Entrevista
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A CIDADE NÃO É O QUE SE VÊ DO PÃO DE AÇUCAR: COM Vera Follain de Figueiredo

Professora associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Vera Lúcia Follain de Figueiredo é autora de Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea (2003), livro fundamental sobre a obra do autor de A grande arte e Feliz ano novo. É ainda autora de Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema (2010) e Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana (1994). Nesta entrevista, feita no dia 16 de abril, um dia após o falecimento de Rubem Fonseca, Follain de Figueiredo revisita algumas das principais características da obra do escritor e comenta a relação do escritor com a cidade e com o cinema.

Rubem Fonseca em 2009 (Zeca Fonseca/Divulgação)
Rubem Fonseca em 2009 (Zeca Fonseca/Divulgação)

Beatriz Resende: Eu gostaria de começar com uma provocação, da própria ironia de morrer o autor do conto maravilhoso que é “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”. Hoje mesmo aparece em depoimento da Helô [Heloisa Buarque de Hollanda], no jornal O Globo, que ele tinha vários bonés e andava [pelas ruas do Rio].

Vera Follain: Acho que é um bom começo pensar nisso, realmente, como uma ironia da sorte. Ou então, quem sabe, esse andarilho se abateu no confinamento. Isso pode ter algo a ver com a partida dele. Mas a gente tem que lembrar que ele tem um conto, “O ciclista”, que também remete para este nosso momento da pandemia, em que a gente vai à janela e vê o pessoal dos serviços essenciais entregando comida, remédio, se deslocando em motos e bicicletas. E, nesse conto, que é de Amálgama, um dos livros mais recentes [2013], o narrador é um rapaz que trabalha com uma bicicleta, entregando produtos de uma loja virtual, e diz que fica impressionado, porque as pessoas estão na cidade, mas não sabem olhar a cidade. Saber olhar a cidade, para ele, é perceber as cenas de violência que estão acontecendo a todo instante, simultaneamente, e tomar uma atitude. Ele intervém em cenas de violência, atropelando com a bicicleta, por exemplo, um homem que espancava uma criança. Então, temos esse personagem que percorre a cidade de um canto a outro, como está acontecendo tanto agora, e o conto nos faz olhar a cidade com os olhos desse ciclista.

Lucas Bandeira: Eu tenho a impressão, lendo o Rubem Fonseca, de que há uma ambivalência entre um lado meio romântico e esse lado da violência. E na relação dele com a cidade tem muito isso. Como essas duas cidades existem na obra dele?

VF: O romântico tem esse lado da idealização, mas ele não está desconectado da realidade. É muito frequente o romantismo ter uma face de amargura. Você idealiza, não encontra o que idealizou e se torna amargo. Eu acho que, na ficção do Rubem Fonseca, os personagens são muito assim. Aqueles detetives irônicos, amargos, mas de repente, exatamente como você disse, percebe-se que eles têm uma dimensão idealizada, ou do outro ou da cidade, que gostariam de ver, de alguma forma, realizada, e isso não ocorre. Os personagens dele têm muito esse traço da amargura romântica, vamos dizer assim. Como dizia o Lukács, o homem autêntico em um mundo de valores inautênticos.

Mas no caso do personagem do Rubem, esse “homem autêntico” tem que ser entre aspas, por causa da relativização das certezas: ele é também alguém que desliza, que é descentrado, em termos de valores, da ética. Tem sonhos, pretensões de autenticidade, mas não é o homem autêntico tal como descrito pelo Lukács. Ao contrário, é um homem ao mesmo tempo nostálgico e cético, que se depara, a todo instante, com a relativização dos critérios que lhe permitiriam julgar-se e julgar o que se passa ao seu redor.

BR: Fala um pouco mais desses personagens, como o de “O cobrador” [1979].

VF: Eu estava pensando hoje, a partir de um artigo que eu tinha escrito, sobre esse homem comum que é o personagem do Rubem Fonseca. O próprio escritor se desdobra em vários homens comuns. Daí a maneira como ele brinca com o próprio nome. Rubem Fonseca é o nome do autor, no sentido de quem assina a obra, mas ele se chama José Rubem Fonseca e o “José” se desdobra em vários “Josés”. São diversos Josés, de todos os tipos, violentos, pacíficos, quase santos, golpistas, justiceiros etc. O tempo todo transforma o próprio nome em um substantivo comum, qualquer pessoa é um José. Deixa de ser um nome próprio. Eu acho que isso tem a ver com o olhar peregrino, com a enunciação peregrina que é marca registrada da literatura dele, que busca dar voz a esses homens comuns, a esses infinitos Josés, que são frequentemente vítimas da injustiça social, excluídos. Ele focaliza e prioriza essas figuras.

No caso de “O cobrador”, que é um conto impactante, impossível de esquecer, é um José que cansou de ser explorado, de ser excluído. Então, ele sai para cobrar. Mas há também contos em que o José é violento, vai cobrar, e no meio do desenvolvimento da história ele muda, se apieda daquela que seria a vítima. Ele compõe um painel que não tem centro, os personagens se deslocam, se transformam. Esse homem comum está sempre aberto para a vida, para mudar.

Sobre essa questão das injustiças sociais e da exclusão é importante falar um pouco mais também. Recentemente, ele publicou um conto sobre sapatos, que está no Axilas e outras histórias indecorosas [2011], que eu gosto de citar para mostrar a permanência, ao longo do tempo, dessa preocupação com a desigualdade. Quero me referir bastante aos contos mais recentes, porque os contos mais famosos, mais conhecidos, já foram muito discutidos. E é importante também falar da obra recente para a gente questionar aquela história de que a partir de determinado momento ele não escrevia mais nada importante, que ele só se repetia. Isso não é verdade. É claro que pode acontecer de um livro de contos publicado nos últimos anos não ter tantas obras-primas quanto você encontra num volume como Romance negro e outras histórias [1992], que inclui, por exemplo, “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”. Mas, se nos livros mais recentes do Rubem você tiver três contos bons, serão, de um modo geral, muito melhores do que a maioria das narrativas curtas que têm sido publicadas atualmente e festejadas pela crítica. Isso já justifica o livro.

Uma coisa que eu também acho interessante é que mesmo a primeira violência, que está, dentre outras obras, no “Feliz ano novo” [1973] e em “O cobrador”, sempre foi marcada por um viés filosófico. O Rubem Fonseca não falava da morte, do assassinato, para focalizar a cena crua e ponto. Ele tem toda uma reflexão filosófica sobre a questão da verdade. Onde está a verdade? Quais são os valores a defender ou não defender? Esse relativismo dos valores está permeando toda a obra dele.

Voltando à questão da ficção mais recente, à medida que ele vai ficando mais velho, a violência não desaparece da obra, só que aparece de outra forma. Não tão crua quanto a cena de “Feliz ano novo”, em que o assaltante arranca o dedo da vítima com uma dentada para pegar o anel. No entanto, no conto “Sapatos”, que eu já mencionei, a violência, em termos sociais, também é muito forte. O narrador é um rapaz que está desempregado – ou seja, um tema atualíssimo – e sai todo dia para procurar emprego, sem sucesso. A mãe, que é empregada doméstica, acha que ele não consegue trabalho porque não tem sapatos, usa umas sandálias muito velhas. Para ela, ninguém dá emprego a uma pessoa que não tem sapato. Um dia, a mãe chega em casa com um par de sapatos que teria ganhado do patrão, porque não lhe serviam, ficavam apertados. O sapato era menor do que o pé do filho, mas ele, com tanta vontade de arrumar emprego, consegue calçá-los, mesmo fazendo feridas horríveis nos pés: “sapato apertado a gente tem de amansar”, insiste. Consegue, então, um emprego de porteiro num prédio da Zona Sul do Rio. Só que, no dia seguinte, o patrão da mãe a acusa de ter roubado o par de sapatos. Eles vão para a delegacia, o patrão rico experimenta os sapatos e diz: “engraçado, eles não me machucam mais. São ingleses, sabia?” O rapaz, então, comenta: “eu tinha amansado os sapatos para aquele filho da puta”. Ao final do conto, o patrão retira a queixa e devolve os sapatos para o rapaz, dizendo: “Pode levar, são seus. Mas continue cuidando bem deles.”

BR: Por outro lado, é algo que tem muito a ver com o Brasil. Há um momento em que as pessoas são obrigadas a usar sapato. Primeiro, andavam pela cidade descalços. Depois andavam de tamanco. E, durante [a época do] Pereira Passos, diziam que as pessoas têm que usar sapato. Os portugueses fazem os tamancos para não andarem mais descalços, mas vira uma norma na cidade urbanizada, é preciso usar sapato.

VF: É isso mesmo. Então, o que aconteceu? Qual a diferença do conto “O cobrador”, do “Feliz ano novo”, para o conto “Sapatos”? Este não é uma bobagem, não é um conto no qual a tensão se esgarçou. Acho extremamente contundente, como é também o conto “A escolha”, do livro Pequenas criaturas [2002], que é exatamente nessa linha. É a história de um homem idoso, que ficou paralítico e perdeu a dentadura no incêndio de um circo que deixou centenas de vítimas. Ele tem uma única filha, que cuida bem dele, mas não consegue aceitar a relação que ela tem com uma amiga. Um dia, em uma disputa de prestígio político, o prefeito faz uma campanha dizendo que vai dar uma dentadura para as pessoas que chegarem primeiro na fila. E o governador, para competir, diz que vai dar uma cadeira de rodas. A filha pergunta ao pai o que ele prefere, a dentadura ou a cadeira de rodas? Ele lembra com saudade das dentaduras que teve e perdeu, que lhe permitiam comer um sanduiche de filé em pão francês. Mas lembra também do tempo em que podia se locomover sozinho pelo bairro onde mora. Diante da sua indecisão, a amiga da filha diz que não tem problema, que ela vai para a fila da cadeira, enquanto a filha vai para a da dentadura. A solução do problema leva o personagem a rever seu preconceito contra a homossexualidade da filha. Diz ele: “As duas estão muito contentes. Depois, elas me ajudam a deitar e vão abraçadas para o quarto.”

Então, são várias formas de você trabalhar as tensões sociais. Rubem Fonseca consegue deslocar o olhar. Vai do personagem do “Passeio noturno” [1973], que é um milionário louco que sai para atropelar pessoas, para o do empresário do conto “[O caso de] F.A.” [1967], que está sendo chantageado por uma travesti. Ele traz o velhinho que não tem dentadura, traz o rapaz que não tem sapato. E tudo isso sem o apoio de um narrador em terceira pessoa, moralizante, que dê algum conforto ao leitor. Essa é a grande diferença entre ele e o João Antônio, que tem uma literatura boa, obviamente, e preocupada com a questão social da cidade, mas que, na hora H, tem uma observação, um comentário, que estende a mão para o leitor. Na ficção do Rubem, você tem de se virar sozinho.

BR: Eu acho que essa foi a grande revolução formal que tantos dizem, que influenciou uma nova literatura.

LB: Há esse episódio de quando ele fala com a Patrícia Melo para não julgar o personagem.

VF: Exatamente isso. Não julgue o personagem.

LB: Falando sobre isso, me lembrei de um texto que você escreveu sobre a geografia na obra do Rubem, sobre esses Josés. Tem um José, digamos assim, que é da elite, que é o do “Passeio noturno”, tem outro que é o marginal, e tem o José do Centro da cidade, que é o do “A arte de andar nas ruas [do Rio de Janeiro]”. E o do livro José [2011], que é autobiográfico também, que tem uma visão mais lírica da cidade, esse José do Centro. Dá para traçar uma geografia do Rio de Janeiro a partir dos contos dele?

VF: O que eu acho interessante é que a ficção do Rubem é o oposto da ideia da cidade partida, porque o crime mistura ricos e pobres, tem uma geografia própria, entrelaça tudo. Os assaltantes no conto “Feliz ano novo” moram na Zona Sul. O conto termina com um deles dizendo, ao olhar o prédio onde moram: “Esse edifício está mesmo fudido.” Aí o outro diz: “Fudido, mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Nilópolis?” Então, eles estão lá, na Zona Sul. O rico também vai ao encontro desse excluído para fazer dele um assalariado do crime, o contrata para que seja aquele que executa, e ele um mandante, como você vê nos romances, em A grande arte [1983], entre outros. Nesse artigo sobre a geografia do crime, era exatamente isso que eu estava trabalhando, queria mostrar que, no caso do Rubem Fonseca, o crime atravessa a cidade, atravessa todas as camadas da sociedade. Não tem uma região se opondo à outra, ou um crime mais localizado.

Os maus leitores do Rubem o acusam de colocar o pobre como criminoso. Isso é uma leitura completamente equivocada, porque o crime, na obra dele, atravessa todas as camadas sociais, não é só o pobre que pratica qualquer crime, qualquer gesto ilegal, os ricos e a classe média também. A cidade, para ele, é um tecido, os fios se entrelaçam. E, por isso, a cidade é o texto. A cidade e o texto se confundem, porque o texto também é um tecido de fios entrelaçados.

E esse personagem que anda pela cidade é também sucedâneo desse narrador que desloca o olhar para várias questões e temas diferentes.

Carolina Correia: Você falou que o José deixa de ser um nome próprio, e é como, de certa forma, o Rubem Fonseca se disseminasse nos seus personagens. É interessante porque também desloca essa questão que tem sobre a obra dele como realismo feroz, brutalismo, e traz para uma esfera bastante particular, de um certo lirismo.

E fiquei pensando nessa novidade do século XXI, sobre a ideia das escritas de si, e como a gente pode dizer, através dessa sua observação, que José deixa de ser nome próprio e se reflete nesses vários personagens. E como a gente tem [em Rubem Fonseca] uma escrita de si bastante fragmentada também.

VF: Você falou duas coisas que são muito boas de comentar. Primeiro, essa coisa da escrita de si. Se a gente pensar, o Rubem Fonseca já brinca com isso, com a autoficção, há muito tempo. Agora, a diferença entre a maneira como o Rubem Fonseca trabalha a autoficção é que ele faz isso com ironia, com humor, e sem se levar a sério, enquanto vários outros escritores contemporâneos brasileiros fazem isso com uma solenidade que ninguém aguenta. O Rubem está brincando com isso. O humor é um traço marcante da literatura dele.

BR: A diferença formal é muita, não há um narrador falando de si. Há os múltiplos Josés.

VF: No livro O caso Morel [1973] um personagem diz para o outro: “Que vida sórdida a sua. Polícia, advogado, escritor. As mãos sempre sujas.” Só que essa é a trajetória profissional do próprio Rubem Fonseca. Trata-se de um jogo metalinguístico sutil, bem-humorado, sem deixar de ser crítico. E isso é muito diferente de uma certa literatura em que os escritores se levam a sério demais. Tanto que o humor sumiu da literatura brasileira.

BR: Não só o humor, mas a autoironia, a ironia mesmo. Essa coisa fundamental da literatura brasileira, que era a ironia mais ou menos explícita. Realmente, sumiu.

VF: A outra coisa importante que você falou, sobre os críticos que frisam mais a questão do brutalismo, da violência. Eu entendo que, em um primeiro momento, com A coleira do cão [1965], Feliz ano novo [1973], a literatura dele causou um impacto, ela vinha, como a Beatriz disse, renovando, abrindo outros horizontes na maneira do escritor construir seu texto, se expressar. E há isso de captar os dramas urbanos, eu acho que as pessoas ficaram muito impressionadas com os primeiros contos e pararam um pouco por aí. Elas não continuaram a refletir sobre a obra dele, que vai além desse recorte de cena impactante, de uma violência explícita. Eu não gosto muito de definir a obra do Rubem por essa questão do brutal, da violência crua, não acho que seja o mais importante na literatura dele. Até porque isso sempre esteve na literatura brasileira, a representação de atos violentos. O próprio Dalton Trevisan tem contos em que há assassinatos, embates cruéis entre casais e cenas violentas. O jornal está cheio de notícias e narrativas violentas, qual a diferença? Por que é a do Rubem que impacta?

