordar em via teórica com Agamben, visto que todos nós renunciamos a uma parte importante da nossa liberdade e dos nossos direitos, não podemos todavia esquecer que aquilo que está em jogo é a nossa existência e a dos outros, ou, para usar uma expressão de Walter Benjamin tantas vezes evocada pelo filósofo italiano, a “vida nua”, a nossa pura sobrevivência enquanto espécie humana. Diante de milhares de mortos, de milhões de contagiados, não vejo alternativas ao sequestro, imposto e, ao mesmo tempo, livremente escolhido, de nós mesmos, tornados agentes patógenos em relação aos outros.

Tudo isso, aliás, acaba inutilizando, pelo menos em parte, as considerações de Guy Debord, avançadas no capítulo 172 do seu La société du spectacle, sobre a imagem ambivalente da cidade que o urbanismo moderno persegue através do isolamento dos seus habitantes. Citando:

O movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: fábricas, casas da cultura, colônias de férias, todas essas coisas devem funcionar como “grandes conjuntos habitacionais”, especialmente organizados para os fins desta pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem seu pleno poderio.

De fato, nessa crítica contundente da sociedade capitalista, aquilo que necessariamente falta é a possível emergência dum fator que não é nem político nem econômico, mas patológico, fruto, então, duma globalização incontrolável da doença contra a qual não temos armas senão o isolamento individual que nos expõe sozinhos – e nisso concordo com o ilustre filosofo – às “imagens dominantes”. E que a análise, embora magistral, não possa ser aplicada ao tempo presente, o demonstra a ideia da existência daqueles grandes conjuntos habitacionais que, pelo contrário, o atual Poder imunizador proíbe, não só de habitar, mas de frequentar, seja mesmo de forma esporádica.

As cidades de hoje, enormes lazaretos, perderam, assim, as suas características, impedindo qualquer convivência, qualquer circulação das pessoas: nem villes tentaculaires, nem dimensões onde os indivíduos se chocam ou se mesclam em lugares promíscuos, elas mantêm, sim, as suas prerrogativas urbanísticas e arquitetônicas, que perduram, todavia, num tempo parado e num espaço constelado por vazios, caracterizado por lugares totalmente desertos. Cidades, enfim, que sobrevivem numa “espera enorme” (para citar ainda uma definição do deserto/sertão rosiano), num “silêncio imenso” (lembrando Macunaíma), onde resta e no qual ecoa apenas a esperança daquilo que pode acontecer, daquilo que com certeza vai acontecer, mas em contextos que não vão permanecer com certeza iguais ao que eram.

As cidades tentaculares e tentadoras de Verhaeren (opostas, na sua visão, tanto a Les campagnes hallucinées, quanto a Les villages illusoires, numa rígida, quase psicótica, taxonomia), ou, para dar outro exemplo, a Metropolis de Fritz Lang de anteontem, depois a nossa cidade de ontem e, afinal, esta estranha e alienante cidade de hoje – dimensão assolada na qual vivemos mas não convivemos – acabam desenhando, no decorrer de pouco mais de um século, uma sequência de mudanças radicais da qual desconhecemos os êxitos. Eu, pelo menos, não os conheço: eu em fuga dos outros, sozinho por emergência, sobrevivendo, num contexto de mortos e doentes, numa normalidade totalmente anormal, numa condição inabitual dentro do meu espaço habitual – na habitação, enfim, na qual estou “isolado em conjunto”, longe dos outros e perto de mim mesmo, tentando todavia escapar ao poderio das “imagens dominantes”, impostas pela sociedade do espetáculo e veiculadas, agora, pela comunidade virtual e imunitária da rede.

Disponível em: http://tudigit.ul.tu-darmstadt.de/show/Sp_Rom1834/0001

* Ettore Finazzi-Agrò é professor titular da Sapienza Universidade de Roma.

especial
Tempo de leitura estimado: 19 minutos

RESPIRAÇÃO ARTIFICIAL COMO ESTRATÉGIA E UTOPIA

(E o Rio, cadê?
Como o clichê, e o real,
desmanchou no ácido
de Venceslau.
E o sol, cadê?
Cadê o carnaval?
E o samba, José?
O Rio dançou?)
1. Abominações introdutórias

O Rio de Janeiro é um clichê global poderoso que está em xeque. A cidade rebelou-se contra seu retrato. O Dorian Gray urbano precisa da degradação de sua imagem-fetiche para libertar-se do feitiço e viver, assumindo os riscos e as novas possibilidades. Cumpre destruir a imagem encantada e deixar morrer o que sobrevivera às custas da fantasia benevolente. Esta é a exigência dos milhões de cariocas que se rebelam contra a domesticação imposta pela história edulcorada que contamos a nós mesmos sobre o que somos. Esta é a agenda de quem ama a liberdade e a justiça, nas suas mais variadas acepções. O tempo da autoindulgência acabou. O Rio atravessa um momento doloroso e fecundo de perigo e reinvenção. A estação de fúria e tempestades não anula o mar, o sol, o esplendor da mata Atlântica e a dança infinita, mas estilhaça ilusões e incinera a pachorra pusilânime dos cartões postais.

O parágrafo acima é a abertura da introdução a meu livro Rio de Janeiro: histórias de vida e morte, publicado em 2015 (Companhia das Letras). O livro saiu na Inglaterra em 2016 (editado pela Penguin) e o jornal The Guardian me convidou para escrever um ensaio sobre a cidade, que seria publicado no dia da inauguração das Olimpíadas. Lendo o resultado da encomenda, decidiram transferir a publicação para a data do término dos jogos. Consideraram meu artigo “less celebratory” do que esperavam e o momento pedia. Recordando tudo o que aconteceu com o Rio na última década, me parece tão óbvio o que escrevi. O monumento de iniquidades estava diante de nós, escancarado, e o frenesi das obras municipais não ocultava a decadência que se infiltrava por todos os poros. Tomo a liberdade de citar ainda o título da introdução: “A Grande Guerra contra o Clichê”. Explico a importância que confiro ao tema: “… a imagem não é só um erro. É um mapa que orienta comportamentos e percepções cotidianos. Não é apenas um retrato falso, mas um modelo restritivo que aprisiona, em uma identidade, a pluralidade de modos de ser e sentir.” Por fim, descrevendo mudanças em curso, concluo:

Se a velha ordem desfaz-se, grão a grão, se o clichê está em chamas, qual ponto de vista adotar para testemunhar esse processo? A primeira pessoa impõe-se como a perspectiva mais razoável e honesta. Sobretudo quando o mundo que balança e vai cedendo lugar a outro repercute tanto em dimensões subjetivas e na vida privada, quanto em níveis substantivos e na esfera pública. É interessante registrar que nesse trânsito entre mundos, sutileza e estrondo substituem-se a todo momento e, por vezes, confundem-se, a depender da sensibilidade do observador. Até porque os mundos distintos, ou antagônicos, conviverão. Pureza é a qualidade da teoria, não da história, muito menos das histórias contadas de pontos de vista particulares.

Pois hoje, março de 2020, blindado pelo confinamento doméstico para deter a expansão da pandemia, empenhado em redigir o diário do bunker, declaro a quem possa interessar: a primeira pessoa talvez não seja apenas uma solução para lidar com a experiência íntima de processos históricos ainda em curso, muito menos uma estratégia estilística, eixo de construção estética ou declaração de enviesamento cognitivo. Tornou-se um imperativo, esse “eu” testemunhal, única janela que me oferece uma fresta para a cidade, fora o tsunami virtual. E daqui não vejo o Redentor, que lindo, cartão postal e alegoria, mas restos e detritos, memória do caos.

Curioso, o suporte canônico do relato sobre a cidade em primeira pessoa é o flâneur, andarilho sem norte que inspeciona as dobras da vida e faz do léu remédio para o breu, não se intimidando ante a opacidade das paredes e a espessura dos sentidos. Hoje, não. O regime da imobilidade inverte a flânerie, que subsiste sublimada, figura de um passado idealizado, espírito do tempo em que cidade era o lugar comum no qual as pessoas circulavam. Agora, é o território onde moram e esperam a visita da indesejada das gentes. Imobilidade é a nova ordem, cronista, poeta, voyeur. Caminhar por aí, bater perna, espiar o movimento, entreter-se com o mosaico das cenas cambiantes, transitar sem apuro e plano, dispor-se ao improvável sem método, entreouvir e entrever bastidores nos entreatos, personagens sem nexo, o faraó urinando, a cantora careca, o vizinho de cueca e gravata, nem pensar. Salvo se alguém jogar nas redes e você pescar. No confinamento, internet é a experiência urbana possível, nosso crivo será o crivo alheio reeditado. Mas não é isso a linguagem? Certas coisas ficam mais claras na escuridão.

A cidade, a cidade de verdade, ela está vazia. A realidade, mais intangível do que nunca. Imagem fugidia, que um internauta deu a outro, que passou a outro, tecendo a luz balão como os galos de Cabral. Luz, não exatamente: talvez a imagem da praia de Copacabana despovoada sob o céu flamejante do fim do verão. Paisagem inútil.

O vozerio no deserto aprende a língua da hora. Pandemia. Coronavírus. Covid-19. Curvas aceleradas de contágio. Aglomeração. Isolamento. Contenção. Grupos de risco. Achatamento da curva. Epidemiologia. OMS. Sequenciamento genético. A guerra contra o vírus. E os slogans: evitem aglomerações, fiquem em casa, não saiam, protejam os mais velhos. Interessante lembrar 2013. Atravessamos um portal, voltamos a junho de 2013 pelo avesso. Daquela vez, ouvíamos ou gritávamos: vem pra rua, vem. Não fique aí parado, você é explorado. O povo na rua derruba o aumento. Em síntese: a massa, a aglomeração, redescobre o protagonismo. De lá pra cá, protagonismo virou empreendedorismo, desempregado na informalidade virou empresário-de-si-mesmo, a viração pra sobreviver no desamparo virou resiliência popular ou criatividade empreendedora, a agenda neoliberal varreu direitos e a punição de corruptos virou Lawfare. Entretanto, cruzado o portal de volta a 2020, a velha demanda popular se realiza como verdadeira maldição: não vai ter Copa, nem Olimpíada.

A cidade respira, ainda sem aparelhos, intuindo lufadas de enxofre, no tenso ensaio geral pra tragédia que se avizinha – somando-se às bem-instaladas na rotina, e naturalizadas, fruto das desigualdades, do racismo estrutural, da violência como política de governo. O que parecia longo, tortuoso, incerto e contraditório processo de transformação da cidade e da sociedade brasileira subitamente se converte em uma internação na emergência da história para tratamento de choque. Metemo-nos numa espécie de exercício simulado coletivo para o naufrágio contratado, tantas vezes adiado. Talvez agora seja pra valer. Vistam os salva-vidas, quem os tiver ao alcance da mão. E os outros? O que será a cidade quando as águas baixarem? E o país?

Nesse momento, cresce a adesão a uma perspectiva ética e política mais solidária, muita gente fabulosa fazendo o possível e o impossível para ajudar as comunidades mais vulneráveis, ante a letargia criminosa do governo federal. À noite, nas favelas, traficantes determinam reclusão, assumindo responsabilidades que contrastam com a bulimia do presidente fascista, que tripudia, rosna e requebra as ancas de atleta fake sobre a pilha de cadáveres por vir.

O leito de morte, com seu sentido de urgência, a falta de ar – destino que não se distribui aleatoriamente, porque a propensão física é agravada pela vulnerabilidade socioeconômica –, essa deveria ser a referência elementar para a definição de prioridades, com base nas quais se organizassem economia e política. Tudo mais é secundário e se ordena ao redor. A quem falta oxigênio não se pode pedir paciência.

Por isso, deixo registrada a pergunta que me parece crucial: se o parágrafo anterior faz sentido, por que deixaria de fazer sentido nas circunstâncias em que estaremos depois da pandemia ou por que não teria feito sentido naquelas circunstâncias em que estivemos antes da pandemia? A pandemia das desigualdades abissais e do racismo estrutural não sufocava, não matava, não atrofiava tantas vidas? Longe de mim subestimar a pandemia em curso, quero apenas extrair da experiência coletiva tão dramática e radical, mais do que a dor, algum aprendizado. Afinal, já ficou demonstrado que a realidade imutável – a economia capitalista sob hegemonia financeira – era só uma construção política cuja estabilidade dependia da crença em sua imutabilidade.

E o que mais se pode aprender? Ou melhor, o que tenho aprendido?

Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart268950/cart268950.html

2. A orgia perpétua e letal dos inquilinos que não vemos[1]

Que coisa mais difícil conceber um mundo sem intenção mas com finalidade, que troço enrolado. Cabe na cabeça de quem? Tá certo, os cientistas sabem separar as partezinhas minúsculas das partes minúsculas, abrem as vísceras do cosmos, calculam movimentos e há séculos descrevem – viva Darwin! – a inteligência da natureza, que pensa grande, combinando um sistema com outro, recolhendo as aparas, corrigindo o que desequilibra a marcha claudicante das espécies, em meio aos choques da matéria, de cujo avesso já se tem notícia, embora mal se vislumbre. Claro que tudo fica ainda mais complicado quando físicos criativos, assim como os músicos atonais, os poetas corajosos e os democratas radicais, valorizam a polifonia, o dissenso, a desarmonia, o desequilíbrio, refutando a unidade da inteligência e da finalidade. A gente oscila entre, por um lado, a aposta na evolução, com toda a corte de penduricalhos imaginários e morais, e, por outro, o reconhecimento de regressões, contradições, escorregadas entrópicas, pulsões de morte. Se a lógica da matéria é a linguagem de Deus, talvez convenha aderir ao panteísmo.

Acontece que você tem mais o que fazer, mesmo confinada em casa para prevenir a difusão da pandemia. Mais e melhor do que perder tempo lendo divagações vadias desse autor que custa a se explicar. Já lá se foi um parágrafo e nada de prático, ou de emocionante. Nenhuma notícia sobre o coronavírus, a expansão mundial, as curvas do contágio, os dados mais recentes sobre infectados e vítimas fatais, ou políticas de contenção e prevenção. Tu tens mais uma linha pra me convencer a continuar lendo, pensará a leitora gaúcha. Tudo bem. Que tal o seguinte?: antes da pandemia, na percepção popular, as únicas conexões entre as pessoas, no interior de uma sociedade, e além dela, eram os contatos e contratos estabelecidos ou guiados por interesse, intenção e sentido. Duvido que você me dê um exemplo que escape a essa hipótese. Agora, em meio à trepidação que antecede o que virá, adivinhando o alarido dos carrilhões que se aproximam, a cabeça das gentes concluirá: tem, sim, um fiozinho invisível mas real, substantivo, físico, a nos ligar, efetiva ou potencialmente, a todos. E todas. Essa linha –que não são os impulsos e os memes da comunicação virtual – atravessa portas, paredes, classes e cores, gêneros, idades, muros e identidades, ideologias e línguas. De repente, de uma hora pra outra, está aí, estampado diante de nós: há linhas que nos ligam, conexões biológicas, físicas, que podem nos matar ou mesmo, eventualmente, nos imunizar. Essa camada do que chamamos realidade sempre existiu. Nunca estivemos sós ou separados dos outros – e por isso se fala em ecologia e na crise do clima como catástrofe global. Há um nível em que um destino comum se engendra. Nosso poder de controlar os fluxos torrenciais desses rios invisíveis é limitadíssimo, sobretudo se apelarmos apenas para as percepções comuns, desprezando a ciência, ou se buscarmos soluções individuais ou grupais.

Ah! Entendi, dirá a leitora imaginária, tu és mais um daqueles despolitizados mercadores de platitudes, que ciscam pra lá e pra cá, apenas pra defender os ideais bonitinhos que ficam bem na foto e fazem sucesso nos blogs de autoajuda: todos somos iguais e só a união salva a humanidade. Viva o amor e a misericórdia! Salve a solidariedade! A exploração de classe, a dominação de gênero, o racismo estrutural, tudo o que de fato importa e estrutura a sociedade é omitido e discretamente varrido pra baixo do tapete.

Não, minha amiga, nada disso. Não me subestime. A vertebração político-econômica das sociedades e os eixos de poder e conflito permanecem fundamentais. As opressões não desaparecem quando outra dimensão do real é identificada e focalizada. Faz toda a diferença enfrentar a pandemia como trabalhador precarizado, em moradias sem saneamento, acuado pelo desalento, ou como alguém do 0,1% da população brasileira que detém 48% da riqueza nacional. Entretanto, você há de convir que muda nossa imagem de nós mesmos, e do mundo, admitir a existência e experimentar a presença de vizinhos e inquilinos invisíveis, desprovidos de intencionalidade (interesse e sentido), que atendem a dinâmicas próprias, interagindo conosco, com as demais espécies e com o ambiente, cuja força parasita e consome a nossa.

A sorte de cada um e cada uma de nós não depende apenas do fortuito, por definição imprevisível, cujo âmbito de intervenção é até certo ponto e em certa medida circunscrito por nossas condições socioeconômicas, educacionais, psicológicas, genéticas e fisiológicas. Acaso e necessidade sempre foram os polos de nosso percurso existencial. Não se trata somente do fortuito, mas da atuação de cápsulas de gordura microscópicas, portadoras de material genético e proteína, que não estancam ante as fronteiras dos corpos, de tal modo que seus efeitos não se precipitam de fora para dentro, como nos cataclismos naturais (enchentes, terremotos, tornados, etc.), mas a partir de dentro, enlaçando indivíduos nos circuitos viróticos, infiltrando fake news nas células de defesa de nossos corpos, numa bizarra campanha bélica intracorpórea de contrainformação e contrainteligência.

Na era em que prosperam teorias da conspiração – essas armadilhas mentais paranoicas, cujo pressuposto é a atribuição de intencionalidade, sentido e funcionalidade a tudo o que existe e acontece –, é fascinante (e terrível) observar que nem tudo é passível de controle (nem tudo é político, portanto, embora o sejam as condições nas quais são vivenciados os efeitos de processos físicos não intencionais – embora muitos desses processos sejam consequências inesperadas de ações humanas irresponsáveis e gananciosas) e que a ilusão primeira, que subjaz à nossa construção coletiva da realidade, talvez seja a negação dos fios vivos, físicos, repletos de energia, que nos ligam a todos e todas, enredando-nos num destino comum. Conexões, insisto, sem sentido, intencionalidade ou funcionalidade para a ordem humana, como espécie, ou para a ordem política, subsidiariamente econômica, das sociedades. Em suma, assim como um lance de dados não abole o acaso, as mais alucinadas teorias conspiratórias não domesticam a vida, em sua exuberante multiplicidade criativa e exorbitante negatividade.

As religiões tratam das pragas, a literatura, das pestes, as mitologias, dos desastres. A política se apropria das desditas, pro bem e pro mal, quando não são suas causas remotas. Mas a interação de partes nossas com partes alheias deforma, extrapola, cruza e neutraliza as bordas dos corpos que dizíamos nossos – para John Locke, a propriedade primeira, esteio da liberdade, é o corpo, e proprietário é o ser que chamamos indivíduo, assim subjetivado porque, simultaneamente, contrastado com o objeto de sua posse e inscrito numa cadeia coletiva de direitos naturais. Os animais humanos não intercambiamos apenas dons, dívidas, odores, signos, afetos e fluidos sexuais. Eis aí a orgia perpétua dos inquilinos invisíveis, desdenhando da unidade que nos atribuímos sob o modo das identidades e a forma da consciência. Se Freud minou a identidade-a-si do sujeito e a miragem do autoconhecimento, a promiscuidade virótica completa o trabalho, renovando o recado não suficientemente aproveitado em 1918.

3. E depois?

Claro que não devemos nos iludir com deduções tão a gosto de nosso viés iluminista: graças à pandemia do coronavírus, a realidade se revelará e varrerá do mapa apropriações que lhe confiram significados capazes de remeter de volta aos escaninhos da intenção e do sentido o que lá não cabe. Já vimos esse filme e não só em 1918. Aliás, nada mais refratário ao escrutínio racional da experiência do que as crenças, elas são imunes à mudança e tudo reconfiguram para assimilar. Esse apetite pantagruélico se compreende: crenças servem não só à preservação de relações de dominação político-econômica, mas também à ordem psíquico-emocional, estabilizando expectativas e conjurando a insegurança. Aqui vale uma nota ainda mais cética: uma coisa é a ciência, em sua vertiginosa mutação e audaciosa abertura, outra coisa é a resistência de tantos e tantas cientistas a acolher a instabilidade em suas vidas e projetar a incompletude que caracteriza a ciência sobre suas visões do mundo e de si mesmos ou mesmas. No final dos anos 1980, refletindo sobre a tradição hermenêutica que Gadamer codificara, afirmei que não há nem pode haver uma visão de mundo científica, simplesmente porque ciência não tem visão, nem as metáforas visuais (ver, enxergar, contemplar, vislumbrar, focalizar, iluminar, refletir, esclarecer, clarificar, ponto de vista, ótica, etc.) se aplicam a definições conceituais de objeto. Por isso, cientistas como cidadãos costumam operar como o comum dos mortais, sobretudo quando se trata de enfrentar os desafios extremos da existência humana ou as complexidades, e contradições, do social. Um exemplo sou eu mesmo, cientista social de ofício, fora do papel e do papel de autor. Valho-me do sempiterno Fernando Pessoa: como o poeta, sou aqui um fingidor, e finjo tão completamente que chego a fingir que é dor a dor que deveras sinto. Adaptando, diria que me iludo tanto quanto os que acuso por ingênuos. Pelo menos guardo em mim o desconforto, o desassossego a que Pessoa dedicou sua obra derradeira e incompleta.

O que virá depois da pandemia? O fim do ciclo neoliberal, provavelmente, porque terá ficado evidente que aquilo que se vendia como sendo os limites da realidade e da economia, na verdade, eram os limites da política e da política econômica. Ou seja, o que parecia incontornável e imutável ter-se-ia desmanchado no ar. Pensamentos heterodoxos que já vinham sendo formulados e sistematizados tenderão a se impor, a começar pela Europa. Mas esse novo momento, com novas características, pode vir a ser apenas mais uma oportunidade de revitalização do capitalismo, inaugurando novo ciclo que o salve da autofagia especulativa financeira e das convulsões sociais, contratadas pelo agravamento das crises sociais causadas pelas políticas de austeridade. É possível que a agenda ambiental e da sustentabilidade conquiste patamar superior de legitimidade. E é possível também que, da experiência mundial de combate à pandemia, reste a expansão da tolerância a formações institucionais autoritárias, a vigilância transferindo-se dos subterrâneos clandestinos das agências de espionagem e dos algoritmos virtuais para a sede oficial dos governos, em aliança ostensiva com as empresas monopolistas da comunicação virtual global.

É também possível que do reconhecimento de nossa interdependência, enquanto indivíduos, coletividades, cidades e nações, não derive mais solidariedade, empatia e a ampliação do apoio a políticas sociais redutoras de desigualdade ou até mesmo a modelos socialistas de organização do poder e da economia, mas, ao contrário, o crescimento do medo e dos preconceitos, a elevação dos muros e das separações xenófobas e racistas, a intensificação da brutalidade policial e do punitivismo. Estaremos, nesse caso, trocando a interdependência por mais dependência, em todos os níveis, mantidas e aprofundadas assimetrias e iniquidades. Pessimismo? Não sei. Lembremo-nos que um coronel da PM do Rio comparou a polícia a um dedetizador, que protegeria a sociedade do mal que a pudesse infectar. Políticas eugenistas foram a marca de regimes fascistas e nazistas, embora, mitigadas, tenham sido aplicadas em situações menos extremas – inclusive no Brasil e no Rio de Janeiro. As polícias brasileiras têm se comportado como a metáfora do domínio autoritário das elites brancas contra os riscos de contágio e desordem. A contaminação, figura metonímica por excelência, serve de metáfora para a agenda reativa dos que vocalizam a perpetuação do racismo estrutural. Não espantaria que o futuro nos reservasse a emergência de uma polícia médica, que aplicasse a metáfora como metonímia, isto é, que adotasse a separação entre classes e a contenção xenófoba, sob vigilância, como modos de convívio, como modelos de conexões interpessoais e como princípios reguladores das relações sociais. Contudo, há sempre esperança de que o conhecimento e a imaginação antecipadora ajudem a evitar que o apartheid seja nosso futuro – em meio à catástrofe climática e a pandemias – e que respiração artificial seja nossa única aspiração antes do fim.


* Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político, escritor e professor aposentado do Instituto de Ciências Sociais da UERJ. Seu livro mais recente é O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019).

Notas

[1] Minhas hipóteses dialogam com diversas reflexões de Bruno Torturra, expostas em sua série brilhante e inspiradora, no YouTube, “Boletim do Fim do Mundo”.

especial
Tempo de leitura estimado: 6 minutos

KEN LOACH #2

Adelaide Ivánova (Recife, 1982) é poeta, fotógrafa, jornalista e ativista social. Publicou autotomy (…) (2014), Polaroides (2014), O martelo (2016, vencedor do Prêmio Rio de Literatura) e 13 nudes (2019). Edita o zine MAIS PORNÔ PVFR e traduziu, entre outros, Ingeborg Bachmann, Hans Magnus Enzensberger e Paul Celan. Mora desde 2011 em Berlim, na Alemanha.

Fred tinha menos de 60 anos quando
Foi encontrado no apartamento
De menos de 60 metros quadrados
No qual vivia há anos
Sozinho.

Fred era desempregado
E apesar de ter ex-mulher e filhos
Não tinha família
Eu não sei quais circunstâncias levaram
Fred a ser tão solitário
Estou ciente que Fred não deve ter sido nenhum
Anjo
Mas Fred morreu muito sozinho muito bêbado e muito pobre
Num apartamento
Numa cidade
Que é Berlim
Mas que poderia ter sido qualquer outra.

O prédio onde Fred morava
Pertenceu outrora à Stasi
a polícia secreta da Alemanha Oriental
E o Muro de Berlim passava bem na frente
Depois que o Muro “caiu”
O prédio foi vendido pra um investidor privado
Que além deste tem muitos outros prédios (é claro)
Este edifício é onde Fred foi morar
Fred aí encontrou sua última casa
Um apê quarto-e-sala
Onde construiu com as próprias mãos
Um grande beliche de madeira maciça
Da qual anos depois ele mesmo caiu
E morreu
Numa época que os aluguéis em Berlim ainda eram
Baratos e os apartamentos vazios eram
Devidamente ocupados: por punks, estudantes, trabalhadores ou refugiados.

A vizinha de cima de Fred
Que gostava muito dele
Se chama Eva Eva é
Uma ex-jornalista de moda da Alemanha Oriental
Ser jornalista de moda na Alemanha Oriental ao que parece era bonito
Porque sem mercado capitalista os editoriais eram feitos
De forma artesanal
As próprias jornalistas e stylists inventavam
E costuravam os looks que não precisavam
Fazer propaganda ou lobby pra nenhuma marca
ninguém era obrigado a botar nenhuma dondoca na capa
Devia ser massa
(eu recomendo buscar a revista Sibylle na internet)
A carreira de jornalista de moda de Eva
não vingou depois que o Muro caiu
Ela disse: “acima de tudo era um mercado etarista que não aceitava
Nem respeitava mulheres mais velhas”.
Eu imagino os fashionistas do oeste
Desvalorizando a expertise única de Eva
Jornalista de moda anticapitalista
Que se aposentou como autônoma
e hoje ganha uma mixaria que ela
Complementa trabalhando
Aos 72 anos
Como cozinheira duas vezes por semana numa casa de família.

Eva veio morar nesse bairro quando ninguém queria
Não tinha café não tinha lojinha
“A única coisa que tinha era um monte de bêbado na pracinha”
Hoje em dia diz Eva “é melhor
Tem mais vida e mais jovens no bairro
Só ficou ruim porque o aluguel vai ficando cada vez mais caro
E cada vez se fala mais inglês no prédio”
(Eva não aprendeu inglês aprendeu russo)
Eva diz que gentrificação é ruim, mas é boa
pra mulheres e idosos
Porque nos beneficiamos do fato
De que se tem vida nas calçadas do bairro temos menos medo
De voltar pra casa de noite sozinha
Depois do trabalho
Só continuamos evitando a pracinha
Que continua sem iluminação pública
Porque sabemos que iluminação pública é do interesse de:
1) mulheres 2) propriedade privada
Se na pracinha não tem nada de valioso
Só uns desempregados e mulheres voltando de noite da uni ou do trabalho
Pra que gastar esses euros iluminando a praça pública?
Se na pracinha tivesse uma loja de carro
Certamente que uns postes já teriam sido instalados
Não é mesmo?

Gentrificação então é isso
É quando o setor privado
É quem investe na melhoria dos bairros
“Provendo” o que Estado tinha que prover
Tornando privado aquilo que na real é público
E o preço que pagamos é alto
(mães-solteiras e idosos são os primeiros a serem despejados)
E é por isso que ativistas da moradia
Falam tanto não somente do direito de morar
Mas do direito à cidade
aliás viva Kotti und Co., viva o London Renters Union, viva o MTST!
Esses dias tentando driblar o “Mietendeckel” antes dele ser aprovado
nome coloquial da lei tramitando no Senado de Berlim de regulamentação e redução dos aluguéis
O investidor privado dono do seu prédio
Mandou um aumento de aluguel pra Eva
Que ficou muito preocupada
Ela levou seu caso pra Associação dos Inquilinos
E depois foi num evento informativo
Com Katalin Gennburg
Sobre expropriação dos grandes proprietários
#DW&Co.Enteignen!
Mas nada disso ajudou a resolver a situação concreta de Eva
Além de tudo Eva tinha levado uma queda
E quebrado um braço
Então não podia trabalhar na casa da família
E se não tinha como trabalhar não tinha como complementar
A aposentadoria chocha
Que Eva ganha depois de trabalhar
Anos e anos
Como jornalista autônoma
Então não tinha como pagar o aumento.

Eva ainda não perdeu seu apartamento.

Eva é minha vizinha de cima
E eu moro no apartamento onde Fred antes morava
E eu durmo na cama que Fred construiu
E eu tenho muito carinho por Fred
que nunca conheci
Mas cujo trabalho braçal produziu uma cama muito gostosa
Na qual eu às vezes perco o sono
Sem saber como vou pagar o próximo aluguel
Ou o aumento do preço da calefação
que apesar de cara não funciona e o senhorio não conserta
Já que até junho todos os meus trabalhos foram cancelados
por causa do Coronavírus
Às vezes eu fico me perguntando se Fred foi feliz aqui
Como às vezes eu sou mas nem sempre
Será que ele também perdia o sono
Com medo de ser despejado?
O que será que nos conecta, nós três, pra além de um endereço?
Não sei direito.

Eu também não tenho família
Também trabalho na casa dos outros
Apesar de ser jornalista
Certamente também será chocha minha aposentadoria
E quando estou triste bebo sozinha em casa.

Disponível em: https://www.davidrumsey.com/luna/servlet/workspace/handleMediaPlayer?lunaMediaId=RUMSEY~8~1~321418~90090719
Dossiê
Tempo de leitura estimado: 33 minutos

O FRONT DA VIDA NAS CIDADES: UMA ABORDAGEM LOCAL

1. A potência da vida e o desenho urbano

“O desafio é substituir o regime mecânico de argumentação por um regime de verdade, de abertura, de sensibilidade ao que aqui está.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição

Os espaços de uso comum são determinantes para a experiência de se viver nas cidades. Análises sobre a sociabilidade urbana revelam a importância da comunicação e o potencial de vitalização que ocorre nesses ambientes onde o mundo nos atravessa e nos constitui (Bordreuil, 2002). No entanto, as práticas urbanas submetidas à dominação política muito frequentemente excluem a participação das comunidades nas decisões sobre a evolução dos espaços onde habitam, desconsiderando as demandas por uma maior equidade socioespacial. Como fator agravante, as discussões sobre a qualidade do viver na cidade são atravessadas frequentemente por ideias e convicções ideológicas muitas vezes binárias, desconectadas do contexto sociocultural e da realidade cotidiana, na espera de uma utopia (Comitê Invisível, 2016).

Outras leituras sobre os processos de evolução das cidades caminham no sentido de desmodernizar o campo de conhecimento urbanístico em sintonia com a ideia de descolonização (Mignolo, 2017), possibilizando a reavaliação de planos e projetos que ainda se embasam com frequência em abordagens técnicas simplificadoras da cultura moderna (Morin, 2008), sem uma compreensão holística essencial para proposições e ações no sentido de proporcionar uma maior equidade para os diferentes grupos e indivíduos. Esse caminho busca outros tipos de pensamento sobre os espaços urbanos a partir de ideias transformadoras e ações focadas no presente, no agora (Comitê Invisível, 2018), movimentando as subjetividades individuais e coletivas envolvidas nesses processos.

Conscientes de que não há um desenho de cidade que assegure uma vida tranquila para todos nem a perspectiva de uma equidade absoluta, muitos urbanistas desenvolvem estratégias que possibilitam transformações concretas em diferentes escalas no desenho urbano, conjugando abordagens culturais e socioespaciais, aspectos técnicos, critérios qualitativos e subjetivos, e tecnologias sociais. Dessa forma, buscam elevar o nível do debate na esfera pública, ampliando a visão das práticas urbanísticas, aproximando propostas transformadoras e mobilizações estratégicas embasadas na coragem, na autoconfiança e na energia coletiva, transformando modelos sociopolíticos opressores por meio da ação no presente. É nesse contexto que o conceito de biopolítica opera, entendendo a população como um problema político, considerando ao mesmo tempo aspectos biológicos, científicos e questões relacionadas às estruturas de poder (Foucault apud Garrison, 2017).

O desafio é trazer para situações concretas em andamento a discussão filosófica sobre a evolução da cidade e suas comunidades, liberando os atores sociais da autocolonização sociopolítica a partir do entendimento sobre quem se beneficia das decisões sobre o desenho e o desenvolvimento urbano, e das subjetividades que são ativadas nesses processos e projetos que envolvem solidariedades assimétricas de indivíduos e grupos que participam de diferentes formas da dominação política (Botelho, 2007). O conceito de biopolítica desenvolvido no campo da teoria social desde Michel Foucault contribui para analisar as estratégias e mecanismos que conduzem a vida em sociedade sob regimes autoritários, atuando sobre o conhecimento e influenciando os processos de subjetivação que configuram as relações de poder.

O reconhecimento de novos valores e sensibilizações tem o potencial de transformar as subjetividades coletivas, mudando a forma de participação das pessoas e grupos que agem ou se omitem no processo de construção da cidade. Esse movimento é uma operação complexa que envolve tanto os colonizadores como os colonizados, que, mesmo excluídos dos espaços elitizados da cidade, muitas vezes trabalham ou se manifestam no sentido da continuidade da submissão do seu grupo, apoiando decisões sobre as estruturas urbanas que contribuem para a perpetuação da inequidade social e espacial em troca de vantagens pessoais. Se os colonizadores não são os agentes naturais desse movimento, por outro lado grande parte dos que não têm os seus desejos e direitos respeitados nas decisões sobre o comum se omite, porque participa de alguma forma das relações de dominação política que se configuram no contexto das parcerias da gestão política com interesses econômicos.