Aí tem uma história que eu gosto de contar, relativa à proibição do livro Feliz ano novo. O Rubem recorreu, entrou na justiça. Como se pode ler no livro do Deonísio da Silva sobre o processo [O caso Rubem Fonseca, de 1983], o juiz manteve a proibição, mas discordou dos argumentos dos censores, afirmando: “nem o erotismo nem a linguagem empregada, por si só, justificam o veto censório. O grave está no modo pelo qual se tratou da violência”. O juiz era um leitor melhor do que os censores iniciais. Como observou Deonísio da Silva, o que preocupou o juiz foi a impunidade dos personagens. Para ele, o problema não era o palavrão, mas a maneira como Rubem Fonseca narra, porque não tem um narrador que explique para o leitor por que o cobrador é como é, que mostre o cobrador sendo punido.

CC: Ou que faça uma análise psicológica que justifique. Isso também não acontece.

VF: Sim, não acontece. Tem uma diferença na recepção do conto “Feliz ano novo”, que mostra bem isso que a gente está comentando. Atualmente eu não peço mais para ler esse conto nas aulas de graduação, peço outros. Mas houve um tempo em que eu trabalhava com o conto nas aulas e a turma se dividia muito. Tinha gente que ficava odiando, teve um menino que se levantou e disse: Eu não quero falar desse conto de manhã, me dá vontade de vomitar. E outros alunos adoravam. Eu sempre dizia a eles que os leitores se dividiam em dois grupos, os que se identificavam totalmente com os moradores daquela casa na Barra, que foi assaltada, e não conseguiam ver mais nada, nem a forma do conto, de tanta identificação com aqueles personagens, e os que saíam para assaltar com o narrador.

Então, se você sai para assaltar com eles, você lê o conto de uma maneira. Não tem jeito, é você que vai escolher o que vai ser como leitor, aquele que sai para assaltar ou aquele que está em casa e vai ser assaltado. Agora, veja bem, quando eu digo que sai para assaltar, não é para você “fechar” com o assaltante, achar que os assaltos são certos, não é isso. É se deslocar. Ou você não se desloca e tem nojo do Pereba ou você se desloca e percebe a dor da exclusão. É isso que a literatura do Rubem procura: fazer você sair de si.

LB: Acho que isso tem a ver com aquilo que você disse, que o assassino é o leitor.

VF: Aliás, acho que era o sonho dele conseguir fazer isso plenamente em um conto, que você se entregasse. Você lê e depois faz a mala, vai para a delegacia e se entrega. Acho que era exatamente isso que ele queria. Daí os deslocamentos que ele opera. Eu já falei do conto “AA” [1998]? O conto “AA” não é sobre Alcoólicos Anônimos, é sobre arremesso de anões. Esse esporte existe, de fato. Alguns países da Europa autorizam, a França parece que é uma das campeãs nesse esporte, outros proíbem. No Brasil é proibido, mas parece que, na região Centro-Oeste, alguns fazendeiros praticam e fazem campeonato. Você começa a ler o conto, em que um fazendeiro pratica arremesso de anão, e chega uma mulher que foi enviada para investigá-lo, porque é proibido no país. Mas ela disfarça, diz que está querendo ver como ele trata os animais. Até que chega ao ponto em que ela diz que quer saber se ele pratica arremesso de anão. Ele fala que sim, e argumenta: E qual o problema? Tem tantos esportes violentos, o boxe, por exemplo, tantos esportes dos quais as pessoas saem feridas, dilaceradas. Os anões foram expostos no circo, anos e anos a fio, sendo ridicularizados, apresentados como anormais para ganhar uma miséria. Nesse esporte, eles têm uma roupa de proteção, capacete para não se machucarem, eles ganham muito bem. Por que proibir arremesso de anão?

Imediatamente você começa a pensar: É, por que proibir? Não significa que, quando terminar [de ler o conto], você vai ser a favor de arremesso de anão, mas você nunca mais será o mesmo se esse assunto vier à tona. Faz isso também com soltar balões [em “O balão fantasma”, 1995]. Aborda certezas do senso comum, “verdades” que a gente não costuma discutir. Soltar balão é ruim, provoca incêndios. Imagina fazer arremesso de anão! Ele leva você a pensar as questões por um outro ângulo, imprevisto. Nesse conto do arremesso de anão, você realmente não consegue decidir se é a favor ou contra. A personagem da investigadora acaba se envolvendo com o fazendeiro, fica nas entrelinhas que ela pode ter se apaixonado. O que é uma enorme ironia.

CC: Esses personagens deixam de ser personagens caricatos, e, ao mesmo tempo, o personagem não é inteiramente mau. E o deslocamento do leitor também é em várias direções, não é só olhando de maneira sem empatia para aquele personagem que é da parte mais baixa. Tem várias direções possíveis.

VF: Outra coisa interessante é que ele não idealiza o pobre, o excluído. O excluído faz chantagem, assalta, está na vida com todos os defeitos que temos. Naquele livro América Latina em sua literatura [organizado por César Fernández Moreno], da editora Perspectiva, há um texto, que acho que é de um escritor hispano-americano, em que ele faz uma crítica ao realismo engajado e regionalista. O autor do artigo diz que o capitalismo tinha roubado quase tudo do trabalhador, e aí veio o realismo e lhe roubou a alma. Diz isso porque, se você idealiza o personagem excluído, é como se ele tivesse obrigação de ser perfeito para que se lute pela igualdade. Não é isso que deve levar você a lutar contra a exploração, a exclusão. Não é porque o pobre é perfeito, porque o pobre seria melhor do que a classe média ou do que o rico. Aí volta a questão que a Beatriz falou, a guinada que ele dá. Até na hora de fazer uma literatura realista e fazer uma literatura que trabalha temas sociais, não segue a tradição, não segue o que vinha sendo feito. Ele muda, altera, e fica muito mais impactante.

CC: O Antonio Candido, em um artigo sobre o Rubem, aquele dos primeiros, sobre o realismo feroz [“A nova narrativa”, 1979], ele fala que isso provavelmente aconteceu por influência do Guimarães Rosa. É interessante pensar isso, porque são literaturas tão diferentes.

VF: Muito. E o Rubem tem um conto chamado “Intestino grosso” [1975], em que um escritor dá uma entrevista sobre a literatura e afirma: não dá mais para Diadorim. Ele está rompendo com o regionalismo. Não que esteja dizendo que aquela literatura não é boa, está dizendo que não dá mais para fazer uma literatura como aquela, que está na hora de mudar esse jogo. Então, eu não sei qual a relação que o Antonio Candido quis fazer.

BR: Talvez ele reconheça a enorme violência de Guimarães, que é um autor violentíssimo.

CC: A narrativa também é sempre na primeira pessoa.

BR: A gente não lembra, quando fala de Guimarães [Rosa] para a exportação, de tudo que acontece de violência. É terrível, mata-se sem razão, estupra-se, esquarteja-se.

VF: Deve ser por aí que o Candido fez a relação. É verdade, estava no início da obra do Rubem.

BR: A gente gostaria de saber se você poderia juntar o Rubem com a sua grande especialidade, que é cinema. Falar, do ponto de vista da linguagem, se ele tem uma prosa cinematográfica, e um pouco também se os filmes, as adaptações, deram conta minimamente.

VF: Não sou especialista em cinema, não. Apenas busco entender esse eterno diálogo entre a ficção literária e a cinematográfica. O Rubem sempre foi apaixonado por cinema, ele queria ser cineasta, mas não tinha uma câmera, quando era adolescente, como está escrito na crônica José, ele tinha uma máquina de escrever. E ele diz que aí o seu destino estava traçado. Foi o filho, o cineasta José Henrique, que realizou o sonho do pai.

Com relação à literatura do Rubem, o que a gente pode dizer é que a aproximação com a linguagem audiovisual se realiza principalmente pela montagem das cenas. A maneira como ele “recorta” as cenas retiradas do contínuo da vida urbana provoca um efeito de explosão do sentido. Além da agilidade dos diálogos, a ponte entre o cinema, que é a arte da montagem, e a ficção do Rubem Fonseca se realiza pelos enquadramentos imprevisíveis, pelos cortes secos, que nos fazem ver o que não víamos quando envolvidos simplesmente com a sucessão dos fatos do enredo.

Uma outra questão diz respeito às adaptações da obra dele para o audiovisual. Ele foi roteirista, esporádico, mas foi. E nunca trabalhou com essa ideia da literatura como uma arte mais alta que o cinema poderia conspurcar, ou com a ideia de que a adaptação iria rebaixar a sua grande obra. Nunca li nenhuma crítica dele sobre as adaptações que fizeram dos seus livros. Acho que autorizava todas as transformações, todas as mudanças. Ele próprio colaborou em roteiros que, no meu entender, cortaram cenas que seriam imprescindíveis.

A grande arte [1991], eu tenho até um artigo sobre isso, é um filme de que não gosto muito. Acho até que partiu de uma ideia engenhosa. No romance, Mandrake, o personagem principal, é escritor e, no filme, é fotógrafo. Walter Salles fez essa alteração, talvez, por causa do deslocamento da narrativa de uma mídia para outra. Podia dar muito certo, mas eu avaliei que o filme acabou não realizando bem a sua proposta. O Rubem não criticou. Eu sempre fiquei impressionada com o fato de, ao contrário de tantos outros escritores, ele não se importar com as inúmeras alterações feitas na sua própria obra na passagem para o audiovisual. Talvez por isso, referindo-se ao seu alter ego em José: uma história em cinco capítulos, afirme: “E cinema e literatura se juntaram para dar-lhe grandes prazeres.”

Das adaptações eu gosto do Bufo & Spallanzani [2001], de Flávio Tambellini, com roteiro da Patrícia Melo e do próprio Rubem Fonseca. A relação entre arte e realidade, problematizada no romance, não surge, no discurso do protagonista do filme, como uma preocupação central. No entanto, a estrutura em abismo, através da qual se conta uma história dentro da história maior, tende a diluir as fronteiras entre realidade e ficção, levando o espectador a nivelar as cenas do romance de autoria do personagem com as cenas do presente da narrativa. Gosto do Lúcia McCartney, que foi feito para a televisão [TV Globo, 1994], adaptada por Geraldo Carneiro, com direção de Roberto Talma. Mas, de um modo geral, acho que as leituras da ficção do Rubem Fonseca realizadas para obras audiovisuais (que foram muitas) não têm conseguido transmitir mais plenamente a força da sua literatura.

 

Fernanda Torres como Lúcia McCartney em 1994 (Jorge Baumann/TV Globo)
Fernanda Torres como Lúcia McCartney em 1994 (Jorge Baumann/TV Globo)

Mais recentemente tivemos a série Mandrake [2005], da HBO, com direção do José Henrique Fonseca. Tinha treze episódios e foi dividida em duas temporadas. Era baseada em passagens de diferentes livros, e o protagonista Mandrake era o elo de sustentação da série, que soube tirar partido das convenções genéricas das narrativas policiais e do charme do personagem criado por Rubem Fonseca.

Eu uso a palavra adaptação porque é mais simples, já está estabelecida, mas não há como trabalhar com a ideia de que se possa transpor uma narrativa de um suporte para outro sem alterá-la. A chamada “adaptação” nada mais é do que um tipo de intertextualidade. É um diálogo entre o texto literário e o texto fílmico, no qual a diferença e não necessariamente a semelhança pode garantir um bom resultado final. Alguém já disse, não me lembro quem, que, na ciência, como no amor, a infidelidade, por vezes, é necessária para que se mantenha a fidelidade ao essencial. Eu acho que, no deslizamento da ficção narrativa de um meio para outro, trair mantém muitas vezes a fidelidade ao essencial, porque é outro meio e outra linguagem. Portanto, não é o caso de cobrar fidelidade do segundo texto em relação ao primeiro.

BR: O García Marquez não tem um só filme [adaptado] que preste. E, também, como adaptar o recurso, no cinema, do fantástico?

VF: Pois é, é preciso fazer um trabalho de recriação. Para dar mais um exemplo, o filme A hora da estrela [1985], da Suzana Amaral, baseado no romance da Clarice Lispector, é um filme maravilhoso. O pessoal de literatura, com frequência, não gosta do filme. Tem gente que diz que não é A hora da estrela, que não tem nada a ver com o romance da Clarice, porque, no romance, na verdade, o centro é o narrador, e não a Macabéa. No filme da Suzana, o centro é a Macabéa. Para mim, a diretora foi perfeita, ela operou esse deslocamento para manter a densidade do drama humano trabalhado no romance, que, no cinema, poderia se perder com o artifício de uma voz em off.

BR: É um falso narrador. Um homem dizendo que a mulher ia lacrimejar piegas.

VF: A contundência do livro da Clarice está no filme da Suzana, só que, para isso, ela realmente alterou a obra original. Ali é a Macabéa, não tem o Rodrigo [narrador do livro]. As pessoas de literatura normalmente acham que essa solução foi um crime. Como pode a diretora ter feito isso com aquela obra-prima? A Suzana, na minha opinião, foi muito inteligente, não quis a fidelidade a esse narrador, que, como a Beatriz falou, é muito difícil de funcionar bem no caso do cinema. Aí ela privilegiou a Macabéa. Assim, a força do drama humano está tanto no livro da Clarice quanto no filme da Suzana. Isso tudo para dizer que eu não estou fazendo uma cobrança de fidelidade quando digo que não sou tão fã dos filmes inspirados na ficção de Rubem Fonseca. Talvez seja interessante lembrar que o Hitchcock só fazia filme adaptado de livro que não era considerado obra de arte. E os filmes dele dispensam comentários, são maravilhosos.

LB: Eu acho interessante que o roteiro de O homem do ano [José Henrique Fonseca, 2003] tem a participação do Rubem, e é baseado em um livro da Patrícia Melo. E eu acho que funciona bem como adaptação, melhor do que as adaptações dos livros dele para o cinema.

VF: O filme, no caso, enriquece o livro. Às vezes, como em O cheiro do ralo, é difícil saber o que é melhor, se é o livro do Lourenço Mutarelli, ou o filme, dirigido por Heitor Dhalia.

BR: A Patrícia Melo começa com um sucesso, até que ela faz um livro que se passa no Rio de Janeiro, do Reizinho. E não funciona. Essa relação do autor que quer falar sobre a cidade com a cidade não dá para ser “faz de conta”.

VF: Isso não é fácil. Tem uma frase do Rubem que todo mundo cita, porque é muito boa: “A cidade não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar.” Tem que saber olhar.


Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Carolina Correia é editora executiva da revista e Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.

editorial
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A ARTE DE ANDAR PELA CIDADE

Publicado logo em seguida a “Modo de ser na cidade em quarentena” (número 1/2020), “A arte de andar pela cidade” forma com o anterior um conjunto sobre os modos de viver na cidade. Enquanto o primeiro número concentrava-se em depoimentos escritos no calor do momento sobre a vida em diversas cidades durante a epidemia de Covid-19, este, publicado quando a pandemia ainda assola o mundo, reúne, principalmente, artigos que versam sobre a relação entre artes e cidade.

O número se inicia de modo especial com uma crônica sobre a quarentena enviada de Pequim por Francisco Foot Hardman, professor titular da Unicamp, e veiculada inicialmente no Jornal da Unicamp. Seu texto é um lembrete poético de que as discussões a seguir ocorrem em ambiente ainda marcado pela pandemia.

O dossiê apresenta uma homenagem ao professor e pesquisador Renato Cordeiro Gomes, autor de Todas as cidades, a cidade (1994), que nos deixou em 5 de setembro de 2019. Três textos versam sobre a cidade e arte, informados pelo olhar e pelas observações de Renato. O primeiro é “Modos de ler a cidade”, de Alexandre Graça Faria, Aline da Silva Novaes e Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, cuja forma fragmentada assume as perspectivas daqueles que erram pela cidade. O segundo, “O Rio de Janeiro em Cara de Cavalo”, de Carolina Barcelos, examina o Rio através do teatro que produz “significado urbano”. Finalmente, em “Copacabana, Rio de Janeiro, RJ”, sobre imaginário artístico do bairro carioca, Beatriz Resende reescreve, também em homenagem ao amigo, sua participação no seminário Espécies de Espaço, organizado por Renato e Izabel Margato em 2005.