Entender a manipulação da esfera subjetiva e a forma como ela afeta os grupos e comunidades além da esfera pessoal nos faz perceber o quanto estamos isolados, vivenciando uma subjetividade desvinculada das pessoas no nosso entorno. Por outro lado, as particularidades da dominação política em função de cada contexto, da situação específica em jogo e do momento vivido em cada lugar revelam a indeterminação do jogo político, permitindo-nos acreditar em cenários alternativos a partir de estratégias de ação que desestabilizem as estruturas de poder. As relações com as pessoas com quem compartilhamos as ruas e espaços de uso comum no nosso entorno e a visão coletiva das demandas locais podem motivar insurreições comunais (Comitê Invisível, 2016) a partir de uma mudança de percepção dos sentidos de vida e das formas de se viver que absorvemos no cotidiano de forma inconsciente através de fluxos de imagem e informações (Pelbart, 2008).

Transformações do espaço e de funções urbanas originadas em práticas comunais em escala local abrem espaço para ações em escalas maiores na cidade a partir da ampliação do conhecimento e do entendimento das questões em jogo. O front é o das pessoas na luta legítima pelos seus direitos e interesses que são específicos para cada comunidade, cujas possibilidades de evolução precisam ser imaginadas e visualizadas a partir de discursos verdadeiros, configurando espaços biopolitizados. Esses são os componentes das culturas que se transformam para evoluir, em que as novas ferramentas de comunicação têm um papel importante, embora não substituam as relações e afetos presenciais. Nessa discussão sobre fatos urbanos em andamento em um balneário turístico, observamos o insolidarismo social com fortes repercussões na evolução de ambientes ao mesmo tempo urbanos e naturais especialmente relevantes para a cidade, e apontamos as perspectivas de mudanças desse cenário a partir da resignificação das subjetividades individuais e coletivas no sentido de uma nova vitalidade social.

2. Uma lagoa perdida no meio da cidade

“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos… mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado…”
Italo Calvino, As cidades invisíveis

Muitos estudos enfocam a importância do contato com a sociedade local quando são desenvolvidos projetos para os espaços públicos nas cidades, permitindo uma avaliação sensível e uma visão que envolva não apenas os aspectos físicos do território, mas também a dimensão sociocultural, a partir do conhecimento das pessoas que vivem ou usam aquele espaço (Bloch, Costa, Kotaki, Katz, 2013). Essa abordagem participativa amplia a compreensão do lugar em vários sentidos que não seriam alcançados apenas pela interlocução com profissionais como arquitetos, engenheiros ou biólogos, contribuindo para evitar soluções que se contrapõem às demandas e desejos da comunidade local e decisões técnicas equivocadas no que se refere ao desenho urbano e à acessibilidade aos espaços de uso público (Cadiou, 2002; Tixier, 2002).

No entanto as práticas urbanísticas em Armação dos Búzios muitas vezes não adotam metodologias participativas e, mesmo quando a elaboração de planos e projetos busca envolver as comunidades locais, as decisões sobre as prioridades de investimento  determinadas pela estrutura política adiam sine die a sua realização, pondo em risco a consolidação do desenho urbano concebido ou mesmo inviabilizando um futuro possível e desejado. Esse é o caso do Parque Lagoa de Geribá, cujo projeto foi desenvolvido e aprovado em 2002 e ainda não saiu do papel. Recentemente levei diversas pessoas que veraneiam em Búzios há mais de vinte anos para passear no entorno da Lagoa de Geribá e elas ficaram impressionadas com o seu tamanho (Figura 1, parte mais estreita da península) e com o fato de não a conhecerem, apesar de circularem sempre por ali, da Praia de Geribá à peixaria de Manguinhos, ou ao centro gastronômico na Barrinha (Bloch, 2019).

Figura 1: Lagoa de Geribá. Fonte: Arquivo Prefeitura Municipal de Armação dos Búzios, 2002.

Essa é uma das áreas mais densas da cidade, e a “ocultação” dessa lagoa é um grave problema urbanístico. Uma lagoa que não participa da paisagem da cidade e não se torna uma área de lazer corre o risco de ser poluída, aterrada, e até desaparecer. A degradação da Lagoa de Geribá é o resultado das decisões e omissões dos gestores públicos e da incompreensão dos moradores sobre a importância desse ambiente natural.

Quando a paisagem natural não é valorizada pelo poder público acaba sendo desconsiderada até pelos moradores, que dão as costas para ela (Figura 2).

Figura 2: Ocupações na Lagoa de Geribá, de costas para o espelho d’água. Foto do autor, 2014.

Os brejos e lagoas de Búzios são estruturas naturais que acumulam e infiltram as águas pluviais, alimentando o lençol freático, impedindo a salinização do subsolo e preservando o ecossistema local. A reversão do processo de degradação dessa lagoa demanda a superação do paradigma moderno (Morin, 2008) na gestão da(s) cidade(s), promovendo a interação dos diferentes campos profissionais relacionados ao urbano no sentido de rever os planos e as estruturas de drenagem, que se baseiam em técnicas hidráulicas sem atentar para a repercussão dessas intervenções nos sistemas naturais, desconsiderando o potencial desse local como espaço de lazer e sociabilização.

O projeto elaborado para o parque no entorno da lagoa (Figura 3) visa a sua preservação e também a promover conexões de caminhos para pedestres e ciclistas, valorizando a qualidade de vida dos moradores e a atividade turística. A criação do parque contribui ainda para induzir um processo de regeneração da paisagem natural, conjugando os sistemas da natureza e os sistemas da cultura na construção da paisagem urbana, considerando a relevância do sistema lagunar de Búzios para a paisagem (Bloch e Costa, 2014), e valorizando e inserindo no cotidiano da vida das pessoas os elementos naturais e culturais que já pertencem ao lugar (Corner, 1999). O acesso a essa lagoa possibilitaria também usos e apropriações diversas, motivando as pessoas e comunidades na busca de novas alternativas de valorização dos espaços urbanos.

Figura 3: Projeto para o Parque Lagoa de Geribá. Fonte: Relatório Final AMBIOTEC, 2002.

3. Um imbróglio pode ser uma oportunidade

“Abrir-se ao mundo é abrir-se à sua presença aqui e agora… Se ‘o mundo’ deve ser salvo, será em cada um de seus fragmentos.”
Comitê Invisível, Motim e Destituição Agora

Muitos moradores da cidade foram surpreendidos com a ideia do governo municipal de construir uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em uma área destinada a uma praça pública situada nas margens da Lagoa de Geribá. A praça nunca foi de fato construída, mas o terreno doado ao município quando da aprovação do loteamento “Ilhas de Búzios” tem inclusive o nome de Praça do Farol. O projeto para o parque não é apenas uma questão de funcionalidade e de estética, conjugando no seu desenho aspectos sociais e ambientais na forma de ocupação desse espaço natural, considerado de alta prioridade de preservação pela comunidade científica internacional.

No entanto, a cultura da gestão pública impõe o isolamento das diferentes secretarias que deveriam participar do planejamento da cidade, cada uma enfocando apenas a sua especialidade, e os gestores não têm nem buscam uma percepção da cidade como um todo (Bloch, 2010). Quando decidiram a localização da Unidade de Saúde, ignoraram o imenso valor urbanístico desse ambiente natural, que tem um papel fundamental para a biodiversidade e para a oferta de áreas públicas de lazer envolvendo atividades esportivas, recreacionais e educacionais. Embora seja complicado reconhecer a falta de planejamento e mudar o lugar já escolhido para a obra, o que precisa ser considerado é que será muito mais oneroso para a cidade dar prosseguimento à implantação da UBS na Praça do Farol, que é um dos acessos principais do parque, do que buscar alternativas para essa decisão.

Diversos moradores do bairro, arquitetos públicos e outros atores sociais contestaram a localização da UBS porque, embora o parque ainda não tenha sido implantado, a preservação dos terrenos públicos que fazem parte do projeto é que permitirá em algum momento a sua realização. A contestação foi ignorada pelos gestores públicos e a obra foi iniciada irregularmente, porque a Lei Orgânica do Município não permite a construção nos lotes destinados à implantação de praças públicas. Um grupo de moradores acionou o Ministério Público para impedir a continuidade da obra, e foi proposta a relocalização da UBS em terrenos mais bem localizados para os futuros usuários da UBS.

Foram realizadas duas audiências públicas para discutir o imbróglio, e as manifestações contrárias à obra mencionaram a importância da visibilidade e da acessibilidade da lagoa para a sua preservação: “Podemos mudar a construção da UBS para outro lugar, mas não podemos mudar a lagoa de lugar.” Um representante da vereadora que fez a indicação da obra argumentou que a instalação dessa unidade de saúde seria importante para os moradores pobres do bairro, alegando que o posto no qual eles são atendidos fica muito cheio, formando grandes filas. Para justificar a continuidade da construção naquele local, alguns vereadores argumentaram que as pessoas “endinheiradas” que moram perto da lagoa não querem a UBS no bairro porque não precisam dos serviços públicos de saúde e não se importam com as pessoas com menos recursos.

Na realidade, esse conflito não existia: as pessoas que se manifestaram nas audiências não se opuseram à construção da UBS no bairro, mas indicaram outra localização que não obstruísse o acesso ao parque e a visibilidade da lagoa. Ao mesmo tempo que contestavam a ocupação da praça, demonstraram aos apoiadores da vereadora que a vida de todos seria valorizada com a criação desse parque – independentemente de faixa de renda ou classe social –, tanto no aspecto da saúde, pela oportunidade de lazer e sociabilização nesse espaço de uso público, como na valorização das suas moradias, apontando alternativas de localização da UBS mais favoráveis aos usuários.

A discussão pública teria a função de resolver o impasse, proporcionando uma maior compreensão do problema, mas as audiências solicitadas pela sociedade civil não foram vinculantes, ou seja, as conclusões decorrentes das manifestações do público presente não foram consideradas, revelando a manipulação das ferramentas do sistema democrático pela simulação da participação da sociedade na decisão, que não considerou a necessidade de planejar as estruturas de saúde em sintonia com o desenho urbano nem com as necessidades da comunidade local. Os atendimentos de saúde nesses bairros se dão hoje na Policlínica, e as filas são resultado de uma forma arcaica de funcionamento desse setor. Por outro lado, uma readequação da Policlínica permitiria abrigar com qualidade e conforto tanto a Policlínica como a nova UBS com acessos independentes, resultando em uma economia importante para o município e proporcionando um melhor acesso aos usuários da UBS em comparação com a Praça do Farol.

Esse é o X do problema: os modelos de gestão pública que prevalecem nas cidades e as decisões sobre os investimentos públicos estão submetidos à dominação política envolvendo diferentes atores sociais que visam prioritáriamente a benefícios pessoais. Para prosseguir com a construção da UBS embargada pelo Ministério Público, os vereadores amplificaram esse gravíssimo erro de planejamento, alterando a Lei Orgânica Municipal. A mudança da Lei Orgânica para esse fim é um escândalo político e jurídico, e ainda assim não poderia retroagir para que se aprovasse o projeto em questão, mas o fôlego dos que contestavam acabou. A ideia de juntar um grupo de pessoas com a participação da imprensa e das mídias sociais para reverter a situação, impedindo o acesso dos construtores e o reinício da obra, não aconteceu. A alternativa de seguir investindo no trabalho de advogados privados para tentar novamente embargar a obra também foi abandonada, devido à descrença quanto ao resultado do prosseguimento da ação e ao medo de represálias contra os que se manifestavam a favor da praça e da lagoa.

Nesse imbróglio estão superpostas três principais dimensões e subjetividades: o contexto dos manifestantes que se opõem à ocupação da praça mas estão expostos a ameaças de represálias pessoais e diretas; as relações de solidariedades assimétricas dos cabos eleitorais, seus parceiros e familiares, que constituem sofisticadas modalidades de controle envolvendo a submissão da subjetividade; e a ilusão dos que se posicionaram a partir da visão utópica de uma sociedade igualitária, desconsiderando a complexidade das questões em jogo e desconectando-se do momento presente. A compreensão desses processos e o compartilhamento de novas percepções sobre as questões coletivas podem abrir espaços para a mudança desse estado de impotência social, em que as pessoas não se posicionam em relação às decisões que determinam a evolução dos espaços comuns da cidade em função dessa submissão que está subjetivada (Pelbart, 2008).

As mudanças podem acontecer quando nos damos conta de que não somos autônomos, e sim moldados pelas informações e comunicações que nos atravessam, e que podemos reinventar a nossa subjetividade, tanto a pessoal como a coletiva, transformando o contexto social no qual estamos inseridos a partir de uma nova percepção dos acontecimentos, e gerando ações fora do sistema institucional. A edificação em andamento na Praça do Farol poderá, por exemplo, ser readequada para abrigar a sede do parque com paredes e portas de vidro, um centro cultural voltado para a educação ambiental e para encontros entre as pessoas do bairro e da cidade, áreas para o lazer e atividades diversas, sem muros e cercamentos que obstruam a paisagem da lagoa.

4. Identificando obstáculos e caminhos possíveis

“Uma insurreição pode estourar a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país, e levar não importa aonde.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição

Manifestações a favor da continuidade da construção da UBS no terreno da praça foram motivadas principalmente pela rede de reciprocidades que dá forma e substância ao poder, envolvendo cabos eleitorais que intermedeiam as relações entre os políticos e os seus eleitores e buscam nessa atuação a perspectiva de acesso à liderança política e ascensão social na comunidade. Essas relações de solidariedade fazem com que os posicionamentos soem como se caminhassem no mesmo sentido, “e não como imposição da vontade do mais forte sobre a do mais fraco” (Botelho, 2007, p. 67-68). No contexto dessa decisão, o “mais fraco” foi pressionado no sentido de não considerar os argumentos que mostravam que a revisão da decisão discutida nas audiências públicas proporcionaria melhores resultados para si e para a cidade.

As tensões nessas relações são muitas vezes ocultas para os dominados, que não visualizam os papéis dos diferentes atores sociais. Ou ocultadas de forma consciente para manter os interesses – embora assimétricos – alinhados. No caso em questão, a decisão foi defendida posteriormente por alguns membros do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), reiterando o argumento de vereadores de que o impedimento da construção da UBS tinha origem em uma visão elitizada, que não considerava as demandas dos mais pobres, sem se darem conta de que estavam contribuindo para o sequestro da vitalidade social inerente à proposta da criação do parque. Essa situação expressa também uma forma de sujeição da subjetividade, na qual a ideologia exerce pressões deformadoras no processo de compreensão e de posicionamento em relação aos acontecimentos (Konder, 2002).

Por outro lado, diferentes pessoas e grupos criticam a gestão pública nas ruas e em encontros sociais, sem promover ações concretas, e seguem esperando uma mudança de contexto, um político “do bem”, uma transformação vinda de fora, não se sabe de onde. Essa espera é uma recusa de encarar o que acontece no nosso entorno, no presente, é se manter à margem do processo. É viver à espera da utopia, temendo os riscos das mudanças no presente (Comitê Invisível, 2016). A alternância política sem uma vitalização social apenas muda os atores e suas formas particulares de articular gestão pública e interesses privados, dando continuidade às relações de parceria entre atores sociais de diferentes classes cujos conflitos são eclipsados pelos ganhos compartilhados, mesmo que de forma assimétrica.

Mesmo os cenários desejados e compartilhados por um grande número de pessoas da cidade não se tornam objeto de reivindicações potentes: o enfrentamento das estruturas de poder que determinam o que é feito com o dinheiro público não faz parte da nossa prática social. As brechas existem, mas as pessoas têm medo de questionar ou propor alternativas às decisões da gestão política, principalmente porque são poucas as pessoas e estabelecimentos na cidade que estão legalizados ou regulares, quando muito obtêm autorizações provisórias para o funcionamento dos seus negócios, ficando expostos a represálias. Outra parte importante da população da cidade é contratada pelo poder público a partir de indicações políticas. Esse é o cenário que explica a nossa “acomodação” e a crença de que nada se pode fazer para mudar o rumo das coisas.

A dominação política não apenas regula a gestão pública de forma explícita em muitos aspectos e negócios, mas também se infiltra na esfera cultural e subjetiva, promovendo leituras e interpretações simplificadas dos acontecimentos, tanto na esfera da cidade formal quanto nas áreas de ocupações espontâneas. Propostas de transformação desse modelo precisam disseminar as ideias que podem promover mudanças concretas das estruturas funcionais que irão afetar o cotidiano, mas Pelbart (2008) reconhece que a libido coletiva que permitiria imaginar que algo diferente seja possível nos foi sequestrada. A condição que permitiria recusar essa decisão sobre a localização da UBS é a de não temer a ruptura, o dissenso, na busca de redesenhar a lógica da cidade e da vida em comum.

Uma insurreição sobre um tema em um espaço determinado, um acontecimento “fora da curva”, pode reintroduzir a ideia de mudança, quebrando um padrão histórico, liberando a força das pessoas para uma reação à dominação política que é ao mesmo tempo brutal e sutil. Não basta criticar o governo e as instituições que fazem parte do planejamento disfuncional. É preciso um outro plano de percepção e de movimentação, sair do vazio das estruturas discordantes e desconectadas e entrar no espaço em que nós somos “o local de passagem e de articulação e de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais” (Comitê Invisível, 2016, p. 94), a comunidade como experiência. A sublevação na escala de uma comunidade na qual se vive e interage é uma forma de enfrentamento que pode gerar transformações das formas de vida e das estruturas locais, contribuindo para a conceituação de planos e projetos, produzindo continuamente novos afetos e um espírito de autovalorização.

Em Búzios acontecem encontros e conversas em muitos lugares onde as pessoas compartilham seus desejos, crenças e descrenças. A criação da feira periurbana com produtos orgânicos na Praça da Ferradura foi uma invenção catalisadora desse processo de encontros e associações: grupos de leitura, música ao vivo, o dançar juntos, comidinhas especiais preparadas nas barracas. Se, por um lado, Botelho aponta o entrelaçamento de esferas sociais distintas na configuração da dominação enquanto princípio geral de regulação das relações sociais no Brasil, e indaga sobre a capacidade dos grupos subalternos de promover a ruptura daquilo a que estão submetidos, Pelbart busca revelar a potência do ser vivo para o exercício do poder sobre a vida, tendo por objeto as pessoas afetadas por processos de conjunto. Essa potência da vida no contexto contemporâneo se opõe às formas de submissão da subjetividade aos diferentes tipos de poderes, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação e contra a exploração.

A partir da sinergia coletiva, da cooperação social e subjetiva, da inteligência, do afeto, e do desejo, as relações de poder são reavaliadas nessa busca pela transformação. A inteligência coletiva e a percepção de novos desejos produzem novas crenças, permitindo imaginar e articular formas de cooperação que podem promover as transformações desejadas. As relações criativas produzem, além das trocas de informações, o compartilhamento de cenários imaginados e desejados, motivando a participação da sociedade nos processos decisórios. Aproximar projetos coletivos das pessoas mais pobres e exploradas, cujos sentidos estão mais separados do poder de ação, contribui para a reinterpretação das suas identidades e condicionamentos em favor da vida – valorizando a criação de um parque que proporciona a inclusão e a mobilidade social – e não da doença ou da morte representadas pela unidade de saúde oferecida a essas comunidades carentes.

O desejo e a disposição de gozar do nosso pedaço de mundo na vida cotidiana pode tomar a forma de uma ação insurrecional, substituindo o etos sindical por um etos comunal (Comitê Invisível, 2016, p. 105-106). Quando ficamos vinculados às infraestruturas políticas formais, elas nos organizam sem que se abram possibilidades de experimentação que podem fazer acontecer um movimento a partir da sinergia coletiva, da cooperação social e da produção imaterial, subjetiva, no contexto do intelecto e do afeto. Insurreições focadas em propostas locais para o redesenho urbano se contrapõem ao processo que reproduz as desigualdades sociais, buscando a funcionalidade e a qualidade dos espaços de uso público nas diferentes partes da cidade.

A transformação de estruturas locais depende do entendimento das perspectivas de mudanças do cotidiano e dos ganhos para a vida em comunidade. São as comunidades conectadas entre si que possibilitam não apenas um enfrentamento contestador do ponto de vista ideológico, mas um movimento com propostas concretas para a reestruturação urbana, promovendo ações de curto prazo alinhadas com os cenários desejáveis de uma evolução que se realiza ao longo do tempo. Estamos falando do reconhecimento da quarta dimensão no processo de evolução urbana, da mudança das relações de poder a partir dos enfrentamentos que realizam ao longo do tempo o potencial de transformação da sociedade em cada acontecimento. A proposta de ampliar a visibilidade dessas questões busca promover a criação de um espaço político de interação e colaboração, em que exista abertura para discutir e mediar os conflitos.

5. A biopolítica e a transmutação da cidade: work in progress

Essa discussão sobre vivências e experiências na cidade de Armação dos Búzios busca aprofundar o entendimento das práticas urbanas a partir da observação dos acontecimentos que produzem o desenho dos espaços de uso público e conduzem a evolução da cidade. A ideia é atualizar o questionamento sobre decisões políticas em andamento, buscando superar as limitações da sociedade para a transformação do modelo de gestão autoritária que coopta muitas vezes técnicos e acadêmicos para dar credibilidade a projetos imediatistas que visam a favorecer parcerias políticas. O desinteresse das diferentes gestões políticas pela realização do projeto que propõe a inserção da Lagoa de Geribá na paisagem e na vida da cidade evidencia o desafio enfrentado pela sociedade buziana, que está associado à sequência do seu desenvolvimento histórico e cultural (Botelho, 2007), culminando na alteração da Lei Orgânica do Município por um motivo circunstancial.

A falta de planejamento e a precariedade da infraestrutura, que impactam principalmente a parcela mais pobre da população, se refletem no ambiente como um todo, na desconectividade de ruas e caminhos, no aterramento de áreas brejosas para a construção informal ou irregular, e na obstrução do caminho das águas, isolando os moradores das paisagens naturais e reduzindo a acessibilidade ao seu entorno imediato. Os personagens que questionam os gestores políticos se deparam com forças reativas que trabalham de forma pessoal, influenciando comportamentos e intimidando aqueles que buscam o esclarecimento e a transparência. Consultores contratados, ocultando o caráter segregador dos seus projetos “técnicos” e os seus reflexos no espaço urbano e na estrutura social, fazem prevalecer seus critérios para as decisões usando o seu prestígio, que “é uma maneira particularmente maliciosa de fazer valer a própria autoridade em vez das razões” (Schopenhauer, 2001, p. 66).

Reverter a decisão de implantar a UBS na Praça do Farol demanda um posicionamento decisivo da sociedade, contestando o funcionamento da atividade de planejamento urbano a partir do entendimento da sua natureza sistêmica. Pelbart se pergunta como detectar modos de subjetivação emergentes que podem agregar as pessoas e promover a visibilidade das inteligências grupais para criar novos cenários, novas formas de cooperação, e inspirar novos acontecimentos. É a desenvoltura social nos espaços de uso comum onde a vida acontece – ruas, calçadas, praças – que permite agregar valores à superconectividade proporcionada hoje pelas redes sociais. Os espaços públicos produzem territórios existenciais alternativos que vitalizam as conexões virtuais, alimentando o espírito de cooperação e de ativação das forças sociais, dando sentido e sentimento aos encontros virtuais.

A crítica das mídias sociais e das relações no espaço virtual não deve subestimar seus potenciais subutilizados, e sim reconhecer o espaço que essa evolução tecnológica proporciona para o agir local, para manifestações e insurreições no nosso entorno. Essas ferramentas são recursos para a ativação de uma positividade e uma potência política que estão desvitalizadas pela compartimentação da cidade em condomínios e guetos, pela individualização dos meios de transporte e pela precariedade dos espaços de uso público. Pelbart (2015) desenvolve a ideia de biopotência como oposição ao poder de dominação, como um espaço de possibilidades em que nada está decidido, em que a vitalidade social potente possibilita a transformação das estruturas objetivas e subjetivas que sustentam a dominação política, superando o medo e as tensões a partir da cooperação social, do compartilhamento intelectual, econômico e afetivo.

A disseminação do entendimento da importância do que acontece na Lagoa de Geribá e no seu entorno tem o potencial de ampliar as demandas por mais saúde, educação, serviços, a partir de uma vitalidade que envolve a linguagem, a inventividade, uma sensorialidade ampliada e a afetação recíproca, promovendo transparência e abrindo espaço para uma reforma do sistema político. Esse é o caminho para o espírito comunal que agrega grupos heterogêneos, menos hierarquizados, diferentes da liderança política que determina um rumo único para seus seguidores. Nesses espaços as pessoas vivenciam afetos ao mesmo tempo que constroem um território existencial subjetivo em sintonia com o seu entorno, em oposição à homogeneização cultural. As dinâmicas da sociedade refletem os movimentos das pessoas que convivem na cidade, e embora Mignolo ressalte a dificuldade de “mudar os termos da conversa”, de agir descolonialmente, ele acredita que as reflexões e “opções descoloniais” são o caminho para a mudança de rumo da matriz colonial de poder (Mignolo, 2007) que contribui para engendrar as nossas práticas de dominação política.

Essas práticas passam pela contratação de funcionários para as estruturas públicas técnico-administrativas voltadas para o atendimento dos interesses do grupo eleito e seus parceiros econômicos. Se, por um lado, essa característica da sociedade e a imaturidade institucional da administração pública no Brasil explicam muitas vezes a ausência de uma visão de longo prazo, por outro lado contribuem para mascarar as limitações na abordagem do problema urbano, que, a nosso ver, são decorrentes também do paradigma do pensamento moderno, ao mesmo tempo disjuntivo e colonialista. A falta de interação entre os saberes das estruturas técnicas vinculadas às diferentes áreas de conhecimento – sob a influência do paradigma da separação – transfere às estruturas políticas as atribuições de decisão sobre as intervenções na cidade.

A reversão desse quadro reside na progressiva resignificação das nossas subjetividades para a conquista do acesso aos processos decisórios, a partir da interação dentro do próprio campo social e entre os diversos campos sociais que coabitam na cidade. A perspectiva de superação das nossas subjetividades submissas passa pelos afetos solidários na nossa prática diária, desvendando o nosso desenvolvimento histórico e cultural colonialista e transformando as visões simplificadoras do paradigma moderno, que dissocia o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Em Búzios – uma cidade turística que atrai trabalhadores, veranistas e visitantes de origens as mais variadas –, as subjetividades são múltiplas em função da diversidade de espaços de relacionamento na atividade profissional, na esfera familiar, na vizinhança, nas redes sociais, na prática de esportes e outras formas de lazer. Essas interações econômicas, culturais e afetivas podem ser recíprocas ou hierarquizadas, presenciais ou virtuais, mas sempre há uma forma de comunicação entre as pessoas e um potencial para afetos solidários e novos horizontes.


* Alberto Kerdman Bloch é M.Sc. em Engenharia do Meio Ambiente pela École Polytechnique Federale de Lausanne, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ, arquiteto e ativista em Armação dos Búzios, com foco na harmonização da ocupação urbana com os sistemas naturais do lugar e no redesenho das estruturas de mobilidade, buscando a valorização dos deslocamentos ativos e das interações sociais nos espaços de uso comum.

Referências

BLOCH, Alberto Kerdman. Mobilidade em urbanizações turísticas. Tese (Doutorado em Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

BLOCH, Alberto Kerdman. O X, o Y e o Z do problema. Frente & Verso: Publicação político-cultural, gastronômica e literária, Armação dos Búzios, n. 6, jan. 2019.

BLOCH, Alberto Kerdman; COSTA, Lucia Maria Sá Antunes; KOTAKI, Leonard; KATZ, Hernan. Mobility in small tourist towns: redesigning practices and methodologies towards better answers to differentiated demands. In: World Congress on Transport Research, 2013.

BLOCH, Alberto Kerdman; COSTA, Lucia Maria Sá Antunes. Armação de Búzios e seu sistema lagunar: estratégias para revitalização e inclusão paisagística. In: Anais do III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2014.

BOTELHO, André. Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007.

BORDREUIL, Samuel. Espace public, urbanité et mouvements. In: Actes du Séminaire du CIFP de Paris. Direction Michèle Jolé. CERTU, 2002.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CORNER, James. Recovering landscape. Nova York: Architectural Press, 1999.

CADIOU, N. Un projet paysager peut être aussi un projet social. In: Actes du Séminaire du CIFP de Paris. Direction Michèle Jolé. CERTU, 2002.

COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2016.

COMITÊ INVISÍVEL. Motim e destituição agora. São Paulo: n-1 edições, 2018.

GARRISON, Laura. The Anthropology of Biopolitics: a blog about knowledge, power, and the individual in society today. 2017. Disponível em: < https://anthrobiopolitics.wordpress.com/>. (Blog).

KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MIGNOLO, Walter D. Delinking: the rhetoric of modernity, the logic of coloniality and the grammar of de-coloniality. In: MIGNOLO, Walter D.; ESCOBAR, Arturo (org.). Globalization and the Decolonial Option. Nova York: Routledge, 2007.

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, jun. 2017.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

PELBART, Peter Pál. Poder sobre a vida, potência da vida. Lugar Comum: Rede Universidade Nômade, n. 17, p. 33-43, 2008.

PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo… Saúde Soc. São Paulo, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, 2015.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TIXIER, N. Parcourir pour projeter. In: Actes du Séminaire du CIFP de Paris. Direction Michèle Jolé. CERTU, 2002.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 49 minutos

EL UMBRAL Y MODOS DE HABITAR EL ESPACIO URBANO LATINO-AMERICANO

Introducción

El mundo íntimo y privado del hogar y el externo y público de la calle, están sugestivamente determinados por el intersticio de la figura que representa la imagen del umbral, espacio fundante del fenómeno urbano. Sutil delimitación de realidades complementarias que fundan la ciudad en su versión de habitabilidad: conjunto de experiencias simultáneas de unos con otros en un lugar geográfico debidamente señalado. Si la ciudad no la hace la calle, solamente; tampoco corresponde ceñirla exclusivamente al universo íntimo de la casa. No es el espacio abierto materializado en la plaza pública, ni la aldea rural ni el peristilo interior islámico. De igual forma, no basta con que exista una aglomeración de casas para que haya una ciudad y, al revés, el puro carácter de vida pública es igual de insuficiente. “Uno no habita en cualquier parte sino en un mundo en el que el adentro y el afuera, lo privado y lo público, lo interior y lo exterior están desde siempre en resonancia.” (Mongin, 2006, p. 291). Siendo así, la ciudad es-otra-cosa. La comarca pintoresca, en la que moran muchos bajo una determinada organización funcional, es la intercepción de estas dos experiencias vitales del tránsito incesante del entrar y el salir, y en cuya movilidad el sujeto de la acción acarrea partes de esos mundos.

Porque, así como la intimidad del hogar trasciende la vida adulta del sujeto ciudadano, así también la calle vulnera su privacidad hogareña, ya que cuando éste “vuelve” lo hace con algo más: trae consigo un “trozo de calle”, una anécdota, el agobio del cotidiano citadino. Como en Neruda (2000, p. 186),[1] cuando el padre irrumpe con su existencial pesadumbre el espacio íntimo donde el niño duerme:

De pronto trepidaron las puertas.
                                                            Es mi padre.
Lo rodean los centuriones del camino:
ferroviarios envueltos en sus mantas mojadas,
el vapor y la lluvia con ellos revistieron
la casa, el comedor se llenó de relatos
enronquecidos, los vasos se vertieron,
y hasta mí, de los seres, como una separada
barrera, en que vivían los dolores,
llegaron las congojas, las ceñudas
cicatrices, los hombres sin dinero,
la garra mineral de la pobreza.

La escena evoca el encuentro de esos dos mundos que configuran la experiencia urbana: la irrupción de los “centuriones del camino” con la intimidad protectora que abriga el sueño del hijo.[2] Todo lo cual pone en evidencia una singular paradoja: la de edificar la casa para ocuparla, y así disfrutar lo que para Sócrates es su verdadera belleza: su comodidad;[3] pero, simultáneamente, la necesidad de salir a la calle para encontrarse/desencontrarse en esa reciprocidad que crea el acto de habitar la ciudad. “La ciudad inaugura una experiencia singular, en la medida en que favorece la confrontación de cada habitante con cualquier otro.” (Weber, 1987, p. 43).

Los referentes extremos adentro/afuera no constituyen ciudad. Se requiere del cruce que es exclusivo de la cotidianeidad. Si la ciudad no admite completamente el locus amoenus, propio y exclusivo del hogar, tampoco aceptará la imposición absoluta del espacio público externo. Por eso requieren unirse, porque lo interno/externo no son fenómenos aislados, sino que, por el contrario, se desarrollan en una incesante correspondencia que permite definir el hecho urbano en términos de entradas y salidas. En este sentido, la ciudad clásica y mediterránea que es parte del legado urbano latinoamericano, y cuya clave es la plaza, “nace de un instinto opuesto al doméstico” (Chueca Goitia, 1968, p. 9). O, más matizado, en diálogo con él, puesto que el habitar es el punto de llegada del hecho urbano, nunca de una vez y para siempre, sino en construcción dentro de esa movilidad definida entre los marcos referenciales extremos. Habitar es pues un principio natural, primitivo, inherente al buen vivir que se da sólo en un modelo de ciudad, o, mejor, en un paradigma de cultura urbana, que sin descuidar el conflicto intrínseco que lo tensiona, permita crear la propia ciudad, habitable y al mismo tiempo real y posible.

Ha quedado demostrado que el exceso de racionalismo producto de la industrialización llevó a la ciudad a su punto más crítico, al desprecio por la naturaleza. Pero, del mismo modo, ni la Ciudad hidalga de Indias o la comarca medieval premodernas, extremadamente jerarquizadas y excluyentes de los “mancebos de la tierra” (Romero, 2001, p. 78), tampoco condujeron al necesario equilibrio. La ciudad, así, debe nacer del paradigma occidental moderno y de las alternativas contrahegemónicas.

O sea, de una dialéctica centrada en la figura del umbral; ahí donde se produce el contacto entre la casa (íntima, desconocida, privada, particular, segura, amena) y la calle (colectiva, expuesta, púbica, hostil, insegura). Una es de y para sí misma; la otra, de y para con otros. En una habita la familia que es reflejo de la comunidad; en la otra, la comunidad que representa a todas las familias. No obstante, los elementos de este binarismo si bien conforman la ciudad, no constituyen a priori la experiencia urbana, ya que ésta se da en el sujeto que habita un espacio que no es síntesis, sino tensión, roce, fricción, es decir: el umbral.[4]

En la casa tradicional, el umbral se arma en torno al dintel: el punto de apoyo superior que sostiene la puerta principal. Por lo tanto, es aquella zona ambigua que no está ni adentro ni afuera. El sujeto da un paso hacia fuera y sale del umbral a la calle; o bien, da uno hacia dentro y está en casa. ¿Y si se queda ahí, bajo el dintel, dónde está? En una zona neutral que rebasa la realidad. Un área metafísica donde se producen experiencias vitales trascendentales que definen el hecho urbano. El umbral de la casa es el escenario del quiebre vital del ir/volver, como Odiseo, cuyo verdadero valor pareciera no ser el regreso sino el intento eterno por el desexilio y “que o verdadeiro lar está no passado ou no paraíso ou em algum outro lugar, que jamais estamos em casa” (Borges, 2007, p. 53). Es el primer contacto real del niño con un mundo que no-es-su-hogar, sino lo otro, la otredad: desconocida, y a su vez, seductora.[5] En el umbral se lleva a cabo el sentido real de la existencia humana a partir del desgarro entrañable del dolor y la felicidad. Amor y desdicha; risa y llanto; vida y muerte, son experiencias umbrales. Guardan siempre un significado que va más allá del hecho que las produce.