Os demais artigos do dossiê abordam outros aspectos da relação entre cidade e artes. Em “Notações da cidade no conto ‘Rolézim’”, Leandro Souza Silva discute a construção das subjetividades periféricas na obra de Giovani Martins. “A cidade como autobiografia em Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna”, de Dejair Martins, fala da cidade como protagonista da ficção dos dois importantes escritores. Por fim, “O A.R.T.E navegando no Mar de Histórias”, escrito coletivamente, descreve oficinas de artes visuais realizadas pelos coletivos A.R.T.E.2 e Mar de Histórias em parceria com a Associação de Moradores da Vila da UFRJ (AMAVILA) a fim de usar a arte como maneira de integrar a comunidade que mora e estuda na Ilha do Fundão.

Publicamos neste número, ainda, o artigo “O assédio sexual no emprego doméstico”, em que a antropóloga Valeria Ribeiro Corossacz apresenta sua pesquisa com trabalhadoras domésticas e sindicalistas sobre o assédio sexual perpetrado pelos empregadores. E “O ceticismo metaficcional de Sebastopol, de Emilio Fraia”, em que Lucas Bandeira de Melo busca situar o romance de Fraia, publicado em 2018, no panorama da literatura brasileira contemporânea.

Finalmente, para discutir a obra do escritor Rubem Fonseca, falecido no último 15 de abril, entrevistamos a professora da PUC-Rio Vera Lúcia Follain de Figueiredo, autora de Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea (2003). Figueiredo fala da relação de Fonseca com o Rio de Janeiro e com o cinema, além de fazer um apanhado da obra do ficcionista desde os primeiros livros até os mais recentes.

Com esta edição, pretendemos convidar ao leitor a experimentar a arte como dispositivo para percorrer as cidades, esses organismos múltiplos e em constante transformação em que habitamos.

Agradecemos ao fotógrafo Bruno Veiga pela gentil cessão da foto da capa deste volume da revista.

Revista Z Cultural

especial
Tempo de leitura estimado: 7 minutos

Minha China tropical

Saudades! Sempre discordei dessa mitologia que atribui essencialismo lusófono intraduzível à palavra “saudades”. Toda tradução, toda traição, toda transculturação serão sempre possíveis, basta o gesto da troca, do desejo de comunhão igualitária.[1]

O chinês deitado
no campo. O campo é azul,
roxo também. O campo,
o mundo e todas as coisas
têm ar de um chinês
deitado e que dorme.
Como saber se está sonhando?
(Carlos Drummond de Andrade, “Campo, Chinês e Sono”)

Será que foi um sonho? Quanto tempo terá se passado? Aqui estão os bilhetes do trem veloz de longo curso para Yunnan, província no extremo-sul da China. Tenho também os do avião entre sua capital, Kunming, e a pequena pulsante cidade de Jinhong, 700 Km ao sul, sede da prefeitura autônoma de Xishuangbanna, centro da etnia Dai.

Isso parece que ficou bem longe no tempo. E, no entanto, os tickets dizem que se passaram só três meses. É Christina, a anfitriã do hostel à beira do rio Mekong, quem me desperta a memória, ao enviar, nesses dias, um vídeo de uma alegre batucada. Sim, um povo alegre à volta de uma mesa enorme canta, bebe, toca e batuca. Sua filhinha Yî (= a número 1) parece entrosada no sarau, a número 1 que tem dois anos. Sim, agora começo a lembrar. É o Festival da Água, da Água Espalhada, respingada, chapinhada, jorrada. Da água molhada. Celebrado desde o dia 13 de abril pelos Dai. Originário da Índia hinduísta, mas perfeitamente aclimatado pelos budistas no Sudeste asiático, lá em Yunnan tem seu lugar especial no calendário de um povo que é feliz na festa, que respira música nas batidas da natureza exuberante. Jinhong, sul do sul, está a poucos quilômetros das fronteiras de Mianmar e Laos. Isso corresponde a mais de 3 mil Km de Pequim.

Jinghong, China | fotos: FFH
Jinghong, China | fotos: FFH

E me vem a feira interminável à beira-rio, em que se encontra tudo – artesanatos, roupas, utensílios, comidas –, que me punha de repente no alarido de uma grande feira nordestina brasileira. Só que esta era chinesa sulista, com tantas cores e luzes e corpos brilhantes na noite interminável do Mekong mágico, literalmente Mãe-Água, aquele rio que em algum ponto entre Laos e Tailândia vê suas águas lançarem bolas flamejantes que espocam no ar. E em Jinhong, onde cruzava uma de suas enormes pontes espraiadas, via a balada de motos e triciclos que me reconduziam ao Vietnã, à renascida Ho Chi Minh, onde presenciei as mais belas baladas de motos noturnas, um balé sincopado de um povo que passa em paz e sereno depois de tantas guerras, lá perto do delta desse mesmo Mekong, hoje doente de tantos maus-tratos, que fazem fugir os peixes e acumular o lixo.

Dali | fotos: FFH
Dali | fotos: FFH

Mas, em Yunnan, comidas e bebidas se oferecem em profusão e variedade incomuns por toda essa extensa e diversa província. E isso também na capital, Kunming, e na belíssima Dali, a oeste, cravada num vale entre o grande lago Erhai e o sopé da cadeia de montanhas Cangshan, que seguem rumo ao Tibete. O budismo, ali, faz notar sua presença marcante. Como, por exemplo, no incomensurável Templo dos Três Pagodes. Bairros antigos circundam essa área, em núcleos dispersos na transição do urbano ao rural. Foi lá que viajei no triciclo de Tian Fêng, um ás da condução, a desafiar o mais veloz dos ventos gélidos a bater na cara. E os tempos se justapunham na amplidão do espaço. E a estrada era de todos os que nela se aventuravam. E Dali suspendia qualquer presunção, Dali não era daqui.

Floresta de Pedras, Shilin | fotos: FFH
Floresta de Pedras, Shilin | fotos: FFH

E, naqueles dias ditosos, não havia vírus nem medo. Era um inverno frio, mas ensolarado. A ponto de ser possível trilhar a pé o parque geológico da Floresta de Pedras calcárias em Shilin, na região de Kunming. Fascinante, como tudo que nos lembra que a história do planeta é muito mais antiga que a de nossa arrogante espécie, e possivelmente sucederá logo mais, como floresta de desertos, à sanha suicida que o capitalismo global consagrou, a menos que um novo regime mundial saído das ruínas do coronavírus seja capaz de combinar civilização ecológica, solidariedade social ativa e multilateralismo cooperativo internacional, para além do rame-rame das corporações e do seu Deus ex machina, o mundo-mercadoria.

Parque botânico tropical, Menglun | fotos: FFH
Parque botânico tropical, Menglun | fotos: FFH

Xishuangbanna, nome comprido, afetos largos: na reserva ambiental de Sancha He, em quase tudo idêntica a uma floresta úmida amazônica, a não ser pelos seus visitantes ilustres, elefantes selvagens, que hoje escasseiam; no gigantesco parque botânico tropical, em Menglun, que nos confronta com essa sua estranhíssima familiaridade e sublime beleza, palco de muitos desenhistas e pintores. Minha China Tropical é toda essa paisagem em movimento amplo e lento, agitado e sereno, ruidoso e pacífico. Ficou lá atrás e lá embaixo. Mas mora aqui no coração sem palavra.

Saudades! Sempre discordei dessa mitologia que atribui essencialismo lusófono intraduzível à palavra “saudades”. Toda tradução, toda traição, toda transculturação serão sempre possíveis, basta o gesto da troca, do desejo de comunhão igualitária.

Vale dos Elefantes, Sancha He | fotos: FFH
Vale dos Elefantes, Sancha He | fotos: FFH

E como ela difere, minha China Tropical, daquela outra idealizada por Gilberto Freyre, que a pensava circunscrita ao Brasil miscigenado e luso-tropicalista, em mitos que alternavam a visão de classe de um patriarcalismo “cordial” à la Casa Grande, com uma raiz lusitana da pior espécie, inspirada no fascismo colonialista retardatário de Salazar. São, a rigor, “Chinas” contrapostas.

O grande pesquisador e ensaísta pernambucano escreveu a primeira versão de seu artigo, “Por que China tropical?”, em inglês, para uma revista acadêmica, em 1959. Publicado em português, pela primeira vez, em 1971, no hoje clássico volume de ensaios Nôvo mundo nos trópicos, da insuperável coleção Brasiliana, teve uma reedição mais recente graças a um trabalho primoroso de organização de Edson Nery da Fonseca, que o reuniu a outros escritos “orientalistas” do autor, em 2011: China tropical. Admitindo afinidades culturais profundas, Freyre propugna ao Brasil assumir um destino que o reconcilie com o luso-tropicalismo, equidistante, ao mesmo tempo, do limitado liberalismo norte-americano, do já então decadente eurocentrismo, mas também do comunismo sino-soviético, incorporando, por sua vez, tudo que o Oriente nos legou, até imperceptivelmente.

Kunming | fotos: FFH
Kunming | fotos: FFH

Poderíamos, a meu ver, quem sabe, tentar caminho inverso, sem medo do campo aberto, da rota longínqua, da língua estranha, dos murmúrios que contêm mistério, mas também do sonho que nos convida a parar. Ou, nas palavras do poeta: “Ouve a terra, as nuvens. // O campo está dormindo e forma um chinês // de suave rosto inclinado // no vão do tempo.” (C. D. Andrade, “Campo, Chinês e Sono”, 1945).


*Francisco Foot Hardman é professor titular da Unicamp. Atualmente leciona na Universidade de Pequim.

Notas

[1] Texto primeiramente publicado no Jornal da Unicamp como parte da série semanal Diário em Pequim.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

MODOS DE LER A CIDADE

(…) o cronista não abre mão de testemunhar o
seu tempo, de ser seu porta-voz. As crônicas,
quase sempre, são respostas a certas
perplexidades pessoais e sociais.

(Renato Cordeiro Gomes, João do Rio/ por Renato
Cordeiro Gomes
)

A citação, em epígrafe, foi inspirada na obra de João do Rio, escritor-jornalista a quem Renato Cordeiro Gomes dedicou décadas de pesquisa. João do Rio e Renato, cada qual com sua escrita, ressemantizaram a cidade, que se apresenta ambígua, enigmática, labiríntica, fragmentada. João do Rio com suas crônicas. Renato com suas proposições teóricas. É o espaço urbano, “campo da própria significação”, como afirma Julio Ramos (2008), que Paulo Barreto assume em seu pseudônimo mais usado: João do Rio. Assim, o nome fictício, João do Rio, transcende o próprio nome, Paulo Barreto. Ao vagar pelas ruas, formula sua “cidade das letras” (Rama, 1985) e eterniza a belle époque carioca.

Edgar Allan Poe, em 1840, no clássico O homem da multidão, escreveu “es lässt sich nicht lesen”, fazendo referência a um suposto livro alemão do qual se dizia “não se deixa ler”. Desde Poe, ler a cidade se impõe como um desafio a gerações de escritores e intelectuais. Para João do Rio, o exercício de compreendê-la exige um espírito vagabundo e curioso. É preciso ser flâneur, exercer a arte de flanar, nos fala o cronista. Ao caminhar, na tentativa de leitura da cidade, o flâneur reinventa o espaço coletivo. Para Ramos (2008), retórica do passeio. Para Michel de Certeau ([1980] 2003), jogo dos passos ou enunciação pedestre. As denominações se referem a essa operação de transitar sem destino que busca captar o que o mapa da cidade deseja transmitir e, além disso, reordenar o espaço urbano. Assim, menciona Certeau: “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade” (Certeau, [1980] 2003, p. 176). São as nomeadas por Certeau de “figuras ambulatórias”, por meio do processo do caminhar, que vão produzir os discursos fragmentários sobre essa cidade que se apresenta múltipla.

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Se três cartógrafos visitam uma cidade e dela resolvem fazer um mapa. Três mapas completamente diferentes poderão se apresentar. Serão registros distintos do espaço, demarcados por tempos e afetos igualmente distintos. Entre o cristal e a chama, a racionalização geométrica do traçado urbano e o movimento bruxuleante das existências humanas, incontáveis mapas descreverão a mesma cidade. A mesma? Nenhuma cidade é a mesma e jamais dará conta de ser, em seu mapa, todas as cidades. A cidade, assim com determinante definido singular, é Utopia. Antes, no enfrentamento do que pode parecer estar (e de fato está) fora da ordem, a sugestão é acatar os versos de Veloso, como fez Renato em sua Tese de Doutorado[1]: “eu não espero pelo dia em que todos os homens se entendam, mas sei de muitas harmonias possíveis sem juízo final”.

Assim como os mapas, os deuses de uma cidade não são únicos. Isaura é uma cidade vertical, a primeira das cidades delgadas de todas as cidades invisíveis de Calvino. Isaura cresceu na horizontal somente até onde seus habitantes conseguiram cavar poços na extensão das águas subterrâneas que lhe proviam, “seu perímetro verdejante reproduz o das margens escuras do lago submerso, uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas enclausuradas que quebram sob o céu calcário das rochas” (Calvino, 1990, p. 24). Por isso há duas religiões em Isaura. A dos que creem nos deuses inferiores, águas profundas que alimentam e movem a cidade; e a dos que veem os deuses na superfície aonde chegam as águas, nos baldes, nos parapeitos dos poços, nas bombas, na tubulação e nos registros, que chegam aos cata-ventos erguidos acima dos andaimes. Isaura cresce para cima.

Interessará à sobrevivência da cidade o culto dos seus deuses inferiores tanto quanto a dos superiores. Sabe-se que uns não sobrevivem sem os outros. Dito de outra forma, esses cultos consistem em conhecer a cena e a obscena de uma cidade. Não é possível construir a superestrutura dos moinhos de vento desconsiderando aqueles que ali enxergam gigantes terríveis. Os que assim o fazem mancham de sangue o lago. Nossa água restará imprestável. Os moinhos ruirão como a Torre de Babel.

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Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade, nos esclarece que “ler a escrita da cidade e a cidade como escrita é buscar o legível num jogo aberto e sem solução” (Gomes, 1994, p.16). Tal definição é utilizada aqui enquanto uma espécie de bússola que irá nos guiar no tortuoso e complexo percurso de visita às formas de representar e, principalmente, de ler a cidade. A relevância do trecho citado acima repousa na feição aporética do próprio exercício de leitura da cidade, ofertando aos modelos de representação da paisagem urbana um movimento paradoxal que pode ser facilmente delimitado em uma simples sentença: “Como ler o que é ilegível?”. Por se tratar de um jogo aberto e sem a apresentação de uma solução estanque, a leitura da cidade não é um ato que aponta essencialmente para um fim, para um resultado. Os muitos fios descontínuos que formam a malha discursiva que reveste a cidade moderna sinalizam tal impossibilidade. Percorrer a cidade em busca da identificação de seus inúmeros cruzamentos discursivos, localizando os encontros desses fios descontínuos, é construir e, igualmente, percorrer um labirinto. Perder-se nesse ato é adentrar um jogo aberto e sem solução. É possível dizer que o exercício de leitura da cidade não deve se fixar no desejo de alcançar sua concretude e totalidade, movimento que seria quimérico. Atentos ao percurso de análise que será aqui estabelecido, afirmamos que, mais do que o resultado da leitura da cidade, importa observarmos os mecanismos discursivos que são ativados para a obtenção de uma imagem da cidade.

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“[O] flanar não é simplesmente um modo de experimentar a cidade. É um modo de experimentá-la, olhando e contando o que se viu. Ao flanar, o sujeito urbano, privatizado, se aproxima da cidade como quem vê um objeto em exibição”, afirma Julio Ramos (2008, p. 148). Contar o que viu foi o que fez Paulo Barreto desde que estreou na imprensa, antes de completar seus 18 anos. Em seus escritos, deixou marcada a narrativa dos lugares visitados. Como aliada, elegeu a crônica, gênero que se apresenta como uma mediação entre o sujeito e a cidade e se coaduna ao momento moderno.

Conhecedor da alma encantadora das ruas, Paulo Barreto se coloca como um cronista-flâneur. Nos jornais, escreve, também, crônica-reportagem. E, ainda, dá vida à crônica atravessada pelo cinematógrafo – na qual o cinema, além de ser tema, condiciona o processo de escrita, como demonstram a coluna Cinematographo, publicada na Gazeta de Notícias (1907-1910), e o livro homônimo. Dessa maneira, as novas tecnologias são também, “fator condicionante de uma escrita ágil, sintética, que, em busca da instauração do novo, e da fixação do ‘instante’, se propôs também a dialogar com a mídia” (Gomes, 2007, p. 3). É nessa fase que o entusiasmo em relação à vida frenética e vertiginosa atravessa a produção do escritor-jornalista. Atento a isso, Renato Cordeiro Gomes revela como João do Rio estava em consonância com o que figurava nas cidades europeias que visitou. Ressalta, portanto, a presença de “ideias, metáforas e imagens do Manifesto Futurista de 1909, assinado por Marinetti” (Gomes, 2007, p. 5). Entretanto, as consequências desse mundo moderno não passam despercebidas por João do Rio tampouco por Renato Cordeiro Gomes (2007, p. 9-10), que recorda a sátira “O dia de um homem em 1920” do escritor finissecular: “O texto prevê até onde iria o homem em sua ânsia contínua e crescente de pressa, de movimento, de poder. (…) A vida vertiginosa aponta para a corrosão do humano, para a cidade não-compartilhada do individualismo e da concentração de renda e poder”.

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Os três mapas daqueles três cartógrafos estão à venda num empório de estilos. Não só a mesma cidade que mapeiam são outras, como distintos são os traços que as conformam no papel. Mas reconhecem todos, como aponta Raban em Soft city, que as cidades são capazes de neutralizar a distinção entre o sonho e a vida real:

Sociology and anthropology are not disciplines which take easily to situations where people are able to live out their fantasies, not just in the symbolic action of ritual, but in the concrete theatre of society at large. The city is one such situation. Its conditions effectively break down many of the conventional distinctions between dream life and real life; the city inside the head can be transformed, with the aid of the technology of style, into the city on the streets. To a very large degree, people can create their cosmologies at will, liberating themselves from the deterministic schemes which ought to have led them into a wholly different style of life. To have a platonic conception of oneself, and to make it spring forth, fully clothed, out of one’s head, is one of the most dangerous and essential city freedoms, and it is a freedom which has been ignored and underestimated by almost everyone except novelists[2] (Raban, 1998, p. 65).

Eis a indicação de um método cartográfico da cidade menos sociologia, menos antropologia, e mais poetas e ficcionistas como fonte do traçado que deve ser feito na balança (nem sempre fiel) do real que tem como contrapeso o imaginário. A Cidade Maravilhosa, por exemplo – assim batizada, em 1912, pela poetisa francês Jeanne Catulle Mendès e consagrada em 1935 pela marchinha de André Filho – conseguirá sobreviver no concreto de suas ruas fétidas e esburacadas, no descaso evidente nas eternas obras inacabadas e na população que nasce e cresce sob suas marquises? Quanto daquela Cidade Maravilhosa vem à tona no “purgatório da beleza e do caos”, de Fausto Fawcett?

Na sequência do trecho citado de Soft city, Raban evoca Robert Warshow que, em um ensaio de 1958, elegeu o gangster do cinema americano como herói trágico da cidade moderna. O ensaísta reconhece que, apesar de haver criminosos reais, o gangster do cinema é um produto da imaginação que retroalimenta o imaginário urbano. Aqui, na Cidade Maravilhosa, a obscena faz parte da cena. Os gângsteres são eleitos e expropriam o imaginário idílico. É como se a paródia da marchinha (“de dia falta água / de noite falta energia”) se transformasse no emblema da cidade, em que esse imaginário hollywoodiano de gângsteres no submundo e da ordem junto ao poder púbico persiste e se revela quantitativamente nas urnas.

Contra isso, A poesia dos deuses inferiores. Esse é o título de um dos primeiros livros de Sérgio Vaz, atualmente esgotado e rearticulado em O colecionador de pedras. O poeta é de São Paulo, cidade que, na metáfora de Sevcenko (2004), cresceu como metástase. Mas vale trazer de lá uma poética, explicitada num pequeno texto, embrião do que viria a ser o “Manifesto da antropofagia periférica”

É preciso sugar da arte
Um novo tipo de artista: o artista cidadão.
Aquele que em sua arte não revoluciona o mundo,
Mas também não compactua com a mediocridade
que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país.
Que armado da verdade, por si só, exercita a revolução.
(Vaz, s/d, n.p.)[3]

Estamos diante do autor como produtor, aquele que, segundo Benjamin, “consciente das condições de produção contemporânea está muito longe de esperar o advento de tais obras, ou de desejá-lo. Seu trabalho não visa nunca à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, à dos meios de produção” (Benjamin, 1985, p. 131). O trabalho de Vaz não só como poeta, mas à frente da COOPERIFA e de outras ações de produção cultural referenda essa relação. Há, ainda, no manifesto do autor o enfrentamento das “Cinco dificuldades para escrever a verdade” elencadas por Brecht, em 1934, em um panfleto político escrito para ser distribuído ilegalmente na Alemanha nazista[4]: 1) ter a coragem de escrever a verdade; 2) ter a inteligência de reconhecer a verdade; 3) possuir a arte de tornar a verdade manejável como uma arma; 4) ter a capacidade de escolher aqueles em cujas mãos a verdade se torna eficiente; 5) ter a astúcia de divulgar a verdade entre muitos.

Num estudo sobre cartazes do 25 de abril português, Renato lembra que

os modos usar e comunicar a revolução, se são conjugados com a concepção de modernidade, e aí as categorias de ruptura, mudança progresso, enfim, de crítica, de razão crítica e de consciência histórica, retomam uma longa tradição de uma práxis em que esses modos de usar e comunicar formam uma espécie de arquivo/acervo de procedimentos, de linguagens, de narrativas, de imagens, que estão à disposição dos artistas e dos militantes. (Margato; Gomes, 2005, p.222)

Nesse sentido, o poeta-produtor Sérgio Vaz se coloca na contramão de um ethos – o da “mediocridade que imbeciliza” – que explicita a obscena na cena do próprio poder do estado.

Vale lembrar, no entanto, que esse poder se constitui e se garante, também, por meio de semelhantes modos de usar e de comunicar. Paul Vayne (2014, p. 12), quando nega que “a imaginação anuncia futuras verdades e deveria estar no poder”, evidencia que “as verdades já são imaginações e a imaginação está no poder desde sempre”.

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O caráter múltiplo da cidade requer, antes de tudo, a construção de uma forma de aproximação que permita a elaboração de um eixo de observação que resulte em um discurso. Em princípio, pode-se dizer que a leitura e a percepção da paisagem urbana são demarcadas por duas matrizes formadas na modernidade, de certa forma amplamente revisitadas por diferentes discursos literários e fílmicos: a rua e a janela. Essas duas matrizes foram amplamente discutidas de modo crítico por Renato Cordeiro Gomes, lidas não apenas enquanto operadores teóricos, mas, principalmente, enquanto formas de registro da cidade. Por serem baseadas em mecanismos de observação diametralmente opostos, é possível classificar tais matrizes como antagônicas. Mas tal exercício seria apressado e resultaria em uma leitura equivocada. Esses mecanismos de observação e fixação à paisagem urbana não são contraditórios e excludentes, a aparente oposição pode ser desconstruída quando compreendemos e analisamos as potencialidades e os limites de cada matriz de representação da cidade. A primeira se baseia no movimento, no caminhar, no ato de estar na rua. Na rua, o olhar adentra o labirinto de signos que configuram a cidade e, literalmente, perde-se nele. No sentido oposto, a janela apresenta uma fixação e torna o ato de leitura dotado de certa passividade ao afirmar a separação do sujeito frente ao espaço urbano. Na aguda percepção de Renato Cordeiro Gomes, dois contos foram os responsáveis pela criação dessas duas matrizes: “O homem da multidão”, de Edgar Allan Poe, e “A janela de esquina do primo”, de E. T. A. Hoffmann.

***

Como quer que seja, entre todas as formas
épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz
pura e incolor da história escrita é a mais
incontestável. E, no amplo espectro da
crônica, todas as maneiras com que uma
história pode ser narrada se estratificam como
se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história.

(Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política)

Se, como declara Benjamin, o cronista narra a história, qual foi, então, a história narrada por Paulo Barreto? Rio de Janeiro, início do século XX. No lugar da antiga colônia, despindo-se de suas características, surgia uma cidade urbanizada nos moldes europeus, mais especificamente, parisienses. A contradição inerente às renovações urbanas e sociais se apresenta na escrita de Paulo Barreto. Mesmo se mostrando entusiasmado com o Rio que surgia, marcado pela modernização e pelo progresso técnico, o escritor – ao contrário do que apontam muitos estudiosos ao defini-lo como o cronista dos salões, muitas vezes comparando-o a Lima Barreto – não deixa de narrar as mazelas e a perda dos signos da cidade que carregava em sua alma. A “cena” e a “obscena”, conceitos elaborados por Renato Cordeiro Gomes em Todas as cidades, a cidade (1994), se apresentam na obra de João do Rio, que retrata os costumes da “gente de cima” (apud Gomes, 1996, p. 63) – como de “estetas, imitando Montmartre” de “discutir literatura e falar mal do próximo” (Rio, 1909, p. 129) na Rua da Assembléia ou na Rua da Carioca – e também os da “canalha”.

Já em 1903, na coluna “A cidade”, publicada na Gazeta de Notícias, textos do autor evidenciam os problemas do Rio de Janeiro, como a demora da construção de edifício da Maternidade, na Lapa, a falta de policiamento após às 19h e a escassez de água. Em A alma encantadora das ruas (1908), por exemplo, marcam presença as problemáticas da sociedade e o senso de justiça do escritor em, para citar algumas crônicas, A fome negra e Os trabalhadores de estiva. A posicionamento segue em Nos tempo de Venceslau (1917) até a culminação na coluna “Bilhete”, no jornal A Pátria (outubro/1920 a junho/1921), quando a atividade política de Paulo Barreto ganha corpo e se encerra com o seu falecimento.

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Os mapas, aparentemente tão díspares, apresentam outro elemento em comum. Os cartógrafos não creem ser válido revelar o profundo da cidade em detrimento do que ali é superfície. Não apostam na dicotomia ontológica entre essência e aparência, pois sabem que o oculto é obvio. Não há nisso, no entanto, um devaneio rizomático, mas a noção de que a cidade constitui de tal forma uma heterogeneidade de representações que constituem em si uma tradição:

um significativo arsenal de imagens, símbolos, mitos, metáforas, narrativas, formando um repertório pronto a ser realocado, repetido, na tentativa de construir sentidos para a realidade urbana, enquanto fenômeno moderno e pós-moderno. Dessa maneira tal repertório constitui uma tradição. E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é impregnada por essas imagens que foram inscrevendo-se nessa tradição (em continuidade e transmissibilidade): a representação do objeto cidade é ela própria formatada pelas ações e imaginações dos sujeitos que o percebem, mesmo com concepções distintas de cidade (Gomes, 2009, p. 74).

Tome-se, então, como concretização metafórica dessa situação em que a representação é o próprio objeto, um dos poemas do livro Agora aqui ninguém precisa de si (2015), de Arnaldo Antunes, “pedra de pedra”, que tem um fragmento que aqui interessa para explicitar essa percepção cartográfica:

o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?
casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
repleta apenas de pedra?[5][6]

As indagações ajudam a relativizar um suposto sentido oculto, profundo, de existência. O que se dá a ver é o que é. A pedra, que volta à poesia brasileira pelas mãos de Antunes, não é a de Drummond, no meio do caminho, nem a de Cabral, adocicada na glace que disfarça sua rudeza, nem a de Vaz, feita para quebrar vidraças[7], mas uma pedra heraclitiana, sabedora de que o tempo a transformará em areia. Para falar desse objeto sem substância secreta, ou melhor, cujo segredo de sua consistência é a própria superfície, outras metáforas são potentes. Os que aprenderam a cartografar literaturas e cidades com Renato hão de se lembrar da metáfora da cebola. A casca que se retira revela outra casca, e outra e outra, até o âmago de um objeto que é só casca.

A obscena não é cena, mas também não é oculta.

Caetano Veloso é autor de duas imagens imprescindíveis para ler essa questão na cultura brasileira. A primeira delas, aparece no verso “aqui tudo parece construção e já é ruína” numa canção que já foi citada mais acima, do início da década de 1990, em que denuncia o subdesenvolvimento que permanece fora da nova ordem mundial. A suposta oposição entre aparência (construção) e essência (ruína) não se sustenta. Ruína, neste caso, não é mais do que outra predicação dada à aparência da construção. “Construção-ruína” pode ser elencado como mais um dos paradoxos que configuram a modernidade. Outro dizer, crítico, do mundo que acaba se conformando na superfície da linguagem. Não pode, sequer, tratar-se de uma formulação metafísica, na medida em que fere um princípio clássico da lógica aristotélica, segundo o qual enunciados contraditórios não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo. Je est un autre, diria Rimbaud, inaugurando este paradoxo da modernidade em que A é não-A, e deslocando a questão da identidade de sua tautologia fundamental.

A segunda imagem, mais diretamente relacionada à reflexão que aqui se faz, está na canção “Um índio”, de 1976. A percepção final de que o herói mítico “surpreenderá a todos pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”. Óbvio-oculto é um paradoxo que articula a imaginação do poder no Brasil. Do racismo que se vende como democracia racial, ao poder armado que se legitima no Estado. Tudo é cena e obscena, óbvio-oculto.

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Seja na passividade do olhar distanciado (a janela) ou na enunciação pedestre (a rua), essas duas formas de representação possuem seus limites e potencialidades. Ao contrário da experimentação do ato de penetrar na densidade de signos que formam a cidade, a janela produz um isolamento que permite a observação e impede a participação do sujeito. O olhar emoldurado comporta a atenção a determinado ponto, tornando a janela um quadro vivo por onde transitam os elementos que formam a cidade. A janela, nessa perspectiva, oferta uma imagem que se assemelha a um palco no qual é construída uma encenação do cotidiano, ao qual o expectador alcança uma visão privilegiada e observa o desenrolar das ações. Em operação oposta, no ato de leitura da cidade que utiliza a rua enquanto espaço de observação, produzindo uma enunciação pedestre, perde-se a acuidade do olhar e o elemento efêmero é resultante do próprio ato de percorrer a cidade, sem fixar-se em um ponto determinado, perdendo-se no labirinto de signos. O ato de observar a cidade pela moldura de uma janela é dotado de uma pedagogia, de um aprendizado; não é apenas entretenimento. Debruçar-se sobre uma janela e focar a vida que se desenvolve no exterior é um exercício que requer atenção e técnicas próprias. Não é um olhar descontraído e, muito menos, contemplativo. Observa-se a cidade de modo agudo, resultante de um método específico, voltado especialmente para a criação de um olhar que se quer nítido. Cria-se um olhar que busca ordenar o aparente caos do cotidiano e para ler na superfície da materialidade dos edifícios e dos transeuntes uma imagem possível da cidade contemporânea.