Para el caso es útil el drama de Federico García Lorca, La casa de Bernarda Alba (1945).[6] La ciudad, la casa, los personajes masculinos y en general el espacio externo, incluyendo el Coro que anuncia la llegada de los cegadores y una historia paralela,[7] no están presentes, de manera íntegra o acabada, en el drama lorqueano, ya que el mundo fuera de las cuatro paredes que resguardan el espacio doméstico dictado por Bernarda —y en parte burlado por sus hijas— aparece en forma incompleta, indefinida, borrosa: son figuras que se construyen sólo desde el interior de la casa, por murmuraciones, supuestos, oídas a medias, “…estuvo [Angustias] —dice La Poncia— detrás de una ventana oyendo la conversación que traían los hombres, que, como siempre, no se puede oír” (García Lorca, 1985, p. 93). El mundo exterior, que pueda irrumpir la “decencia” hogareña, al no poderse evidenciar en su integridad, ya que se percibe sólo desde la distancia (incluso en el sermón de la Iglesia o desde las rendijas del portón, o detrás de las ventanas), se reconstruye sólo a partir de la voz de La Poncia (criada vieja, mujer vivida) o del prejuicio de Bernarda. Y así, de manera oblicua, engañosa, las jóvenes hijas de Bernarda armarán su propio mundo, a su antojo, conveniencia o voluntad. Así conocen a los hombres, simbólicamente manifiestos en Pepe el Romano (100 y 135, respectivamente):

Criada. Pepe el Romano viene por lo alto de la calle…
Magdalena. ¡Vamos a verlo! (salen rápidas)
Criada. (A Adela) ¿Tú no vas?
Adela. No me importa.
Criada. Como dará la vuelta a la esquina, desde la ventana de tu cuarto se verá mejor…
MARÍA JOSEFA (anciana, loca, madre de Bernarda, 80 años). [Ante la locura desatada por el héroe] Pepe el Romano es un gigante. Todas lo queréis. Pero él os va a devorar porque vosotras sois granos de trigo. No granos de trigo, no. ¡Ranas sin lengua!

La distancia entre el cuarto femenino y la calle del pueblo —de los hombres, de los gañanes, de Pepe, de aquel mundo prohibido y deseado a la vez— la cubre el tupido umbral de la casa de Bernarda, espacio que sólo se atraviesa imaginariamente, de anécdotas disfrazadas, hiperbólicas, transfiguradas por el tiempo y la memoria de quien las vivió y que no es, por cierto, ninguna de las muchachas.

El mundo que construye García Lorca de la ciudad en que viven encerradas esas mujeres no constituye para ellas la experiencia urbana propiamente dicha, ya que se configura sólo a partir de una mirada cristalizada, mediada por el umbral que separa lo externo[8] de la casa misma, el lugar que ampara, o inútilmente intenta amparar, la decencia, la honra de esas jóvenes sumidas bajo el peso de una tradición hecha a partir de negaciones, y cuyo fin es preservar la apariencia de lo abnegado por sobre la libertad y el placer. Entonces, al no haber esa resonancia recíproca, que reclama Mongin (2006), entre el adentro y el afuera, no hay experiencia urbana: sólo el deseo femenino reprimido entre las infranqueables paredes de la casa. Las hijas de Bernarda, aunque tensionan el umbral no lo cruzan, y, por consiguiente, el intento no basta para hacer de ellas sujetos urbanos plenos. “Muchas veces miro a Pepe [dice Angustias, su enamorada] con mucha fijeza y se me borra a través de los hierros, como si lo tapara una nube de polvo de las que levantan los rebaños” (García Lorca, 1985:128). Y el resto, la contraparte imprescindible, lo construyen desde los retazos que logran hurtarle, hábil, astutamente a la calle y contra la tiránica acción de su madre: “¡mujeres ventaneras y rompedoras de su luto!” (p. 122).

No obstante, ante todo lo dicho, es innegable la presencia de la ciudad en el relato del poeta andaluz, y que lo que en ella sucede no es experiencia urbana. En efecto lo es, porque el sentido último está en las formas de transgredir el umbral, en el deseo irrefrenable de vivir-la-ciudad. En un contexto mayor, el conflicto opera como metonimia de la tensión entre las dos España: la tradicional y la moderna: habitación blanquísima…muros gruesos…cuadros con paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. La casa de Bernarda Alba viene, así, a presentar un fenómeno sociocultural en tránsito cuya inflexión es la tragedia provocada por la irrupción de la modernidad que afanosamente busca penetrar las paredes de ese espacio íntimo celosamente defendido.

De modo que el umbral es condición de habitabilidad inserta en la vida del mundo cotidiano. Es quien le otorga valor real y simbólico a la experiencia urbana: hecho vital y dinámico permanente.

La ciudad latinoamericana: experiencia dialéctica de los espacios

Con la expansión iberoamericana, la ciudad precolombina recibe el impacto de tres vertientes foráneas. La occidental clásica de la civitas grecorromana, la nórdica anglosajona doméstica y campestre y la del Oriente medio de tradición islámica. En el contacto de estos surge la ciudad habitada, pero no de un encuentro armonioso, sino de una dialéctica marcada por influjos y resistencias.

Del mediterráneo llega la polis griega. Es sin duda alguna el modelo más exitoso que se reproduce sin excepción en todo el universo lusohispanoamericano. Con la espada y La Biblia se funda, como acto político, la ciudad que graficará la ocupación del nuevo espacio. “El conquistador arranca unos puñados de hierba, da con su espada tres golpes sobre el suelo y, finalmente, reta a duelo a quien se oponga al acto de fundación” (Romero, 2001, p. 61). Así, en este ritual simbólico queda inscrita la ciudad hidalga que dará origen más tarde al modelo de la ciudad-Estado de carácter público ideado por la Grecia clásica, aquello que Aristóteles llamó una vida noble para un fin noble. Predominó como modelo por proceder de una cultura que pensó la ciudad desde una razón ordenadora,[9] desde un espíritu apolíneo centrado en el ideal del ciudadano ligado estrechamente al espacio que habita.

Tempranamente la ciudad fue objeto de reflexión filosófica. “Los filósofos han pensado la Ciudad; han llevado al lenguaje y al concepto la vida urbana” (Lefebvre, 1973, p. 46). No se trata de una abstracción que dificulte la necesaria condición de explicar el hecho urbano, se trata, al contrario, de una reflexión desde la realidad misma, como experiencia que involucra todo el ser de quien la habita. Este filosofar nace en y con la ciudad y en sus múltiples modalidades, convirtiéndose en actividad propia y especializada. La ciudad se convierte así en epicentro, núcleo del espacio político, sede del Logos y regida por el Logos, y, por lo tanto, referente espacial inequívoco frente a lo otro, al extramuro, a la no-ciudad.

La ciudad fue la “cosa perfecta”. El orden perfecto (cosmos) que en un contexto primitivo ferozmente beligerante se sobrepone sobre la “imperfección” (caos), modelo que reprodujo el conquistador en tierras americanas sobre lo que para él era lo inhóspito y salvaje. Creta es la cuna de una cultura netamente urbana. Sin duda no más grande ni más rica ni más compleja que otras que le precedieron, pero sí dueña de un sentido urbanístico inusitado. Volcado más que a la ciudad, a quien la habita; como conciencia despierta o sensibilidad que, según Joel Kotkin (2007), Sócrates confirmaba diciendo que “los lugares del campo y los árboles nada me enseñan, pero sí la gente de la ciudad” (Kotkin, 2007, p. 65). A diferencia de los filósofos de otros lugares, centrados en la divinidad y en el mundo natural, el griego reflexionó sobre el papel de los ciudadanos a la hora de garantizar la buena salud de la koinonia.[10] “Los ciudadanos, decía Aristóteles, eran como marineros en la cubierta de un barco. Su tarea consistía en asegurar la preservación del barco en el viaje” (p. 66).

Proceso reflexivo y práctico que derivó en la polis griega. Porque ésta constituye el hecho más importante y grandioso de la historia antigua. Se distingue con caracteres propios de todas las restantes formas culturales, de un largo período que se inicia en la Asia central. “En Oriente, si bien había tenido lugar una cultura urbana de notable alto nivel, las ciudades no parecían obedecer al desarrollo de una fuerza vital espontánea de su población cuanto a la voluntad rígida de los gobernantes constructores de ciudades” (Randle, 1994, p. 81). Lo cual quiere decir que de ninguna manera podría afirmarse que el urbanismo griego haya provenido de orígenes autóctonos ya que no fue pensada bajo normas urbanicistas sino en función del sujeto, quien debe conducir, como el barco, el espacio que habita. En este sentido, es una ciudad pensada y hecha en y desde su principal elemento: el ciudadano. Cada uno es responsable que su habitar funcione y que la ciudad navegue, crezca y prospere. Obviamente, se trata de un Estado aún muy excluyente, de una democracia de la no libertad, aunque ello no quita, en este contexto de reflexión, que el propósito haya sido el de erigir, como en efecto se erigió, una ciudad así.

Acá, los orígenes de la polis. Durante los siglos XII al VIII a. de C., termina de formarse la ciudad griega en torno a tres lugares clave: el altar común, la acrópolis y el ágora para el intercambio de mercaderías o ideas. Su formación no obstante no hace tanto una aportación material como moral, puesto que el ágora no es en esencia un conjunto construido, sino “simplemente un espacio vacío, libre, abierto al público, donde se van a reunir los ciudadanos y construir progresivamente las instituciones características de la ciudad-estado griega” (Randle, 1994, p. 91). Esta será la matriz reproducida en la historia de la civilización occidental, centrada en la plaza, el espacio externo y público del encuentro. Porque acá lo principal es el bien común, disponer de un espacio para el libre desarrollo de las actividades propias y necesarias para ser ciudadano. El teatro, el gimnasio, el templo, la estatua, la fuente de agua, no son otra cosa que hitos que ayudan a desenvolver el espíritu urbano en su integridad. El alma ciudadana que se materializará en la koinonia, en el vivir-en-comunidad. Sin embargo, nada de esto hace por sí solo a la ciudad. En el pensamiento griego clásico, el buen vivir no se logra si no es con los otros, en un espacio debidamente adecuado para ello y representado básicamente por el ágora.

Todo esto va moldeando una conducta urbana impulsada por el gestor de la cultura occidental. Desde la polis se proyecta un poder hegemónico que en el transcurso histórico se irá instalando como el único, mejor y verdadero modo de vivir. Nace pues un modelo particular que en base al poder se autoconstruye como universal socavando las múltiples otras realidades que le circundan. Grecia emprende así el proceso colonizador que va a continuar más tarde Roma y por consiguiente la Europa central.

Esta ciudad es eminentemente política. En La condición urbana, Oliver Mongin (2006) afirma que desde el momento en que se evoca la política, la ciudad se vuelve sinónimo obligado de polis, ya que está naturalmente asociada a la invención de la política, afirmando que la politeia se caracteriza por un espacio “público” que da una visibilidad “política” a las relaciones humanas (Mongin, 2006, p. 100-1). Es una puesta en escena en “común”, ligada a la acción de hacerse ver por los demás, en palabra y acto, esto a fin de que cada ciudadano, al distinguirse, multiplique las posibilidades de adquirir la “gloria inmortal”. La pertenencia a un mismo cuerpo, el de la ciudad, “da lugar” a la experiencia de compartir el logos, el intercambio de palabras: algo inmaterial que no tiene necesidad de inscribirse en un lugar preciso. La ciudad griega es recuerdo y preservación de lo grande, palabras y actos. El espíritu de la polis, antes que material y territorial, antes que muralla y antes que ágora misma, remite a los valores de la vida pública, que es una cuestión en principio de voluntad mental, una idea (Mongin, 2006, p. 102).

En este carácter público de la ciudad antigua radica la principal diferenciación con respecto a la ciudad moderna, que desarrolla costumbres privadas de lo público. La polis, en este sentido, no es territorio urbano territorialmente localizado, lo cual habría sido un impedimento de colonización, sino lo que lleva cada ciudadano consigo, la acción y la palabra como elementos potenciales de crear un espacio urbano en cualquier momento y lugar. He ahí el valor que la filosofía política griega le asigna.

Lo mental se va configurando con lo físico, el espacio ideal se va progresivamente reforzando con el espacio geográfico y arquitectónico. Ágora significa reunión y palabra y no designa necesariamente lugar construido, porque su valor está en la representación como “espacio vacío” equidistante de todo; centro que ya no remite a la centralidad de Kratos (personificación masculina de la fuerza y del poder). De modo que impulsada por reformas cívico-militares y por la reflexión filosófica, la polis se convierte en “un universo sin estratos ni diferenciaciones […] La diferenciación social reemplazará pues a la indiferenciación, la división a la unidad” (Mongin, 2006, p. 103-4). Hasta Hipódamo. Porque su pensamiento basado en el damero, que va a afectar tanto la organización geográfica de la ciudad como la organización política de la polis, está en la base de un cambio que atentará ese carácter indivisible de la ciudad, en tanto polis. El espacio cívico anterior que procuraba integrar indiferentemente a todos los ciudadanos será reemplazado por el del damero cuyo rasgo principal es la diferenciación.[11]

El espacio de todos para todos, queda, así pues, estratificado en zonas que separan a los ciudadanos en clases y a la ciudad en áreas urbanas: la de los dioses, la del Estado y la de los individuos. Es posible afirmar que con Hipódamo surge el concepto de barrio, y aunque se arguya que responde a criterios estéticos, lo cierto es que su trascendencia se debe más bien a una cuestión práctica, frente a la tarea de tener que delinear numerosos y extensos espacios urbanos. “La ventaja del damero reside en que permite el loteo fácilmente, lo que no era tan factible en las ciudades de crecimiento espontáneo y sin arreglo a plan” (Randle, 1994, p. 110). Razón que explica la exitosa aplicación en la fundación emprendida por los ibéricos en tierras americanas. De ahí que se piense que no es invento de Hipódamo, ya que lo que él hizo fue normalizar una idea que venía de antiguas culturas prehelénicas, siempre ligada a las conquistas militares. Lo religioso, lo tradicional, lo estético, la higiene e, incluso, el asoleo, quedan siempre, en estos casos, supeditados a estrategias ofensivas/defensivas de dominio militar, a fines prácticos expansivos. Todo lo cual hace que con el nuevo urbanismo hipodámico, espacios como la calle, el centro, el suburbio y el barrio mismo, adquieran desde entonces significación particular. De partida, los barrios aristocráticos, donde se encontraban los viejos santuarios y donde habitaban los eupátridas, y, al otro extremo, los barrios populares, diseminados dentro de los muros de la ciudad, albergaban a la gran población. Se cuenta que las calles eran tortuosas, estrechas e irregulares. “Xenofonte no tenía más que extender su bastón para cerrarle el paso a Sócrates” (Randle, 1994, p. 112). Pero ahí no termina la realidad urbana, más allá, en el extramuro, cerca de la necrópolis, habitaba una población suburbial que no había entrado aún a la lógica de la polis, semirrústicos y fronterizos se alojaban en los arrabales. Aunque fue la polis, desde el ágora, compleja y estratificada, la que rigió cada uno de estas zonas en base a una lógica que también propició el comercio (Weber, 1987, p. 5).

Toda ciudad […] es un “lugar de mercado”, es decir, toda ciudad tiene como centro económico del asentamiento un mercado […] La ciudad, en su origen, y sobre todo cuando se distingue formalmente del campo, es normalmente tanto un lugar de mercado como una sede feudal o principesca: posee centros económicos de dos tipos, oikos y mercado [Marcas autor].

Entonces la ciudad, además de política es comercial. El mercado y la sede administrativa la conforman. “Serían pocos los atenienses que en alguna hora del día no fuesen al ágora por negocios particulares o del Estado, cuando no simplemente para charlar o solazarse” (Randle, 1994, p. 115).

 

Felipe Guamán Poma de Ayala. “La ciudad de los reyes de Lima”. En Nueva crónica y buen gobierno (c. 1600). En https://www.alamy.com/nueva-cronica-y-buen-gobierno-ciudad-de-reyes-de-lima-15351617-author-felipe-guamn-poma-de-ayala-c-1535-c-1617-location-biblioteca-nacional-coleccion-madrid-spain-image209183317.html.

 

Ahora, si el ágora no designa necesariamente un espacio físico sino reunión y palabra, se puede ir más allá sosteniendo que no recae en sí misma el valor real y concreto, sino en aquello que le rodea: lo definido que hace de ella espacio neutral. Esto es calles, barrios, casas. Todo lo que hace posible su configuración como centro ambiguo. La ciudad no es el ágora, la plaza es sólo la imagen simbólica del peso de una materialidad que le circunda y que recae en la vida cotidiana de su habitante.

La circulación jugará un rol clave en esta nueva mirada. Pero no porque durante la expansión del urbanismo industrial se haya concebido la movilidad como esencial para el desarrollo y crecimiento de la ciudad, sino porque, frente a las necesidades de habitabilidad y de espacio, ante la explosión demográfica, se debió potenciar al máximo el principio de conectividad que permite el tráfico. Los griegos ya lo habían aplicado, y sabían de la urgente necesidad de comunicar cada una de las distintas zonas que componían la polis. Contra la incomunicación de cada zona, la que a su vez era un mundo propio, una frontera desconectada de las otras, debía haber algo que las uniera y conectara entre sí, de lo contrario caerían en un aislamiento que favorecería al desarrollo de una particularidad autónoma. La universalidad del Imperio no concibe este abandono, no podía aceptar la indiferenciación que atentaba directo contra la rigurosa estratificación de un sistema orgánico que se expandía verticalmente sobre todo el dominio territorial. La circulación permite unir las partes indistintas regidas a un único espacio urbano. Cada particularidad refleja en sí misma la ciudad en su conjunto. Esa es la idea. Y aquí sobre el tráfico cobra valor otro elemento: la calle. Urbanistas contemporáneos cuestionan que sea la casa la que domine la ciudad y en su lugar proponen la calle, relegando la habitación a un espacio secundario.

La calle no puede entonces ser evaluada en sí misma sino en relación con la circulación. Aunque se le asigne un valor adicional no reducible sólo al espacio transitable (vías de acceso, circulación, fluidez), la calle es todo el mundo urbano que no es casa, es decir, el espacio externo en cuanto público. Patricio Randle (1994), una vez que detalla dimensiones específicas de las calles de la Grecia antigua, fundamenta lo anterior diciendo que “se puede pensar que la estrechez de las calles tenía sus razones prácticas: el ancho tenía importancia relativa ya que estaban destinadas principalmente al tráfico peatonal. Inclusive estaban destinadas más a la conversación que a la circulación.” (Randle, 1994, p. 151-2). Con todo, la ciudad clásica es la ciudad griega, la ciudad mediterránea, esa que, con palabras de Chueca Goitia (1968:9), citando a Ortega y Gasset, es, ante todo: plazuela, ágora, lugar para la conversación, la disputa, la elocuencia, la política. En rigor, la urbe clásica no debía tener casas, sino sólo fachadas que son necesarias para cerrar una plaza, escena artificial que el animal político acota sobre el espacio agrícola.

Una ciudad sin casas, sólo fachadas. Es la postura extrema de una occidentalización urbana que hallará su contraparte absoluta en el universo rústico, en la ciudad doméstica y campestre asociada al mundo anglosajón. Dentro de esta polarización, que por cierto no es más que referencial, útilmente referencial, se instala la ciudad como legado de una larga tradición que tiene su punto de arranque dentro del conflicto dado entre la experiencia pública y privada del hombre antiguo. La ciudad como fachada es el modelo que asume Chueca Goitia para fundamentar aquello que, según Ortega y Gasset, la ciudad clásica nace de un instinto opuesto al doméstico…, en el sentido que la ciudad es, ante todo, espacio político, el lugar donde se conversa y donde los contactos primarios predominan sobre los contactos secundarios. El ágora es la gran sala de reunión y sede de la tertulia ciudadana, la tertulia política. Un espacio urbano que tiene como clave para el desarrollo de la vida ciudadana el ser “locuaz y parlero, y en la medida que esta locuacidad se pierde decae el ejercicio de la ciudadanía.” (Chueca Goitia, 1968, p. 8). Las ciudades que no entran en esta definición, es decir, la anglosajona y la islámica, al no ser locuaces, son calladas o reservadas, “tienen de vida doméstica lo que les falta de vida civil” (p. 10).

Entonces, lo que de aquí se desprende es que ni casas, ni aglomeraciones humanas, ni concentraciones industriales, ni regiones suburbanas, e, incluso, ni siquiera una civilización (atendiendo experiencias de ciudades precolombinas), equivalen, juntas o por separado, a ciudad, si no existe en ella como elemento central y determinante la plaza. Una suerte de agorafilia que viene a echar por tierra todos los elementos que constituyen, como el ágora misma, la ciudad que se vino configurando hasta hoy.

Ante la cual la ciudad doméstica y callada, la ciudad interior, la ciudad de puras casas y que carece de plaza es una ciudad eminentemente campesina como la ciudad locuaz y civil es eminentemente urbana. La plaza entonces se instala como conditio sine qua non de la urbe, y, por eso, como elemento diferenciador esencial entre ésta y el campo. El campo al no tener ágora, carecería del encuentro dialógico dado en el contexto de la conversación, o sea, de una vida parlera y civil que sólo ostentaría, en este entendido, exclusivamente la ciudad clásica mediterránea.

Pero se ve también que esta distinción no se reduce a lo que concierne únicamente al tema urbano. En un plano más amplio permite distinguir el mundo antiguo del moderno. El hombre antiguo, asentado en un estilo de vida preferentemente agrario, utiliza maneras distintas de comunicarse. La conversación, como la vida toda en su conjunto, están inmersas en la cosmovisión rural que es a su vez rutinaria, circular porque remite siempre al ciclo repetitivo de la naturaleza. Y no sólo porque este acto trascendental, por cierto, no se lleva a cabo en el espacio vacío (plaza), ausente en el campo, sino, principalmente, porque su contenido carece del trasfondo que en la polis es el asunto político, la escenificación cívica, a través del diálogo con el otro, y no siempre conocido, de los asuntos de todos, de la cuestión pública, del bien común, en última instancia, del Estado. Digamos que más allá del contexto, que si rural o cívico, con plaza o sin ella, será el lugar de enunciación el que va a distinguir un tipo de diálogo de otro. Los asuntos del Estado no se dan en el circuito agrario como los contenidos de éste tampoco prosperan en el epicentro urbano. Lo que exige criticar, de un lado, el modo cómo la cultura occidental moderna instala sobre la figura del ágora el ejercicio político como instancia legitimadora de una verdad universal, retórica, letrada, y, de otro, y debido a este mismo orden racional, abogar por lo que éste deja fuera o no valora debidamente y que es el poder inconmensurable de la oralidad.

Respecto a esto último, y sin dejar de reconocer el inmenso aporte del primer urbanismo depositario del pensamiento griego, interesa recuperar también las costumbres y tradiciones antiguas y olvidadas del mundo agrícola. Importa salvar el lenguaje primario de la voz oral. Si el interlocutor urbano es “locuaz y parlero”, el campesino será, por el contrario, monotonal y espontáneo, de espíritu familiar más que público, y de un habla en general carente de aventuras y de asombro (ligado esto estrictamente al sentido novedoso que entrega la ciudad, para no confundirlo con lo mágico y maravilloso que porta el relato oral). Es un acto, como dice Jorge Teillier (2002:86) en su poema “Cuando todos se vayan”, practicado con los mismos amigos de siempre, sentado “en el roído mostrador de un almacén/ para hablar con antiguos compañeros de escuela”. Una relación, dice ahora González Vera (1929, p. 23), entre peones viejos, a esa hora en que “los vecinos sacaban pisos a la acera y aguardaban la hora de la cena”. Para conversar, para llevar a cabo ese acto tan elemental que no se da, porque no podía darse, en la plaza de la ciudad, sino tan sólo en la aldea, en una aldea como Alhué.[12]

Lo que, por otra parte, y como se dijo, permite también pensar que en el ágora no se discute otra cosa que no sea aquello de interés público, concerniente a todos y donde la intimidad, los asuntos domésticos (el cerco, los animales, la cosecha) no tienen lugar, ni interés, a no ser, claro, que involucre a más de una familia, pueblo, comunidad, porque en ese caso media el poder central. La polis griega, en este sentido, deja de lado la dimensión íntima de la existencia humana, instalando la elocuencia como medio legitimador de un cierto ser ciudadano, y tal vez el único capaz de hacerse cargo de la res publica. Promueve así el oficio de charlatán, que contrario al peón viejo es capaz de asociar muchas palabras que maravillan, convencen y seducen.

Porque, en efecto, si bien ahí está la gracia del hombre público, la del aldeano, no carente de elocuencia, está en otro lado. Pero no deja de estar: “Debe andar mi abuelo por los campos recién arados/ hablando con los pinos, espantando gorriones. / Mi abuelo tiene una voz profunda, aprendida del tiempo” (Teillier, 2002, p. 24). Elocuencia otra que ni el razonamiento del civitas grecorromano ni el proyecto ilustrado moderno recogen: el canto, el contacto con la divinidad y la naturaleza, el silencio… La instrucción del niño pasa del hogar a la escuela, de la madre al profesor, ahí se formalizan. La salud familiar queda en manos de la ciencia médica, y entonces hierbas, rezos, mejunjes y prácticas inverosímiles, propias de la tradición oral, se hacen “secretos”, y hasta prohibidos. El amor, y el sexo, se institucionalizan civil, legalmente. Las disputas por tierra (esas por las que los personajes de Rulfo matan) las asume, pues, la justicia, en muchos casos juez y parte. Aparece en todo esto la figura del intelectual moderno, precedido del funcionario público.

Y, sin embargo, la construcción identitaria del sujeto moderno requiere no perder de vista estas dos dimensiones: manejar, de un lado, las herramientas fundamentales que le permiten erguirse como ciudadano de la vida moderna, pero, a su vez, de otro, necesita no descuidar, recuperar y fortalecer su lado íntimo y sensible que la arrogancia del racionalismo instrumental modernizador le anula. Requiere, en consecuencia, para que se constituya en el sujeto autónomo mantener vivas estas dos tendencias formativas, estos hábitos fundamentales, estas esferas esenciales de nuestro vivir en conversaciones, que pese a responder a estadios distintos dentro de la Historia, habitan simultáneamente en el interior. Se es polis como se es casa, como homo urbanus se es homo agris. Ejes referenciales que se cristalizan en lo que Maturana (2008, p. 23) llama “lenguajear”: encuentro dialógico que hace al hombre vivir en plenitud.

No obstante, entre estos dos modelos, el campesino y el civil, aparece un tercero: el religioso. Dispuesto, se dirá, para ser atendido como el prototipo que obedece al proyecto de ciudad que se busca proponer. Sí, porque el modelo de ciudad islámica no se aviene, justamente, ni al logos parlero de la polis griega, ni al ciclo aislado y silencioso del mundo agrario. Se ajusta más bien a una tercera opción que recoge parte de estos dos extremos, pero irreductible a ellos. Una ciudad que bien puede llamarse privada. De eso da cuenta, al menos, el Corán, que en sus versículos 4 y 5 del capítulo XLIX, llamado El Santuario, señala: “El interior de tu casa —dice Mahoma— es un santuario: los que lo violen llamándote cuando estás en él, faltan al respeto que deben al intérprete del cielo. Deben esperar a que salgas de allí: la decencia lo exige” (Chueca Goitia, 1968, p. 12). Esto refleja que el musulmán lleva al extremo la defensa de lo privado, pero, por lo mismo, no debe permanecer durante mucho tiempo en la cárcel que él mismo se ha preparado, de ahí que su vida se escinda en vida de harén y vida de relación. “No puede, pues, hablarse de una plena vida doméstica, ya que ésta se halla constitutivamente dividida. Tampoco cabe decir que domina la vida pública […] ya que existe la vida de harén”. (1968, p. 13). Y en efecto, esto es así porque “la civilización islámica se basaba en una poderosa visión del sentido del ser humano” (Kotkin, 2007, p. 97). La necesidad de unir la comunidad de creyentes constituía un aspecto fundamental del Islam. De hecho, para Mahoma, la ciudad debía ser ese lugar donde los hombres recen juntos. La ciudad como un gran templo de oración y penitencia, tanto dentro como fuera de la casa. Su carácter religioso la determina, desde la propia casa trasciende a todo, impregna todo. Si la ciudad clásica es la suma de un determinado número de ciudadanos, la ciudad islámica será la suma de un determinado número de creyentes.

Y el Islam se extendió al punto que en su máximo apogeo llegó a superar al Imperio romano. Se trata de una irradiación muy particular que, contrario a la expansión occidental, absorbe y asimila muy rápidamente, ya que lo principal en él no era crear nuevas culturas, sino instalar una nueva concepción de la vida, impuesta por una religión rigurosa e inflexible tendiente a un gobierno puritano. De modo que en su desarrollo expansivo, heredado, por cierto, del mundo primitivo oriental, así como de las urbes prehelénicas, lo que distingue a las ciudades islámicas es su semejanza. En ninguna otra cultura se encuentra relación parecida. Las ciudades griegas y romanas eran en general muy diferentes entre sí. Las había regulares u orgánicas, y otras funcionales, producto del azar histórico. Pero de uno u otro modo todas sobresalían con respecto al notable empobrecimiento de la ciudad musulmana. La ciudad islámica es funcional y formalmente un organismo más simple y tosco cuyo universo todo quedaba reducido a las leyes inquebrantables del Corán. Habría pues una regresión ante la polis griega: carece de ágora, de circos, de teatros. Lo único que conservaron estas ciudades fueron las termas que terminaron siendo un espacio importante de encuentro social.

A los rasgos anteriores de la ciudad islámica (privada, hermética y sagrada) habría que añadirle la condición de secreta. La ciudad islámica es una ciudad secreta, indiferenciada, misteriosa y recóndita, que no se exhibe, que no se ve. Sin calles, sin rostro. Otra cosa: si las ciudades no tienen calles, todo se constituye de adentro hacia afuera, negando el espacio colectivo. Contrario a la ciudad occidental que se organiza de afuera hacia adentro, desde la calle, que penetra el espacio íntimo y doméstico. Ahora, si hay calle islámica, esta es aparente, falsa: son callejones sin salida, carentes de la linealidad clásica que conducen de un punto a otro, ya que, al no tener salida, no tienen continuidad, no sirven al interés público sino al privado, al conjunto de casas en cuyo interior penetra para darles entrada. No son calles. Son estrechos pasadizos que se quiebran, se cierran, y aún cuando sean amplias, no son calles, ya que, en rigor, la calle como tal no admite la privacidad, esa condición indispensable que necesita el piadoso musulmán. La calle así se opone porque no sirve al sentido intimista islámico; sí sus estrechos y enrevesados y pedregosos pasajes, los que a su vez tampoco sirven a la ciudad mediterránea para entablar la vida civita. La diferencia entonces entre Toledo y París más que arquitectónica es cultural, incluyen las formas de habitarlas. Porque el intimismo, la privacidad y el ocultamiento, van de la mano con la estructura que la ciudad del Islam ofrece. Pero no por eso no tendrían el carácter urbano. La ciudad islámica fue preferentemente urbana; es más, su oposición al entorno campestre y su apego a la vida urbana, hacen que se asemeje a la ciudad mediterránea y se distancie del modelo rupestre anglosajón. Al punto que es válido afirmar “que todavía es más honda la dicotomía campo-ciudad en el Islam que en cualquier otra cultura” (Chueca Goitia, 1968, p. 70). La oposición de la ciudad musulmana es radical y excluyente frente al campo representado por la vida nómada.

 

Mariano Fortuny, “El tribunal de Alhambra”, 1871. En https://www.artehistoria.com/es/obra/tribunal-de-la-alhambra.

 

No significa sin embargo que la solución definitiva al problema del fenómeno urbano se halla en la ciudad musulmana, espacio del habitar que no por diferenciarse de los modelos extremos recién vistos vendrá, por eso, a ofrecer el punto intermedio que se busca, la relación dialéctica entre el adentro y el afuera urbano, y aunque aparentemente así se manifiesta, no lo es y esto porque, está dicho, la ciudad islámica responde a un modelo regido por la fe religiosa de un pueblo milenario. La interpretación que ofrece Chueca Goitia es clara. Hay una exigencia superior al extremo que la casa es un santuario y la calle, una necesidad que responde, antes que todo, al respeto de esa vida autopenitente. El hogar de la vida doméstica no es cárcel. En consecuencia, el exterior tampoco debe verse como la liberación de ese enclaustramiento. Todo lo cual no quita, pues, rescatarla en cuanto a un espacio otro que, según lo visto, no es el griego ni tampoco el campesino. Se trata de una ciudad alternativa que por una cuestión de exigencia vital hará, no del ágora ni tampoco del interior de la casa, sino del patio casero, el espacio de la íntima contemplación, el lugar capaz de congregar dentro de sí ambos universos: el relacional como el íntimo (Chueca Goitia, 1968, p. 12).

La vida de harén condiciona la organización de la casa musulmana como un recinto herméticamente cerrado al exterior y, lo que es más, completamente disfrazado. [Allí] todo está imbricado, revuelto y confuso de tal manera que el camouflage resulta perfecto. La vida completamente reclusa, sin apariencia exterior alguna, da lugar a una difícil ciudad sin fachadas. Algo opuesto totalmente a la ciudad clásica, donde el escenario y la fachada eran lo principal.

Tal situación le lleva entonces al musulmán a organizar su vida doméstica en torno al patio, al peristilo o jardín cerrado de tapias y arbustos. De este modo, atempera, acomoda su casa deseada, y no reñida con las leyes del Corán, dentro de la cual podía gozar de las delicias de la vida al aire libre en un espacio estrictamente privado. En su ductilidad habitacional en lugar de enfrentar la calle, la elude, al punto de decir que, en la ciudad musulmana, la calle, en su sentido de exteriorización de la vivienda (fachadas), no existe; como tampoco existe, por mandato divino y por estilo de vida que ya no es el del campesino antiguo, una vida doméstica plena. A causa de ello el musulmán habilita el patio, no le interesa la calle ni tampoco la plaza, porque ese rol lo cumple el patio. Pero como ya no se trata de política sino de religión, su función en la vida social es muy diferente.

De tal forma que ya no se está ante un ágora para la discusión y la dialéctica, sino ante un espacio para la meditación silenciosa y pasiva del tiempo que fluye. Por eso, en lugar de plaza como entidad urbana abierta, los musulmanes, incluso para la vida en común, prefieren de nuevo el patio, donde vuelven a encontrarse encerrados en una actitud de tipo extático-religiosa. El único elemento de la ciudad que adquiere vida y está dominado por el bullicio humano es el zoco, la alcaicería o el bazar. Pero esto obedece ya a una necesidad puramente funcional insoslayable.