Rua e janela. Janela e rua. Essas duas formas de olhar e representar podem igualmente estar relacionadas à famosa reflexão criada por Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, ao afirmar que a cidade é o símbolo capaz de exprimir a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas. Tal reflexão, conforme analisa Renato Cordeiro Gomes, é formada a partir do acionamento de duas metáforas que sintetizam o complexo jogo de leitura da cidade: o cristal e a chama. Por seu turno, a racionalidade geométrica apresentada por Calvino passa a ser metaforizada no cristal e o emaranhado das existências humanas assume o corpo da chama. Cria-se, nessa perspectiva, uma equação que pode ser simplificada na seguinte sentença: o cristal é forjado pela chama. Não há possibilidade de leitura da cidade que possa se ater em apenas uma única esfera de representação, se faz necessário produzir uma leitura que coadune o cristal e a chama. A constatação do sentido dialógico resulta em um novo entendimento para a investigação da experiência urbana e, principalmente, de sua representação. O ato de transitar pela cidade – seja em um percurso a pé, em uma enunciação andante, seja em um veículo de transporte coletivo, andar de ônibus – é a realização de um movimento aberto ao contato com o outro, produzindo um processo dual. Creio que se faz necessário afirmar que os encontros são efêmeros: verdadeiros instantâneos. Fisionomias entrecortadas pela visão ou esbarrões não evitados pelos desvios dos corpos. Os encontros são, em alguns casos, choques em uma paisagem dotada de artérias sobre as quais uma massa trafega de forma obstinada rumo a um destino.

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Penso se não somos, todos, a mescla das ruas em que habitamos.
(Marcelo Moutinho, Na dobra do dia)

“Por onde anda o flâneur?” é o título de matéria elaborada por Eliane Salles e publicada na revista Veredas, do Centro Cultural Banco do Brasil, em 1999. Se o interesse pela cidade enquanto tema desde a modernidade ainda figura, mudanças urbanas, culturais e sociais levam pesquisadores a acreditar que, na contemporaneidade, a flânerie já não é mais possível. Se falta consenso sobre a existência (ou sobrevivência) da figura do flâneur, não é o caso da produção intelectual e literária que tematiza o espaço urbano.

João do Rio, com sua crônica, Renato Cordeiro Gomes, com suas proposições teóricas, são inspirações para pesquisadores e escritores que perseguem a leitura da cidade, que “es lässt sich nicht lesen” (Poe). A bem da verdade, é o que se contempla em Rubem Fonseca; Luiz Ruffato; Rubens Figueiredo; Luiz Antonio Simas; Marcelo Moutinho; e outros. E é, também, o que buscamos neste ensaio.

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Os cartógrafos ocupam uma posição privilegiada de intelectuais, apesar dos impasses relacionados ao declínio e à queda da cidade letrada. Renato lê esse processo por meio da articulação entre o clássico de Angel Rama, La ciudad letrada, e o estudo de Jean Franco The decline & fall of lettered city. Suas conclusões articulam a ideia de deslocamento, uma das três propostas para o próximo milênio de Ricardo Piglia, como forma de

requalificação da cidade letrada, não mais como um espaço de legitimação ligado aos discursos hegemônicos, e que possa ir além da institucionalização cultural e do processo ilustrado que foi implantado como parte dos planos de progresso e de modernização social (como demonstrou Angel Rama). Reconfigura Piglia a posição do escritor e o imperativo da atividade política, que Antonio Candido detectou em Rama (Margato; Gomes, 2004, p. 127).

As invasões bárbaras, filme de Denys Arcand, ou cenas da novela Celebridades, da rede Globo, em que João Ubaldo Ribeiro e Silvio Tendler fazem pontas, são exemplos a que Renato recorre, para explicitar, a partir de entrevista do próprio Tendler, “a morte da cidade letrada, com o desmantelamento ético de uma sociedade corrompida pela razão cínica desses tempos de capitalismo globalizado” (Margato; Gomes, 2004, p. 128). A esses exemplos seria possível acrescentar uma série de outros fatos, mais recentes, que vêm tornando as redes sociais o mais radical palco de uma guerra não mais de relatos, mas de shitstorm, que colocam parcela significativa dos intelectuais absolutamente fragilizada e atônita.

Aquele lugar, professado por Sergio Vaz, e aqui lido como o do autor como produtor, o da literatura dita marginal ou periférica de uma forma geral, mas não só, deixa claro que as fronteiras da cidade letrada contêm uma circunscrição de classe, de raça e de gênero muito bem definida. A abertura com que Renato enxerga esse processo excludente, racista, sexista, de extração ilustrada está na maneira precisa como formula a percepção da obscena, em Lima Barreto, mas também na abertura com que se dispôs a orientar teses e dissertações sobre a literatura marginal-periférica, sobre a favela, sobre personagens a partir dos quais esse olhar deslocado, à margem, pudesse garantir traços mais justos e inclusivos, mais cores para a cartografia da cidade e da nação, dos temas e dos problemas.

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Hoje, diante de uma cidade devassada pela violência dos agentes de segurança do Estado, em uma cidade marcada pela fragmentação das experiências e pelo galopante isolamento dos sujeitos, a janela e a rua assumem novas feições e agora estão dotadas de novas características. Os romances Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, e Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, podem ser acionados enquanto exemplos deste movimento de ressignificação dos modelos de narrar a cidade. No romance de Figueiredo, a cidade é vista a partir da janela de um ônibus que realiza o trajeto entre o centro e a periferia. A moldura que tornava o olhar mais contemplativo e permitia a indexação dos vários elementos do cenário urbano agora é marcada pela mobilidade. Afinal, a janela não é mais fixa, esta se coloca em movimento. Além de ser o espaço de mediação com a cidade, a janela do ônibus igualmente passa a fazer parte da paisagem urbana, integra o cenário na mesma medida em que é um dispositivo de observação. Em outra perspectiva, Luiz Ruffato problematiza a ideia de romance e representação ao propor uma narrativa que experimenta um percurso pela cidade de São Paulo. O autor opta pelo fragmento enquanto estratégia narrativa e compõe um mosaico de vivências e perspectivas que produz um olhar prismático para a metrópole contemporânea. Ao propor esse recurso, o autor nos revela que não existe mais a possibilidade de produzir uma enunciação pedestre, um percurso linear pelas ruas da cidade. O flâneur, personagem símbolo da cidade moderna, é substituído pelo zapeur, um modelo contemporâneo de narrar a cidade que se notabiliza por uma errância fragmentada e não linear, conforme observaram Renato Cordeiro Gomes (2007) e Giovanna Dealtry (2007).

Faz-se necessário ativar um novo referente para alcançar um molde de representação da cidade que possibilite observar essas mudanças e que permita novamente exercitar o experimento da representação. O olhar surge como metáfora possível para alcançar um foco que coloque em destaque uma possibilidade de leitura da paisagem urbana, proporcionando a existência de novos relatos. Afinal, como nos informa Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano 2, a cidade é o “teatro de uma guerra de relatos”. Ainda que breve, a definição apresentada pelo autor serve como ponto de referência para o estabelecimento de um horizonte de questões acerca da produção teórica que examina a relação entre literatura e experiência urbana. Dessa forma, a partir da leitura produzida por Certeau, é possível identificarmos o princípio prismático da subjetividade que determina a forma de narrar e ler a cidade. Ao ser classificada enquanto um palco de uma disputa discursiva, a cidade surge como espaço que se constrói não apenas em sua materialidade física, mas, igualmente, no próprio ato de narrá-la. A edificação da narrativa resulta no estabelecimento de uma imagem para a cidade que entra em choque com outras imagens já existentes, evidenciando a perpetuação de uma guerra de relatos. No entanto, conforme o autor afirma, tal conflito é operado no espaço da performance e tem como cenário o campo da fabulação: o teatro. Por esse viés, não se trata do estabelecimento dos relatos enquanto verdades acerca da cidade, mas, sobretudo, como construções discursivas que refletem a subjetividade de quem as produziu.


* Alexandre Graça Faria é doutor em Letras pela PUC-Rio e professor da Faculdade de Letras da UFJF. Aline da Silva Novaes é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio e professora da Faculdade de Comunicação do Centro Universitário Ibmec. Autora de João do Rio e seus cinematographos: o hibridismo da crônica na narrativa da belle époque carioca. (FAPERJ/Mauad, 2015). Paulo Roberto Tonani do Patrocínio é doutor em Letras pela PUC-Rio e professor da Faculdade de Letras da UFRJ. Autor de Escritos à margem, a presença de autores de periferia na cena literária contemporânea (FAPERJ/7Letras, 2013) e Cidade de lobos: a representação de territórios marginais na obra de Rubens Figueiredo (FAPERJ/EDUFMG, 2015).

Referências

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Notas

[1] Esta citação está na tese arquivada na Biblioteca da PUC-Rio, mas não no livro Todas as cidades, a cidade, dela derivado.

[2] A sociologia e a antropologia não são disciplinas que levam facilmente a situações em que as pessoas são capazes de viver suas fantasias, não apenas na ação simbólica do ritual, mas no teatro concreto da sociedade em geral. A cidade é uma dessas situações. Suas condições quebram efetivamente muitas das distinções convencionais entre a vida dos sonhos e a vida real; a cidade de dentro da cabeça pode ser transformada, com a ajuda da tecnologia do estilo, na cidade das ruas. Em um grau muito grande, as pessoas podem criar suas cosmologias à vontade, libertando-se dos esquemas deterministas que deveriam tê-las levado a um estilo de vida totalmente diferente. Ter uma concepção platônica de si mesmo e fazê-la emergir, completamente vestida, para fora da cabeça, é uma das liberdades mais perigosas e essenciais da cidade, e é uma liberdade que foi ignorada e subestimada por quase todos, exceto pelo os romancistas (tradução nossa).

[3] Esta é edição do autor, sem referências. Vários poemas nela presentes serão reeditados em Vaz, Sergio. O colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2007. O texto citado constitui fragmento que será aproveitado no famoso “Manifesto da antropofagia periférica”, publicado em VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011. Interessou-me citar essa edição, em especial pelo título do primeiro livro de Sérgio Vaz, A poesia dos deuses inferiores, imagem que vai sendo articulada ao longo do texto.

[4] Cf. https://www.marxists.org/portugues/brecht/1934/mes/verdade.htm. Acessado em 17/02/2020.

[5] Antunes, Arnaldo. Agora aqui ninguém precisa de si. Companhia das Letras. Edição do Kindle.

[6] “O texto do Arnaldo Antunes me fez lembrar de uma passagem de Cidades invisíveis em que Marco Polo descreve uma ponte em arco, descreve pedra por pedra. Kublai protesta e diz que tem interesse em conhecer o arco. Polo responde que só existe o arco devido as pedras.” (Comentário de Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, durante a leitura prévia desses fragmentos).

[7] Cf. FARIA, Alexandre; BARRETO, Carolina de Oliveira. “Epicentro na periferia: trânsito e fronteiras em Colecionador de Pedras, de Sergio Vaz”. In: PEREIRA, Terezinha Maria Sher e FERREIRA, Rogério de Souza Sergio. (Org.). Literatura e política. 1ed.Juiz de Fora: UFJF, 2011, v.XX, p. 187-201.

dossiê
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NOTAÇÕES DA CIDADE NO CONTO ‘ROLÉZIM’, DE GEOVANI MARTINS

Coletânea que reúne treze contos, O sol na cabeça (2018), de Geovani Martins, apresenta temáticas relativas às experiências comuns à subjetividade humana, trazendo à tona contextos que remetem às relações amorosas, infância, medo, opressão, perda e liberdade. Aclamado pela crítica, nascido em Bangu, no Rio de Janeiro, Geovani Martins aborda essas temáticas enfocando perspectivas que referenciam seu lugar enquanto escritor oriundo da periferia. Notadamente de teor autobiográfico, sua obra ficcionaliza suas vivências pessoais e coletivas, estilizando uma escrita cuja sofisticada elaboração linguística é constantemente incorporada pela linguagem popular e coloquial. Essa singular construção textual implica uma produção híbrida que salienta a capacidade narrativa do autor que, ao intercalar abordagens universais às perspectivas locais, rompe fronteiras para estabelecer uma escrita marginal-periférica que desponta no cenário literário contemporâneo.

Em O sol na cabeça, nota-se que os sujeitos da periferia experienciam cotidianamente os conflitos decorrentes de uma organização socioespacial excludente que relega às periferias coletivos marginalizados, atestando a premissa do espaço urbano enquanto território permeado de conflitos e tensões sociais (Gomes, 1999; Pesavento, 2002). Nesse sentido, o morador da favela se estabelece enquanto elemento estranho nas localidades não-periféricas, acarretando experiências que desvelam a discriminação opressiva do racismo estrutural vigente. Os contos do livro, ao abordarem diferentes temáticas, enfocam sempre a condição de subjetividades que foram colocadas à margem da estrutura social, de modo que esses sujeitos adquirem protagonismo ao serem descritos como indivíduos em constante processo de conflito pessoal e social.

Em alguns contos nota-se que subjetividades periferizadas antagonizam a cidade em contraposição à periferia, o que elucida os mecanismos segregacionistas que reforçam a discriminação nos palcos da experiência citadina. A favela, nesse contexto, é referenciada enquanto localidade apartada, não pertencente à cidade, de modo que seus moradores, igualmente, são vistos como indivíduos abjetos cuja presença em determinados locais é constantemente interditada. Ao tematizar o cotidiano conflitante de personagens da periferia, a obra de Geovani Martins pode ser entendida no campo expressivo da Literatura marginal-periférica[1], pois enfoca personagens e situações alocadas em conjunturas à margem da estrutura social, abordando temas que referenciam a favela, a violência e as condições de precariedade oriundas de um sistema segregacionista. Nesse sentido, com o objetivo de relacionar as noções de espaço urbano e espaço biográfico, a análise em discussão pauta-se em expressões oriundas de sujeitos dissidentes e discute como o autor se utiliza de linguagem politicamente engajada para descrever seu cotidiano como morador da periferia, escancarando as malhas de uma sociedade desigual.

Pretende-se discutir a representação do espaço urbano ao analisar o conto Rolézim, narrativas que compõem a coletânea O sol na cabeça, de Geovani Martins. A obra do autor carioca traz interessantes visões contemporâneas acerca de sujeitos que vivenciam condições de marginalidade, descaso social, dor e alegria, atualizando temas importantes comumente abordados na literatura periférica. Enquanto produção literária que privilegia o lócus subalternizado da espacialidade urbana, a literatura marginal-periférica não apenas denuncia a desigualdade pertinente nas zonas marginais da cidade, mas também reivindica direitos ao expressar vivências calcadas na luta e na resistência.

Sendo o campo literário que enuncia perspectivas historicamente sulcadas por influências hegemônicas, essa modalidade de escrita é produzida por autores que moram e experenciam a favela enquanto espaço de legitimação, reflexão e questionamentos. Desses autores, destacam-se, dentre outros, Ferréz, autor de Capão pecado, Sacolinha, autor de Graduado na marginalidade, e Sérgio Vaz, autor de Colecionador de pedras, obra cuja poética encena a periferia em sua pujante pluralidade.

Geovani Martins. Na imagem, a periferia é enquadrada ao fundo, de forma a ressaltar o lugar de fala do escritor. Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/wpcontent/uploads/2018/02/08fev2018osmenovao.jpg
Geovani Martins. Na imagem, a periferia é enquadrada ao fundo, de forma a ressaltar o lugar de fala do escritor. Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/wpcontent/uploads/2018/02/08fev2018osmenovao.jpg

A obra desses escritores figura no seio da literatura marginal-periférica por abranger a periferia enquanto espaço de significação, inserindo no cenário literário temáticas até então pouco privilegiadas pela tradição canônica vigente. É por intermédio da acepção de Ferréz, nesse sentido, que compreendemos a definição de literatura marginal-periférica:

Eu sempre fui chamado de marginal pela polícia e quis fazer como o pessoal do hip hop que se apropriou de termos que ninguém queria usar. Já que eu ia fazer a minha revista maloqueira, quis me autodenominar marginal. Eu fiz como os rappers, que para se defenderem da sociedade, aceitam e usam os termos ‘preto’ e ‘favelado’ como motivos de orgulho. Depois surgiu a revista, porque eu já colaborava com a Caros Amigos e fiz a proposta de trazer outros escritores em um número especial, mas tinha que ser da periferia, disso eu não abri mão. Eu ia para as palestras e as pessoas vinham conversar comigo e se identificavam com o que eu fazia e com a minha denominação marginal – desde a D. Laura, que é uma líder comunitária de uma colônia de pescadores, até os rappers que eu já conhecia (Ferréz apud Nascimento, 2006, p. 15).

Ao se espelhar em movimentos da contracultura, Ferréz reproduz os meios de subversão e apropriação dos lugares, transformando noções pejorativas em conceitos apreciativos que identificam um coletivo. Para o autor, reformular o estigma do termo marginal implica ressignificar seu lugar e reconhecer sua posição social enquanto cidadão, conclamando direito à cidade por melhores condições de vida. Enunciar a favela e o lócus periférico significa reapropriação dos espaços – materiais e simbólicos – como estratégia de autenticação de realidades consideradas marginais, relegadas por influências excludentes. Em O sol na cabeça, nota-se que Geovani Martins põe em pauta personagens que transitam em ambientes periféricos e não-periféricos, encenando situações que privilegiam identidades recalcadas por discursos hegemônicos. Assim, das trezes histórias que compõem o livro, será aqui discutida a primeira, a saber: Rolézim, conto escolhido e destacado da coletânea, por ser uma narrativa que bem exemplifica as relações antagônicas da urbe.

Em Rolézim, primeiro conto de sua coletânea, Geovani Martins estiliza uma escrita cuja centralidade representa a subjetividade periférica em suas angústias, medos e esperanças. Nesse conto, o personagem narrador descreve seu dia ao sair de casa para ir à praia, ressaltando o clima ensolarado como motivação para sair, encontrar os amigos e aproveitar o dia de sol. O primeiro obstáculo nesse percurso é o financeiro: “Tinha dois conto em cima da mesa, que minha coroa deixou pro pão. Arrumasse mais um e oitenta, já garantia pelo menos uma passagem, só precisava meter o calote na ida, que é mais tranquilo” (Martins, 2018, p. 9). Deslocar-se a praia, nesse sentido, implica abrir mão da alimentação matinal, o que evidencia a conjuntura desigual das camadas periferizadas no ambiente urbano. Depois de longos percalços, o personagem narrador, ao chegar à praia, encontra mais obstáculos, conforme exemplifica o trecho a seguir:

Chegamo na praia com o sol estalando, várias novinha pegando uma cor com a rabeta pro alto, mó lazer. Saí voado pra água, mandando vários mergulho neurótico, furando as onda. A água tava gostosinha. Nem acreditei quando voltei e vi o bonde todo com mó cara de cu. O bagulho era que tinha uns cana ali parado, escoltando nós. Tava geral na intenção de apertar o baseado, e os cana ali. Esses polícia de praia é foda. Tem dia que eles fica sufocando legal. Eu acho que das duas uma: ou é tudo maconheiro querendo pegar a maconha dos outros pra fazer a cabeça, ou então é tudo traficante querendo vender a erva pra gringo, pros playboy, sei lá. Sei é que quando eu vejo cana querendo muito trabalhar fico logo bolado. Coisa boa num é! (Martins, 2018, p. 12).

Fonte: https://abrilveja.files.wordpress.com/2018/03/geovani-martins-2018-2270.jpg?quality=70&strip=info&resize=680,453
Fonte: https://abrilveja.files.wordpress.com/2018/03/geovani-martins-2018-2270.jpg?quality=70&strip=info&resize=680,453

A polícia, nesse entender, se estabelece como instância que interdita e sufoca a expressão de subjetividades oriundas dos espaços periféricos da cidade, de modo que andar pela urbe, para essas camadas, atesta a configuração desigual, conflituosa e antagônica do espaço urbano (Gomes, 1999; Pesavento, 2002). No dizer de Érica Peçanha Nascimento, a literatura marginal legitima seus produtores numa “classificação representativa do contexto social nos quais estariam inseridos: à margem da produção e do consumo de bens econômicos e culturais, do centro geográfico das cidades e da participação político-social” (2006, p. 15). Ao problematizar os embates pertinentes aos centros geográficos das cidades, por exemplo, a literatura marginal-periférica atesta a segregação social dos espaços e protagoniza expressões oriundas de localidades estigmatizadas da metrópole, de modo a incorporar no panorama literário nacional perspectivas dissonantes do cânone predominantemente branco e economicamente elitista. Em sendo narrativa cuja ficção referencia o cotidiano do autor, o conto Rolézim adquire notações autobiográficas ao remeter às vivências de sujeitos periféricos, reforçando o caráter testemunhal politicamente engajado da escrita marginal-periférica, conforme ressalta Patrocínio (2016, p. 155): “a produção discursiva marginal seria tomada não apenas como um discurso ficcional, mas como um texto político que apresenta o relato de uma experiência que aciona nos leitores, sejam esses críticos ou não, uma práxis solidária.”.

Ao representar o lócus periférico que se embrenha por entre localidades centrais da cidade, Geovani Martins atesta que a separação dos espaços não é estanque, tampouco definitiva, haja vista que sujeitos periferizados não se restringem aos limites espaciais que lhe foram impostos, transgredindo as fronteiras da cidade para circular pela urbe e legitimar suas existências. O termo rolezinho, aliás, remete aos passeios e caminhadas que jovens da periferia empreendem nos lugares públicos da metrópole, desafiando as normas que delimitam a circulação dessas camadas apenas aos espaços suburbanos da cidade. No conto, transitar pelos locais centrais da urbe implica diversão, entretenimento e lazer, mas também suscita momentos imbuídos por situações regradas a preconceito e discriminação:

Ninguém queria pedir pros maconheiro playboy lá da praia, tudo mandadão, cheio de marra. […] O que me deixa mais puto é isso, menó. Tava os dois lá, de bobeira. Aí, quando chegou o Tico mais o Poca Telha pra pedir um bagulho pra eles, na humilde, ficaram de neurose, meio que protegendo a mochila, olhando em volta pra ver se num vinha polícia. Num fode! Tem mais é que ser roubado mermo, esses filho da puta. Não fosse minha mãe eu ia meter várias paradas na pista, sem neurose, só de raiva. Foda é que a coroa é neurótica. Ainda mais depois do bagulho que aconteceu com meu irmão. Ela sempre me manda o papo de que se eu for parar no Padre Severino ela nunca mais olha na minha cara. Bagulho é doido! (Martins, 2018, p. 13).

Transitar pelos espaços públicos implica não apenas repressão policial, mas também embates com outras subjetividades oriundas de classes sociais abastadas. Nesse trecho, jovens brancos da classe média/alta discriminam moradores da favela, constatando o racismo estrutural que, além de ser institucionalizado, se revela em diversos âmbitos da espacialidade urbana. Ressentido com o preconceito sofrido, o personagem narrador reitera os conflitos sociais que nutrem os antagonismos de classe e etnia. Oriundo de um contexto violento, a voz narrativa do conto menciona seus familiares como forma de resistir às influências que o empurrariam para a criminalidade. A mãe e o irmão – cuja morte reforça o histórico de violência nas favelas – se estabelecem como vínculos que mantêm o personagem em constante processo de autocuidado.

Nesse sentido, considerando o local de produção do autor, nota-se que a presença do espaço biográfico, enquanto expressão íntima e vivencial presente em diversos gêneros de comunicação (Arfuch, 2010), se firma em Rolézim, tendo em vista que esse espaço abrange desde escritas de teor testemunhal às produções ficcionais. Ao representar perspectivas e visões que protagonizam a periferia, Geovani Martins estiliza uma escrita cuja temática possibilita pensar a respeito de possíveis autobiografias urbanas, pois a relação “entre ficção e testemunho, além da própria interrogação acerca dos limites da crítica literária frente a este objeto discursivo, tem como origem e fundamento o exato lugar, ou território, que o sujeito da enunciação ocupa.” (Patrocínio, 2016, p. 156). Assim, enquanto sujeito da enunciação, Martins tece uma narrativa legítima que pauta o cotidiano de camadas segregadas:

Quando nós viu já era quase de noite. Uma larica que, sem neurose, era papo de quarenta mendigo mais vinte crente. Tava na hora de meter o pé. E foi aí que rolou o caô. Nós tava tranquilão andando, quase chegando no ponto já, aí escoltamos os canas dando dura nuns menó. A merda é que um dos cana viu nós também, dava nem pra voltar e pegar outra rua. […] Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro, o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem dinheiro de passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é tomada, ela já me engoliu na porrada (Martins, 2018, p. 15).

O retorno para casa, nesse trecho, se configura como percurso que apresenta outros obstáculos, a exemplo da repressão policial explícita. Quando comenta as condições impostas pelos policiais para ser liberado, o personagem narrador constata que não há saída, pois todas as condições o levariam à delegacia, onde provavelmente outros processos de repressão seriam aplicados.

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Ter pouco ou demais dinheiro, bem como não estar com a identidade, se estabelece como condição que criminaliza esses sujeitos e nega seus direitos enquanto cidadãos. Negar a cidadania de determinadas camadas implica recusar sua participação nos palcos de atuação social, obstando a circulação desses indivíduos em espaços públicos. No dizer de Dalcastagnè (2007, p. 20), os grupos marginalizados podem ser compreendidos “como todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou outro critério.”. Desse modo, enquanto identidades coletivas que recebem valorações depreciativas, esses grupos subalternizados representam a cidade em sua pujante constituição conflituosa, estranha e tensiva, conforme ressalta Gomes (1999).

Nesse contexto, enquanto tema de análise e reflexão, a representação da cidade pode ser entendida enquanto articulação de signos, na qual identidades sociais culturalmente construídas encontram-se em constante processo de significação (Pesavento, 2002). Em Rolézim, o personagem narrador, ao ficar ciente que será punido, mesmo sendo inocente, inicia uma fuga dos policiais, trecho que encerra o clímax do conto:

Não pensei duas vez, larguei o chinelo lá mermo e saí voado. O cana gritou na hora que ia aplicar. Passei mal, papo reto, fui correndo com o cu na mão, queria nem olhar pra ver qual ia ser. Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois o Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas pra continuar revistando os menó. Passei batido! (Martins, 2018, p. 15-16).

Ao pôr em pauta situações e eventos comuns na vida dos moradores de favelas e periferias, Geovani Martins, enquanto escritor socialmente engajado, insere no cenário literário contemporâneo notações que antagonizam perspectivas unívocas que se pretendem universais. A universalidade nos contos do escritor carioca está calcada numa posição localmente definida, de maneira que a periferia adquire centralidade frente aos processos que reiteram a periferização dessas camadas subalternas. Questionar o centro a partir da periferia implica estabelecer novas centralidades, questionando normas e premissas sociais que engessam os lugares e perpetuam desigualdades. Enquanto escritor contemporâneo, Geovani Martins não se isenta dos processos de hibridização que transpassam as relações atuais, de modo que sua obra reitera o subúrbio não apenas enquanto elemento apartado da cidade, mas enquanto territorialidade que possui seus próprios núcleos e centros, fundando uma escrita que protagoniza a favela não em sua constituição periférica, mas em sua centralidade.

Nesse contexto, estabelecer relações entre obra e vida em Geovani Martins se configura enquanto processo de abordagem crítico-biográfica, considerando “o intrínseco ligamento da produção com a cultura do sujeito social: aquele mesmo sujeito que o estudo de biografia tradicional esqueceu que estava por detrás dos produtos artístico-culturais” (Bessa-Oliveira, 2014, p. 86). Assim, ao considerar o lugar de Geovani Martins enquanto escritor que elucida os mecanismos de desigualdade social a partir do olhar periférico, pauta-se a constituição biográfica desse escritor que, ao estilizar uma escrita a contrapelo, questiona as fronteiras socioespaciais que separam os lugares em centros e periferias.

Não esquecendo o sujeito que está por trás da escrita, uma abordagem crítico-biográfica da literatura marginal-periférica implica considerar o contexto atual em que o autor está inserido: numa conjuntura de constante hibridização das relações, dos contextos e dos espaços, superando conceitos estanques de centro e periferia, haja vista que “centros sempre tiveram suas periferias, e as periferias, por sua vez, sempre tiveram seus centros.” (Pelúcio, 2012, p. 412). Não relativizando a divisão dos espaços que perpetua desigualdades, considerar o intercâmbio entre favela e cidade implica conceber a periferia enquanto espaço de significação que dinamiza as relações sociais e estabelece centralidades, contrapondo-se à hegemonização dos espaços. Para Heloisa Buarque de Hollanda:

a perspectiva de examinar o conjunto urbano como um todo, – procurando perceber a real interdependência entre os diversos polos da cidade –, poderia oferecer um viés mais confortável para a reflexão. Por exemplo, basta um passeio nos teleféricos das favelas, especialmente no complexo do Alemão, onde se tem quase como que um plano aéreo da cidade, para que o observador veja, com a maior nitidez, a rede de articulações entre favela e asfalto, especialmente na cidade do Rio de Janeiro (2016, p. 103).

Considerando a discussão empreendida, nota-se que o espaço urbano é tematizado, na obra do autor carioca, enquanto território de conflitos e embates, porém também como lugar de resistência e legitimação de subjetividades dissidentes, pois o escritor resignifica a urbe com vias a se apropriar dos espaços e imprimir à cidade notações reivindicativas. Nesse sentido, ao enfocar os conflitos na urbe percebe-se que o autor carioca evidencia que “Nossas cidades literárias são feitas, na verdade, de muitas ausências: mulheres, pobres […], velhos, crianças, estão todos de algum modo excluídos das ruas e contornos urbanos que se delineiam nos textos contemporâneos” (Dalcastagnè, 2003, p. 49-50). É por meio dessa rede de articulações entre favela e asfalto que subjetividades periféricas intercambiam processos de troca cultural e dinamizam o ambiente urbano, contrariando sua feição aparentemente homogênea. A divisão dos espaços, nesse contexto, se estabelece como ação discursiva que apresenta lacunas por onde se embrenham expressões contrárias ao engessamento das identidades.


* Leandro Souza Borges Silva é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações (PPGL), da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Graduado em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas e Língua Inglesa e suas Literaturas, também pela UESC.

Ricardo Oliveira de Freitas é professor Titular Pleno da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos das Linguagens – PPGEL/UNEB e do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações/UESC. E-mail: mailto:ricofrei@gmail.com

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

BESSA-OLIVEIRA, Marcos Antônio. A natureza compósita da crítica biográfica Eneida Maria de Souza. In: Cadernos de Estudos Culturais: Eneida Maria de Souza: uma homenagem. v. 6, n. 12. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2014, p. 69-100.

DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea, Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 18-31, 2007.

DALCASTAGNÈ, Regina. Sombras da cidade: o espaço na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 21, p. 33-53, 2003.

GOMES, Renato Cordeiro. A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema, Ipotesi: revista de estudos literários, Juiz de Fora, v. 3, n. 2, p. 19-30, 1999.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Práticas de leitura periféricas: experiências literárias e políticas. IN: LIMA, Elizabeth Gonzaga de. et al. Leitura e Literatura do Centro às Margens: Entre Vozes, Livros e Redes. São Paulo: Pontes, 2016, p. 101-109.

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

NASCIMENTO, Érica Peçanha. Literatura marginal: os escritores de periferia entram em cena, 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Subalterno, Periférico e Marginal: Os Novos Sujeitos da Enunciação no Cenário Cultural Brasileiro. In: ALMEIDA, Júlia. SIEGA, Paula (Orgs). Literatura e voz subalterna. Espírito Santo: Edufes, 2016, p. 149-170.

PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem, cara-pálida? Apontamentos às margens sobre pós- -colonialismos, feminismos e estudos queer. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 2, 2012, p. 395-418.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

Notas

[1] Não é foco dessa discussão apresentar elaborado panorama conceitual acerca da literatura marginal/periférica. Por entender que essa literatura é referenciada tanto como literatura marginal quanto por literatura periférica, optou-se por utilizar ambos os termos, a fim de abranger produções que abarquem essas temáticas em comum, conforme endossa Patrocínio (2016): “a expressão periferia passa a ser elemento catalisador de uma proposta identitária baseada na diferença, que busca reunir sob uma mesma égide sujeitos oriundos de diferentes territórios marginais.” (p. 157-158).

dossiê
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O RIO DE JANEIRO EM CARA DE CAVALO, DA AQUELA CIA. DE TEATRO

O livro de registro da cidade é um labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente.
Renato Cordeiro Gomes. Todas as cidades, a cidade.