Ahora, esto de crear un patio interior parece una solución acomodaticia, que en el fondo no aporta a la solución del problema de la ciudad como punto de encuentro real y efectivo entre la calle y la casa. Más bien opera como camuflaje, espacio simulado de algo que quiere a la vez ser público y privado, sin llegar a constituir al final ninguno de los dos. Se entiende que la ciudad musulmana, como todas las ciudades, obedece a necesidades profundas de su comunidad, a circunstancias espirituales, a condiciones nacidas del entorno físico, al clima, al paisaje, en una frase: a una concepción unitaria. Pero no por eso se tomará acá su modelo como paradigma de la ciudad que configuró el espacio urbano que se ocupa, sin olvidar, por cierto, que muchas de las ciudades hispanolusas son depositarias de esa rica tradición musulmana, que pasó primero por los imperios y luego al subcontinente.

Hasta aquí se ha hecho público el reparo contra aquel estilo de vida exclusivamente exterior, del mismo modo como se rechaza el enclaustramiento doméstico de la casa labriega, y aunque el peristilo islámico pareciera ser la salida, puesto que recrea la calle sin perder de vista la intimidad del hogar, lo es en principio y sólo en principio, ya que el patio, el patio del fondo de la casa, no sólo ofrece un débil simulacro a la experiencia real y concreta de habitar la ciudad; le da la espalda, la niega, la confunde fatalmente. Hace pasar una realidad por otra que no es, porque la vida pública, al igual que la vida íntima, no se viven sino en plenitud, absolutamente.

La vida de patio interior promueve, así, hoy día, una ciudad de apariencias, simulada, una experiencia de vida urbana espuria, y con ella la soledad, el individualismo, la carencia de factores integrales del individuo moderno incapaz de enfrentar el mundo en su complejidad plena. El patio del fondo de la casa (que hoy puede ser tristemente homologable al espacio virtual), es el sustituto pobre y farsante del mundo de la vida cotidiana llevado a cabo en el habitar urbano. El patio del fondo de la casa, en suma, es el recodo protector, cómplice y testigo de la estructura familiar de la sociedad burguesa donde se fragua el carácter de un sujeto que lleva impreso en su interior el desprecio por la calle, la que más tarde ocupará para ordenarla según la lógica adquirida en su formación desvinculada de factores comunitarios y colectivos, egoísta y carente del profundo sentido de solidaridad. Los rasgos identitarios adquiridos al interior del patio del fondo de la casa terminan configurando a un hombre insatisfecho e incapaz de establecer los lazos societales que la vida urbana moderna precisa.

Lo anterior queda retratado en la imagen que nos ofrece José Donoso en su cuento “Paseo” (1960). Relato en que a través de un niño (¿él mismo?) configura los rasgos fundamentales de una sociedad oligárquica decadente. La probidad de una vida que para Matilde —su tía paterna— se reducía a los pleitos aduaneros de sus hermanos abogados y a los problemas de la casa. “Esto, para ella, era la vida”, dice el niño. El resto, lo externo: la magia de los barcos, el ruido alborotado de la calle, no cuentan, “porque mi vida —dice— era, y siempre iba a ser, perfectamente ordenada”. Pero aquí lo más importante, el espacio relegado que modela este carácter. El personaje recuerda (Donoso, 1983, p. 75 y 85, respectivamente):

Cuando yo llegaba del colegio por la tarde iba directamente a la planta baja, y montando mi bicicleta nueva daba vuelta tras vuelta por el estrecho jardín del fondo de la casa, centrado en torno al olmo y al par de escaños de fierro. Detrás de la tapia, los nogales de la otra casa comenzaban a mostrar un leve bozo primaveral, pero yo no hacía caso de las estaciones y sus dádivas porque tenía cosas demasiado graves en que pensar. Y como sabía que nadie bajaba al jardín hasta que el ahogo de pleno verano lo hiciera perentorio, era el mejor sitio para meditar sobre lo que en casa sucedía [Énfasis mío].

Así como la polis griega se erige sobre el espacio vacío del logos, para tratar parlamentariamente el bien común, y así como la ciudad campesina emerge en torno al ciclo de la vida agraria, donde más bien habla la naturaleza, así también la ciudad musulmana está montada sobre la vida privada y el sentido religioso de la existencia. Lo que al fin lleva a no tomar partido por ninguno de estos modelos en forma aislada.

Porque la ciudad que se habita en América Latina no responde ni a una ni a otra, sino que se ajusta al encuentro/desencuentro de los tres tipos de habitar urbano en forma simultánea. Así pues, la ciudad en su devenir histórico acogerá al sujeto de estilo de vida activa, al de vida cíclica y al de vida contemplativa. Luego, la conformación de este sujeto, como ser ciudadano moderno, se mantendrá irreductible a estas formas referenciales hasta acá revisadas. Las hará, pues, suyas en forma indistinta, con más o menos énfasis, dependiendo de sus particularidades culturales en la heterogeneidad de experiencias recogidas de esta larga tradición urbana regional.


* Marco Chandía Araya es doctor en Literatura Hispanoamericana, Universidad de Chile. Profesor UFPA/Campus Abaetetuba. marcochandia@gmail.com. Ha publicado diversos artículos en el área de los imaginarios urbano-porteños del Pacífico sur y el libro La Cuadra, pasión, vino y se fue…Cultura popular, habitar y memoria histórica en el Barrio Puerto de Valparaíso (Santiago de Chile, 2013).

Referencias

BACHELARD, Gastón. La poética del espacio. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1991.

BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia y otros ensayos. Iluminaciones IV. Madrid: Taurus, 1998.

BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CHUECA GOITIA, Fernando. Breve historia del urbanismo. Madrid: Alianza, 1968.

DONOSO, José. Cuentos chilenos contemporáneos. Santiago de Chile: Andrés Bello, 1983.

GARCÍA LORCA, Federico. La casa de Bernarda Alba. Santiago de Chile: Andrés Bello, 1985.

GONZÁLEZ VERA, José Santos. Alhué. Estampas de una aldea. Santiago de Chile: Cruz del Sur, 1929.

KOTKIN, Joel. La ciudad. Una historia global. Caracas: Random House Mondadori, 2007.

LEFEBVRE, Henri. El derecho a la ciudad. Barcelona: Península, 1973.

MATURANA, Humberto. El sentido de lo humano. Buenos Aires: Granica, 2008.

MONGIN, Oliver. La condición urbana. La ciudad a la hora de la mundialización. Buenos Aires: Paidós, 2006.

NERUDA, Pablo. Antología poética. Buenos Aires: Planeta, 2000.

ORTIZ, Renato. Modernidad y espacio. Benjamin en París. Bogotá: Norma, 2000.

RANDLE, Patricio. H. Breve historia del urbanismo (La ciudad antigua). Buenos Aires: Claridad, 1994.

RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover: Ediciones del Norte, 1984.

ROMERO, José Luis. Latinoamérica, las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo XXI, 2001.

TEILLIER, Jorge. Los dominios perdidos. Santiago de Chile: Fondo de Cultura Económica, 2002.

WEBER, Max. La ciudad. Madrid: La Piqueta, 1987.

 

Notas

[1] “La casa”, de “Yo soy”, en Canto general. Como Neruda, muchos escritores vuelven a esa escena inicial de cuando de oídas construían en el imaginario un mundo que luego conocen y plasman en su obra. Parece ser que es el sentido auditivo pues el que nos pone en contacto por primera vez con el desconocido mundo fuera-de-la-casa.

[2] Muchos escritores vuelven a esa escena inicial de cuando de oídas construían en el imaginario un mundo que luego conocen y plasman en su obra. Parece ser que es el sentido auditivo pues el que nos pone en contacto por primera vez con el desconocido mundo fuera-de-la-casa.

[3] Según P.H. Randle (1994, p. 120), el filósofo griego juzga inútiles las pinturas y otras decoraciones ya que la verdadera belleza estaría en la relación que se establece entre el habitante y su construcción.

[4] Umbral proviene del latino lumbral, cuya raíz es el sustantivo lumen, luz, luz de día. Siguiendo el étymos, lumbral no es luz, sino por donde pasa, o más preciso: donde llega ésta, por donde se filtra la luz del día, lo cual quiere decir que el lumbral no siempre está iluminado, pero tampoco oscuro; antes bien está sombrío, porque umbra es sombra, proyectada por un cuerpo. Umbral es algo entre el reflejo de un cuerpo que se interpone ante la luz y la luz que se cuela ante un cuerpo que le oscurece. Umbral puede representar un espacio más o menos iluminado (sombrío, lúgubre), pero no será nunca la oscuridad absoluta, porque en la oscuridad absoluta no se da nada, y el umbral, al tener algo de luz, es algo, que, sin ser luz propiamente dicha, está afectado por ésta: es sombra, oscuridad iluminada, luz oscurecida, un espacio ambiguo, oxímoron en permanente transformación.

[5] “La casa es el primer mundo del ser humano. Antes de ser ‘lanzado al mundo’ […] el hombre es depositado en la cuna de la casa. Y siempre, en nuestros sueños, la casa es una gran cuna […] La vida empieza bien, empieza encerrada, protegida, toda tibia en el regazo de una casa [En el espacio amado que le permite al niño poseer] verdaderamente sus soledades [entre] la dialéctica del juego exagerado y de los aburrimientos sin causa, del tedio puro. (Marcas autor) (Bachelard, 1991, p. 35).

[6] Léase la primera anotación explicativa antes de comenzar los diálogos de los personajes. El autor nos sitúa en una “Habitación blanquísima del interior de la casa de Bernarda. Muros gruesos. Puertas en arco con cortinas de yute rematadas con madroños y volantes. Silla de enea. Cuadros con paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. Es verano. Un gran silencio umbroso se extiende por la escena. Al levantarse el telón está la escena sola. Se oyen doblar las campanas. Sale la CRIADA” (García Lorca, 1985, p. 83).

[7] Se trata de un hecho de muerte que cuenta La Poncia, según la cual una muchacha soltera habría tenido un hijo, de padre desconocido, a quien mata a fin de “ocultar su vergüenza”, ocultándolo luego bajo unas piedras, pero unos perros hallan el cuerpo y lo depositan en la puerta de su casa, situación que despierta odio en los habitantes quienes la arrastran calle abajo para lincharla y hacer justicia por sí mismos. Obviamente, el episodio opera aquí como subterfugio de advertencia ante el intento de que las hijas de Bernarda puedan hacer lo mismo. Demarca el espacio exterior, teñido por el macabro escándalo, impúdico y deshonroso, del interior, de apariencia decente y casta, imagen que inútilmente Bernarda intentará mantener. (García Lorca, 1985, p. 122-3).

[8] Ese, para Bernarda, “maldito pueblo sin río, pueblo de pozos, donde siempre se bebe el agua con el miedo de que esté envenenada.” (García Lorca, 1985, p. 90).

[9]  “Las ciudades emergían ya completas por un parto de la inteligencia en las normas que las teorizaban, en las actas fundacionales que las estatuían, en los planos que las diseñaban idealmente”. Es decir que, para Rama (1984, p. 1), la ciudad, antes de ser realmente, lo era racionalmente, por medio de una idea o razón que la preconcibe.

[10] Koinonia, que hoy se usa más como concepto cercano a la teología, tiene acá el sentido de recuperar su valor de comunidad, que deriva a su vez de koiné, que también pasó a significar casa, por su directa relación a común. Por otra parte, oikos, es casa, pero ya en el contexto de bienes y personas, como unidad básica de la sociedad, en la ciudad-Estado tradicional.

[11] Modelo que reproducirá en el siglo XIX el Barón Haussmann en París. Es decir, un reordenamiento racional del espacio y con ello el sometimiento y control de su habitante. El damero o modelo haussmanniano responde a esa lógica ordenadora y excluyente (Ortiz, 2000, p. 30).

[12] Alhué: estampas de una aldea [1928], relato que reflejaba la vida provinciana: anodina, indefinida y lenta. En mapudungún, “morada de las ánimas”. Se trata, por otro lado, de reparar en el valor de eso que Benjamin (1998, p. 115) recoge cuando reclama, en “El narrador”, contra la pérdida del hábito de intercambiar anécdotas y prácticas cotidianas, contra esa notoria menguante comunicabilidad de la experiencia que trae consigo la modernidad, a favor de ese acto épico de la verdad. A ese saber expresado en voz baja, a ese antiguo y tan grata costumbre que es la del oficio de platicar.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 40 minutos

DIÁLOGOS ENTRE A TEORIA DO VALOR E O PATRIMÔNIO CULTURAL

1. As dimensões econômicas da preservação patrimonial

“Flores adornam cada estação desse Calvário. São as flores do mal. Aquilo que é atingido pela intenção alegórica permanece separado dos nexos da vida; é, ao mesmo tempo, destruído e conservado. A alegoria se fixa às ruínas. Oferece a imagem da inquietação entorpecida.”
Walter Benjamin, 1989

Charles Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”, é a referência assumida por Walter Benjamin para compreender a Paris moderna do século XIX. Buscava, assim, entender as transformações produtivas e espaciais operadas na modernidade que, ao desmantelar relações sociais e, frequentemente, o suporte físico sobre as quais se desenrolavam, verdadeiras ancoragens mentais da memória coletiva, geravam angústia e um sentimento de perda. Poderiam ser esses espaços e as relações sociais que nele se ancoram ao mesmo tempo destruídos e conservados?

A estratégia de preservar conjuntos históricos da paisagem, espaços urbanos construídos e elementos arquitetônicos de valores excepcionais era, naquele momento, uma prática relativamente recente. Surge como contraponto às ações promovidas a partir da Revolução Francesa (1789) de destruição de símbolos e monumentos que representavam o poder no Antigo Regime. O desejo de preservação da memória surge naquele momento, que coincidia, de um modo geral, com a formação dos Estados nacionais, como uma importante reação. Passa a ser validada pelo sistema de acumulação de capital a memória consolidada em uma seleção de objetos associados, sobretudo, ao poder de determinadas classes sociais. Foram preservados igrejas (clero), castelos (aristocracia), mercados (burguesia comercial) e equipamentos de usos coletivos como, entre outros, teatros, museus e bibliotecas (comunidades locais). O modo de ser nas cidades do novo sistema urbano moderno estaria, a partir de então, intrinsecamente relacionado a esses dispositivos de memória social. Apenas recentemente passaram a ser preservados feiras de artesãos, fábricas, vilas operárias, fortalezas militares, estações ferroviárias, sobrados das classes médias urbanas, e registradas manifestações culturais de comunidades tradicionais.

Podemos situar, assim, na modernidade as condições sociais, culturais, políticas e econômicas que possibilitarão emergir e florescer o discurso da preservação do patrimônio cultural. As rupturas abruptas de valores culturais compartilhados alçaram, neste sentido, objetos arquitetônicos em risco iminente de destruição ao patamar de ancoradouros da memória coletiva. O que nos permite considerar que a modernidade alterou profundamente a concepção humana do espaço (destruindo, construindo) e do tempo (acelerando e desacelerando). A partir de então passam a ser formuladas, com maior ou menor êxito, políticas públicas visando a assegurar a permanência do patrimônio edificado no território.

1.1 Modernidade e cultura

Na modernidade, as cidades tornam-se o espaço da produção material, com a ruptura da unidade espacial – habitação-trabalho – do feudalismo, permitindo a livre circulação de capital, consumidores e mercadorias, de acordo com os novos modos de vida exigidos pela consolidação dos Estados nacionais. Ao mesmo tempo, alterava-se paulatinamente a concepção hegemônica da cultura. Novos símbolos materiais e imateriais foram criados para situar culturalmente o povo no território.

Os principais marcos simbólicos e econômicos da modernidade coincidem com a mudança da noção de cultura, posta pelo Iluminismo. Era preciso criar uma cultura de valores alheios aos compromissos e relações sociais fixas das comunidades tradicionais, estimulando o consumo em massa, o compromisso com jornadas de trabalho rígidas e o respeito à ordem, às leis burguesas e aos valores exógenos.

No contexto geopolítico da América Latina, o início da modernidade coincide com a colonização europeia sobre os povos explorados e escravizados. A teoria decolonial considera como evento inaugural da modernidade as grandes navegações e a chegada dos europeus às Américas. Esses eventos relacionados, a partir do saque de ouro, do trabalho escravo e do domínio da propriedade territorial, explicam as bases de valor para uma acumulação primitiva de capital que culminou, sobretudo na Inglaterra, na Revolução Industrial e na hegemonia do modo de produção capitalista global.

Um dos pontos que compõem a matriz colonial de poder da modernidade/colonialidade foi descrito por Ramón Grosfoguel (2012), decorrente da teoria do sistema-mundo:

um sistema interestatal político-militar de Estados dominantes e subordinados, de Estados metropolitanos e periféricos, correspondentes na maioria dos casos à hierarquia da divisão internacional do trabalho e em sua maioria organizados ao redor da ficção do Estado-nação (Grosfoguel, 2012).

Neste sentido, é possível relacionar a narrativa de preservação do patrimônio cultural ao nascimento dos Estados nacionais como um símbolo para legitimar uma determinada unidade entre o povo e o território, em torno de elementos preponderantemente europeus. Durante o século XVIII, a burguesia e seus valores revolucionários à sociedade feudal alteraram paulatinamente a forma de organização e produção do espaço. O sistema de acumulação rompeu com qualquer tradição incoerente com valores capitalistas. A burguesia era a primeira classe dominante da humanidade que assumia o poder não pelo que os seus ancestrais eram, mas pelo que eles realizavam, não tendo compromisso aparente com identidade e tradição.

As Revoluções, Industrial e Francesa, marcam a grande ruptura da continuidade que abriu espaço para a era das invenções das tradições, estudada por Eric Hobsbawm (2002). As tradições inventadas são reações a situações novas, estabelecendo seu próprio passado, por meio de uma continuidade artificial. Elas são um contraste entre as constantes mudanças do mundo moderno e a tentativa de estruturar, de forma imutável, certos aspectos da vida social.

O que entendemos como patrimônio cultural forja-se também sobre o processo de invenções de tradições para emprestar o sentido de lealdade e coesão aos elementos constitutivos do Estado-nação. Esse conceito origina-se de uma demanda criada pela invenção dos próprios Estados-nações. Nos países europeus foram utilizados como artifícios de manutenção de poder do clero e da nobreza, que foram fortemente abalados pelas revoluções burguesas.

No Brasil, inicialmente, a retórica do discurso preservacionista sustentava-se, sobretudo, em imóveis característicos da colonização de uma elite branca europeia. O Estado, por meio de suas diretrizes, regulamentações legais e ações fiscalizadoras, passa a ser um agente central, que transforma coisas em bens, dirimindo conflitos, determinando quais objetos devem ser protegidos e liberando outros para serem destruídos (Gonçalves, 2002).

A preocupação moderna dos “administradores da vida social”, expressa pela tarefa de substituir a ordem divina pela ordem artificial racionalista, baseada em leis, envolveu também técnicas de moldagem da mente humana e da vontade a partir do controle e da educação comportamentais. Esses elementos fundiram-se na ideia de cultura, de forma paradoxal e ambivalente, posto que a emancipação e a liberdade humana, que a modernidade preconizava, deveriam sofrer limites para impedir uma universalidade no exercício dessas ações, que seria incoerente com o modo de exploração capitalista do trabalho.

O conceito de cultura, assumido desde o início da modernidade, passou a conciliar essa dupla estratégia, ou uma série de oposições: cunhar uma condição humana, buscar a autoafirmação e a criatividade libertadora de uns, e a regulação normativa e a obediência às leis por outros. As definições de cultura como construção de uma ordem social e urbana fazem pensar exatamente no papel que o patrimônio cultural tinha neste momento da modernidade. Bauman (2012) aponta que era preciso mostrar pela morfologia urbana como a ordem e os valores foram produzidos até então e que deveriam ser imutáveis.

A concepção universal de cultura verifica-se pelo vínculo do homem ao solo, através do genius loci, o “espírito do lugar”, que caracteriza o povo nascido em determinado local, a partir de três recursos fundamentais: clima, solo e paisagem. O solo caracteriza-se como o recurso diferenciador para a manifestação da cultura, pois é o lugar onde se assenta o Estado- nação. Além de compor a paisagem, por meio da interação cultural entre homem e meio ambiente, e sofrer as influências do clima, o solo serve como suporte para as diversas atividades humanas (Buela, 2005).

Este sentido de cultura como resultado da ação histórica foi apontado pela primeira vez por Marx, a partir da célebre frase: “tudo que é solido desmancha no ar”, sublinhando o papel transformador das capacidades humanas, acirrado pela luta de classes. A era moderna foi marcada por contradições, geradas pela revolução incessante dos meios de produção. Se, por um lado, os novos suportes às atividades, processos, poderes e expressões demonstram que não há limites para a criatividade, a invenção e a realização da atividade humana, por outro, provocam a destruição constante das relações sociais fixas, uma apropriação indevida de valor e o embotamento do espírito do homem moderno. A contradição em sua base estava no caráter revolucionário da burguesia, que desenvolvia uma moderna tecnologia, organização social, poder produtivo e transformador, mas sem poder seguir sendo plenamente revolucionária, sob o risco de perder seus poderes e privilégios (Berman, 1986).

O que era construído no século XIX era monumental, mas as construções não eram feitas para durar, o que se construía era feito para ser posto abaixo. A autodestruição inovadora do capitalismo, que precisa se desfazer das coisas para refazê-las continuamente, realimentando o ciclo intermitente de produção de taxas de lucro: “ainda as mais belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis, capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas” (Berman, 1986, p. 98).

A aceleração do processo de modernização, fragmentação das narrativas de vida e perda de contato com as raízes culturais associada ao fluxo cada vez mais veloz do tempo transformado em dinheiro colocou o patrimônio cultural como uma tática política dos sujeitos modernos para lidarem com a estratégia do capital de destruir as ancoragens físicas da memória coletiva, para tentar frear a desintegração real e simbólica operada na produção social do espaço.

1.2  Espaço e tempo

A compreensão humana sobre o espaço e o tempo, de maneira articulada, como duas dimensões idênticas, foi alterada pela invenção humana do tempo desvinculado dos eventos naturais na sociedade industrial. A concepção do espaço e do tempo abstratos permitiu ao homem, ao longo do seu processo evolutivo, planejar no espaço aquilo que acontecerá depois que ele partir, deixando objetos fixos, expressando uma memória evocada pelas novas gerações. Essa capacidade humana tomou outras proporções com a hegemonia do tempo socialmente necessário para a produção e o consumo de mercadorias. O tempo veloz regido pelo capital tornou a cidade o local indispensável para a realização do lucro, deixando-a sem muitos espaços para contatos sociais, compromissos comunitários e vínculos sociais mais duradouros. A vivência humana no espaço urbano moderno é bem caracterizada na Paris reconfigurada pelas reformas de Haussmann (1850-1871), associada ao consumo ocasional e despretensioso, a uma atitude blasée diante do encontro inesperado, a uma vivência no espaço fugaz da metrópole capitalista, livre de vínculos comunitários e laços de vizinhança.

O espaço socialmente produzido em um mundo urbano-industrial caracterizava-se pela homogeneidade, fragmentação e hierarquização, assumindo uma categoria de interpretação da realidade social e política. O conceito de espaço compreendido pelas relações sociais de produção é operacionalizado pela categoria de “espaço social” (Lefebvre, 2006, p. 12), que permite compreender o patrimônio cultural como um “construto social”, preservado em função da memória coletiva e das representações sociais, significando paradoxalmente a demarcação de espaços da memória em que o poder representado está ameaçado.

O tempo social, cujo fluxo é determinado pela velocidade de circulação monetária, torna-se contraditório com o tempo lento e defasado do patrimônio cultural, evidenciando a construção do passado no presente pela seleção de fatos históricos necessários para narrá-lo. Ao entrelaçar passado, presente e futuro, o patrimônio contrasta com a concepção racionalista e linear do tempo abstrato.

O passado é narrado no presente, projetando um futuro que se expressa pela capacidade de imaginar, sonhar, planejar etc. Todas essas são ações capazes de expressar essa memória prospectiva, que se projeta para o futuro, que estamos tentando preservar. O patrimônio cultural oferece essa dimensão temporal ampliada para pensar as cidades, por condensar essas dimensões no conhecimento do passado, na revisão de valores atuais e no planejamento do desejo de preservar ancoragens da memória coletiva.

Por outro lado, o patrimônio vem sendo produzido como espaço híbrido para significar resistência ou espetáculo, sendo facilmente capturado pelos interesses econômicos hegemônicos, gerando cicatrizes nos espaços urbanos e nas relações sociais. A memória coletiva que ainda está viva no cotidiano das cidades confere sentido para a interpretação dos espaços como uma ancoragem fixa e duradoura.

O patrimônio, ao evocar memórias e expressar signos atemporais, dialoga e transmite valores entre as gerações e representa esse atributo simbólico do espaço social compreendido como base para o desenvolvimento de atividades econômicas. Em toda a sua potencialidade simbólica e democrática, o patrimônio edificado reforça a memória coletiva, servindo como suporte físico para as manifestações culturais nas cidades contemporâneas.

1.3 Território e políticas públicas

O controle sobre o tempo e o espaço permitiu o desenvolvimento de um sistema de poder no qual o território torna-se a categoria capaz de mediar as relações sociais. O patrimônio cultural edificado situado no território é um “construto social”, em que, por meios de políticas públicas de preservação, cria-se uma morfologia de gerações entrelaçadas. Cada geração é responsável pela gestão do patrimônio que herdou, ao mesmo tempo que cria patrimônios para as próximas gerações, gerando a produção de um estoque permanente de bens protegidos.

O resultado da transformação do discurso preservacionista em ação política foi estruturado por um sistema de valores, buscando conferir unidade e coesão do povo ao território. O discurso preservacionista, verificado primeiramente na Europa, ainda no século XVIII, nos anos pós-Revolução Francesa, aparece no Brasil no século XIX e se institucionaliza durante os anos de 1930, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, a primeira instituição dedicada ao patrimônio cultural na América Latina.

As cidades vinham sendo remodeladas a fim de atender às transformações homogeneizadoras do capital, arruinando as construções e os aparatos físicos da memória coletiva. Os intelectuais modernistas brasileiros que capitanearam a proposta de preservar o patrimônio nacional teceram narrativas sobre suas impressões de mundo, buscando conciliar crescimento econômico com a preservação das identidades culturais e a herança do patrimônio histórico arquitetônico. Ações que ecoaram nas estruturas mais profundas do Estado nacional, deixando marcas até os dias de hoje.

Naquele momento, observava-se o discurso preservacionista na administração pública. Projetos de preservação cultural foram transformados em decretos-leis, ações ordinárias em políticas públicas articuladas, e se construíram instrumentos jurídicos para definir, selecionar e proteger o que seria o patrimônio nacional. A seleção de valores materiais a serem protegidos, por meio do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional, foi oficializada pelo Decreto-Lei n. 25/1937, instituindo o tombamento como ato do poder público. Tal ato representou o primeiro instrumento institucional no Brasil capaz de regular a propriedade privada, limitando interesses econômicos e reforçando a função social da propriedade, permitindo organizar um sistema de gestão patrimonial, com suas ancoragens institucionais e territoriais (Rabello, 1981).

O conceito de território favorece a relação entre políticas públicas e patrimônio cultural por meio de demarcação e disputas por espaços físicos, recursos, e de reconhecimentos de valor. O território torna-se uma categoria capaz de abarcar relações sociais diversas, em uma disputa para atribuir valores imateriais aos bens presentes nos espaços urbanos construídos. Essa categoria reúne, sob o ponto de vista da democracia, mecanismos de produção e apropriação real e simbólica dos recursos disponíveis.

O patrimônio cultural é um atributo do território, mediando relações sociais diversas: entre gerações, entre objetos e sujeitos, entre estratégias e táticas de ação política etc. É nesse território socialmente construído, concebido a partir de transformações do espaço, no tempo, reflexo das relações sociais, das lutas de classe e das ocupações simbólicas, um território politizado, que se situa o patrimônio cultural edificado. A narrativa patrimonial legitima assim uma disputa por recursos do Estado, que empodera, mantém, reafirma e protege das ameaças aniquiladoras do capital.

Considerando a visão do território posicionado entre o passado e o presente (Santos, 1996), é possível conceber a relação que se estabelece do patrimônio edificado como um recurso à comunidade. Situado na esfera da cultura e operacionalizado enquanto política pública, o patrimônio cultural é capaz de corporificar direitos, ao tornar meros objetos sujeitos ativos, potencializados muitas vezes pelo cotidiano.

Em uma estrutura capitalista periférica, que busca mercantilizar os artifícios da memória e das imagens, o patrimônio edificado adquire, enquanto bem territorial, um caráter de: resistência à generalização imposta pelo capital financeiro, que pode, ao passo, espetacularizá-lo em um ambiente urbano de consumo. O capital, ao transformar o território em “superfície lisa e sem marcas (…) admitidos apenas os sinais indicativos dos contextos propícios à ancoragem, circunstancial e veloz, dos investimentos e, portanto, aos pousos indispensáveis ao lucro” (Ribeiro, 2005, p. 125), pressiona o patrimônio cultural a se associar a um ambiente de consumo espetacularizado e despolitizado.

O patrimônio cultural assume, assim, uma dupla perspectiva: (1) enquanto aparato físico, permanece no tempo, estancando o ciclo do lucro da produção capitalista do espaço construído, corporificando uma ação política; (2) enquanto espaço socialmente construído para evocar a memória coletiva, torna-se um atributo territorial, um espaço de disputa de narrativas, expressão do sujeito coletivo que corporificou direitos. Torna-se um ativo (contra ou para) a penetração da fração financeira do capital, obtendo recursos para manutenção de atividades econômicas, podendo ainda ser facilmente apropriado, mercantilizado, despolitizado e espetacularizado.

2. A origem do valor e a preservação cultural

“A troca de mercadorias começa onde acabam as comunidades, no ponto em que elas entram em contato com outras comunidades ou com membros de outras comunidades.”
Karl Marx, “A Moeda”

No final do século XVIII, um grande contingente humano, desprovido de posses de terra e de meios produtivos, passou a ser submetido a uma rotina de trabalho industrial degradante e a um sistema de trocas desiguais, tendo como única fonte de recursos a sua própria força de trabalho. A grande massa de homens livres passou a trocar horas de trabalho socialmente necessárias para a produção de mercadorias por salários abaixo do nível de reprodução da força de trabalho.

O elemento essencial de transformação humana, expresso pela dignidade do trabalho inalienável, que une homem ao solo através da cultura, começou a ser rompido. O sentido de preservação cultural, material e imaterial, pode ser relacionado com a teoria do valor na história do pensamento econômico.[1]

Até meados do século XVIII, a casa coincidia com o local de trabalho dos ofícios tradicionais e a família era o centro físico da economia. A ideia de que as ordens de produção eram determinadas pela capacidade da oferta, na nova ordem do trabalho industrial, liberou os trabalhadores da vontade do amo, mas os subordinou a uma rotina fabril repetitiva, em que eles não detinham mais o controle de seus esforços nem do processo de trabalho como um todo, que muitas vezes significava a execução diária de uma ou duas funções.

Com a consolidação do mundo urbano-industrial, acreditava-se que o mercado seria capaz de satisfazer de forma ilimitada todas as necessidades sociais. Essa ideia apoiava-se na concepção do que ficou conhecido como “Lei de Say” (1803), do economista francês Jean Baptiste Say (1767-1823), baseando-se na ideia de que a “produção gera a sua própria demanda”, ou seja, toda renda gerada na produção com lucros e salários é inteiramente gasta na compra de mercadorias.

Em termos monetários, a Lei de Say pressupõe que nenhuma troca visa somente ao dinheiro e que este não interfere na produção, nem na circulação, tendo apenas um papel passivo. Se alguém não quiser utilizá-lo de imediato, ele será gasto por outra pessoa, já que os indivíduos visam apenas a produtos, não havendo limites para a satisfação das necessidades individuais. A quantidade de dinheiro se ajusta às quantidades proporcionais das trocas e os indivíduos acabam subordinados a uma força invisível: o mercado.

Diversos pensadores contestaram a Lei de Say, dentre os quais destacam-se Thomas Malthus (1766-1834), Karl Marx (1818-1883) e John Maynard Keynes (1883-1946). Porém, a lei acabou influenciando a Escola Clássica, principalmente Adam Smith (1723-1790), Jeremy Bentham (1748-1832), David Ricardo (1772-1823), bem como os pressupostos das teorias da economia neoclássica,[2] sobretudo pela contribuição de John Stuart Mill (1806-1873).

A ideia de valor em sua vertente utilitarista, embasada na Lei de Say, influenciou as disciplinas sociais e as funcionalidades espaciais nos desenhos e desígnios urbanos do modernismo, também na forma de pensar a arquitetura. O utilitarismo extrapolou a disciplina econômica, manifestando-se na forma de planejar as cidades, produzindo patrimônio desvinculado dos aspectos históricos e antropológicos.

2.1 A noção utilitarista do espaço urbano

A concepção utilitarista do valor no pensamento econômico moderno influenciando a construção social do espaço na modernidade é melhor sintetizada pela análise da teoria panóptica de Jeremy Bentham (1784), articulando as causas do valor aos sistemas de controle social. Partindo de premissas racionalistas típicas do Iluminismo, ele acreditava que os homens se comportavam de forma hedonista, buscando permanentemente a satisfação individual imediata, e que eram avessos à dor e ao sofrimento.

Diferentemente de Smith e Ricardo, que desenvolveram a teoria do valor-trabalho, Bentham acreditava que a origem do valor das mercadorias era a escassez e a utilidade. Cada mercadoria deveria conter utilidade para satisfazer uma necessidade de qualquer espécie, que é o valor de uso, de modo a justificar as trocas.

O valor determina o preço, e o dinheiro é apenas um instrumento que mede a quantidade de prazer ou sofrimento. O valor de uso é a base do valor de troca. A utilidade tornou-se uma vertente da teoria do valor, determinando quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais. Pensando no papel do poder disciplinar como forma de aumentar a utilidade e docilidade das pessoas, Bentham buscava institucionalizar políticas coercitivas de racionalização do trabalho, tendo como sua grande adaptação o panóptico, que foi mais bem analisado por Foucault (1975).

O panóptico, projetado por Bentham, teria se inspirado no zoológico de Versalhes, construído por Le Vaux, um importante arquiteto da época escolhido para compor o projeto arquitetônico para o rei Luiz XIV, na França do século XVII. Esse projeto consistia em um octógono central para estabelecer uma observação individualizante e classificatória sobre os animais, comportados em sete celas diante da estrutura central. O panóptico de Bentham era “um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o Rei pela maquinaria de um poder furtivo” (Foucault, 1975, p. 179).

A teoria benthamiana foi aplicada em projetos de manicômios, penitenciárias, escolas, hospitais, fábricas e em vários outros projetos de intervenção urbana, e esse advento de poder transcendeu o aparato arquitetural no qual estava estruturado e acabou orientando a organização social do espaço urbano de forma incompatível com as estruturas das comunidades tradicionais.

O panóptico é composto por uma estrutura periférica, construída em anel, e, no centro, uma torre com janelas virada para o interior desse anel. A estrutura é dividida em celas, com duas janelas, uma direcionada para a parte interna e a outra posicionada para a parte externa, de modo que a luz, vinda da torre, atravesse o espaço interno, possibilitando ao vigilante ver a pessoa sempre dentro da cela, mas sem ser visto, no alto da torre. Qualquer um, ou simplesmente ninguém, poderia estar dentro da torre, para que o efeito fosse o mesmo sobre a mente do indivíduo dentro da cela.

É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação (…). Daí o efeito mais importante no Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder (Foucault, 1975, p. 177).

Nas Figuras 1 e 2, apresentamos o único presídio panóptico construído na América Latina, em Cuba, na década de 1930, preservado atualmente e, com status de patrimônio cultural, transformado em museu. A concepção do projeto vai além das questões específicas tratadas pelo sistema penal, revelando uma organização do espaço e a compreensão do tempo, sob a ótica do controle social, deflagrada na modernidade pela noção de utilidade na formação do sujeito moderno.

 

Figura 1: Presídio Modelo, Ilha da Juventude, Cuba. Fonte: Santiago Lanza, Flickr, 2007.
Figura 2: Presídio Modelo, Ilha da Juventude, Cuba. Fonte: BBC/Laura Diaz Milan.

 

O panóptico sintetizava uma organização social e de poder sobre a multiplicidade de corpos, cujo efeito transbordou o espaço físico das celas, generalizando-se enquanto método de controle na organização social do espaço e na vida dos homens, como uma das prerrogativas imanentes do “contrato social” que fora instituído na modernidade, que foi se sofisticando até os dias de hoje. A divisão binária e a marcação dos homens em loucos e sãos, criminosos e inocentes, doentes e saudáveis, produtivos e improdutíveis, aptos e não aptos ao trabalho, etc., impunha um poder disciplinador, coagindo-os antes que ousassem romper com a ordem burguesa. O poder se impõe de forma subjetiva, pelo princípio da (in)visibilidade, no qual o indivíduo retoma a posição de controlado por si próprio.

Na abordagem do panóptico, os efeitos sobre o urbanismo ocorrem por meio da relação estabelecida pelo poder disciplinador com a ideia de utilidade como medida classificatória de valor na construção do espaço urbano. A liberdade e seus dispositivos codificados juridicamente, como supostamente a condição da democracia ocidental moderna, defrontam-se com o contradireito, representado pelo poder disciplinador.

Esse é o lado obscuro do sistema representativo igualitário que a burguesia preconizava, pois sustenta, reforça e multiplica as assimetrias de poder. O poder disciplinador era a “contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder” (Foucault, 1975, p. 196) e pune, por meio do direito penal, somente determinados grupos sociais.

No século XX, a projeção física e técnica do panóptico se transformou em um modelo generalizável de relações de poder, na vida cotidiana dos homens, infiltrando-se nas estruturas já existentes e aperfeiçoando outras, tornando possível amplificar as forças sociais: “aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1975, p. 183). Aumentar a utilidade dos trabalhadores, como forma de crescer a economia, com base no valor utilitário: “as disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que produzem indivíduos úteis” (Foucault, 1975, p. 185).

Ao expor o papel que o poder assume, Foucault aborda o capital como uma técnica econômica, resultante inevitável de condições conjunturais, do exercício desse poder nas relações produtivas e na organização dos corpos múltiplos. A concepção utilitarista sobre o valor aparece na sequência: moral – disciplina – utilidade – produtividade – crescimento – lucro – acumulação.

A economia é representada como uma modalidade de poder na estrutura panóptica generalizada, em que o controle disciplinar exercido sobre os indivíduos é semelhante ao papel desempenhado pelo “mercado” na contemporaneidade. Ambos estão vazios, não há vigia,  nem ninguém lá dentro, a coerção invisível é estabelecida sem a necessidade de aplicar força física, submetendo os indivíduos ao humor do mercado. Essa visão utilitarista do valor se transformou em critério para a formulação de políticas públicas, em detrimento da divisão social do excedente.

2.2 O valor trabalho abstrato e a preservação cultural do espaço urbano

A teoria do valor trabalho abstrato considera que a origem do valor no sistema de produção capitalista é o trabalho. Adam Smith (1776) e David Ricardo (1817) fornecem o arcabouço de ideias iniciais que ajudaram a desenvolver essa teoria do valor. Karl Marx (1867) consolida a teoria do valor trabalho abstrato, superando os gargalos teóricos postos por Smith e Ricardo, oferecendo as ferramentas para futuramente ser desenvolvida uma teoria da renda do solo urbano, tão importante ao patrimônio cultural edificado.

Smith apresenta uma teoria do crescimento econômico, investigando o processo de geração de riqueza por meio do produto anual per capita obtido pela produtividade do trabalho útil. O que caracteriza a riqueza de uma nação é a capacidade que os indivíduos têm de produzir um volume maior de bens que sejam úteis para satisfazer as mais diversas necessidades humanas no período seguinte.

Uma condição para que uma nação possa aumentar a produção desses bens é a divisão social do trabalho. Se cada membro da sociedade se especializar na atividade para a qual se mostre mais produtivo e trocar o excedente por outras mercadorias produzidas por seus concidadãos, essa sociedade estará assim aumentando a possibilidade de satisfazer suas mais ilimitadas necessidades, com um mínimo de esforço.

A permuta de bens úteis pelo conjunto dos indivíduos pressupõe uma dupla definição de valor que estaria em jogo para cada mercadoria: o valor de uso e o valor de troca. A mercadoria deve conter utilidade, a fim de satisfazer uma necessidade humana de qualquer espécie. Ela deve pressupor também um valor de troca, que se expressa na quantidade de qualquer outra mercadoria pela qual ela pode ser trocada. O valor de troca da grande maioria das mercadorias, de todas aquelas cuja oferta pode variar ilimitadamente, em função da atividade humana, seria determinado pela quantidade de trabalho empregada na sua produção. Para Smith, o valor de cada mercadoria, expresso através de um montante de dinheiro, nada mais seria do que uma quantidade de trabalho. Tanto de trabalho poupado da parte daquele que compra a mercadoria, quanto de trabalho efetivo da parte daquele que se deu o esforço de produzi-la. Embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as mercadorias, não é possível tomá-lo como critério para avaliar o valor das diferentes mercadorias.

Smith não define um padrão de medida invariável para mensurar o valor relativo das mercadorias em função da quantidade trocada por essa medida padrão. As trocas dos produtos são intermediadas pelo dinheiro, e o valor nominal da remuneração nem sempre corresponde ao seu valor de compra real. Não existe essa correspondência proporcional entre a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria pode comprar no mercado. A teoria do valor de Smith não explica o papel do equivalente geral e universal, o dinheiro, que medeia as relações sociais.

Ricardo[3] argumenta que é o trabalho que define o quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais, buscando resolver a questão da determinação dos preços relativos, como parâmetro de valor. O objetivo era estabelecer um padrão de medida invariável para definir o valor relativo e estimar a variação no valor de troca. Para ele, o critério para medir a variação do valor relativo das mercadorias seria a quantidade de trabalho, que no nível macro depende da relação entre salários e lucros, na divisão do produto entre as classes sociais, apontando pela primeira vez a participação dos proprietários de terras na divisão do excedente, por meio do recebimento da renda da terra.

Ricardo discorda de Smith em que a quantidade de trabalho varia em função da quantidade da medida padrão do valor relativo das mercadorias, buscando definir um padrão para verificar se as demais mercadorias subiram ou diminuíram de valor de troca. A mercadoria que realiza uma mediação entre as quantidades permutadas das demais mercadorias também sofre ela própria uma variação de seu valor de troca. A relação estabelecida pelo dinheiro como parâmetro de valor é indicada pela primeira vez, mas continuava a exercer um papel passivo.

Marx aponta como o trabalho consiste na substância do valor das mercadorias, demonstrando que a distinção entre valor de uso e valor de troca comporta aspectos qualitativos e quantitativos. Todas as coisas úteis, como o ferro, o papel etc., constituem o conteúdo material da riqueza, o suporte material do valor de troca. Este último, por sua vez, não seria um aspecto intrínseco ou imanente à mercadoria, tal como ocorre com a utilidade.

O valor de troca surge como aspecto puramente relativo, estabelecendo uma igualdade entre proporções quantitativas de valores de uso diferentes, necessitando de um equivalente geral e universal que explique essa inversão de valores lançada pelo capitalismo, em que o trabalho assume a perspectiva de trabalho morto e as mercadorias assumem a perspectiva de trabalho vivo.

Quando se abstraem todas as qualidades específicas das diferentes mercadorias, a única qualidade que lhes resta seria a qualidade de ser produto do trabalho humano. Desaparece até mesmo a qualidade de ser produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro etc., restando apenas a propriedade de ser dispêndio de força humana em abstrato.

Para Marx, a forma do valor de troca fornece a gênese da forma-valor mais comum das mercadorias, que seria a forma-dinheiro. Ele acredita que as mercadorias somente vêm ao mundo, somente podem entrar em circulação, na medida em que apresentam um duplo aspecto: objetos de uso e suportes de valor. Em contraste com a materialidade palpável do primeiro aspecto, como objeto de valor, a mercadoria seria uma realidade puramente social.

O trabalho também é ele próprio uma mercadoria, mas uma mercadoria de tipo especial, adicionando seu valor integral às mercadorias, mas sendo vendido exatamente por seu valor de mercado – a quantidade de valor-trabalho necessária para reproduzi-lo. Cada mercadoria possui uma mesma forma-valor, um mesmo equivalente-geral para definir seu valor. O dinheiro enquanto intermediário necessário das trocas passa a ser a manifestação do valor, passa a comandar a produção e o consumo, ocultando o aspecto social da determinação do valor, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria.

O dinheiro que entra inicialmente no modo produtivo termina o processo com uma magnitude superior. Esta é exatamente a expressão da mais-valia, verificada no esquema simplificado: dinheiro (D) – mercadoria (M) – dinheiro (D’), em que D’> D, em uma magnitude que corresponde exatamente à mais-valia: uma fração do tempo não remunerada, a base da acumulação de capital, caracterizada como uma apropriação indevida de valor gerado pela força de trabalho.

O dinheiro cumpre um papel social na medida em que alguém compra uma mercadoria, possibilitando a realização do valor e de uma relação social de produção. O dinheiro aparece como expressão de uma relação social, que oculta o processo de geração de valor por meio do trabalho corporificado, mesmo sendo fruto de relações coletivas, sentenciando o trabalho vivo.

Mas está aí aberta também a possibilidade de crise, diante do “salto mortal da mercadoria”, já que a compra do produto pode não se realizar e o dinheiro pode ser entesourado, não exercendo um papel passivo no processo de produção e circulação, pois o produto só se transforma em mercadoria se for comprado no mercado.

O valor se realiza por meio do trabalho abstrato, mas, para manter a competição capitalista, o uso de tecnologia libera a força humana nas atividades mais rentáveis. A substituição de trabalho por máquinas apenas assegura uma lucratividade setorial de curto prazo, excluindo competidores intensivos em mão de obra do processo de produção capitalista. No longo prazo, o capital se concentra nas empresas mais poupadoras de mão de obra, diminuindo a base para a realização do valor, levando a uma diminuição das taxas de lucro, que apresentam uma trajetória decrescente, deflagrando uma crise do valor.

O fetiche do dinheiro ocorre, na medida em que, ao se tornar expressão de uma relação social de produção, parece que “ser dinheiro” consiste em uma propriedade natural de uma coisa. Em sua dimensão abstrata, o dinheiro em si possui um caráter tão material que a sua abstração já seria suficiente para constituir o modo de produção capitalista, por meio da formatação da consciência coletiva. É exatamente aí que entra o papel da cultura na possibilidade real de abstração do dinheiro, apontado por Marx no livro III de O Capital. A cultura é responsável por organizar o modo de produção capitalista, deflagrando valores simbólicos e possibilitando uma organização burguesa da classe trabalhadora.

O espaço urbano construído tombado, de propriedade privada, é uma mercadoria do tipo especial: possui valor de troca, é um bem alienável e comporta um espaço cultural de reprodução das relações de produção e de sociabilidade, mas está sob a tutela do Estado que preservou o espaço, impedindo a transformação pelo capital.

Ao impedir a destruição e reconstrução do espaço urbano, o patrimônio cultural torna-se um atributo valorado pela renda movimentada pelos seus usuários, que lhe conferem valor de uso, reconhecendo símbolos e convenções sociais, mas o Estado terá que impor critérios definidos pelos princípios da equidade urbana e da divisão de ônus e bônus do processo de urbanização para restaurar valores de uso em áreas com boa infraestrutura instalada, embora sem transferir recursos coletivos para proprietários privados de forma indevida.

3. Considerações finais

A crise do valor, expressa pelo decréscimo da taxa de lucro no longo prazo, atinge os espaços urbanos tombados, que passam a ser reconfigurados por políticas de conservação que contribuem com a produção de novos sentidos do patrimônio cultural. O conteúdo simbólico associado ao patrimônio interpela uma massa de valores culturais capazes de moldar a inserção econômica de uma cidade, muito atrelada a uma rede de serviços, em um período atual marcado por um processo de desindustrialização e um descompasso generalizado de divisão do excedente produtivo.

A teoria do valor foi fundamental para a formulação de uma teoria da renda do solo urbano, de modo a identificar também uma mais-valia fundiária, ou um valor coletivo presente no solo, que vem sendo apropriado indevidamente por grandes proprietários privados da terra. A propriedade privada permitiu historicamente que os proprietários de terra se apropriassem de parte das taxas de lucro, cobrando uma renda da terra, contornando a falta de controle do capital em relação à irreprodutibilidade da terra enquanto meio produtivo.

No patrimônio cultural edificado, o conteúdo em que o valor se realiza (os fatores de produção, trabalho e capital e suas respectivas remunerações, salários e lucros) para a produção da mercadoria “espaço urbano construído” está se exaurindo. O espaço construído tombado, situado geralmente em áreas centrais, deprecia-se gradualmente, de modo que, em algum ponto da deterioração completa da edificação, ao final do último período, quando se esgota o valor de uso com o consumo definitivo do bem, o preço do imóvel será equivalente apenas ao preço do terreno, delimitado pela renda absoluta e outras categorias de renda, e os componentes do preço teriam magnitudes nulas.

O preço do solo urbano é uma função da renda da terra sobre a taxa de lucro média da economia. O preço do espaço construído corresponde à renda do solo, ao capital investido na construção do espaço e à remuneração desse capital, expresso pela taxa de lucro e pagamento de salários. A depreciação do imóvel corresponde à perda de valor de uso, ao desgaste da estrutura física com o consumo paulatino, e aplica-se apenas ao valor da edificação. O preço do solo está relacionado ao direito de receber uma renda, não se caracterizando como um produto nem como um custo, associado à apropriação privada de bens comuns.

O valor social contido no preço do solo, por meio da renda da terra urbana, pode ser utilizado para restituir o valor de uso do patrimônio edificado, por meio de políticas de conservação e restauração de imóveis, a partir de critérios muito bem delimitados e ajustados aos instrumentos do “Solo Criado” presentes no Estatuto da Cidade, de 2001.

Argumenta-se que recursos necessários para a conservação patrimonial podem ser obtidos pela recuperação da renda da terra gerada pelas autorizações de adensamento, que geram ganhos financeiros extraordinários alheios aos esforços dos proprietários e construtores e que são de origem coletiva. A noção de patrimônio cultural pelo tombamento foi o primeiro instrumento capaz de regular a propriedade privada da terra e agora, associada à teoria do valor, pode contribuir para a noção de bens comuns.


* Edmar Augusto Santos de Araujo Junior é economista, graduado pela UFF, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ e colaborador do Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidade Contemporânea (LAPA/PROURB/UFRJ).

Referências

BAUMAN, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa e Hermerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [1784.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BUELA, Alberto. El círculo hermenêutico de la cultura. Revista Espaço Acadêmico, 53, out. 2005.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/MinC-IPHAN, 2002.

GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando los universalismos occidentales: el pluriversalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramón (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.

HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.

KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Atlas, 1982 [1936].

LEFEBVRE, Henry. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. Mime, fev. 2006

MALTHUS, Thomas. Princípios de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982 [1820].

MARX, Karl. O Capital. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996 [1867].

MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Edições Sociais, 1978 [1848].

MILL, John Stuart. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural, 2 volumes, 1996 [1848].

RABELLO, Sonia. Tombamento e proteção aos bens culturais: equacionando a nova propriedade urbana In: PESSOA, Álvaro (org.). Direito do urbanismo, uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: Instituto de Administração Municipal (IBAM), 1981, p. 167-187.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. Formas e crises: utopias necessárias. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005, p. 93-109.

RICARDO, David. Princípios de economia política e tributação. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996 [1817].

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, HUCITEC, 1996.

SAY, Jean Baptiste. Tratado de economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1986 [1803].

SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Coleção Os Pensadores. Editora Nova Cultural: São Paulo, 1996 [1776].

 

Notas

[1] A “fisiocracia” é considerada uma das primeiras teorias econômicas, nascida no século XVIII, na França, por expoentes como François Quesnay (1694-1774). No momento da passagem da hegemonia das cidades sobre o campo, pré-Revolução Francesa, os fisiocratas viam nos produtos agrícolas a fonte da riqueza e origem do valor. Esse movimento lançou a base empírica que deu origem à palavra economia, significando algo como “organização da casa”.

[2] A “economia neoclássica” é inaugurada a partir do processo conhecido como “revolução marginalista”, que ocorreu entre 1862 e 1873. Os pensadores Stanley Jevons, na Inglaterra, Léon Walras, na França, e Carl Menger, na Áustria, com métodos e visões que aproximaram a economia à física por meio das ferramentas matemáticas, restringiram o objeto de estudo da economia à questão técnica da alocação dos recursos e otimização de utilidades marginais, despolitizando os processos sociais de formação e divisão do valor econômico.

[3] David Ricardo contribuiu para o desenvolvimento da teoria geral da renda da terra, iluminando a distribuição do produto total entre as três principais classes sociais da época: proprietários de terra, capitalistas agrícolas e industriais e trabalhadores assalariados.

Artigo
Tempo de leitura estimado: 59 minutos

EL ARTE NEGRO ES EL BRASIL

No podemos, ante ciertas imágenes, permanecer imparciales. Nos confrontan y nos conmueven, no sólo por lo que representan, sino por cómo lo hacen. En 1997 la artista brasileña Rosana Paulino realiza una serie de retratos que parten de fotografías de mujeres su familia, incluida la suya, transferidos en xerografías a la tela, bordados con hilo negro y tensados en un bastidor.[1]

 

Sobre el gris de la impresión – que al disminuir las tensiones entre el blanco y el negro vuelve sutiles los contornos de los rostros y de los cabellos –, contrasta una costura intensa, de hilos negros superpuestos que obturan los ojos, la boca, la garganta.[2] El resultado de esta textura no remite a un saber específico. No se trata de la unión de dos partes, ni de un bordado que en puntos ordenados representa sus motivos tal como sucede en los ornamentos de los ajuares de novias o en las tapicerías. Es, por el contrario, una sucesión de líneas sin orden decorativo. No remiten a una mujer bordando en un contexto bucólico. Paulino las nombra con la palabra sutura en lugar de costura o bordado. Cada puntada recorre varios centímetros desplazándose en horizontales, verticales y diagonales que se suman y encabalgan hasta lograr cubrir una forma que casi alcanza el negro compacto. Las puntadas denotan violencia. Tanto que, aunque tensada por el bastidor, la tela se ondula como consecuencia del trabajo de compresión que la puntada realiza. El contraste entre negro y grises vuelve más evidente la tensión entre lo que estaba (un rostro impreso a partir de una fotografía) y lo que ahora se ve (un rostro cubierto por una violenta costura). Las consecuencias de esta intervención en la imagen son estremecedoras. Las suturas que cubren zonas del rostro remiten a la obliteración del derecho a ver, a hablar, a respirar, a tragar, a pensar.

Son retratos de mujeres afrobasileñas. Las marcas obscuras nos llevan inmediatamente a pensar en la esclavitud, en los cuerpos marcados, clasificados. No podemos apartarnos de la idea de que un castigo les ha sido impuesto. Vienen a nuestra mente imágenes como las que dejó Jacques Arago en Brasil, durante la primera mitad del siglo XIX, de esclavos enmudecidos por dispositivos que obturaban su boca; o como los realizados por Richard Bridgens en la misma época en Trinidad, de mujeres con máscaras y collares de castigo.[3] Ese archivo late en estas imágenes. Hayamos o no visto las representaciones a las que nos referimos, la violencia ejercida sobre el cuerpo inmediatamente remite a la que se instrumentó en la esclavitud, abolida en Brasil a fines del siglo XIX, el 13 de mayo de 1888 cuando se aprueba la Ley Áurea.

Pero existe, junto a éste, otro archivo. Como señala Fabiana Lópes (2018), se trata de una estrategia formal y de intervención feminista, y la relación la confirma la propia artista cuando vincula esta obra con la experiencia que le transmite su hermana, una socióloga destacada, especialista en relaciones familiares y en violencia doméstica. Una violencia que se expresa por el uso de elementos cotidianos como instrumentos de poder – tenedores, agujas, cigarrillos –. Los bastidores se originan en las conversaciones con ella. La violencia doméstica se imprime sobre la violencia social del racismo. Valen ejemplos citados por autoras como Djamila Ribeiro (2018), cuando analiza que en la televisión brasileña la mujer negra se encasilla en dos roles, la empleada doméstica o la mulata exuberante y sexual. Paulino (2014) confirma la percepción de los estereotipos de la televisión y recuerda experiencias de su infancia, cuando tenía que jugar con muñecas blancas porque no había negras.

La serie de los bastidores refiere a la mujer afro brasileña. Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua (Paulino, 2018, p.150) observa el doble sentido de la palabra bastidor que, además del dispositivo que tensa la tela, nombra el fuera de escena en el teatro, reforzando la analogía con la invisibilidad de esas mujeres violentadas y culpabilizadas. Son las mujeres que no son vistas, entre bastidores, en la estructura de la sociedad. La mujer negra está en la base de la pirámide, gana menos, aunque tenga la misma formación que la mujer blanca tiene mayor dificultad para encontrar empleo. La mujer negra gana menos que el hombre negro, gana menos que la mujer blanca, gana menos que el hombre blanco (Paulino, Antonacci, 2014). En la serie de los bastidores Paulino superpone la memoria familiar, y la condición socio histórica de la mujer afrobrasileña.

Como veremos en este capítulo, Rosana Paulino trabaja sobre archivos personales y sobre archivos que la ciencia occidental, blanca, elaboró cuando fotografió esclavos y mestizos, imágenes centrales en las teorías del racismo científico. Una ciencia cuyos postulados universalizantes contribuyeron a reforzar los presupuestos racistas de la sociedad. En esta elaboración de los archivos se explora la construcción de la subjetividad de la mujer negra: cómo se forjan, se refuerzan y se sostienen las prácticas de la sumisión (Tvardovskas, 2013).

La condensación de experiencias colectivas y personales, de raza y de género, permite abordar su obra desde las perspectivas del feminismo interseccional, en el que opresiones de género, de clase y de raza configuran tramas de tensiones coexistentes. Cuando se centra en la clase y la raza para abordar el género, Paulino desarticula los presupuestos universalizantes en torno a la experiencia femenina. Genera zonas alternativas en la construcción de conocimentos que parten de una experiencia social en primera persona cuyos fundamentos investiga. Su obra propone una política de la imagen desde la que se descalzan saberes naturalizados interceptados desde estrategias que el arte ha investigado intensamente: el collage, el montaje de imágenes preexistentes que, puestas en contacto, friccionadas, encienden el campo semántico en el que se inscriben y provocan una mirada, una interpretación, una afectividad intelectual y emocional, distintas.

Feminismo y arte afro brasileño

Se ha repetido en distintos textos que el feminismo artístico no tuvo una expresión afirmativa en el arte brasileño (Buarque de Hollanda, Herkenhof, 2006; Melendi, 2017). Si trazamos una rápida comparación con otros casos que hemos analizado en este libro, no encontramos una acción comparable a la de María Luisa Bemberg en Argentina, con sus films de activismo feminista, ni tampoco un activismo de las imágenes como el que desarrollaron Mónica Mayer y Polvo de Gallina Negra en México.

Heloisa Buarque de Hollanda (2006, p. 159) señala en la presentación de la exposición Manobras Radicais que en 2006 co-curó con Paulo Herkenhoff que “Historically, Brazilian cultural context is resistant to a discussion about differences in the field of arts, that is, it is a context that indicates a non-democratic art system.” Herkenoff confirma esta percepción: “Brazil is resistant to the discussion of differences in the field of art: women, men, blacks, indigenous peoples, whites, Japanese, Jews, Moslems, homosexuals, domestic colonialism, cultural plurality, class structures. It is cool to reject it at first glance. In this sense, Brazilian art system is not “politically incorrect”, but anti-democratic” (Buarque de Hollanda, Herkenhoff, 2006, p. 162). Aunque reconoce que las artistas brasileñas no se han identificado con el feminismo, Buarque de Hollanda (2006, p. 97) señala que “Esas nuevas artistas, que dicen no querer tener nada que ver con el feminismo, son el mayor ejemplo de la victoria arrasadora de las conquistas feministas”. Se trata, en este caso, de la lectura feminista que una curadora realiza de las obras de artistas mujeres, no de una agenda que ellas asumen.

 Manobras Radicais incluyó tres de los bastidores de Rosana Paulino. En la sección de Annotations, al final de este catálogo, Heloisa Buarque de Hollanda (2006, p. 206) proponía una lectura de la obra de Paulino: “Embroidery in Rosana is more than the drawing with lines, blood, needles and back stages. It is a juxtaposition –in super light layers—of experiences, stories and trajectories. Thought-feelings. There are scars of several generations of women imprinting their history on handkerchiefs, nightgowns, children cloths, satin laces, laceworks and silks”. En estas notas, borradores de un glosario de palabras claves, aun cuando aparecen términos como post-feminism or sorority, no aparece la de feminismo interseccional.

Aunque, como señalamos, las cuestiones raciales y de género tienen una presencia central en la obra de Paulino, cuando le preguntaban si era feminista ella respondía que no, que era femenina. Distintas razones la separaban del feminismo que conocía. “Una reivindicación del feminismo clásico, el derecho al trabajo, nunca fue una cuestión para la mujer negra. Nosotras trabajamos desde siempre, es eso o morir de hambre. Mi madre fue empleada doméstica en Perdices, en el barrio de la PUC de São Paulo, una de las cunas del feminismo en São Paulo. Muchas de esas mujeres podían ser feministas porque había alguien limpiando su casa, cuidado de sus hijos” (Paulino, Gobbi, 2019) [4]. En el mismo sentido se pregunta Sueli Carneiro (2005),

¿En qué mujeres estamos pensando? (…) Ennegrecer al movimiento feminista brasilero ha significado, concretamente, demarcar e instituir en la agenda del movimiento de mujeres el peso que la cuestión racial tiene en la configuración de las políticas demográficas; en la caracterización de la agresión contra la mujer introduciendo el concepto de violencia racial como un aspecto determinante de las formas de violencia sufridas por la mitad de la población femenina del país que es no blanca; en la incorporación de las enfermedades étnico-raciales o las de mayor incidencia sobre la población negra, fundamentales para la formulación de políticas públicas en el área de salud; o introducir en la crítica a los procesos de selección del mercado de trabajo, el criterio de la buena presencia como un mecanismo que mantiene las desigualdades y los privilegios entre las mujeres blancas y negras.

Carneiro (2005, p. 26) señala con claridad el propósito emancipador del feminismo negro: terminar con la segregación y con el modelo universalizante que diluye lo específico.

En la experiencia de la mujer negra, en sus cuerpos, escribe Grada Kilomba (2012, p. 124), se superponen condiciones: “Por no ser ni blancas, ni hombres, las mujeres negras ocupan una posición muy difícil en la sociedad supremacista blanca. Representamos una especie de doble carencia, una alteridad doble, ya que somos la antítesis de ambos, blanquitud y masculinidad. (…) las mujeres negras (son) lo “otro” del otro”. El feminismo negro no se desarrolló sin dificultades. bell hooks (2000, p. 15) señalaba su necesidad, su urgencia, cuando escribía:

Es esencial para la prosecución de la lucha feminista que las mujeres negras reconozcan la ventaja especial que nuestra perspectiva de marginalidad nos da y hacer uso de esa perspectiva para criticar la dominación racista, clasista y la hegemonía sexista, así como para refutarlas y crear una contra hegemonía. Estoy proponiendo que tenemos un papel central por desempeñar en la realización de la teoría feminista y una contribución a hacer que es única y valiosa.

El feminismo negro intercepta la categoría universal ‘mujer’ desde la raza.

La noción de feminismo interseccional fue propuesta por Kimberlé Crenshaw en su tesis de doctorado en la Universidad de Chicago en 1989 para referirse a una aproximación multidimensional del sojuzgamiento:

La interseccionalidad es una conceptuación del problema que busca capturar las consecuencias estructurales y dinámicas de la interacción entre dos o más ejes de subordinación. Trata específicamente de la forma como el racismo, el patriarcalismo, la opresión de clase y otros sistemas discriminatorios crean desigualdades básicas que estructuran las posiciones relativas de las mujeres, razas, etnias, clases y otras (p. 14)

Pero como señala Djamila Ribeiro (2016, p. 1), ya en 1851 Sojourner Truth, ex esclava, pronunció en la Convención de Derechos de las mujeres en Ohio el discurso “¿Y yo no soy una mujer?”, en el que exponía que la experiencia de exclusión de las mujeres blancas no era la de la mujer negra, forzada a trabajar como un hombre, y cuyos hijos eran vendidos como esclavos (Ribeiro, 2016).[5] En tanto las mujeres blancas luchaban por el derecho al voto y al trabajo, las mujeres negras luchaban por ser consideradas personas. En esta lucha también se inscribe el activismo de Angela Davis y la publicación, en 1981, del libro Mujeres, Raza y Clase, en el que propone un análisis anticapitalista, antirracista y antisexista. Ribeiro (2016, p. 2) propone pensar la raza, la clase y el género en forma simutánea, como categorías indisociables, y aborda un estado de la cuestión sobre el surgimiento del feminismo negro en Brasil.  Un proceso que toma forma en 1985, durante el III Encuentro Feminista Latinoamericano en Bertioga, municipio del Estado de Sao Paulo, en el que emerge la actual organización de mujeres negras como expresión colectiva en encuentros regionales y Nacionales. Emergen desde entonces organizaciones como Geledés, Fala Preta, Criola. La antropóloga brasileña Lélia González (1988), además de colocar a la mujer negra en el centro del debate, analizó la jerarquización de saberes como producto de la clasificación racial de la población concebida desde un modelo universal y blanco. El racismo, señala, se constituyó “como la ‘ciencia’ de la superioridad euro cristiana (blanca y patriarcal), mientras se estructuraba el modelo ario de explicación” (González, 1988).

Las condiciones superpuestas que subsumen a la mujer afrobrasileña, tienen una elaboración simbólica en la obra de Paulino. Desde ciertos saberes culturalmente desplazados –coser, bordar, elaborar formas de barro—, junto a otros socialmente jerarquizados –la ciencia occidental blanca—sus obras descalzan presupuestos y otorgan centralidad a la experiencia vivida por ella, por su familia, por las mujeres afro brasileñas. Paulino aborda afectos contrarios al discurso negacionista que concibe a la sociedad brasileña desde una coexistencia sin conflicto: sus obras lo abordan desde lo personal subjetivo y desde la universalidad ideológica que instrumentaliza la ciencia. Los collages de Rosana Paulino interceptan lo que Ribeiro (2016) denomina “silencio epistemológico”. Esta autora señala que en Brasil la violencia hacia las mujeres debe involucrar el estudio comparativo de las estadísticas: en tanto en diez años el asesinato de las mujeres blancas en Brasil disminuyó un 9,8%, el de las mujeres negras aumentó un 54,2%.[6]

Al centrarse en la mujer afro brasileña, en las formas en las que fue integrada al sistema productivo brasileño como esclava que trabaja en la plantación o amamanta a los hijos de sus dueños blancos, teniendo incluso en ocasiones que relegar la alimentación de sus propios hijos, Rosana Paulino produce una poética política de los imaginarios de la ciencia de los blancos sobre las personas.  La coexistencia de las configuraciones racistas subyacentes en las imágenes del siglo XIX y presente en la sociedad brasileña contemporánea, el cruce entre el archivo familiar y el archivo ‘científico’, propone la construcción de una subjetividad emancipadora.

Arte afrobrasileño y políticas curatoriales

En la entrevista publicada en abril de 2019, cuando a Rosana Paulino le preguntaron si el interés sobre el arte afrobrasileño se vincula a un ‘boom’ del arte negro, respondió que tales narrativas eran creadas para desvalorizar discursos que están conquistando espacios. “No es una onda, no es un “boom”, es el Brasil. Si alguien todavía no lo ha percibido, nuestro país es así.” Y agrega que cuando “el 55% de la población se define como no blanca y una exposición con 30 obras solo tiene dos de artistas negros, algo está errado”. Exposiciones recientes otorgaron relevancia al arte realizado por artistas afro brasileños y por mujeres afro brasileñas involucradas en la conceptualización de un feminismo negro (Paulino, Gobbi, 2019).[7]

Desde 2015-2016 son consistentes las iniciativas curatoriales e institucionales orientadas a dar visibilidad a la presencia de artistas negros en Brasil, tanto en su larga historia como en las generaciones de las más jóvenes. Hubo exposiciones precedentes que establecieron puntos de partida fundamentales. Por ejemplo, la exposición A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica (1988), realizada como conmemoración de los 100 años de la abolición, organizada por el artista y curador brasileño Emanoel Araujo en el Museo de Arte Moderno de Sao Paulo (MAM-SP), en la que participaron dos artistas mujeres, Maria Adair y María Lídia Magliani. En 2013 Araujo realiza una nueva exposición, A Nova Mão Afro-Brasileira en la que participaron otras dos, Rosana Paulino y Sonia Gómes, sobre un total de veinticuatro artistas. Las cifras demuestran que las mujeres también están escasamente representadas en el arte afrobrasileño. En las transformaciones que en los últimos años experimentó el arte brasileño, fue central la política que llevó adelante Araujo, primer director negro de la Pinacoteca de Sao Paulo (1992-2002), quien durante su gestión incrementó ampliamente la representación de artistas afrobrasileños en la colección. Desde 2004 Araujo es director fundador del Museo Afro Brasil en Sao Paulo.[8]

En 2014 la exposición Historias Mestiças curada por Adriano Pedrosa y Lilia Moritz Schwarcz en el Instituto Tomie Ohtake de Sao Paulo, dio visibilidad a una representación del arte brasileño que trastocaba los lugares canónicos del arte blanco, abstracto y formalista que domina en la historia del arte de Brasil. La exposición no se enunciaba exclusivamente desde la primera persona, la de los artistas negros. También incluía la mirada de artistas cuya obra se involucra con la exclusión cultural afro brasileña o indígena representada, por ejemplo, por la fotografía de Claudia Andujar y su serie Marcados.