Introdução

No mundo ocidental, o teatro é uma das manifestações culturais mais predominantes e populares desde a Antiguidade Clássica. Sua história também atravessa a história das cidades; o teatro narra a cidade, encena a cidade e se circunscreve em um espaço citadino tanto público quanto privado, no edifício teatral ou na rua[1].

Na Grécia Antiga, boa parte das peças era localizada em algum espaço público proeminente, da abertura da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, que acontece em frente ao palácio do rei, à comédia de Aristófanes Lisístrata, onde mulheres se reúnem em frente à acrópole para combinar a greve de sexo que, segundo a protagonista, poria fim a guerras. Como assinala Stanton Garner Jr., “dos festivais atenienses civis e religiosos aos teatros públicos e privados do período moderno, sua história é paralela à progressão (ões) do urbanismo ocidental”[2] (Garner Jr., 2002, p. 95).

Para explicar a ideia de que “o teatro constituiu uma clara leitura do texto urbano”[3], Garner cita o exemplo dos cortejos teatrais do século XV “que literalmente atravessavam a cidade medieval em um mapeamento cognitivo carregado de significado”[4] (Garner Jr., 2002, p. 95). Com o desenvolvimento das cidades e principalmente a partir do século XX, o teórico acredita que o teatro seja “a mais urbana das formas culturais”[5] (Garner Jr., 2002, p. 96). Assim, Garner analisa como dramaturgos de gêneros variados leram a cidade: a cartografia de Londres, presente em A profissão da Senhora Warren e Major Barbara, de George Bernard Shaw; a Alemanha pós-guerra de Tambores na noite e a Chicago de Na selva das cidades, ambas de Bertolt Brecht; a Nova Iorque de A história do zoológico, de Edward Albee, etc.

Além da cidade representada no texto teatral – graças principalmente ao teatro de vanguarda da década de 1960 e aos happenings, como nos lembra Garner – foram “violadas as fronteiras entre teatro e cidade, auditório e rua”[6] (Garner Jr., 2002, p. 95). Desse modo, não só o teatro de rua permanece, como surgem novas formas de ressignificar o espaço através dos chamados environmental theatre[7], site-specific theatre[8] e immersive theatre[9]. Em linhas gerais, podemos dizer que tais modos teatrais dizem respeito ao teatro que é concebido a partir de ou considerando-se, essencialmente, o caráter simbólico do espaço da encenação, além de trazer à plateia para um contato mais direto com os atores.

Na contemporaneidade, além do teatro, da literatura, das artes plásticas e do cinema, também a televisão, através de novelas, séries e minisséries, ajudam a construir uma leitura da cidade. Como assinala Renato Cordeiro Gomes:

[…] a cidade é […] a simbiose entre cidade e cultura, cada vez mais flagrante nos estudos culturais, que vêem o espaço da cidade como o texto cultural mais significativo para os artistas e produtores de cultura hoje, e apontam para as inúmeras possibilidades do imenso laboratório em que se tornou o espaço da cidade entendida como esfera pública e como arena cultural.
(Gomes, 2009, p. 20).

Das diversas possibilidades de se pensar a cidade e o teatro, Jen Harvie (2009, p. 6) sugere três maneiras pelas quais “práticas teatrais produzem significado urbano”[10]. Elas se dariam através do texto dramático, das condições materiais e das práticas performativas. O texto dramático nos mostraria as relações entre a cidade e o personagem, o que nos levaria a perceber as relações sociais urbanas, não somente como os personagens lidam na cidade, mas com a cidade. As condições materiais, ou seja, onde o teatro ou a peça é encenada, quais as políticas públicas ou incentivos privados que tornaram a empreitada possível, como o teatro é equipado e quem nele trabalha, nos informariam sobre a estrutura artístico-urbana onde ele se inscreve. Quanto às práticas performativas, estas variam desde a encenação da peça a performances, intervenções teatrais, site-specific, protestos, ou seja, formas que de algum modo inserem o público na experiência em questão.

Partindo da premissa de que, na contemporaneidade, teatro e cidade têm uma relação cada vez mais amalgamada e levando a cabo uma das maneiras de analisar o significado do urbano proposto por práticas teatrais através do texto dramático, este estudo tem por objetivo examinar como a cidade do Rio de Janeiro é representada em Cara de Cavalo, primeira peça da chamada Trilogia Carioca da Aquela Cia. de Teatro, criada em 2005 e sediada nessa cidade.

As peças que compõem a trilogia, Cara de Cavalo, Caranguejo Overdrive e Guanabara Canibal, foram escritas pelo dramaturgo da companhia, Pedro Kosovski, e publicadas pela editora Cobogó[11]. Entretanto, o título desse estudo refere-se sobretudo à companhia, pois, no entender de Kosovski, ele realiza uma “dramatorgia” (Kosovski, 2019, p. 231), isto é, escreve a partir de um trabalho colaborativo que contou com diretor e atores na sua elaboração. A esse respeito, afirma Kosovski (2019, p. 230):

Eu imagino junto com muita gente, na sala de ensaio. Por isso a imaginação não está no campo pessoal, privado, íntimo […]. Estou pensando a imaginação e escrevendo no embate com várias pessoas, que também são, de certa forma, autores. Eu não sou o autor. Sou o dramaturgo e é só um texto. Agora, a autoria daquilo é uma autoria claramente da sala de ensaio.

Além de certos teóricos do teatro, principalmente os que escrevem sobre a relação do teatro com a cidade, como os já citados Jen Harvie e Stanton Garner Jr., também serão utilizados como aporte teórico estudos escritos por Renato Cordeiro Gomes sobre as representações e escritas da cidade.

Breve apresentação da Aquela Cia. de Teatro

A Aquela Cia. de Teatro, sediada no Rio de Janeiro, foi fundada em 2005 pelo ator, diretor e dramaturgo Pedro Kosovski em parceria com o diretor Marco André Nunes. Curioso observar que, ao contrário da maioria das companhias teatrais cariocas e brasileiras cujo núcleo é formado por atores – a Cia. dos Atores e os Atores de Laura são um grande exemplo disso, como deixam ver seus nomes –, a Aquela Cia. conta apenas com Kosovski e Nunes; os demais artistas trabalham apenas em determinadas montagens a convite dos dois ou a partir de alguma oficina por eles ministradas.

O início da trajetória de Kosovski como dramaturgo se confunde com a trajetória da própria companhia. A primeira peça da Aquela Cia., Projeto K., foi escrita em 2005 pelo dramaturgo Walter Daguerre, através de trabalho colaborativo, a partir da vida e obra do escritor Franz Kafka. Na montagem, Nunes era o diretor e Kosovski um dos atores. O trabalho seguinte da companhia seguiu o mesmo processo de Projeto: Subwerther, baseado em Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, e dos fragmentos desse romance presentes no livro de Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso. Já em 2006, Kosovski decide ele mesmo escrever um texto, interrompendo sua carreira de ator para se tornar o dramaturgo da companhia. Dessa vez foi Lobo n. 1 – a estepe, baseado no romance de Herman Hesse. Logo em seguida escreveu Do artista quando jovem, inspirado no universo literário de James Joyce.

Após pausa por alguns anos, Kosovski e Nunes entenderam que estavam “fazendo há cinco anos trabalhos sobre cânones literários da Europa” (Kosovski, 2019, p. 218), o que interpretaram como uma formação deles enquanto artistas. Desse modo, em 2011, os dois decidiram pesquisar e experimentar a relação entre teatro e música e, assim, Kosovski escreveu Outside, um musical noir, elaborado a partir do encarte do álbum homônimo de David Bowie, e, em seguida, Edypop, inspirado no mito de Édipo e em John Lennon.

O universo da música e de personalidades persiste na dramaturgia de Pedro Kosovski, mas a partir da chamada Trilogia Carioca, a música continua intrínseca à montagem – e então se constitui uma das principais marcas da companhia –, mas as personalidades e os temas e abordados são aqueles do Brasil; mais especificamente do Rio de Janeiro.

Assim, a primeira peça da trilogia, escrita em 2012, trata do criminoso Manoel Moreira, de alcunha Cara de Cavalo, que deu título à peça, executado por policiais quando foragido na cidade de Cabo Frio, e do artista Helio Oiticica, que lhe rendeu uma homenagem com o Bólide caixa 18. Em seguida, em 2015, veio Caranguejo Overdrive, sobre um mangue carioca aterrado no final do século XIX, onde atualmente se situa a Praça Onze. Finalmente, em 2017, Guanabara Canibal, escrita sobre o encontro do índio com o colonizador a partir de estudos da Batalha de Uçumirim e de relatos dos cronistas franceses Jean de Lery e André Thevet. Destarte, o dramaturgo revela que a partir do início da trilogia carioca com Cara de cavalo, a companhia “deu um passo no sentido de politização, foi uma chegada a questões do Brasil, e radicalização do trabalho” (Kosovski, 2019, p. 219).

Vale ressaltar que além de não haver um gancho direto entre as peças que compõem a Trilogia Carioca, a não ser o fato das três serem localizadas no Rio de Janeiro de temporalidades distintas, também não há uma linearidade cronológica, posto que a trilogia, em relação à temática principal, começa com um Cara de Cavalo dos anos de 1960, passa para um Rio de Janeiro do final do século XIX em Caranguejo Overdrive, e se encerra com os primeiros contatos do colonizador com os tupinambás no Rio de Janeiro do século XVI com Guanabara Canibal. No entanto, nas três peças, o tempo em que a temática se insere é mesclado por um passado anterior a elas e um futuro, inclusive o momento atual ou um agora.

O Rio de Janeiro em Cara de Cavalo

Cara de Cavalo, assim como toda a Trilogia Carioca, se inscreve na diversidade da literatura contemporânea. A esse respeito, críticos e teóricos vêm identificando uma heterogeneidade e multiplicidade de formas e temas na literatura contemporânea brasileira, de modo que não podemos dizer que haja uma tendência clara que possa categorizá-la de forma unificadora. No entanto, eles apontam para alguns elementos constitutivos dessa nova escrita, tais como narrativas curtas, estruturas fragmentadas, urgência em se relacionar com a realidade histórica, insistência do presente temporal, hibridismos entre a escrita literária e não-literária e utilização de novas tecnologias. Nesse sentido, Beatriz Resende (2008) assinala algumas questões que permeariam a produção literária contemporânea no País, principalmente entre os novos escritores: a presentificação, o retorno do trágico e a tematização da violência.

Podemos observar esses mesmos elementos acima na escrita dramatúrgica brasileira contemporânea e, assim como na literatura, na qual, segundo Resende, ocorre uma “heterogeneidade em convívio, não excludente” (Resende, 2008, p. 18), vemos na dramaturgia hoje uma multiplicidade de gêneros, estilos e escrita, e, de alguma forma, as questões da presentificação, do retorno do trágico e do tema da violência também se fazem presentes no teatro contemporâneo. No caso de Cara de Cavalo, também vemos os hibridismos, o desejo de abordar a realidade histórica e os textos fragmentados.

A peça Cara de Cavalo foi escrita a partir da história do criminoso brasileiro Manoel Moreira, assassinado pela Scuderie de Cocq, organização extraoficial criada por policiais em 1965 com o objetivo de vingar a morte do detetive Milton Le Cocq, morto por Moreira. Por esse assassinato, Cara de Cavalo foi considerado pela mídia como “inimigo número 1 da Guanabara”, frase inclusive utilizada na peça (Kosovski, 2015, p. 42), e de marginal comum passou a ser um dos criminosos mais procurados no Rio de Janeiro. Uma grande mobilização policial foi feita a sua procura, mas ele foi executado pelo grupo extraoficial com mais de cem disparos na cidade de Cabo Frio.

Enquanto a Scuderie Le Cocq inspirou o Esquadrão da Morte, o assassinato de Cara de Cavalo e a foto que estampou jornais com o corpo do criminoso perfurado por balas inspiraram o artista plástico Hélio Oiticica na criação da obra Bólide caixa 18, ainda em 1965. Três anos depois Oiticica prestaria outra homenagem com a bandeira-poema “Seja marginal, seja herói”, que acabou marcando o início do movimento da cultural marginal e que permeia toda a peça aqui em questão.

Conforme assinalado por Pedro Kosovski (2019 p. 221), a pesquisa para a escrita da peça contou principalmente com arquivos de jornais da época, particularmente o Última Hora, e o livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura, além, claro, de parte da obra e vida de Hélio Oiticica.

Na peça Cara de Cavalo estão presentes todos os elementos que fizeram parte da vida do criminoso, principalmente aqueles que se referem a sua morte: sua relação com o jogo de bicho, sua atividade como cafetão, sua moradia na Favela do Esqueleto, a mídia e a espetacularização da violência. No entanto, não se trata de uma peça estritamente realista, posto que é uma ficção baseada na história real que usa de outros elementos teatrais que não aqueles do teatro realista e isso se dá principalmente por conta de intertextualidades que o dramaturgo faz e do uso da fábula[12] como artifício narrativo. Ademais, como assevera Renato Cordeiro Gomes, “os discursos contemporâneos cenarizam e grafam a cidade, com sua polifonia, sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de decifrar o urbano que se situa no limite extremo e poroso entre realidade e ficção” (Gomes, 1997, p. 6).

Uma das intertextualidades que mais atravessam a peça é a do universo rodrigueano. Nesse sentido, há citação direta no nome do repórter policial que cobre o caso do assassinato do inspetor Galo, Amado Ribeiro, este também repórter de O Beijo no Asfalto, que trabalhava no jornal A Última Hora. Essa citação ainda é explicitada quando o delegado Cunha, também personagem da peça rodrigueana, pergunta ao repórter “Diz: qual foi a última bomba que você cobriu? O beijo no asfalto? Faz tempo!” (Kosovski, 2015, p. 40). Tanto em O Beijo no Asfalto quanto em Cara de Cavalo, Cunha é o delegado corrupto que, junto com o jornalista sensacionalista Amado Ribeiro, conduz de maneira ilegal o caso de Arandir na primeira e de Cara de Cavalo na segunda.

Além desses personagens, também cita-se diretamente o próprio dramaturgo:

Amado: Você deve me conhecer. Eu sou Amado Ribeiro, do jornal Última Hora.
Marginal: O senhor é que é Nelson Rodrigues?
Amado: Amado Ribeiro
Marginal: O Nelson Rodrigues não trabalha no Última Hora?
(Kosovski, 2015, p. 42).

Como ressalta Antoine Compagnon, “a citação é um operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que deve produzir um trabalho, já que, numa citação, se fazem presentes dois textos cuja relação não é de equivalência nem de redundância” (Compagnon, 1996, p. 58-59). Isso posto, se após a primeira vez que o personagem aparece na peça, na cena 7, a citação do nome do repórter policial é, de certa forma, posteriormente explicada na passagem acima, fazendo com que esse trabalho comentado por Compagnon que cabe ao leitor fazer para emergir a intertextualidade se enfraqueça, por outro, há citações do universo rodrigueano que permeiam o texto e exigem do leitor fazer a relação com as peças de Nelson.

Um exemplo disso seria a própria estrutura da peça, explicada em sua abertura, com “três planos narrativos” (Kosovski, 2015, p. 21). Enquanto em Vestido de Noiva os três planos da narrativa sobre Alaíde, o da realidade, da alucinação e da memória se alternam, mas se misturam, o mesmo ocorre em Cara de Cavalo. Aqui, os três planos são a trajetória do personagem, os bastidores de uma entrevista ocorrendo no momento presente, e, o outro, tal entrevista finalizada e editada em vídeo. Um olhar mais atento pode ver nas cenas da trajetória de Cara de Cavalo a realidade; nas cenas da entrevista, certa alucinação; e naquelas onde a entrevista aparece em sua versão editada, a memória.