Cabe en este sentido introducir un tema que generalmente no se aborda en el campo del arte. Historiadores, curadores, artistas, nos movemos en un universo de imágenes que no se expresan, necesariamente, en primera persona. Eso no desautoriza lecturas ni universos poéticos. Quizás el ejemplo que podría traerse en este punto del debate es el de las fotografías que durante años realizó Claudia Andujar a partir de su contacto permanente con los yanomanis, en cuyos territorios vivía. Su obra se basa, en un sentido, en una aproximación poética que se elabora desde lo cotidiano y desde la identificación con la comunidad. Ella no constituye ese archivo visual desde su experiencia como yanomani, sino con los yanomanis. Su obra contribuyó de manera poderosa a otorgarles visibilidad y a llamar la atención internacional sobre las políticas extractivistas que apuntan a los territorios en los que viven, que se extienden entre Brasil y Venezuela. En una exposición reciente de las fotografías de Andujar realizada en el Instituto Moreira Salles de San Pablo y de Rio de Janeiro se contraponía una larga entrevista a Andujar y sus denuncias sobre una masacre de yanomanis, con el discurso del presidente de Brasil, Jair Bolsonaro, quien encendió con sus discursos la violencia hacia los territorios indígenas en Amazonia, blanco de la extracción minera. Sin embargo, los yanomani no participan de las exposiciones en primera persona, con sus nombres, con su identidad. Esto es lo que destaca Rosana Paulino cuando ante el 34 Panorama de Arte Brasileira, que propuso un diálogo entre las antiguas esculturas de piedra tallada y seis artistas brasileños, se preguntaba por qué no se ve obra de los pueblos indígenas del Brasil, herederos de las culturas nativas. Se trata de una representación sin participación (Paulino, 2016).

La nueva visibilidad de los artistas afrobrasileños se intensificó desde 2014. La exposición Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca realizada entre diciembre de 2015 y junio de 2016, curada por Tadeu Chiarelli, reunió las obras de la colección realizadas por artistas negros durante los últimos dos siglos. Chiarelli destacó que el museo aspiraba a cumplir con la agenda de la diversidad en las artes de Brasil. La exposición Historias Afroatlánticas realizada en 2018 en el MASP, así como las exposiciones individuales que recuperan la narrativa afroatlántica de artistas como Alejadinho, Maria Auxiliadora da Silva, Emanoel Araujo, Melvin Edwards, Rubem Valentim, Pedro Figari, Lucía Laguna y Sonia Gomes, fueron paralelas a la exposición de Rosana Paulino en la Pinacoteca de Sao Paulo, entre 2018-19, presentada luego en el Museu do Arte do Río de Janeiro. Esta nueva presencia nos aproxima a la transformación que actualmente experimentan las instituciones artísticas brasileñas que promueven el conocimiento de los artistas afrobrasileños.

Otro hecho significativo impactó en los últimos años en el arte brasileño. Durante 2015 y 2016 se produjo un debate intenso en torno a una obra presentada en Itaú cultural de San Pablo, A mulher do Trem, acusada de racismo por el uso de blackface, recurso por el cual un actor blanco representa, con la cara pintada, a un negro.[9]  El debate no estuvo exento de negación y naturalización de una situación que existe en la cultura brasileña, en la que la ficción teatral y televisiva ubica a los afrobrasileños en el lugar de empleados domésticos (lo que refuerza el estereotipo racista) y les niega posibilidades de trabajo cuando para representarlos recurre a actores blancos maquillados. La institución canceló la obra y abrió un debate público. Propuso revisar el racismo estructural presente en su organización, que en una historia de 30 años invisibilizó la producción artística afro-descendiente. Diálogos Ausentes, mesas de análisis que se desarrollaron durante 2016, culminaron con una exposición con el mismo título curada por Diane Lima y Rosana Paulino. En una de las sesiones realizadas durante 2016 participaron, entre otros, los artistas Aline Motta, Eneida Sanches, Mariane Figueira, Dalton Paulo, la curadora Fabiana Lopes, y la artista y curadora Diane Lima, que actuó como mediadora de esta y de otras sesiones.[10]

Entre las iniciativas activadas para visibilizar el arte afro brasileño y para debatir sus poéticas, Fabiana Lopes (2018) destaca la que se llevó adelante en el programa Ateliê Oço, en San Pablo, dirigido por el artista y curador Claudinei Roberto da Silva. Durante más de diez años y sin patrocinios, Ateliê Oço funcionó como un laboratorio de investigación que dio visibilidad y un marco de debate a la obra de artistas negros. En este espacio se realizó la exposición de Rosana Paulino Amor: modos e usos, en 2011.[11]

Aunque Brasil no legalizó el racismo como sucedió en los Estados Unidos, las desigualdades que enfrentan son más profundas que en ese país. Simulada bajo ideologemas como el de “democracia racial”, que oculta el racismo en la sociedad brasileña, o el “mito de las tres razas”, que refiere a la relación supuestamente armónica entre indígenas, europeos y africanos, la desigualdad racial en el Brasil fue abordada en los últimos años por agendas de diversidad. Estas fueron articuladas desde políticas de acción afirmativa -o cuotas- que las universidades llevaron adelante desde 2003, junto a programas para financiar la educación y para proporcionara apoyos que permitan mantener a los niños en las escuelas (Lloyd, 2016).[12] Los recortes a la educación que realiza el presidente Jair Bolsonaro atentan contra las políticas de inclusión.[13]

Aunque faltan estudios específicos sobre la formación de los artistas brasileños contemporáneos, puede analizarse la emergencia de una o más generaciones de artistas afrobrasileños, con formación artística universitaria (maestrías, doctorados y posdoctorados), que en los últimos años han quebrado el aislamiento que la propia Rosana Paulino describía cuando sostenía que durante los años 90 ella era una figura aislada en el mundo del arte brasileño: “Estuve prácticamente diez años haciendo arte contemporáneo sola, sin otros artistas negros (…). Había una brecha de 20 años (…). Estaban Emanoel Araújo, que podría ser mi padre; Abdias del Nacimiento, que podría ser mi abuelo. Sonia Gomes estaba en Minas, Ayrson Heráclito en Bahía” (Paulino, Gobbi, 2019).

El giro institucional que podemos ubicar entre 2014 y el presente señala un nuevo panorama. Curadoras como Fabiana Lopes o Diane Lima investigan el contexto crítico de la producción de los artistas afrobrasileños, punto de partida negado pocos años atrás por el establishment que no reconocía su existencia y que negaba la pertinencia de incluir referencias a la raza en relación con el arte (Roffino, 2018).[14] Desde 2014 comenzó a dar cuenta de la emergencia de jóvenes artistas negros y de un giro en las políticas curatoriales. En 2015 se invitó por primera vez a un artista negro, Paulo Nazareth, a representar a Brasil en Pabellón Latinoamericano de la Bienal de Venecia. Los nombres de artistas que integran las nuevas generaciones se inscriben con fuerza en el campo del video, la fotografía y la performance. Paulo Nazareth, Aline Motta, Eneida Sanches, Mariane Figueira, Dalton Paulo, Michelle Matiuzzi, Eustáquio Neves, Tiago Gualberto, Helo Sanvoy, Marcos Palhano, Charlene Bicalho, Priscila Rezende, Millena Lizia, Juliana Dos Santos, Olyvia Bynum, Natalia Marques, Sonia Gomes, Lídia Lisboa, Charlene Bicalho –una lista incompleta, pero que aun así es necesario nombrar, de artistas afrobrasileñas. Fabiana Lópes destaca también el lugar referencial que Rosana Paulino ocupa para artistas como Sidney Amaral, Moses Patricio, Renata Felinto, Wagner Viana y Janaina Barros, Charlene Bicalho, Natalia Marques, Juliana dos Santos, Dalton Paula.[15] Rosana Paulino enriquece la lista de artistas jóvenes: Kika Carvalho, Castiel Vitorino, Mariana de Matos, Sheila Ayó, Ana Lira, Lucimélia Romão, Coletivo TROVOA, Panmela Castro.[16] Se trata de artistas afrobrasileños formados en el lenguaje del arte contemporáneo, que integran en sus obras referencias a sus subjetividades y contextos de enunciación.

Una poética afrobrasileña

Desde 2012 Rosana Paulino revisa el sentido político de las fotografías “científicas”, cuyas tipologías actuaron como instrumentos simbólicos que reforzaron la opresión de la esclavitud. “Las definiciones pertenecen a los definidores no a los definidos”, escribe Toni Morrison en Beloved. Esta es la perspectiva desde la que Rosana Paulino aborda el imaginario científico occidental sobre los afrobrasileños durante el siglo XIX. El archivo científico no es una fuente pura, se estratifica en el tiempo: aunque formado en los siglos de la esclavitud en Brasil su poder configurador sigue activo. Cuando yuxtapone imágenes del pasado Paulino activa las raíces del presente.

Con sus collages e instalaciones introduce una distancia y un debate respecto de las líneas principales del arte brasileño. No se trata de una obra que se exprese como la continuidad de la genealogía estilística que propone ‘devorar’ el modernismo europeo, como Tarsila de Amaral en su propuesta antropofágica. Tampoco se inserta en la línea evolutiva de la abstracción. Aunque se apoya en el legado de los artistas afrobrasileños, se separa de la idea de continuidad estilística: su lenguaje difiere respecto de la propuesta de una expresividad figurativa como la de, por ejemplo, María Auxiliadora[17]; también de la abstracción que domina en la obra de Rubem Valentim.[18] En dos autorretratos con máscara que realiza en 1998, ella interpela el canon de la antropofagia y de la abstracción. En uno se representa rodeada de la hoja de banano que flanquea a la figura de La negra de Tarsila de Amaral (1923); en el otro por las banderas abstractas características de la obra de Alfredo Volpi. Yuxtapone su autorretrato y su relación con la comunidad afrobrasileña con la génesis del canon dominante del arte en Brasil y elabora las potencialidades críticas de esta yuxtaposición.[19] Walter Benjamin propuso a Brecht como un aliado estratégico de su valoración de los procedimientos críticos – como el montaje – que permiten que el aparato productivo quiebre su  complicidad con el poder – el fascismo en palabras de Benjamin. En sus lecturas del archivo Rosana Paulino propone un análisis de sus consecuencias estéticas y políticas. Las decisiones sobre las formas son tan significativas como las selecciones de imágenes sobre las que opera críticamente. En su conjunto forman parte de un activismo poético que se expresa como relectura de un canon –el del arte brasileño–, que operó desde la exclusión. Sus collages lo cuestionan desde la filosofía política que sirve de marco a sus imágenes.

Volvamos, por un momento, al uso que Paulino propone del archivo personal. Primero recurrió al mismo en la serie de los bastidores. En otro formato, desde otra propuesta, vuelve sobre el álbum familiar cuando selecciona once de sus fotografías, impresas unas 1500 veces, sobre pequeñas bolsas de tela (8 x 8 cm), cosidas en los bordes, ordenadas en hileras –diecinueve de alto, setenta y ocho de ancho. Los rostros de mujeres, hombres y niños de su familia nos miran desde la tipología del retrato convencional, realizado para recordar un momento en la vida. Son retratos de grupo o singulares. Algunos remiten al formato de la fotografía institucional, la del documento de identidad. Observada desde la distancia, Parede da memoria (1994-2015) convoca una vibración casi óptica, en la que los pequeños cuadros de tela se ven como acentos, como sutiles movimientos. Un paisaje de tonos grises y cálidos que enfatizan las costuras que bordean cada pequeño objeto.

Estas pequeñas bolsas cosidas remiten a los patuá, amuletos, pequeños sacos que contienen objetos o substancias vinculadas al axé o la fuerza mágica en las creencias Umbanda.[20] Puede trazarse un paralelo con el uso de reliquias en la religión católica: un tejido, el fragmento de un objeto o hueso vinculado a un santo, o la tierra que los cruzados traían de Tierra Santa.[21]  En ambos casos el objeto adquiere un sentido protector una vez que ha sido bendecido en el catolicismo o pasado por el “cruzamento” en la religiosidad Umbanda. En su casa había un patuá, sobre la puerta de entrada. En la yuxtaposición de materiales y de sentidos que propone Paulino se funden creencias no occidentales con los usos de la fotografía en el arte más contemporáneo. Impreso y multiplicado, este pequeño objeto se sumerge en una escala monumental en la que se cruza lo doméstico. Se trata de una pared-monumento, que durante varios años estuvo en proceso hasta el día en que la obra pasó a integrar la colección de la Pinacoteca de Sao Paulo, durante 2015 (Bevilacqua; Lopes; Palmas, 2018, p. 149). Como señala Fabiana Lopes,  “Con esta pieza, Paulino crea un memorial del sujeto negro y con su abordaje estético logra cerrar una brecha dentro de la memoria nacional respecto a este tema.”[22] Un sentido alegórico atraviesa el conjunto, en el que el recuerdo personal, el álbum de familia de las personas queridas, se engarza con una dimensión histórica que traslada siglos al presente. Aunque la obra no trata estrictamente sobre la esclavitud, la recuerda. Parede da memoria es la visión expandida de una imagen privada que se vuelve colectiva. En esa simultaneidad de impresiones se manifiesta la familia afro-brasileña, dispar respecto de aquella blanca, ordenada o antropofágica que ha moldeado el canon de representación del arte del Brasil.

Uno de los rasgos de clasificación social que establece diferencias, junto al color de la piel, es el cabello. Angela Figueiredo lo investigó en un proyecto en el que analizó el sentido estético, cultural y resistente del cabello negro, y que presentó en la exposición fotográfica Africa Global Hair (2011).[23] Dos ejemplos, entre muchos que podría traer a esta discusión, llevan a un primer plano el rol distintivo del cabello a la hora de establecer las diferenciaciones sociales que inciden en las perspectivas racistas respecto de la diáspora africana. Por un lado, la performance de la artista peruana Victoria Santa Cruz, Me llamaron negra, en la que relata, al tiempo que golpea rítmicamente sus manos, lo que sintió cuando la llamaron ‘negra’, algo que desconocía, y palabra en la que percibió una ofensa. Su reacción fue alisar su cabello y empolvar su rostro. Hasta que un día se dio cuenta de que adaptarse al requerimiento del amo diluía su existencia, su identidad. En la performance la frase “¿Y qué? ¡Sí, negra soy!” repetida al ritmo del cajón, señala el quiebre y el pasaje de la marginación al orgullo.[24] El archivo de esta performance provoca una relación empática y transformadora. Tal el poder del arte, de una imagen, de una secuencia de frases que se pronuncian en el tiempo, en una trama narrativa que permite la identificación con el momento de conversión del sujeto sojuzgado al sujeto empoderado.

La filósofa brasileña Djamila Ribeiro relata en primera persona la felicidad que experimentó la primera vez que pudo alisar su cabello y moverlo. Describe también el tormento que implicaba el proceso de alisarlo. Su padre se oponía a que lo hiciese, alababa la belleza de su cabello. Sin embargo, este nunca quedaba como ella lo imaginaba. Una sensación de no pertenecer la acompañaba. Hasta que un día, como Victoria, comprendió que se trataba de una máscara, y también se produjo en ella ese pasaje de una relación sojuzgada a una resistente representada por el cabello.

La escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, en el primer capítulo de su novela Americanah (2013), que transcurre en Princeton, describe la experiencia de trenzarse el cabello en una peluquería en la que conviven mujeres negras que provienen de distintos países de Africa o del Caribe. Allí, durante las seis horas que demanda el trenzado, se crea una comunidad diaspórica transnacional. La artista paulista Priscila Rezende realiza una performance, Bombril (2010) en la que lava su cabello con utensillos de cocina, convirtiéndolo en una esponja. Bombril es una marca de productos de limpieza conocida, y es también una de las muchas formas despectivas para referirse al cabello de la persona negra. Al apropiarse y literalizar el peyorativo, Rezende lleva al espectador a confrontar el discurso social discriminatorio y a tomar posición.[25]

A esta tensión y a esta condición encrespada del cabello afro-brasileño remite Paulino cuando en 2006 dispone mechones de cabello encapsulados con vidrios de relojes. El cabello como el color de la piel, funcionan como sinécdoques de las formas en las que en Brasil se clasifica a sus habitantes. Desde el cabello pone en escena dos mecanismos principales. Por un lado, construye un catálogo, que es también un observatorio de lo común y de lo distinto. En segundo lugar inscribe nombres en la letra cursiva del letraset (como Isis, Irene o Marly), con lo que remite a un proceso de construcción de la subjetividad de mujeres afrobrasileñas específicas. El cabello natural, que puede incluso tallarse alrededor de la cabeza, representa el agenciamiento desde la diferencia. Es un signo de empoderamiento y de posicionamiento político.

Los cabellos encapsulados, por otra parte, reponen el interés que Paulino tiene por la ciencia. Los recuerdos de su infancia se acumulan cuando se refiere a su pasión por la biología, que compitió con su interés por el arte. La ciencia señala un acorde conceptual visible en muchas de sus obras. En este caso, en las “muestras” de cabello crespo, frisado, que se conservan y se identifican. Se suman aquí al menos dos sentidos. Por un lado el del coleccionismo científico que extrae y ordena variaciones de un elemento natural para observarlo. Por otro, el sentido de relicario al que nos referimos en el patuá. En cada semiesfera se cuida ese objeto vinculado a una persona, a una vida, a una mujer. Nuevamente la raza y el género. En el centro de esta pieza un cristal de mayor tamaño reúne fotografías del pelo trenzado, oscuro, junto a fragmentos de cabello rubio. Las pulsiones conceptuales e ideológicas del feminismo negro aparecen como mensaje subyacente. Mujeres clasificadas y socialmente sojuzgadas por su cabello.

En 2012 Rosana Paulino realiza la serie Assentamento, en la que plenamente se involucra con el discurso científico y su relación con el racismo. Ella introduce la fotografía de una mujer afro-brasileña incluida en una serie realizada por el fotógrafo franco-suizo Auguste Stahl (1828-1877), encomendada por el cientista suizo naturalizado norteamericano Louis Agassiz (1807-1873). Las fotografías fueron re descubiertas en 1974, cuando fueron encontradas en el ático del Peabody Musuem, fundado por Agassiz, en el que quedaron olvidadas por décadas (Wallis, 2006). Sin embargo, Paulino no parte de este archivo sino de su reproducción en el libro O negro na fotografia brasileira do século XIX, publicado en 2004 por el coleccionista George Ermakoff.[26] Un libro que introduce un archivo que no tenía estado público en Brasil, y que se inserta en la dinámica de la historia de las imágenes, para la que las copias son el punto de partida de apropiaciones y resemantizaciones.[27] Detengámonos por un momento en la historia de estas imágenes.

Para Agassiz el científico era un ser privilegiado que sabía develar el plan divino mediante la observación de la naturaleza, en la que diferenciaba una jerarquía natural entre los seres, de los animales a los humanos y entre las razas humanas. Diferenciaba entre razas superiores e inferiores, blancos y negros respectivamente, y consideraba que los segundos, creados para vivir en cinturones tropicales, abdicaban de su autonomía ante la superioridad del hombre blanco (Machado, 2010). Entre 1865-1866 participa en la Expedición Thayer, que fue desde Río de Janeiro hasta el Amazonas. Profesor en Lawrence School, rama de la Universidad de Harvard, fue popular por defender el creacionismo, el poligenismo y por su adhesión a la teoría de la degeneración de las razas. Viajó a Brasil para desautorizar a Darwin y sus teorías publicadas en El origen de las especies (1859). Buscaba probar que el “mulatismo”, presente en la población brasileña intensamente mestizada, provocaba la “degeneración racial”.[28]  En su libro A journey to Brazil, publicado en 1867, sostenía que si se ponían en duda los efectos perniciosos de las razas, había que viajar a Brasil. Auguste Stahl fue el fotógrafo que Agassiz contrató para realizar un archivo fotográfico que probase sus teorías. Se trata de 200 imágenes que se conservan en el Museo Peabody de Harvard, en gran parte inéditas debido a su polémico contenido, integrado por retratos desnudos de la población africana de Rio de Janeiro y por tipos mestizos de Manaos.  Cuarenta de esas fotografías fueron exhibidas por primera vez en San Pablo en Rastros e Raças de Louis Agassiz: Fotografia, Corpo e Ciência, Ontem e Hoje (T)races of Louis Agassiz: Photography, Body and Science, Yesterday and Today, exposición organizada por Capacete y la 29ª Bienal de Artes de Sao Paulo, en el Teatro de Arena (2010).[29] Las fotografías de Stahl, realizadas de frente, de perfil y de espaldas pretendían probar las teorías de Agassiz.[30] En 1840 éste se había involucrado en el debate norteamericano sobre las razas y sus posiciones acerca de que el mestizaje era el camino de la degeneración social impactaban en los grupos que sostenían el segregacionismo en el sur de los Estados Unidos. Ya en 1850 Agassiz había encargado a J. T. Zealy fotografías de esclavos norteamericanos desnudos tomadas desde distintos ángulos. El Peabody museum fue legalmente demandado por Tamara Lanier, quien reclama que uno de los fotografiados es su antepasado y cuestiona el provecho obtenido de la imagen, utilizada para la promoción de conferencias y libros (Petit, 2019).

Rosana Paulino trabaja a partir de un polémico archivo liberado por el libro.[31] Trabaja sobre sus imágenes en diversos tamaños, imprimiéndolas sobre tela o incorporándolas en sus collages. Le interesan los afectos que portan estas imágenes (Paulino, Antonacci, 2014). En 2012, durante un programa de residencia entre artistas brasileños y afro americanos realizado en Tamarind Institute, en la University of New Mexico, Albuquerque, comienza una serie de obras sobre papel, Assentamento, que utiliza las imágenes de una mujer, de frente, de espaldas y de perfil, reproducidas en este libro.  Paulino las imprime y desarrolla a partir de ellas un dibujo que traza raíces e incluye un corazón. La expansión de la imagen impresa en el dibujo realizado a mano destaca la metáfora de enraizamiento: la historia brasileña está cruzada por la esclavitud y por la vida y la cultura que mujeres y hombres trasladados desde Africa introdujeron en la  cultura de Brasil, en una sociedad que aun reproduce tramas de subordinación de más de 300 años de esclavitud. La mujer fotografiada por Stahl fue trasladada desde Africa, fue esclavizada. El corazón que la artista superpone al cuerpo, el color rojo sobre la monocromía en grises de la imagen extraída del libro, traduce la tensión entre la separación y el enraizamiento, procesos, ambos, violentos. Se trata de abordar los afectos y la visión del mundo, las experiencias que millones que hombres, mujeres y niños esclavizados en Africa portaban y que forman parte de la sociedad brasileña contemporánea.

De frente, de espaldas, de perfil. La imagen se continúa en raíces y en formas acuareladas que la rodean, convirtiéndola en la célula de lo que será en una nueva configuración social. Una mujer africana trasladada, observada desde los dispositivos que la ciencia utilizaba para construir las taxonomías que justificaban las teorías de las razas puras, las teorías de las razas dominantes y de las desempoderadas. Las imágenes exponen la presencia de ese cuerpo violentado por un traslado involuntario, sojuzgado por condiciones de travesía inhumana, seguida de una explotación también inhumana, que forma parte del Brasil colonial tanto como del de la independencia o del contemporáneo. A pesar de la violencia, las raíces se expanden desde el cuerpo que se convierte en el lugar de un assentamento, un proceso de enraizamiento, una construcción cultural nueva. Las raíces y el follaje que brota de sus ojos, esas formas que parecen casi dendritas que se prolongan desde las células, hacen de su cuerpo un tronco, un eje que conduce, que conecta el cuerpo con el espacio que lo rodea.

Un año más tarde, en 2013, Paulino realiza la instalación Assentamento, que incluye las mismas imágenes, de frente, de perfil, de espaldas, ampliadas a tamaño natural.[32] El cuerpo se reproduce dislocado, descalzado por los cortes de una costura / sutura que une para recomponer la forma. Divididas en cinco partes, en cinco fragmentos de tela, las figuras experimentan un desplazamiento hacia la derecha o hacia la izquierda. Los hilos que penden interrumpen la continuidad de una sutura que remite a la captura, traslado, esclavitud; a la llegada a un espacio completamente distinto en el que debía rehacerse. Reconfigurarse en una nueva sociedad, la brasileña, que aun está atravesada por la diferencia social, racial. Un orden patriarcal. El corazón superpuesto condensa su historia, sus afectos, sus creencias, las costumbres que traía con ella. Intercalados en el espacio que queda entre los cuerpos impresos, tres fardos de madera y de brazos atados en una pira, han sido preparados para ser devorados por un fuego aludido, que en cualquier momento podría encenderse. En los comienzos de la esclavitud en Brasil en el siglo XVI un esclavo vivía entre 2 y 5 años. Los fardos de Assentamento remiten al desgaste, al escaso valor de personas que eran para el sistema como madera para ser quemada y repuesta. Así eran concebidos los esclavos en la dinámica del capitalismo, en la que la economía del monocultivo (siglos XVII-XIX) se vinculó a la emergencia del capitalismo industrial en Gran Bretaña (siglos XVIII-XIX) (Williams, 1944). Darcy Ribeiro escribió que mientras Gran Bretaña expandía las máquinas a carbón, en Brasil se quemaba carbón humano (Ribeiro, 1995). Entre los fardos, entre las fotografías ampliadas e impresas de una esclava que fue fotografiada y observada para fundamentar desde la ciencia la jerarquía entre las razas, la relación entre mestizaje y degeneración, coloca el video Mar distante, que introduce la travesía que culminaba con el arrebato de la identidad en la explotación de los cuerpos en la gran maquinaria de la plantación. “Assentamento”, señala Paulino, tiene dos sentidos. Por un lado, significa base, estructura, fundamento. Por otro, es el lugar en el que se asienta la fuerza del templo, la energía de la casa en las religiones afro brasileñas (Paulino; Antonacci, 2014).

En 2014, durante una residencia en el Bellagio Center de la Rockefeller Foundation, Paulino realiza una serie nueva de collages a partir de las fotografías del libro de Ermakoff. Introduce siluetas vacías en las que resuena el cuerpo ausente, el cuerpo borrado, al que le ha sido arrebatado su estatuto de humano. Ese Brasil pensado como un enorme almacén, en el que existía una flora y una fauna para ser exploradas tanto como las especies humanas (Ribeiro, 1995). En este trabajo también investigó las imágenes del libro Flora Brasílica, planeada e iniciada por el botánico brasileño Frederico Carlos Hoehne, publicado en fascículos entre 1940 y 1968 por la Secretaría de agricultura, industria y comercio de Sao Paulo –utiliza las imágenes del fascículo número 7, Labiadas, Gêneros 1-14, por C. Epling & J.F. Toledo, que reúne la flora del Brasil. Pequeñas flores, pequeños detalles de esa flora brasílica, ganan cuerpo en la progresión de la serie, e invaden el espacio. En los últimos collages los personajes quedan casi cubiertos por vegetales.

Además de la flora estos collages incluyen huesos. Se incluye así una referencia, explica Paulino, al cementerio de Negros Nuevos (New blacks), en Río de Janeiro, que reúne los restos quemados y acumulados de los esclavos que llegaban a Brasil y morían. Descubierto en 1996, durante la reforma de una casa que realizaban sus habitantes, éste funcionó aproximadamente entre 1769 y 1830, en una de las barracas del antiguo mercado negrero. Se cerró para demostrar a Inglaterra que Portugal cumplía las condiciones del tratado para finalizar el tráfico de esclavos que había firmado en 1827. Se calcula que allí murieron entre veinte y treinta mil personas, sobre todo niños y adolescentes. El sitio, hoy Memorial dos Pretos Novos,[33] deja ver los osarios a través de una pirámide de vidrio. A Rosana Paulino le produzco un fuerte impacto visitarlo (Lopes, 2018, p. 178). En la serie de collages los huesos cambian de medida, en algunos son del mismo tamaño que la cabeza de las figuras, en otros lo aumentan varias veces. Quienes eran forzosamente traídos de África como esclavos no eran considerados personas, eran sombras de personas, sombras de ciudadanos. La sombra del Brasil. El almacén tuvo un rol fundante de la sociedad brasileña, una de las más desiguales del mundo, en la que el trabajo no es valorizado, menos aun el trabajo manual, y en la que existe una fuerte jerarquización de clases. “Estudio estas cuestiones con regularidad, qué es ser mujer, qué es ser negra en la sociedad brasileña. Porque en estas cuestiones algo me incomoda, y solo consigo trabajar, de hecho, con las cuestiones que me incomodan. Ese nudo en mi garganta creció conmigo y tengo que hablar, y escogí el arte para tratar estas cuestiones”.

“Natural” es la palabra que Paulino introduce para elaborar un concepto visual y afectivo respecto de la ciencia y de su historia. La historia, tal como ha sido narrada, participó activamente en la fundamentación de los preconceptos que subyacen en teorías en las que existe un fuerte componente racista, empeñado en demostrar la superioridad de una raza sobre otra. En ¿História natural? (2016), introduce un doble signo de pregunta, imitando el español que, en esta duplicación, encuentra más enfático. Un recurso que visualmente refuerza la pregunta. El doble signo involucra, junto a la colonización portuguesa, la española: desde 1518 hubo esclavos en Cuba y República Dominicana –en Cuba la esclavitud fue abolida en 1886, dos años antes que en Brasil.

¿História natural? (2016) es un libro complejo, que incluye grabado sobre papel y sobre tela y que se organiza como una historia en imágenes, tal como la de los naturalistas. Rosana Paulino elabora una contra historia desde el discurso, el archivo, la imaginación y las imágenes realizadas por el discurso científico del siglo XIX. Intercepta la normalización de las teorías científicas; interviene críticamente sus archivos fotográficos. Frases como “El progreso de las naciones”, “La salvación de las almas”, “El amor por la ciencia”, introducen lemas del capitalismo y de la religión, agentes del sojuzgamiento y disciplinamiento de los esclavos. Una religión, la cristiana, que se impuso, sin lograr desplazar los componentes africanos, persistentes en las religiones afroamericanas, afrocaribeñas, afrobrasileñas. Fragmentos de tela cosidos cubren y descubren textos e imágenes. La impresión de azulejos portugueses entre los cuales se escurre la tinta roja, fusionan la idea de colonización y violencia. El libro se ordena en capítulos: la flora, la fauna, las gentes. En la sección que refiere a las personas, las fotografías de indígenas y esclavos se coordinan en distintas posiciones. Algo las distingue: el rostro vacío, ocupado por la imagen del fondo con mares ocupados por barcos esclavistas; el rostro con los ojos cubiertos por una forma obscura, que simbólicamente obtura su mirada, junto a la silueta de su cuerpo fotografiado. Un vacío, una ausencia.

Permanência das Estruturas (2017), se incluye en sus series textiles, en las que cruza imágenes, suturas y textos. El hombre cuya fotografía reproduce el libro de Ermakoff, el vacío que deja su contorno, los huesos, los azulejos portugueses y el texto que títula el collage, Permanência das Estruturas, escrito en rojo, en distintos tamaños, están allí, repetidos, para que no olvidemos. Para que no olvidemos el modo en el que esas personas eran trasladadas en viajes que duraban más de un mes, en condiciones inhumanas, Paulino imprime también el barco negrero, el mapa que indica la disposición de los cuerpos, el hacinamiento.[34] Es importante no olvidar, podemos pensar, ante el conjunto de pruebas de tal ominoso pasado-presente. La mirada científica, los huesos encontrados en Rio de Janeiro, la referencia a quienes intensamente practicaron el comercio de personas como esclavos, el mapa del barco que los transportaba. Los memoriales re-cuerdan –re: de nuevo, cordis: corazón–; vuelven a pasar por el corazón, por afectos, los restos de un pasado activo. Sentimos ante ellas, hoy, todo lo que permanece en la sociedad brasileña contemporánea.

Las formas geométricas que en ¿Historia natural? obturan los ojos de algunos de los retratos, permiten a la artista ingresar en uno de los ejes narrativos de la historia del arte brasileño: el arte abstracto y la centralidad que éste ha adquirido en los últimos años. Intensamente exhibido y coleccionado por museos internacionales, la abstracción brasileña constituye actualmente el eje central del canon del arte brasileño. Observemos cuál es el rasgo dominante de estas formas geométricas en series como Geométría à brasileira o A Geometría à brasileira chega ao paraíso tropical (2018). Para ello detengámonos por un instante en la lectura curatorial propuesta por el MASP de la obra de Rubem Valentim en su exposición antológica.[35] Se dice en el catálogo de esta exposición que este artista se apropia de la abstracción de origen europeo que dominó en el arte brasileño de los años cincuenta y sesenta, sometiéndolo a las raíces africanas, al diseño o a diagramas que representan a los orishas de las religiones afrobrasileñas. En tal sentido Valentim produce una operación antropofágica, deglute la abstracción europea para convertirla en afrobrasileña. La metáfora es potente, coloca al arte afrobrasileño en una relación de equidad con el de los artistas que conforman el canon del arte brasileño (Tarsila de Amaral, Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, entre otros). En tal sentido el catálogo reproduce obras de Auguste Herbin y de Mira Schendel. Ciertamente, cuando observamos los collages de Paulino podemos pensar en los Grandes nucleos de Helio Oiticia, en los que los planos suspendidos en el espacio, de colores homogéneos, dejan ver a las personas que se mueven alrededor o dentro de la pieza. En los collages de Rosana Paulino tales planos reverberan. Los planos de color interceptan las imágenes en blanco y negro de la flora, la fauna y las gentes del Brasil. Las formas puras cubren parcialmente los rostros y los ojos de indígenas y afro brasileños. Son intervenciones críticas que reponen distintas preguntas ¿en qué contextos de marginación social se construyó la abstracción brasileña como forma pura, racional, capaz de circular sin conflictos, de internacionalizarse? ¿Qué es lo que la centralidad de estas poéticas historizadas, analizadas y expuestas casi de manera excluyente, no han permitido ver? ¿De qué otras maneras puede analizarse el arte de Brasil? Las preguntas recién comienzan a ser investigadas. Las exposiciones a las que nos referimos en las primeras secciones de este capítulo otorgan visibilidad a obras de artistas afrobrasileños que no figuraban en los relatos principales del arte. Los estudios enfocados sobre cuerpos de obra que carecían de museografía y de investigación comienza a realizarse. Sus consecuencias comienzan a trasladarse a las historias del arte, a las colecciones de las instituciones artísticas, a las investigaciones curatoriales, a los estudios académicos universitarios. La historia vigente es una historia parcial. Nuevas complejidades requieren ser estudiadas, exhibidas e historizadas para acceder a una comprensión estética más compleja y desafiante. Brasil es un país de diversidades que el discurso unilateral de la historia del arte ha dejado en las sombras.

 

* * *
Escribo este texto desde una posición a la vez interna y externa. Interna porque se aborda la complejidad del arte contemporáneo para quebrar la marginación de experimentaciones disruptivas con un lenguaje que activa referencias poderosas en la cultura brasileña. En ella se juegan los derechos de la ciudadanía de conocer el pensamiento estético contemporáneo en toda su complejidad. Importa comprender la sofisticación excepcional y distinta de la obra de lxs artistas afrobrasileñxs contemporáneos. Faltan libros, exposiciones, traducciones, estudios específicos que permitan conocer poéticas particulares, no generalizables. Aspiro, con este estudio que incluye referencias a artistas, investigadores, teóricos y curadores afrobrasileños, a contribuir a un campo de estudio que hasta hace 5 años tenía poca representación en las exposiciones internacionales de arte brasileño y latinoamericano. Estamos comenzando, urge su inscripción regional y global. Las obras existen, se necesita expandir los instrumentos que permitan conocerlas. Y necesita redefinirse lo que hasta ahora se consideró como ‘arte latinoamericano’. Al mismo tiempo mi posición es externa porque las consecuencias de la discriminación impuesta por siglos de esclavitud no obraron en forma específica sobre mis experiencias. Escribir sobre obras todavía silenciadas, distanciando la escritura de un sentido heroico, involucra la urgencia estética e intelectual de conocer un arte que remite a experiencias afectivas que involucran a más de la mitad de la población brasilera. La mujer afrodescendiente es, como señaló Rosana Paulino, la base de la pirámide social de la explotación y de la exclusión. Contra sus cuerpos se ejerce una violencia social y simbólica. Su obra, junto a la de muchxs otrxs artistas afrobrasileños, representa la mayor transformación estética que se está produciendo en el arte contemporáneo de Brasil. Urge conocerlo.


* Andrea Giunta é curadora, historiadora da arte e professora na Universidade de Buenos Aires.

 

Referencias

BALANTA, Beatriz Eugenia R. Especímenes antropométricos y curiosidades pintorescas: la orquestación fotográfica del cuerpo “negro” (Brasil circa 1865). Revista Ciencias de la Salud, Bogotá, v. 10, n. 2, p. 59-78, 2012.

CARNEIRO, Sueli. Ennegrecer el feminismo: La situación de la mujer negra en América Latina desde una perspectiva de género. Nouvelles Questions Féministes: Revue Internationale Francophone, v. 24, n. 2, p. 21-26, 2005.

CHARTIER, Roger. El mundo como representación. Historia cultural: entre práctica y representación. Barcelona: Editorial Gedisa, 1992.

CRENSHAW, Kimberlé Williams. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, Chicago, v. 1989, p. 139-167, 1989.

DAVIS, Angela Y. Women, Race and Class. New York: Penguin Random House, 1981.

ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004.

FIGUEIREDO, Angela. Global african hair: representação e recepção do cabelo crespo numa exposição fotográfica. In: SANSONE, Livio (org.). A política do intangível: museus e patrimônios em nova perspectiva. Bahia: EDUFBA, 2012, p. 293-312.

FLETCHER, Kanitra. Damage Control: Black Wome’s Visual Resistance in Brazil and Beyond, The University of Texas at Austin, MA Thesis, 2011, p. 16. Disponível em: https://www.worldcat.org/title/damage-control-black-womens-visual-resistance-in-brazil-and-beyond/oclc/761386859&referer=brief_results. Acessado em 03/08/2019.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988.

HAAG, Carlos. Las fotos secretas del profesor Agassiz. Pesquisa, FAPESP, Edición 175, septiembre de 2010. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/es/2010/09/01/las-fotos-secretas-del-profesor-agassiz/. Acessado em: 26/07/2019.

HERKENHOFF, Paulo; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Manobras Radicais. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.

HOOKS, bell. Feminism is for Everybody: Passionate Politics. London: Pluto Press, 2000.

ISAAC, Gwyniera. Louis Agassiz’s photographs in Brazil: Separate creations. History of Photography, v. 21, n. 1, p. 3-11, 1997.

KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast Verlag, 2012.

LLOYD, Marion. Una década de políticas de acción afirmativa en la educación superior brasileña: Impactos, alcances y futuro. Revista de la Educación Superior, Ciudad de México, v. 45, n. 178, p. 17-29, abr./jun. 2016.

LOPES, Fabiana. Rosana Paulino: o tempo do fazer e a prática do compartilhar. In: BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva; LOPES, Fabiana; PALMA, Adriana Dolci. Rosana Paulino: a costura da memória. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018. p. 163-181.

MACHADO, Maria Helena P.T. (org.). O Brasil no olhar de William James. Cartas, Diários e Desenhos. 1865-1866. São Paulo: EDUSP, 2010.

MELENDI, Maria Angélica. To construct new houses and deconstruct old metaphors of foundation. In: Cecilia Fajardo-Hill, Andrea Giunta. (Org.). Radical Women: Latin American Art, 1960-1985. Munich-London-New York: DelMonico Books/Prestel, 2017. p. 229-335.

MORRISON, Toni. Beloved. New York: Alfred A. Knopf, 1987

OLIVA, Fernando; PEDROSA, Adriano. Rubem Valentim: Construções afro-atlânticas. São Paulo: MASP, 2018.

ORTIZ, Renato. Du syncrétisme a la synthèse: Umbanda, une religion brésilienne. Archives de sciences sociales des religions, Lyon, n. 40, p. 89-97, jul./dez. 1975.

PAULINO, R. Imagens de sombras. 2011. Tese (Doutorado em Artes Visuais). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

PAULINO, Rosana; ANTONACCI, Célia. Rosana Paulino. Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Arte UDESC, Programa de Pos graduação Artes visuales, 2014. Disponível em: https://vimeo.com/111885499. Acessado em: 27/07/2019.

PAULINO, Rosana. Representación sin participación. Revista Debates. Caracas/Nova York, ago. 2016. Disponível em: <https://www.coleccioncisneros.org/es/editorial/debate/contribution/representaci%C3%B3n-sin-participaci%C3%B3n>. Acesso em: 31 jul. 2019.

PESQUISA FAPESP. Las fotos secretas del profesor Agassiz. São Paulo, set. 2010. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/es/2010/09/01/las-fotos-secretas-del-profesor-agassiz/>. Acesso em: 26 jul. 2019.

PETIT, Emma. A Harvard Scientist Commissioned Photos of Slaves in 1850. A Lawsuit Says the University Is Still Profiting From Them. The Chronicle of Higher Education, March 20, 2019. Disponível em: https://www-chronicle-com.ezproxy.lib.utexas.edu/article/A-Harvard-Scientist/245939 . Acessado em: 26/07/2019.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para un nuevo marco civilizatorio. Trad. Sebastián Porrua. Revista Sur, São Paulo, v. 13, n. 24, p. 99-104, dez. 2016. Disponível em: https://sur.conectas.org/es/feminismo-negro-para-um-nuevo-marco-civilizatorio/. Acessado em: 31/06/2019.

RIBEIRO, Djamila. Mulher negra não é fantasia de Carnaval. In: RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 48-50.

TVARDOVSKAS, Saturnino, L. “Tramas feministas na arte contemporânea brasileira e argentina : Rosana Paulino e Claudia Contreras”, en Artelogie, n° 5, Paris, CRAL-EHESS, October 2013.

WALLIS, Brian. “Black Bodies, White Science: Louis Agassiz’s Slave Daguerrotypes”, American Art, The University of Chicago Press, Vol. 9, No. 2 (Summer, 1995), pp. 38-61. Molly Rogers (2006)

WILLIAMS, Eric E.. Capitalism & Slavery. Chapel Hill: The University of North Caroline Press, 1944.

 

Notas

[1] Rosana Paulino trabajó sobre las imágenes en Xerox, las amplió y las transfirió al tejido de algodón con una emulsión que diluye el tonner de la fotocopia. Comunicación por correo electrónico con la autora, 22 de julio de 2019.

[2] La formación de Rosana Paulino es como grabadora, graduada en grabado en la Universidad de Sao Paulo en artes visuales, con una especialización en London Print Studio, en Londres, y un doctorado obtenido también en la Universidad de San Pablo. Aprobó el proceso de selección para estudiar biología en Unicamp y Artes en USP, optó por el arte –en Brasil no se permite cursar en dos universidades públicas al mismo tiempo. Su madre le proporciono conocimientos que se asocian a lo femenino, como coser, bordar, o hacer figuras con el barro del río. También creció en contacto con los saberes de la religión Umbanda. Fabiana Lopes (2018) destacó que Rosana Paulino fue la primera persona negra en recibir un doctorado en artes visuales.

[3] En su tesis de doctorado Rosana Paulino (2011) señala como referencia las imágenes de Jacques Etiene Arago y de N. Maurin, Castigo de escravos (1839, colección del Museo Afro Brasil).

[4] Rosana Paulino en entrevista con Gobbi, Nelson, ‘Arte negra não é moda, não é onda. É o Brasil’, O Globo, Rio de Janeiro, 29-04-2019 https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/rosana-paulino-arte-negra-nao-moda-nao-onda-o-brasil-23626464 (consultado 12-05-2019)

[5] Este artículo traza un excelente estado de la cuestión sobre el feminismo negro en Brasil. Todas las referencias que incluyo a continuación provienen de este artículo. La cita de los libros y artículos a los que Ribeiro refiere, se inscribe en una política de investigación que de visibilidad a las investigaciones precedentes.

[6] Ribeiro cita el Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, p. 30.

http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf (consultado: 20/07/2019)

[7] El debate sobre la presencia negra en el arte brasileño tuvo también una fuerte activación a partir del debate que generó la presentación acrítica de la obra de Tarsila do Amaral, La negra (1923) en la retrospectiva de la artista realizada en el MoMA durante 2018. Ver en tal sentido los artículos publicados por The Art Newspaper, Hyperallergic y The New York Times.

[8] Posee una colección de más de 6000 obras organizadas en distintas áreas temáticas –Africa, trabajo, esclavitud, sagrado y profano, religiones afro brasileñas, historia y memorias, artes. Pinturas, esculturas, grabados, fotografías, documentos y piezas etnológicas permiten conocer los procesos de la diáspora africana y de la cultura afro brasileña.

[9] Sobre el debate ver el texto de Ana Maria Gonçalves “A máscara tipificadora do branco” http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/05/anamariagon%C3%A7alves_mascaratipificadoradobranco.pdf (consultado: 23/07/2019)

[10] Puede verse el tape completo en ttps://www.youtube.com/watch?v=mJ2_2pFW8Mo&t=1201s

[11] Ver también Claudinei Roberto, Atelie Oço: Alternativas para dar voz e visibilidade aos que se encontram às margens, abril de 2011. http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/atelie-oco (consultado: 01/08/2019)

[12] Marion Lloyd, “Una década de políticas de acción afirmativa en la educación superior brasileña: impactos, alcances y futuro / A decade of affirmative action in Brazilian higher education: Impact, scope and future”, Revista de la Educación Superior, Volume 45, Issue 178, April-June 2016, pages 17-29. https://doi.org/10.1016/j.resu.2016.02.002

[13] https://www.clarin.com/new-york-times-international-weekly/educacion-brasil-ataque_0_qy-q-2cjML.html

[14] Roffino, Sara, “Is Brazil’s Most Famous Art Movement Built on Racial Inequality? A New Generation Argues ‘Yes’”, ArtNetNews, March 13, 2018

[15] Fabiana Lopes destaca el lugar de educadora y mentora de Rosana Paulino, con quien muchos de estos artistas hicieron residencias, op. cit., p. 176.

[16] Comunicación por correo electrónico con la artista, 12 de agosto de 2019.

[17] Autodidacta, Maria Auxiliadora se dedica exclusivamente a la pintura a partir de los 32 años. La propia artista custionó que se considerase su obra como “primitiva”, “ingenua” o “popular”.

[18] Un artista que a partir de los años 1950 se apropia del lenguaje de la abstracción geométrica europea.

[19] Kanitra Fletcher (2011) analiza estos autorretratos como una intercepción respecto del modelo de las fotografías comisionadas por Louis Agassiz a J. T. Zealy para probar sus teorías poligénicas sobre sujetos de inferioridad biológica.

[20] Religión multifocal y multicultural, de parácticas plurales, que introduce elementos de las religiones africanas, aborígenes (tupí) y católicas. Ver Ortiz, 1975.

[21] Estudié en el colegio franciscano Instituto Tierra Santa de Buenos Aires. En el uniforme llevábamos un broche con la característica cruz de Tierra Santa que en su centro tenía un pequeño relicario con un fragmento de tierra de Jerusalén.

[22] Fabiana Lopes, conversación con Aïsha Diallo en C&América Latina, 8 de marzo de 2018 http://cand.watsapsap.com/es/editorial/the-art-of-the-black-atlantic/ (consultado: 23/07/2019)

[23] La exposición se realizó en Centro Cultural da Caixa Econômica Federal em Salvador, Bahia, durante el mes de noviembre de 2011, mes de la conciencia negra.  Ver Figueiredo, 2012.

[24] Victoria Santa Cruz, Me gritaron negra, 1974 https://www.youtube.com/watch?v=cHr8DTNRZdg

[25] El video puede verse en: https://www.youtube.com/watch?v=tsfErSKpunc (consultado: 04/08/2019)

[26] El libro incluye las fotografías de Augusto Stahl de la colección del The Peabody Museum of Archeology & Ethnology de Harvard. La publicación liberó estas imágenes en la escena intelectual y artística brasileña.

[27] En relación con la historia de la lectura de las imágenes se puede plantear la relación comparativa con la historia de la lectura de los textos que plantea, por ejemplo, Chartier (1992).

[28] Djamila Ribeiro advierte el sentido despectivo que tiene en Brasil el uso del término “mulata”, que proviene de “mula” o “mulo”, efiere a lo híbrido, producto del cruce de especies, y que diferencia al caballo noble del de segunda clase. “Se trata de una palabra negativa para indicar mestizaje, impureza, mezcla impropia, que no debería existir”. Desde el periodo colonial el término fue utilizado para designar a los negros con la piel más clara, fruto del estupro de las esclavas por el señor del ingenio. La denominación tiene un cuño machista y racista. Remite a más de tres siglos de esclavitud en Brasil. Djamila Ribeiro, op. cit., p. 99.

[29] Ver Haag.

[30] Ver Balanta.

[31] Recientemente se han producido controversias. En 2012 el Museo Peabody denegó el permiso de reproducirlas en la exhibición sobre racismo que se realizaba en Grindelwald, Suiza, por considerarlas sensibles y por la política del museo de evitar fotografías de desnudos. Ver Mary Carmichael, “Harvard in fight over racist images: Swiss group aims to expose Agassiz”, The Boston Globe, 27 junio 2012. http://archive.boston.com/news/local/massachusetts/articles/2012/06/27/
harvard_in_fight_over_racist_images/
; Editorial Opinion “Harvad should openly discuss Agassiz’s racial experiments”, The Boston Globe, 5 July 2012 https://www.bostonglobe.com/opinion/editorials/2012/07/05/harvard-should-openly-discuss-louis-agassiz-and-his-racial-attitudes/7QFq3ScfcerEGDNCqhF5UL/story.html (consultado: 27/07/2019). En este artículo se cuestiona que Harvard no haya realizado una revisión crítica del legado de Agassiz y que siga promoviendo su figura con frases como “Few people have left a more indelible imprint on Harvard tan Louis Agassiz”, considerado uno de los “founding fathers” of the modern American scientific tradition”. Se problematiza su anacronismo respecto de las teorías de Darwin, a las que se opuso, pero no se problematiza hasta qué punto colaboró en la legitimización del racismo en los Estados Unidos. Ver en el sitio de Harvard, “A Tale of Two Scholars: The Darwin Debate at Harvard. Louis Agassiz was a scientist with a blind spot — he rejected the theory of evolution” https://news.harvard.edu/gazette/story/2007/05/a-tale-of-two-scholars-the-darwin-debate-at-harvard/ (consultado: 27/07/2019)

[32] Expuesto por primera vez en el MAC – Museu de Arte Contemporânea de la Ciudad de Americana, en São Paulo –una ciudad vecina a Campinas.

[33] Es parte del Instituto de Pesquisa e Memoria dos Pretos Novos, Rio de Janeiro, cuyo propósito es la reflexión sobre la esclavitud y sus consecuencias en Brasil.

[34] La imagen proviene del diagrama del barco de Brookes, de 1788.

[35] Tal es la hipótesis central de la exposición curada por Adriano Pedrosa y Fernando Oliva sobre el artista como parte del ciclo de exposiciones Historias Afro-Atlánticas realizadas en el MASP durante 2018.

 

Entrevista
Tempo de leitura estimado: 18 minutos

UMA AGENDA ÚNICA PARA A CIDADE: ENTREVISTA COM TAINÁ DE PAULA

Tainá Reis de Paula Kapaz é arquiteta, urbanista e ativista das lutas por moradia. Tainá prestou assistência técnica para movimentos como a União de Moradia Popular (UMP), o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e o movimento Bairro a Bairro. Membro da Comissão de Gênero do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU-RJ) e coordenadora do coletivo Rede BrCidades. Foi eleita copresidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), onde tem debatido uma agenda arquitetura social e de recuperação dos saberes construtivos populares.

Heloisa Buarque de Hollanda: Como você, arquiteta preta e periférica, foi eleita presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil?

Tainá de Paula: Conseguimos uma concertação de vários setores da categoria com arquitetos acadêmicos, e arquitetos funcionários públicos, um setor profissional que sempre demandou uma agenda progressista na reflexão de cidade, na reflexão de arquitetura. A arquitetura e o pensamento sobre a cidade, hoje, no Brasil, têm um legado monumentalista. São grandes intervenções e grandes equipamentos arquitetônicos em detrimento de uma agenda mais próxima às pessoas que habitam a cidade. O Konder [Marcos Konder Netto], por exemplo, que foi funcionário público por muitos anos, projetou arquiteturas monumentalistas, mas também pontuais, voltadas para o público de baixa renda. O Lelé [João Filgueiras Lima] pensou o SUS [Sistema Único de Saúde] como uma arquitetura inclusiva, acolhedora, o Zanine [José Zanine Caldas] praticava a arquitetura com outros valores… Sou da geração lulopetista de arquitetos. Entro, em 2003, na Universidade Federal Fluminense, num período no qual ainda não havia cotas sociais e raciais. Era uma universidade que reconheci como branca e universalista na construção do seu saber, então me coloquei como tarefa trazer mais pretos, mais pensamento preto como uma ação de melhoria da excelência acadêmica. Conseguimos conectar e traduzir demandas que não passavam perto da academia e que, na verdade, são centrais no Brasil de hoje, que é majoritariamente preto, pobre e periférico. É um gargalo para o qual não bastou a prática extensionista. A gente precisou empobrecer e empretecer no lato sensu. Hoje, o debate do urbano no Brasil nunca esteve tão em disputa. Fala-se muito em cidades digitais, na Agenda 2020, 2030 da ONU, que são pautas importantíssimas, mas que precisam estar muito bem casadas com nossas agendas prioritárias. Precisamos lembrar que o Rio de Janeiro, a segunda maior capital do Brasil, tem 50% dos seus domicílios sem água e esgoto, e não temos ainda uma agenda concreta de eliminação dessas desigualdades territoriais.

HBH: Você já era do IAB?

Tainá de Paula: Sim. Já era associada do IAB, já era conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, mas não bastava – aí entendendo o IAB – como um campo de produção desse pensar da cultura da arquitetura e do urbanismo, portanto, um lugar estratégico.  Quais são os desafios dos arquitetos do Rio de Janeiro hoje? Os interesses privados ou os interesses da população?

HBH: Como foi essa agenda no passado?

Tainá de Paula: Me incomoda, por exemplo, num passado recente, ter dado uma medalha para o [José Mariano] Beltrame, outra para o Sérgio Cabral. Temos um processo grande de militarização de territórios que tiveram sua agenda urbana, econômica, social atropelada pela lógica necropolítica e genocida de estado. Chegou a hora da gente inverter essa balança e fazer parceria direta com a sociedade civil. O período lulopetista estabeleceu a agenda urbana, a partir do planejamento urbano, de um ministério. Isso acabou pelas mãos do Bolsonaro. É importante que a gente fale isso. Um dos primeiros atos públicos de Jair Bolsonaro foi a eliminação do Ministério das Cidades. Disse Bolsonaro: “Eu não quero falar, nem saber de cidade.” Então, ele nos coloca à própria sorte, nos condena a trabalhar nas cidades por conta própria. E esse estar por conta própria nos coloca em um lugar sem financiamento, recurso, amparo, e sem respaldo legal, jurídico e administrativo. Nos reposiciona na direção de um enfrentamento de território. Essa nova agenda urbana não começa pela via institucional, começa pela sociedade civil. O que essa sociedade quer? O que essa periferia está querendo? Precisamos fazer um novo chamado. Precisamos reaglutinar fluxos.

HBH: As associações de bairro ainda têm algum poder?

Tainá de Paula: Estão totalmente dominadas pela milícia. Nesse sentido acho que a formação de favelados é da maior importância. Eles precisam ser capacitados, empoderados e vocalizados no lugar de promoção e divulgação da sua nova agenda.

HBH: No IAB existe a prioridade com a arquitetura social?

Tainá de Paula: É uma disputa. O Conselho é bem plural, tem quem defenda o mercado privado, os interesses imobiliários, e quem se preocupe mais com as questões sociais. Mas existe um entendimento claro que nos une de que é preciso fazer alguma coisa porque ou a gente faz agora, ou é destruição da cidade, e ninguém quer isso. Tenho feito um caminho de estruturação, uma rede de entidades que até então jamais tocariam nesses problemas, mas que hoje se preocupam É importante aproximar arquitetos de engenheiros, aproximar arquitetos de técnicos, aproximar arquitetos do mercado da construção civil, aproximar sobretudo da vida cotidiana da sociedade enquanto elemento de potência na discussão da nova cidade que queremos.

HBH: Esse é seu pontão.

Tainá de Paula: Esse é meu pontão. O segundo pontão que eu acho que também é muito importante, mas não necessariamente vai reverberar a curto prazo, é a formação. É disseminar conhecimento, fazer imersão, formar mais arquitetos periféricos. Além disso, há necessidade de uma reflexão ontológica, epistemológica, teórica sobre as narrativas do saber hoje instituído. Com todo o meu respeito pelos catedráticos e pelas ideias clássicas que temos nas faculdades de arquitetura, o clássico já não nos sustenta mais. E acredito que temos muito a contribuir com os processos de construção nas favelas, que, na verdade, há dois séculos promovem a moradia para milhões e milhões de pessoas.

HBH: Esses processos são geralmente muito criativos e originais. Alguns deles são 100% inovação e deveriam ser levados mais a sério… Isto está na sua pauta?

Tainá de Paula: Está super em pauta. Na verdade, eu não coloco nada em pauta, coloco em disputa, porque é mesmo uma guerra. A gente precisa falar da cidade que queremos no século XXI. No Rio de Janeiro, 70% da distribuição de energia elétrica é informal, ou tem algum grau de irregularidade. A gente precisa dar conta disso e de temas similares….

HBH: Temos massa crítica para essa pauta?

Tainá de Paula: Sim. Hoje, temos à disposição uma expertise de no mínimo cinquenta anos de favela, de arquitetura de favela. Temos nomes exemplares como Sérgio Magalhães, Pablo Benetti, [João] Carlos Calafate, Luiz Carlos Toledo. Não desmerecendo a expertise que a gente acumulou, tenho que admitir que a agenda institucional que criamos não deu conta da reflexão sobre cidades que deveríamos ter construído. Eu, por exemplo, faria hoje um projeto para a Rocinha diferente daquele que fiz em 2007. É importante que a gente tenha a dimensão dos saberes e entendimentos que esses territórios têm e que não cabem na institucionalidade da governança, o que às vezes não é levado em conta.

HBH: Saberes que expressam competências.

Tainá de Paula: Claro. Não teríamos hoje condições para construir moradia para todos os favelados. A gente precisa falar disso. Por outro lado, foram os favelados que construíram suas próprias casas. Quando a gente fala, por exemplo, um termo que eu abomino, que técnico fala muito: “Nós precisamos desfavelizar o Rio de Janeiro.” Querido, olha só! A favela é um bairro popular autoconstruído e autogerido. E muitas vezes o Estado nunca passou lá. É como se você convidasse alguém para sua casa e dissesse assim: “Esta casa aqui não condiz com você. É inadequada. Vamos demolir esta casa.” Você gostaria que alguém falasse isso para você? É importante entender que a favela já é uma solução, haja vista que é uma solução melhor do que a que a gente estabeleceu, que é a não construção de casas, porque o Estado não constrói casas.

HBH: E o Minha Casa, Minha Vida?

Tainá de Paula: O Minha Casa, Minha Vida é parte de uma solução equivocada. O Minha Casa, Minha Vida replicou um modelo que foi construído pelos IAPs [Institutos de Aposentadorias e Pensões], nos anos 1930, depois com o BNH [Banco Nacional de Habitação], na década de 60, e depois da Meu Lote, Minha Casa, em Sepetiba, Cidade de Deus, Favela-Bairro, e agora o Minha Casa, Minha Vida. A ampliação do perímetro da cidade e a pulverização, o expurgo de pobre para áreas periféricas, não é a solução da cidade. A gente precisa pensar primeiro na construção de cidade e depois nos seus equipamentos. Não seria mais interessante reunir e urbanizar São Cristóvão, Jacarezinho e Manguinhos, estabelecendo conjuntos habitacionais nessas áreas já consolidadas da cidade?

Minha Casa, Minha Vida é um programa econômico, não um programa habitacional. Era importante dar conta do aquecimento do setor imobiliário, do aquecimento da construção civil. Então, quando o banco entrega um dinheiro praticamente a fundo perdido para o especulador, para o construtor, ele vai querer extrair o máximo daquele recurso. E isso resulta fatalmente em construções péssimas. Péssimo material, arquitetura lixo.

HBH: Vocês têm alguma proposta nesta direção?

Tainá de Paula: A proposta é a gente repensar, estabelecer uma pausa total nos projetos habitacionais e conseguir dar conta do gargalo de cidade que foi construído no passado. É importante frear a ampliação da cidade. O que é preciso estabelecer é: como a gente dá conta da ocupação do Porto Maravilha, onde foram investidos bilhões de reais? Precisamos de todas as classes ali representadas.

HBH: Seria como aquele projeto de mistura de classes de Paris, é isso?

Tainá de Paula: Claro. Foi feito ali um investimento pesado em mix social. Num bairro como Montmartre, por exemplo, você tem todas as classes sociais e todo tipo de empreendimento. É a minha tarefa. Estamos tentando convencer a CDURP [Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto] de que é a única maneira possível de ocupar o Centro.

HBH: Eu acho essa a melhor solução.

Tainá de Paula: Tem uma legislação também muito interessante na Colômbia, que tem desde o ponto de vista da terra – a Lei 70 – até o ponto de vista dos empreendimentos imobiliários. Não é permitido haver domínios raciais na cidade, que é o que acontece no Rio de Janeiro. No mapa racial Ipanema-Leblon, o número de pretos dá para ser contado nos dedos. A Colômbia fez um pacto na década de 1980 e instituiu a Lei 70, que basicamente é: tanto por cento de um terreno num determinado bairro tem que ser de propriedade de uma pessoa negra. É importante começar a perceber que a cidade tem que ser pensada e criada para todo mundo.

HBH: Como é o ensino de arquitetura na universidade brasileira?

Tainá de Paula: Importante falar sobre os saberes pluriversais da arquitetura negra. A universidade brasileira de arquitetura nasce no seio das elites na medida em que ela era quase um complemento da escola de belas artes, na época quase uma distração para uma elite colonialista que se mudava para os grandes centros urbanos ou como complementação de uma determinada formação. Por exemplo, se você fosse artífice ou engenheiro era bom cursar a faculdade de belas artes para complementar o seu saber. Após a revisão getulista é que começa a ser institucionalizado o saber técnico da arquitetura. Só que a arquitetura que era ensinada era a de uma escola modernista totalmente eurocentrada, cujo objetivo era a tecnicidade e a eficiência, desde o ponto de vista da metodologia de projeto até especificação de material, o detalhamento construtivo, enfim, uma estruturação de um saber da cidade que opera na lógica de que a arquitetura brasileira precisa ser substituída por uma arquitetura de excelência da técnica. Esse é um gargalo muito importante, já que excludente de todo o saber construtivo que o Brasil já tinha. A arquitetura moderna é caríssima do ponto de vista de manutenção. Não reponde à nossa realidade tropical. O movimento pós-moderno por sua vez não teve fôlego para enfrentar a favela, porque assumiu o norte do mercado da popularização, da hiperfabricação, hiperindustrialização dos materiais… Erramos radicalmente ao abandonar tanto nossos modelos arquitetônicos originais.

HBH: Você está falando da arquitetura negra, indígena ou portuguesa?

Tainá de Paula: Sim, porque a arquitetura eclética dos anos 1930-40 que vem do legado português e francês se constrói de estuque e óleo de baleia, que é um processo construtivo indígena. A arquitetura eclética que se misturou. Outro exemplo: a França tinha uma indústria de cerâmica desenvolvida. Mas aqui a construção lança mão de recursos similares aos indígenas, como vemos no caso do uso do óleo de baleira e conchas nos prédios de características belle époque no Centro do Rio de Janeiro.

HBH: Tem conchas nas construções do Centro?

Tainá de Paula: Sim, na maioria das fundações e das paredes. Mas o pensamento patrimonial brasileiro acha que isso é feio. Heloisa, Lucio Costa, a referência maior da arquitetura brasileira, mandou derrubar vários desses prédios porque ele achava menores. Ele derrubou o Palácio Monroe, que era do tamanho da Câmara dos Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro. Grandes legados patrimoniais foram destruídos. Na Praça Onze tínhamos um casario idêntico ao do Saara, aliás o Saara ia até a Praça Onze, e isso foi destruído porque a cidade que se queria era a cidade moderna, do carro, dos grandes prédios, da Presidente Vargas. Os tratados dos patrimônios falam muito sobre isso, que a arquitetura do Rio de Janeiro precisava ser vencida e ultrapassada, porque estava descaracterizando o futuro possível da cidade. A academia impôs esse pensamento, rebaixando durante anos o Zanine, o [Severiano] Mário Porto, o Lelé, que receberam enorme críticas nos seus exercícios profissionais.

 

Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart451453/cart451453.html

HBH: A missão da universidade, em princípio, seria um entendimento do Brasil…

Tainá de Paula: Por isso que eu acho tão potente entender e fazer brotar a arquitetura negra do Brasil, a arquitetura diaspórica. Existe hoje no Brasil um entendimento claro de que a arquitetura negra foi totalmente apagada, desde a arquitetura dos quilombos, das senzalas, dos lugares dos negros no Brasil. A gente tem um exemplo claro, que é o legado da Pequena África, no Centro da cidade. Temos dois milhões de corpos negros ali embaixo do que está sendo chamado de Pequena África. O Rio de Janeiro, na realidade, é uma Grande África, e a população é absolutamente desinformada. A academia não está fazendo o seu papel, que seria o da disputa arqueológica e arquitetônica daquele patrimônio. O resultado é um crime patrimonial. A Praça Mauá está plantada em cima de corpos. O então prefeito Eduardo Paes abriu, viu e plantou VLT e praças como se nada tivesse acontecido na cidade do Rio.

HBH: Aquele setor dos pretos novos é um exemplo.

Tainá de Paula: É um exemplo. Mas aquilo é a ponta do iceberg de uma coisa monstruosa. Seria importante olhar outros exemplos, como Berlim. Tanto o Museu do Holocausto quanto as indicações dos memoriais da cidade inteira sobre o genocídio são peças-chave e fundamentais para a discussão do novo marco civilizatório. Todo alemão, independente de sua classe social, sabe o que foi aquele genocídio. E aquele genocídio muito provavelmente é incapaz de ser replicado, por mais que existam neonazistas. Uma criança do ensino fundamental vai ao Museu do Holocausto e sabe o nome de todas as famílias nazistas. O Brasil, o Rio de Janeiro e o Centro do Rio de Janeiro, ao contrário, têm a tendência de homenagear com o nome de praças e ruas gente que foi dono de escravo, que matou gente. Bairros como Brás de Pina, [a cidade de Duque de] Caxias, são homenagens a figuras que escravizaram e cometeram crimes bárbaros, arrastando escravos acorrentados, arrancando braços e corpos… E não vão ser arquitetos e doutores brancos, nem as elites escravocratas, que vão fazer a disputa de narrativa simbólica e epistemológica desse empretecimento do saber das cidades.

HBH: Qual a extensão do patrimônio negro urbano brasileiro?

Tainá de Paula: Temos as casas de venda, costume, e, falando a partir de 1850 e da Lei de Terra, que também foi a Lei do Ventre Livre, que foi um marco na criação de uma leva de população negra alforriada, vamos ter a procura de moradia por parte dos alforriados em determinados lugares. Vão para o Centro, formando os cortiços. Os negros começam então a ter territorialidade de construções, como a primeira favela do Rio, que é a Providência, e uma série de favelas pretas que se estabelecem por conta da abolição da escravatura. As primeiras construções de favelas eram muito interessantes do ponto de vista de sua arquitetura. O quintal com janelas de madeira, com uma ambiência muito mais rica do que a arquitetura do capitalismo da pobreza proporciona hoje para o preto favelado.

HBH: O passado trouxe alguma expertise na área da construção?

Tainá de Paula: É importante lembrar que, quando os negros saíram da África, tinham expertise na construção de castelos. A arquitetura africana dos séculos XVII e XVIII é mil vezes melhor do que a arquitetura portuguesa dos mesmos séculos. A arquitetura negra mundial precisa ser estudada e precisa inclusive ser recuperada para a sociedade. Minha parte na pesquisa é conduzir novos referenciais porque o racismo e a branquitude operam nesse desaparecimento de referenciais. Mas precisamos construir um novo legado de referenciais no país.

HBH: Como se processa essa construção?

Tainá de Paula: Durante muito tempo, o urbanismo clássico brasileiro entendeu que o território para dar certo tem que ser pensado do zero. Se os modernistas quisessem um gramado, demoliam o que houvesse para construir o gramado. Entretanto, o território deve ser entendido à luz do que já acontece, e não do que gostaríamos que tivesse acontecido ali. O outro ponto é a eliminação da dinâmica centro-periferia. Existe um centro de economia, controle e de dinâmicas que acaba pautando o norte dessa periferia. Para mim o centro-periferia acabou. Eu vejo que a ideia de centro está numa construção quase distópica do meu pensamento futuro de cidade. Se os problemas não forem resolvidos para todos, serão fagocitados por esses próprios problemas. Penso no lixo, na agenda de infraestrutura, no colapso hídrico. É sustentável num país de Bolsonaro a gente pensar que toda a zona sul vai conseguir, de forma perpétua, comprar água? Não acho. O centro-periferia acabou. A agenda é uma agenda única. O mar vai ficar poluído para todo mundo. Essa dinâmica que nos conecta precisa ser colocada na frente da discussão urbana que a gente quer. Essa cidade que a agenda está pensando é exatamente a mesma da agenda do centro. Não tem privilégio na cidade. Ou ela é toda nossa, ou não será.


* Heloisa Buarque de Hollanda é escritora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/Letras/UFRJ), o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher & Universidade.

Entrevista
Tempo de leitura estimado: 28 minutos

A CIDADE COMO LUGAR DE ENCONTRO: ENTREVISTA COM SÉRGIO MAGALHÃES

Arquiteto e doutor em urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Sérgio Magalhães é professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ e diretor-presidente do comitê executivo do XXVII Congresso Mundial de Arquitetos. O evento, que ocorreria em julho de 2020 e nesta edição escolheu o Rio de Janeiro como capital mundial de arquitetura, foi adiado para 2021 devido à pandemia do coronavírus. Sérgio Magalhães foi secretário municipal de Habitação do Rio de Janeiro (1993-2000) e secretário de Estado de Projetos Especiais do Rio de Janeiro (2001-2002). Em uma conversa no dia 9 de março de 2020, o arquiteto revê os modelos de desenvolvimento urbano das últimas décadas, principalmente no Rio de Janeiro.

Heloisa Buarque de Hollanda: Sérgio, sabe o que seria legal, só para a gente ter um chão? Seria você dizer o que é cidade.

Sérgio Magalhães: A cidade é o lugar onde as pessoas têm a chance de se encontrar entre os diferentes. E isso é desde a origem. Lá no comecinho, muitos pensavam que a cidade resultava das necessidades econômicas. Hoje já está comprovado que resulta de outros tipos de necessidade. No caso, talvez, religiosas. E ela se mantém com isso, a cidade tem vitalidade quando oferece essa possibilidade.

HBH: Isso se perdeu?

SM: Em alguma medida, se perdeu. É interessante, porque o movimento moderno de arquitetura, que tem a sua base no final do século XIX, mas sobretudo na primeira metade do século XX, ante o grande desafio da cidade grande industrial, com as desigualdades gigantescas que tinha, passou a entender que a sua tarefa seria produzir cidades da igualdade. E, nessa cidade da igualdade, de certo modo, o espaço urbano não faria muito sentido, porque, se somos todos iguais, essa necessidade de interação se reduz. E, se examinarmos a cidade moderna, a cidade modernista de Le Corbusier sobretudo, e depois, digamos, a Brasília do Plano Piloto, nós perceberemos que temos áreas livres, temos jardins, mas pouco espaço, o que corresponde a esse ideário. Isso também foi apropriado muito facilmente, depois, pela especulação imobiliária no mundo todo.

HBH: O quê? Essa cidade da igualdade?

SM: O modelo da falta de espaço. Mas a da igualdade também, porque, se botar todos os iguais dentro dos seus condomínios fechados, não precisa. Em certo sentido, a cidade perdeu isso.

Perdeu também porque elas têm, hoje, muitos guetos pobres. Eu estive, na semana passada, em Campo Grande, fazia anos que eu não ia para lá. E o que me impressionou, além da decadência urbanística muito grande, foi a relativa naturalização daquela decadência, vista como algo normal. As pessoas não se dão conta de que não é necessário viver desse jeito, porque morar e viver lá é uma perda de energia brutal. Lá, na Baixada e nas outras cidades brasileiras. Não é só no Rio de Janeiro. As cidades grandes brasileiras estão em um processo muito triste.

Eu fui ver os “Pibinhos”, os PIBs anteriores, peguei os últimos sessenta, que é a série histórica que tem no IBGE, de 1961 para cá. E é impressionante, porque nas duas primeiras décadas desse período, de 60 a 80, as taxas somadas ano a ano chegam a 90%, o que dá uma média de 4,5% ao ano. E de lá para cá, nas quatro décadas seguintes, elas somam 18%. As quatro décadas são 18%, enquanto as duas primeiras somam 90%, o que dá uma média de 0,45%, um décimo do PIB per capita que houve nas duas primeiras décadas. E o interessante é que essas duas primeiras décadas correspondem ao final do período de grande explosão demográfica urbana, que começou pelos anos 40 e 50 e vai até o final dos anos 70. Então, nesse período de grande explosão demográfica urbana, o PIB cresce dez vezes mais do que nos anos seguintes, em que a explosão desaparece e a tendência das grandes cidades é a estabilidade demográfica. No Rio de Janeiro sobretudo. O Rio é a metrópole brasileira que menos cresce demograficamente desde os anos 80. E tende à estabilidade.

A ONU-HABITAT acabou de publicar um conceito que eu achei muito interessante, acho que vai ser muito útil. Um conceito chamado capital espacial. Esse capital espacial é correlacionável com o capital humano, capital financeiro, capital político. Ele é um conjunto de indicadores, mais de vinte, como questão de saneamento, de meio ambiente, entre outros, que dão um número que designaram por este termo: capital espacial. E o interessante é que eles, antes de divulgarem, fizeram um trabalho empírico em algumas cidades, cerca de vinte cidades. E esse trabalho empírico demonstrou que há uma correlação direta entre capital espacial elevado e desenvolvimento econômico elevado. E uma correlação direta entre capital espacial baixo e desenvolvimento econômico baixo.

Beatriz Resende: O saneamento entra junto nisso?

SM: Entra, entra tudo. Esses indicadores são muitos. O que nós, arquitetos, intuitivamente, dizemos sempre é que a cidade é essencial para o desenvolvimento, e agora há um indicador científico, digamos, para ajudar nisso. Essa estatística nossa, brasileira, de um PIB baixo em quarenta anos, corresponde a essa deterioração do sistema urbano brasileiro, que é um patrimônio gigantesco por conta do tamanho da população urbana, e, ao mesmo tempo, é uma degradação contínua. Todos nós sabemos o que significa, não vivemos, mas sabemos o que significa uma pessoa morar nesses lugares que nem são tão longe e trabalhar no Centro, na Zona Sul, e gastar quatro, cinco horas por dia. E voltar para lá por uma rua sem calçada, sem iluminação adequada. Que estímulo tem para a educação? Que estímulo tem para o aperfeiçoamento profissional?

HBH: Eu estava pensando, porque você começou a dizer que a cidade é um encontro. O que tem de encontro nessas faixas capitais, nessas periferias, é gigantesco, porque é uma sobrevivência, você faz uma rede de solidariedade e de encontro que é gigantesca.

SM: É, eu acho que tem, e isso está associado, no meu ponto de vista, com a autoconstrução. O Brasil tem 80% das casas que produziu sem financiamento, sem crédito nenhum. Tudo o que os governos construíram, tudo o que os bancos financiaram, a Caixa Econômica, bancos privados, institutos, tudo somado dá 20%.

A grande maioria das pessoas, eu pergunto sempre, tem essa consciência, mas as pessoas pobres, sem financiamento, sem acesso, e tendo que morar, elas constroem. Ao construir, elas levam um período longo e com enorme sacrifício. Isso constrói uma subjetividade, eu imagino. E quando essa subjetividade é compartilhada com outras situações equivalentes, cria-se ali um vínculo que dá uma identidade para aquele lugar, e que, portanto, se contrapõe, de certo modo, às exigências do capitalismo moderno, que pede para que as pessoas tenham uma mobilidade espacial absoluta, disponíveis para estarem em qualquer lugar a qualquer momento. Ele exige, e os Estados Unidos é campeão nisso, que a pessoa, ao mudar de emprego, possa mudar de estado, possa mudar de país, mas vai morar em um lugar muito parecido com o que morava antes. As casas são padrão, a comida é a mesma, os hotéis são iguais. O país oferece o anódino para que todo mundo possa estar em qualquer lugar sem ter sentimentos de pertencimento.

Essa ideia de pertencimento, na cidade, fica muito reduzida. Nesses lugares mais pobres, onde há uma relação diferente, o espaço público tem valores mais fortes do que onde ele é de ninguém. Eu acho que a cidade ainda vai precisar ter uma retomada disso.

HBH: Nova York conseguiu.

SM: É, Nova York conseguiu. E quando as pessoas daqui viajam, as pessoas que não dão bola para o convívio na cidade, elas vão procurar o quê? Elas vão procurar lugares onde elas caminham, e ficam encantadas com isso. A pessoa mora em um condomínio fechado, mora na Barra da Tijuca, mora no Plano Piloto de Brasília. A pessoa viaja para essas cidades à procura do que é de fato urbano.

HBH: Sérgio, qual seria o projeto, hoje, para a cidade do Rio?

SM: Hoje eu tenho a convicção de que o papel da Prefeitura original, o papel das municipalidades na origem, se perdeu entre nós. As cidades foram concebidas, desde a modernidade, depois que deixou de ser feudo, com a responsabilidade de orientar como ocupar o território. Como ocupar o que é público e como regular o que é privado. E nas nossas cidades, no Rio sobretudo, isso já foi perdido. Primeiro, considerando que no caso da favela seria provisório, transitório. Assim, já deixava ali sem controle. Sem controle urbanístico e, portanto, sem serviço. E depois isso foi crescendo, a cidade foi se expandindo, a cidade perdeu muito em densidade. É uma crise anunciada que se a gente não tomar uma decisão agora vai ser mais complicado.

HBH: O que é perder em densidade?

SM: É o seguinte. Quando o Rio deixou de ser capital, em 1960, ele tinha a cidade ocupada por 16 mil habitantes por km². Nesse momento, a cidade era estruturada por bondes e trens. Assim, as linhas de trem e as linhas de bonde eram o lugar preferencial para as pessoas terem a moradia e o trabalho. E elas eram o lugar onde as pessoas se concentravam. A partir dos anos 60, o trem foi abandonado, a população era de 3 milhões e o trem carregava, aproximadamente, um milhão por dia. Agora, quando houve a concessão, ele carregava 150 mil pessoas e a população tinha mais do que dobrado. E os bondes foram eliminados. Dessa forma, o rodoviarismo permitiu que a cidade se espraiasse, já não faria mais sentido aquela estrutura, que era mais rígida, pelos trilhos. E, com isso, dos 16 mil habitantes por km² em 1960, nós chegamos ao final do século XX com menos de 10 mil. Perdemos quase 60% de densidade. E a região metropolitana chegou a 6.500. O que nisso tem de ruim é que as áreas novas não têm acompanhado as infraestruturas necessárias. E o estado, a Prefeitura, não tomou conta. A função original dela ficou muito reduzida nas áreas formais anteriores. Com isso, teve toda a consequência que conhecemos hoje da bandidagem, da milícia, do tráfico, que, com a política ausente, o espaço é tomado. Isso é um dado. Para que a cidade tenha mais vitalidade, é preciso retomar os territórios. Pronto! Só que agora estamos ante um desafio mais complicado, porque parou o crescimento demográfico. O Brasil não cresce mais, o país todo, e o sistema urbano também não, que é 85% da população. E o Rio especialmente. O Rio está com 12 milhões e vai continuar assim.

BR: A média de nascimento é de um filho por família.

SM: Aí tem um problema mais complicado. Ainda que a população não cresça, e não crescerá, o número de domicílios vai aumentar mais do que a metade do que tem hoje. Hoje nós temos, na região metropolitana, 4 milhões, e nós vamos ter 6 milhões.

HBH: Por quê?

SM: Porque a família diminui de tamanho. E como a família diminui de tamanho, cada família é um domicílio. A população é de 12 milhões, e tem, em média, três pessoas por domicílio, são 4 milhões de domicílios. Ao final dos anos de 2030, nós vamos ser 12 milhões, se não diminuir, e vamos ter duas pessoas por domicílio. Então, em vez de 4 milhões, nós vamos ter 6 milhões. Se nós tivermos o mesmo modelo de ocupação do território que nós tivemos nesses últimos sessenta anos, que é expandir para onde não tem nada, nós vamos aumentar a miséria e reduzir mais a densidade, isso é um dado horrível. E tem um dado complementar péssimo também, que é, se a população é a mesma e se ela se desloca para a periferia, ela diminui nos lugares consolidados. Assim, os bairros consolidados, que têm qualidade, perdem população e, portanto, perdem vitalidade.

BR: O Centro, por exemplo?

SM: O Centro tem uma razão louca, que foi a proibição de construir casa e apartamento durante trinta anos. E esse desejo de ter cidades monofuncionais. Mas, agora, independente disso, o Centro vai continuar vazio, mas os bairros consolidados bons, se não houver uma reversão no modelo, o que é complexo, eles vão perder gente. Copacabana já teve 300 mil, hoje tem 150 mil. Ipanema perde, Leblon perde. As pessoas acham que é melhor ter menos gente, mas é pior. E não só é pior porque esse bairro perde vitalidade, mas porque aquele fenômeno que você falou antes vai se agravar, o recurso vai ser o mesmo ou menos. Para atender mais, mesmo que seja pouco, ele deixa de atender onde está atendendo hoje. A cidade toda perde. E o Rio de Janeiro, especialmente, fez uma política inédita, ninguém no mundo fez essa política, nem quando Nova York, nos anos 60, entrou em decadência. O que Nova York fez? Consolidou o centro.

HBH: Gentrificou tudo?

SM: Não gentrificou, não. Nova York construiu o World Trade Center. Em volta dele construiu o Financial Center. E aos poucos a cidade foi se recuperando. Paris também não gentrificou com o Haussmann.

HBH: Como não gentrificou?

SM: Porque aumentou a população. Não diminuiu, aumentou.

HBH: A Prefeitura incentivava a remodelação sem custos e botava a pessoa para fora.

SM: Individualmente, ocorre, mas, estatisticamente, não. Então, no caso do Haussmann, por exemplo, que dizem que gentrificou, Paris tinha um milhão de habitantes quando ele começou, e quando ele terminou, vinte anos depois, tinha 2 milhões. Tinha 800 mil pobres quando começou, em um milhão, e 1,2 milhão quando ele terminou, em 2 milhões. É claro que você está em um sistema em que você vende a sua casa por necessidade. Não vai conseguir algo equivalente naquele lugar ou próximo daquele lugar nas condições que você tinha. Vai para longe ou vai para o aluguel, não tem como repor aquilo. Mas, agora, o conjunto, a estatística, não diz isso. Enfim, nós estamos com essa questão urbana, que não é só no Rio de Janeiro, são todas as cidades brasileiras. E não são só as cidades brasileiras, o modelo é quase universal. É preciso haver uma mudança de paradigma, que só vai se dar com a conscientização sobre o problema, e não com a naturalização da desgraça.

HBH: A periferia está começando a ascender socialmente, já foi mais rápido e agora está desacelerado, mas a gente vê muitos na universidade. Essas pessoas vão para onde?

SM: Eu não sei se isso é assim mesmo, porque também aumentou muito a população na periferia. E tem estudos que mostram que, há duas gerações, os avós eram analfabetos, os filhos são alfabetizados e os netos já têm curso superior.

Bom, eu acredito que essa ascensão do neto na educação em relação ao avô – o Sennett mediu isso em Boston, naquele livro A corrosão do caráter, o [Peter] Collins também – não é um fator local, é um fator histórico.

HBH: Você pode falar um pouco mais sobre essa diferença?

SM: Isso é um fator histórico que o mundo acompanha. Ao você fazer a relação entre as coisas, não há progresso. Na casa da minha avó não tinha energia elétrica, na casa do meu pai teve e na minha tem internet. Estou fazendo uma hipótese. Se você perguntar para a minha avó se melhorou a vida. Claro, não tinha energia elétrica e agora tem. Mas todas as cidades passaram por isso e nós não passamos na dimensão que precisaríamos passar. Nesse sentido, nós estamos evoluindo menos do que o mundo evoluiu. A percepção pode melhorar individualmente, mas, no contexto, não.

BR: Esse exemplo da água que você deu é muito bom, a questão do saneamento. Quase metade da população não tem, o Brasil não tem saneamento.

SM: Isso é um absurdo. E se você vai para a Baixada, lá a água é absolutamente intermitente. Às vezes [o morador] passa duas semanas sem água, qualquer que seja a qualidade dela, não tem. E, do ponto de vista do desconforto, isso custa energia. Isso custa dinheiro, porque a água comprada em galão é mais cara do que a água encanada. O gás custa mais caro, porque a dominação territorial impõe um preço com sobrepreço. O aluguel custa mais caro. A venda do imóvel paga uma percentagem mais alta. Então, há todo um grau de perdas que a população pobre passa que está naturalizada para ela e está oculta para nós. Nós estamos absolutamente à margem disso.

HBH: Você diria que há um impacto forte da educação na cidade, no urbanismo? Uma política educacional melhoraria a cidade? Como?

SM: Sim, eu acho que sim. Seria um absurdo eu achar o contrário. Acho que a educação é essencialmente consciência. A educação faz ver as coisas de um modo diferente, dá para comparar as coisas, dá para ver as diferenças. Pressupõe-se que a educação seja para isso. É importante para a cidade, para a vida, para o país. Agora, o que eu falei antes, sobre a naturalização dessas dificuldades da periferia e essas dificuldades estarem ocultas para nós, na Zona Sul, nos bairros melhores, bem servidos, isso é um absurdo. E isso eu acho que a educação, tanto aqui quanto lá, tem que fazer a diferença.

BR: Essa falta de consciência aparece, inclusive, no momento das eleições, porque saneamento, projetos como esse de água, não dá voto.

SM: Eu acompanho, há uns vinte e tantos anos, mais ou menos, eleição por eleição. Nunca o tema da cidade entrou na pauta. Em nenhuma eleição, seja federal, estadual ou municipal. Nunca. Só entra educação, saúde e segurança. E fofocas entram muito também.

Agora, por exemplo, nós estamos em uma cidade como o Rio de Janeiro, que eu sempre considero que tem que ser vista em sua dimensão metropolitana, dos 12 milhões. Ela não tem, desde que acabou com a FUNDREM [Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro], no governo Moreira Franco, há trinta e tantos anos, nenhum sistema de planejamento. E no município do Rio de Janeiro, há muitos e muitos tempos, eles desconstruíram, também, o sistema de planejamento. Se você pegar as regiões metropolitanas brasileiras, uma ou outra tem alguma coisa incipiente. Essa noção de planejar está abandonada. Você vai para as grandes cidades do mundo e isso é algo forte.

BR: A mobilidade urbana também. A rede de trem é basicamente a mesma desde sempre.

SM: De tudo, vou mostrar para vocês no mapa. Aqui está o centro da cidade, daqui saem três linhas de trem. A primeira é a Leopoldina, que vai para a Baixada, em direção a Caxias. A outra, que é a Deodoro, que vai até o final, até Santa Cruz. E, depois, a intermediária, que é auxiliar, e que vai em direção a Nova Iguaçu. Essas três linhas de trem estão sucateadas. Elas têm uma possibilidade de se transformarem em metrô por um preço baixíssimo. Você vai ver as estações como estão, não têm o menor conforto, não têm a menor possibilidade. Elas estão lá desde os anos não sei quanto e continuam. Agora, quando foi feita a Olimpíada, em Deodoro tinha um foco de Olimpíada, depois tinha no Engenhão, no Maracanã e no Sambódromo. Isso tudo somado dava mais público do que o que construíram na Barra. O que fizeram? Só melhoraram as estações diretamente vinculadas a esses quatro lugares. As outras 24 estações ficaram do jeito que estavam. No entanto, se você transforma essas linhas por um preço vil em metrô, você passa de 500 mil passageiros por dia para, pode-se chegar, 2,5 milhões. Dois milhões e meio, [ou seja,] você atende a 70% da região metropolitana. E vou dar um preço, só para ser generoso com os que tomaram a decisão, isso poderia ser resolvido por menos de 3 bilhões de reais. Eles gastaram 10 bilhões para fazer, daqui para a Barra, o metrô linha 4. E ainda têm orgulho de dizer que é a maior linha do mundo. Um metrô de linha única, que não tem rede. Que metrô é esse?

Essa falta de planejamento faz com que o governador do estado, na mesa dele, decida com o empreiteiro por onde vai passar o metrô. Foi o que foi feito e declarado, tanto pelo Sérgio Cabral quanto pelo dono do metrô.

Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart209819/cart209819.html

BR: E não abriu a da Gávea.

SM: Não abriu a da Gávea porque já não interessava mais, já tinha feito o serviço que precisava fazer, que era botar o túnel, que é a coisa mais barata que tem. Dá maior rendimento e é mais fácil de fazer. Então não é a falta de dinheiro, mas não há um planejamento que passe de um governo para o outro.

HBH: Sérgio, e sobre o encontro? Para onde foi na cidade? Como se recupera a sociabilidade?

SM: Ela mudou muito. Ela tem vários outros instrumentos que não havia antes. A parte tecnológica, que eu não tenho dúvida que é importante. As informações que vêm por outros canais, como televisão, rádio, e que na cidade convencional original não tinha. Isso tudo acresce, enriquece, mas, ao mesmo tempo, ela é muito canalizada. Tanto que esses sistemas de rede social, como o WhatsApp, dão uma chance enorme para a briga, porque quando não se está frente a frente não há entonação. Então, de certo modo, é um instrumento de sociabilidade e tem [os seus problemas], não estou culpando-o.

HBH: O que está acontecendo nesses espaços como praça Mauá? Esses lugares que seriam as praças, lugares do encontro. Essa função foi recuperada?

SM: A praça Mauá melhorou extraordinariamente. Nela, com certeza, embora a praça Mauá seja uma relação em que a pessoa vai lá para ver o museu e coisas assim, mas, de qualquer modo, é muito mais enriquecedora do que era antes. Isso eu não tenho dúvida. E vai melhorar.

HBH: E o Porto Maravilha?

SM: O Porto também. Acho que o grande legado foi derrubar aquela perimetral.

HBH: E os projetos de edifícios ali? De residências?

SM: É um projeto de quinta categoria. Um projeto urbanístico, no século XXI, que é absolutamente convencional, repete o que estava lá, perdeu uma oportunidade gigantesca.

HBH: Como deveria ser?

BR: Também tem o fator Odebrecht, que inclusive criou a sede ali, um prédio que hoje está vazio.

SM: O fator Odebrecht é o fator corrupção. O Porto deveria ter um desenho urbanístico contemporâneo, o que não teve.

HBH: Como é o desenho contemporâneo?

SM: Primeiro, não é monofuncional, tem que misturar funções. Depois, sob o ponto de vista do espaço, também, porque não se pode criar grandes edificações e não dar uma relação conveniente com o espaço público vizinho. Há inúmeros exemplos mundo afora. Aqui no Rio mesmo, quando houve a Olimpíada, nós convencemos o prefeito, que na época era o Eduardo Paes, a não levar tudo para a Barra, fazer a vila de mídia no Porto. E fizemos um concurso [para selecionar terrenos] de 17 hectares, [encontramos] mais ou menos 110 locais capazes de ser ocupados. Dezessete hectares seriam para esse projeto, que envolveria 5 mil unidades habitacionais, mais escritórios, hotel, centro de convenções. Foi feito o concurso e foi uma maravilha de resultado, foram quatro vencedores. Hoje a qualidade urbanística ficou evidente, era uma coisa muito superior, [mas] aquilo mixou, não foi para a frente, porque a especulação imobiliária para a Barra é absolutamente desenfreada.

Em segundo lugar, para hipervalorizar o que eles queriam fazer, eles colocaram edifícios de cinquenta pavimentos, quinze edifícios de cinquenta pavimentos. Naquela ocasião não havia nenhum edifício de cinquenta pavimentos no Brasil. Hoje tem em Camboriú, mas não tinha. E eu falei para ele, tive uma reunião com ele e com o secretário, eu disse: “Olha, prefeito, eu não sou contra edifícios de cinquenta pavimentos, cem, duzentos, não estou falando sobre isso, mas acho que é temerário, não havendo nenhum edifício de cinquenta pavimentos, projetar cinquenta, e esses cinquenta serem a base desse desenvolvimento.” Aí o secretário de urbanismo disse: “São cinquenta pavimentos, mas não é obrigatório ter, pode ficar menos.” Então, você acha que você vai vender e a pessoa vai construir menos? Conseguiu vender o projeto todo para a Caixa Econômica. E a Caixa Econômica, então, criou o tal do Cepac [Certificado do Potencial Adicional de Construção], e, com ele, a Caixa Econômica ficou com um mico na mão, que hoje é um gorila, porque não tem economia urbana para fazer aquilo ir para cima. O que teria de habitação não paga o preço dos Cepacs. Então, ou a Caixa Econômica vai ter que chegar em um momento de reconhecer o prejuízo ou vai ficar isso indefinidamente. E se, por acaso, o [projeto] for construído, não vai acrescentar nada, porque vai continuar um modelo monofuncionalista.

BR: E o gabarito foi alterado mesmo?

SM: Não, o Rio de Janeiro tem uma peculiaridade que ainda prevalece em alguns bairros, que é o continuum construído, seja de quatro pavimentos, como era em Ipanema, seja de oito a doze, como é em Copacabana, ou no Centro, naquela zona do Agache. E isso determina um tipo de cidade. Nos anos 60, para depois, se achou que isso era muito impositivo, muito autoritário. E que deveria ser responsabilidade de cada produtor de edifício ter o melhor edifício possível. A legislação praticamente aboliu esse continuum construído e deu autonomia para o lote. Isto é, o lote mede 20×50, então se afasta aqui e lá e constrói o edifício solto. Esse edifício solto é de muito interesse para a especulação imobiliária, e São Paulo começou a ser o manancial disso. Esse modelo urbanístico paulista é hoje hegemônico no Brasil. Nas cidades brasileiras, se sobrevoarmos elas, podemos ver um edifício alto que não tem nada a ver com o entorno. E até que ponto isso tem a ver com a política brasileira? Até que ponto o continuum construído e a definição do espaço público como orientador das construções têm a ver com um certo grau de interação com a política? Ou, do outro lado, como o espaço público, sem ser definidor daquela condição, mas sendo subalterno à iniciativa privada do edifício, tem a ver com a política do toma lá dá cá, com a política do seja o que bem quiser, com a política do indivíduo? Essas coisas não são soltas. A arte, a cultura, a arquitetura, a política, a economia. Elas estão no seu tempo. Eu acho que o Rio de Janeiro perdeu essa condição. E não foi vantajoso para o país.

BR: Eu gostaria que você retomasse essa questão referente ao espírito carioca, que você já falou que pode renascer.

SM: O espírito carioca é isso. Ele é construído no espaço público. Aí também tem um fator de muito interesse que é que, até o final do século XIX, o mar era um lugar chato, um lugar perigoso, cheio de doença, o lugar do lixo. As cidades em geral eram construídas de costas para a água. E o Rio também. Quando o mar passou a ser um lugar de prazer, que a cidade se volta para ele, surgiram aqueles resorts na França, na Itália. No caso do Rio de Janeiro, com Pereira Passos, ele constrói a relação viária entre o Centro e a Zona Sul, que estava em expansão, mas ele não constrói essa relação viária, que seria o razoável, aproveitando os caminhos existentes e alargando-os. A rua do Catete, Marquês de Abrantes, entre outras. Ele constrói a via Beira-Mar, como a constrói definindo a praia como local público e livre, de acesso geral. E Copacabana, que nos primeiros momentos não tinha isso, passou a ter. Então, ao criar esse sistema, ele criou um espaço público de interação totalmente livre, que é a praia. Um lugar onde as pessoas se despem e seus símbolos originais se perdem. Assim, cria-se uma subjetividade também especial, cria-se um espírito especial, que ainda tem força e que foi capaz de fazer com que as praias brasileiras fossem, por lei, públicas. Nós podemos ter praias não públicas, mas é uma contravenção. O Rio é a metrópole mais importante à beira-mar, o ano todo disponível, e a praia é um lugar democrático, não tenho dúvida. Ela hoje está muito loteada, mas continua sendo um lugar democrático. Isso constrói um espírito diferente.

Outra questão, também, para o Rio de Janeiro, e Pereira Passos tem a ver, é que as cidades constroem as suas identidades a partir de situações [que acontecem] aos poucos. Se a gente identificar Paris hoje, nós vamos identificar pela Torre Eiffel. Paris tem 2 mil anos, a Torre Eiffel tem cento e poucos. Se pegar Nova York, a imagem ambiental dela é do século XX, que são os arranha-céus. O Rio de Janeiro tem a identidade coletiva determinada pelos grandes elementos geográficos ao longo de toda a história. E as construções se associam a esse fenômeno geográfico e entram em simbiose, sobretudo depois que é construída a Beira-Mar, porque a relação passa a ser muito mais clara entre o que está de pano de fundo e a cidade que se coloca junto ao pano de fundo.

A identidade carioca é também uma situação muito peculiar, porque, da Zona Norte toda até a Zona Sul, você é pontuado por referências que são permanentes, que não mudaram ao longo de cinco séculos. E isso se passa de uma geração para a outra de um modo efetivo. O espírito carioca tem peculiaridades que são difíceis de encontrar em algum outro lugar, porque se somam a esses elementos permanentes, que constroem, ao mesmo tempo, a imagética da cidade e da metrópole, espaços que têm uma qualidade ímpar. Não é só a rua, não é só a praça Mauá, é o espaço livre da praia. Isso a gente valoriza pouco, de certo modo. A gente naturalizou.


* Beatriz Resende e Heloisa Buarque de Hollanda são editoras da Revista Z Cultural.

resenha
Tempo de leitura estimado: 6 minutos

UMA DISTOPIA CRÍTICA CHAMADA BRASIL

Tendo por força geradora uma frase de Bertold Brecht, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018, Global, 372 pgs.) é o décimo primeiro romance publicado por Ignacio Loyola Brandão – escritor longevo cujo fôlego de produção é admirável, tendo ao todo, entre escritos ficcionais e não-ficcionais, 46 livros publicados. Ficção científica-política, ao mesmo tempo, futurista e distópica, Desta terra nada vai sobrar pode ser referida como uma ópera-bufa sobre toda e qualquer utopia de nação como promessa de felicidade.

Desde tempos modernos, a crítica utópica de nação tem sido projetada por certa ficção fantástica produzida no Brasil de modo sui generis. A este respeito, o poeta Murilo Mendes chegou a certa vez afirmar que o Brasil seria mais surrealista que todos os surrealistas juntos. Vale também lembrar o livro Quarup (1967) de Antonio Callado que retrata o centro geodésico da nação brasileira como um formigueiro. Por sua vez, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, ao descrever o país numa crônica da primeira metade do século XIX, chegou a afirmar. “Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros”.

Igualmente associável a certo universo do fantástico, esta ficção brandoniana narra o cenário de um país cuja existência não mais é capaz de impor limites entre a realidade e a invenção. Ambientada nas últimas décadas do século XXI, a peça ficcional Desta terra tem ecos de certa trilogia da distopia presente no romance moderno através de: Admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932), 1984 (1949) de George Orwell e Fahreineit 451 (1953) de Rad Bradbury. De outra forma análoga, Desta terra nada vai sobrar também pode ser lida como o fim da trilogia distópica de Ignacio Loyola Brandão sobre o Brasil, que se inicia com Zero (1975), passa por Não verás país nenhum (1981), até chegar a este livro de 2018.

Narrada num futuro em que nenhuma utopia mais faz sentido, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela é do mesmo modo filha de outra trilogia distópica referente aos seguintes filmes: Roma (1972) de Federico Fellini, Blade Runner (1982) de Ridley Scott e Brazil (1985) de Terry Gilliam. Com satélites e câmeras por todos os lados, a inventiva narrativa de Desta terra é produzida em primeira e terceira pessoas, tendo por cenário um mundo super vigiado de tecnologias virtuais. Num país periférico de presidentes-fantasmas, painéis eletrônicos sobre ruínas de edifícios despejam excessos de informações por paisagens em esgotamento: são máfias de paparazzos e papa-defuntos, musas de sorrisos plastificados e cafés descafeinados, falsificadores de água e estocadores de vento, postos de inconveniência e uma rodoviária kafkiana de nome “Gregoriano Samça”, padres voadores e cabeças erguidas em poses prontas a serem invejadas e fotografadas. Sobram sonhos quebrados, pedaços de utopias espalhadas e lamentos urbanos a serem transmitidos por nebulosas de telas prismáticas.

Originando-se pela epígrafe euclidiana de “Novas fases da luta” de Os sertões (1902) que discorre sobre certa normalização da anormalização, passando por Brasília (“uma tigela cheia de escorpiões”) até as montanhas de palavras fiscalizadas e exauridas, o Brasil desta supracitada peça ficcional é uma terra tão inexata quanto a palavra de um político. Mas, de que Brasil fala Ignacio? Desencantado, terceirizado e cronicamente inviável, o Brasil de Ignacio Loyola é a fotografia abismal de um território flutuante e itinerante de antagonismos beligerantes; um “país dos eternos descontentes”, “um país que não se move, medieval”. Num universo pós-político de uma nação cuja extinção do ensino público é iminente, o Brasil de Desta terra nada vai sobrar pode ser lido como a própria exaustão das grandes narrativas de país. A partir de um livro como este, a única forma possível de qualquer representação nacional passa a ser tão somente pela via do fragmentário e do entrópico.

Com quase nada mais presente a não ser o vento que sopra sobre ela, a terra brasileira de Desta terra é descrita como um território semiarruinado de projetos, uma pátria subtraída até mesmo das manifestações populares. Muros eletrificados e torres de vigia resguardam a sua paz. Por sorte ou por propina, seus golpes institucionais e consecutivos impeachments (palavra já naturalizada e epistolar) se sucedem por bastidores de patrulhas inquisitórias, exorcismos televisivos, queimas totais de espaços superfaturados e novas dinâmicas liberais de cóleras comerciais. Domesticados por marqueteiros e anestesiados por décadas de cadáveres sobre cadáveres, os brasileiros de Desta terra são narrados sob o ponto de vista de um narrador em terceira pessoa e, simultaneamente, por Felipe (protagonista da trama romanesca que envolve a busca jamais satisfeita pela amada/amante Clara) como seres monocórdicos entretidos por meias-verdades de farsas históricas e políticas.

Contextualizada numa nova era de extremos, por entre muros, placas, banners, posters, letreiros e outdoors de um sonho de nação a todo momento em liquidação, o Brasil de Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela só é apreensível fortuitamente sob o signo do mistério dos mistérios: – “O Brasil foi catalogado entre os grandes enigmas de todos os tempos. Um desafio. Mistérios como a mente inacessível dos juízes; a existência da Atlântida; a realidade do sorriso da Mona Lisa; a vida depois da morte; as vozes gravadas no além; as duas notas dissonantes jamais percebidas na Sinfonia número 4 – Opus 60, de Beethoven; o cemitério das estrelas cadentes. (…) Consultorias históricas de renome internacional, aliadas a brasileiros de bom senso, contrataram auditores analistas, mas eles embarcaram de volta, exaustos e perplexos, confessando que não há conclusão. Desolados, afirmaram que, mesmo usando modernos métodos e toda a tecnologia de ponta, jamais definiram que tipo de povo o brasileiro é, como conseguiu formar uma nação, o que esse povo quer, como age e vive. São desconhecidos seus projetos e sonhos e por que mantém tanto humor, picardia, talento repentista, ironia e aceita tudo. Principalmente por que e do que vive. Uma coisa é segura, todos vivem à espera do que vai acontecer, sabendo que nunca acontecerá.”


* Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor e pós-doutorando pelo PACC\Letras da UFRJ, tendo publicado, entre outros: Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras) e Máquina de fazer mar (2016, 7Letras).