Outro exemplo da citação ao universo rodrigueano seria a linguagem utilizada pelo personagem Amado Ribeiro que remete à linguagem coloquial carioca dos personagens rodrigueanos das crônicas urbanas de A vida como ela é e de Pouco amor não é amor e das tragédias cariocas. Como assinala Mário Guidarini (1990, p. 34) ao comentar o uso da linguagem nessas crônicas e peças: “As expressões desse modelo coloquial – de origem carioca e sobretudo suburbana do Rio – foram incorporadas na linguagem quotidiana de todo o povo brasileiro. Hoje a assimilação e a aculturação desse modelo o transmutaram em patrimônio nacional”. Assim, ouvimos do repórter policial coloquialismos como “Não tem mais corococó” (Kosovski, 2015, p. 35) e “Nunes, é tocante pra burro” (p. 36). No entanto, Pedro Kosovski usa na peça uma expressão que dá essa conotação coloquial, mas que também é um outro exercício intertextual. Dessa maneira, sai da boca de vários personagens “Qual é o parangolé?” (p. 37 e p. 52). Kosovski, portanto, transforma os parangolés – obras que Hélio Oiticica criou a partir de seu contato com a cultura do morro da Mangueira – em expressão coloquial.

Oiticica também está presente em Cara de Cavalo. Na primeira rubrica que abre a peça, lê-se:

“Em cena, três canteiros preenchidos com materiais orgânicos diferentes (terra, brita, areia) que remetem aos Penetráveis de Hélio Oiticica. O público entra e vê projetado o bólide Homenagem a Cara de Cavalo, de Hélio Oiticica” (Kosovski, 2015, p. 21).

Bólide Caixa 18 “homenagem a Cara de Cavalo”. Reprodução fotográfica de Paulo Scheuenstuhl.
Bólide Caixa 18 “homenagem a Cara de Cavalo”. Reprodução fotográfica de Paulo Scheuenstuhl. [13]
Destarte, Oiticica aparece na peça como citação direta e como outra forma de homenagem. No primeiro caso vemos, por exemplo, a personagem Entrevistadora perguntando ao Entrevistado: “[…] Qual a relação entre arte e política? O artista Hélio Oiticica foi amigo de Cara de Cavalo, inclusive imortalizando-o em sua obra” (p. 33-4); e, ainda:

A relação entre Cara de Cavalo e Hélio Oiticica é interessante para se pensar o problema atual da violência. Nesse caso, ninguém é refém da violência. Quando ele cria a obra em homenagem ao Cara de Cavalo, ou quando ele cunha a famosa frase ‘Seja marginal, seja herói’, há uma tomada de posição. Ele poderia se render ao ‘bandido bom é bandido morto’, mas não. ‘Seja marginal, seja herói é um momento ético’ (Kosovski, 2015, p. 60).

Já o personagem Artista, por sua vez, é uma outra forma que Kosovski rende em sua escrita a Oiticica. Tal personagem diz coisas como “Nós temos que reaprender a discutir o poder da revolta. Saca a crise do quadrado? Saca, né? A crise da arte contemporânea” (Kosovski, 2015, p. 58). Ao avistar o riso de Cara de Cavalo, o Artista completa:

Segura esse riso, porra. O que que foi? Isto não é panfleto, não. Tô falando de Mondrian. Tô falando de Malevitch. É a crise do quadrado: qualquer um que acenda a revolta em si é subitamente enquadrado como louco ou bandido. Não tem espaço para a revolta, Cavalo. O mundo tá quadrado! (Kosovski, 2015, p. 58).

Nessa mesma cena, um pouco após essa fala, o “Artista veste Cara de Cavalo com parangolé” (Kosovski, 2015, p. 58).

Cara de Cavalo. Foto de João Julio Mello .
Cara de Cavalo. Foto de João Julio Mello [14].
A partir daí, surge o Cara de Cavalo não mais criminoso, mas o que quando perguntado pelo Artista se ele vai se enquadrar no meio, responde: “Não, não. Vou revoltar” (p. 59). Kosovski faz do personagem, então, um símbolo da resistência, tal como propunha Hélio Oiticica, e seu corpo passa a ser o que Annateresa Fabris (2009) conceituou como o corpo como território político. Conforme Fabris, ao discorrer sobre Oiticica:

Ao associar o ‘momento ético’ ao indivíduo, o artista dá a ver a sua profunda aversão por um Estado policial destituído de toda ética, fundado na violência, no controle, na repressão e no autoritarismo. Cara de Cavalo, nesse contexto, transforma-se em símbolo do direito à resistência individual contra um Estado opressor, do mesmo modo que figuras como Antônio Conselheiro e Lampião […], sendo determinante para isso o fim trágico que tivera (Fabris, 2009, p. 4).

A bricolagem – no sentido referido por Compagnon em “Bricoleur, o autor trabalha com o que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma costureirinha” (Compagnon, 1996, p. 39) – dos universos de Nelson Rodrigues e de Hélio Oiticica remete a universos cariocas, assim como a trajetória do próprio personagem Cara de Cavalo. Essas aproximações que o dramaturgo opera estão em consonância com o que Renato Cordeiro Gomes observa e é a epígrafe que abre este estudo: “O livro de registro da cidade é um labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente” (Gomes, 2008, p. 24).

Há, contudo, diversas outras passagens da peça que fazem referências diretas à cidade do Rio de Janeiro. A cena 3, por exemplo, é um diálogo do inspetor Galo com um apontador de jogo do bicho. Apesar da prática ter se ramificado por todo o Brasil, o jogo do bicho – também explorado nas peças de Nelson Rodrigues que tanto inspiraram Pedro Kosovski na escrita de Cara de Cavalo – teve origem na cidade do Rio de Janeiro e se tornou símbolo de contravenção da cidade. Aqui, o dramaturgo parece considerar o que Renato Cordeiro Gomes (2009, p. 23) explicou como “Nesses estudos culturais, é fecundo levar em conta os imaginários urbanos coletivos que, junto às ficções, desempenham relevante papel na formação das identidades”.

Ademais, ao tratar da caçada da polícia carioca a Cara de Cavalo, um locutor narra:

O delegado Cunha foi morto ontem na favela do esqueleto […]. O detetive Garboso confessou o crime. […] Garboso foi atingido no glúteo esquerdo e se recupera no hospital do Méier. […] um aparatoso cerco formou-se ontem em São Francisco Xavier, ao qual compareceu o próprio governador no encalço de um marginal que se acreditava ser o Cara de Cavalo. Testemunhas afirmam que o marginal foi visto na Central do Brasil (Kosovski, 2015, p. 55-56).

Também, em off, a Entrevistadora diz: “Mangueira ou Esqueleto? O que você pensa do Esquadrão da Morte?” (Kosovski, 2015, p. 35), referindo-se aos dois morros cariocas e ao grupo de extermínio criado em fins dos anos 1960 no antigo estado da Guanabara. O Rio de Janeiro, então estado da Guanabara, é sempre mencionado, como quando Amado diz a Cunha: “[…] vai continuar sendo o delegado mais burro da Guanabara?” (Kosovski, 2015, p. 37).

Para o leitor informado, principalmente o carioca, difícil não fazer analogia dos assassinos de Cara de Cavalo e das menções ao Esquadrão da Morte com a milícia carioca. Também é possível pensar no personagem, escolhido como figura icônica da violência carioca, com outras tantas espetacularizadas pela mídia carioca, tais como Fernandinho Beira-Mar, famoso traficante que, quando Cara de Cavalo foi escrita, estampava capas de jornais e tinha seus crimes comentados no noticiário televisivo e das rádios.

Essa questão da espetacularização da mídia carioca em relação a criminosos e leniência de certa opinião pública quanto aos métodos extraoficiais e violentos da polícia da cidade também são bem exploradas na peça. O repórter Amado Ribeiro fala exultante: “Para cada policial morto serão dez, dez bandidos mortos. Ah, quem aparecer pela frente é bandido! Isso é melhor que faroeste. Vou colocar um placar no alto da página marcando a pontuação das mortes de um lado e de outro. Não, só pra animar a população, vamos criar torcida” (Kosovski, 2015, p. 36). Em outra cena posterior, o repórter ainda diz ao delegado Cunha: “Eu preciso de tempo para transformar esse bandido chinfrim no inimigo número um da cidade. Basta você puxar um pouco o freio na condução de caso” (Kosovski, 2015, p. 39). Cunha, demonstrando entusiasmo, ainda ouve de Amado Ribeiro:

Vou fazer uma série de reportagens sobre a caçada. Entrevista exclusiva com bandido. Isto não pode ser a perseguição de um bandido isolado. Isto é uma ofensiva nacional dos homens de ouro da polícia contra a criminalidade de Guanabara. Vou vender jornal a dar com pau! E o resultado: o nome de Galo limpo e eternizado na história, você com a banca de herói, Cara de Cavalo com status de bandido perigoso e eu com uma bela reportagem. Então? Bom para todo mundo (Kosovski, 2015, p. 39-40).

Renato Cordeiro Gomes nos lembra alguns elementos que atravessam a produção literária contemporânea e, ao citar autores tais como Rubem Fonseca e Chico Buarque, mostra alguns deles que, por sinal, podemos constatar em Cara de Cavalo. Segundo Cordeiro Gomes, há um

repertório de temas contemporâneos: a proliferação das diversas formas de violência atreladas à cultura do medo, as relações de poder, a cidade da memória e a memória da cidade – o que se tece com o tema da nostalgia de uma cidade mítica perdida e a impossibilidade de resgate, na cidade atual, desses tempos mais amenos […], a contracultura e suas relações com o universo urbano (Gomes, 2000, n.p.)

Considerações finais

A peça Cara de Cavalo faz um recorte temporal para falar de um Rio de Janeiro de outrora, o do estado da Guanabara de 1965. Não obstante a peça se passar naquela data, com a trajetória do personagem que dá nome a ela, ela é entrecortada por um momento atual que seriam os bastidores de uma entrevista. Assim, o Rio de outrora é implicitamente comparado a um Rio atual, o Rio da espetacularização do crime e da violência policial, além da atuação de grupos paramilitares. Apesar de Cara de Cavalo ter se refugiado na cidade de Cabo Frio, estado do Rio de Janeiro, e de lá ter sido executado, a peça aponta para isso, mas o foco permanece sempre a cidade carioca.

Mas não só a cidade do Rio de Janeiro está em pauta na peça. Há também referências a acontecimentos históricos do Brasil, como o golpe e a ditadura militar, e certo jornalismo sensacionalista que se espraia pelo País. A esse respeito, conforma assinala Renato Cordeiro Gomes sobre a cultura brasileira contemporânea, “[…] a nação, para o bem ou para o mal, é um espectro que nos assombra” (Gomes, 2014, p. 53). Assim, vemos que Cara de Cavalo se alinha com a literatura brasileira contemporânea que, conforme Cordeiro Gomes aponta, “não está mais empenhada em representar a nação como totalidade, fundamentada no pensamento eurocêntrico de universalidade…” (Gomes, 2014, p. 41).

As peças que se seguiram a Cara de Cavalo, Caranguejo Overdrive e Guanabara Canibal, conforme exposto na contextualização da Aquela Cia. feita no início desse estudo, trataram, respectivamente, do Rio de Janeiro do início do processo de modernização da cidade, com a construção do Canal do Mangue no antigo Mangal de São Diogo, primeira obra sanitária realizada na cidade em fins do século XIX, e os primeiros encontros entre o colonizador e o indígena que originou a fundação do Rio de Janeiro. A Trilogia Carioca, portanto, apresenta um caleidoscópio da cidade, não se pretendendo mostrar o Rio de Janeiro, mas alguns Rios de Janeiros. Nesse sentido, à guisa de conclusão, mais uma vez recorro a Renato Cordeiro Gomes, que assevera que

[t]entar uma leitura globalizante, totalizadora, desse livro de registro, tentar uma reconstituição imaginária, através de suas folhas e pranchas, da cidade ‘como é ou foi agora’, é tarefa impossível. O livro é composto de pedaços, fragmentos, trechos apagados pelo tempo, rasuras – de textos que jamais serão recompostos na íntegra. As folhas, por outro lado, se superpõem, pois inscrevem cidades sucessivas, que por acaso têm o mesmo nome (Gomes, 2008, p. 24).


* Carolina Montebelo Barcelos é pesquisadora e professora de teatro. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pela PUC-Rio. Autora dos capítulos “Todos os sonhos da carne e da alma: o Rio de Janeiro em Nelson Rodrigues”, do livro Rio Circular: a cidade em pauta (2016), e “Insetos: uma metáfora dos 30 anos da Cia. dos Atores”, do livro Estudos de encenação e atuação (v. 3, 2019).

Referências

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FABRIS, Annateresa. O corpo como território do político. In: Baleia na Rede, v. 1, n. 6, p. 461-429, dez. 2009. Disponível em: <http://200.145.171.5/revistas/index.php/baleianarede/article/view/1466>. Acesso em: 13 fev. 2020.

GARNER Jr., Stanton B. Urban landscapes, theatrical encounters: staging the city. In: FUCHS, Elinor; CHAUDHURI, Una (ed.). Land/Scape/Theater. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002. p. 94 – 118.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

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____________________. A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema. In: Ipotesi, Juiz de Fora, v. 3, n. 2, p. 19 – 30, 2009. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2009/12/A-CIDADE-A-LITERATURA-E-OS-ESTUDOS1.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2020.

____________________. Heranças, espectros, resíduos: imaginar a nação em tempos heterogêneos. In: RESENDE, Beatriz; FINAZZI-AGRÓ, Ettore. Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

GUIDARINI, Mario. Nelson Rodrigues: flor de obsessão. Florianópolis, Ed. UFSC, 1990.

HARVIE, Jen. Theatre & the city. London: Macmillan International/Red Globe Press, 2009.

KOSOVSKI, Pedro. Cara de Cavalo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2015.

________________. [sem título]. In: DIEGUES, Isabel; AZEVEDO, Fernando de; ABREU, Kil (orgs.). Maratona de dramaturgia. Rio de Janeiro: Cobogó; São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2019.

RESENDE, Beatriz, Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro, Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.

Notas

[1] Dedico este artigo à memória de Renato Cordeiro Gomes, pesquisador essencial para os estudos das representações da cidade na literatura e cultura e com quem aprendi como aluna, orientanda e pesquisadora a ler a cidade no teatro. Nenhuma bibliografia usada aqui seria possível, para mim, não fosse por ele.

[2] No original: “from the Athenian civic and religious festivals through the public and private theaters of the early modern period, its history parallels the progression(s) of western urbanism”. Tradução livre.

[3] No original: “theatre has constituted an overt reading of the urban text”. Tradução livre.

[4] No original: “which literally traversed the medieval city in a meaning-charged cognitive mapping”. Tradução livre.

[5] No original: “the most urban of cultural forms”. Tradução livre.

[6] No original: “violated the boundaries between theatre and city, auditorium and street”. Tradução livre.

[7] Por vezes traduzido como “teatro ambientalista”.

[8] Eventualmente traduzido como “sítio específico”.

[9] Também conhecido como “teatro de imersão”.

[10] No original: “theatre practices produce urban meaning”. Tradução nossa.

[11] A editora Cobogó tem publicado um número expressivo de peças de dramaturgos contemporâneos, além de também publicar estudos voltados à dramaturgia.

[12] Na peça, coloca-se literalmente uma máscara no personagem que remete a um cavalo. Ademais, na cena em que o inspetor Galo conversa com o apontador do jogo do bicho sobre as descrições físicas de Cara da Cavalo, as perguntas são semelhantes àquelas presentes em Chapeuzinho Vermelho, com passagens tais como “olhos grandes”, “orelhas pontudas”, “fuça longa, comprida”(Kosovski, 2015, p. 27). Ao falar da peça, o próprio Pedro Kosovski afirmou que apesar da peça ser “atravessada pelo real” (Kosovski, 2019, p. 225), ele intencionava mesmo trabalhar com a fábula “desprezada por um certo teatro contemporâneo (Kosovski, 2019, p. 229).

[13] Retirado de página da Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4892/b33-bolide-caixa-18-homenagem-a-cara-de-cavalo>. Acesso em: 20 mar. 2020.

[14] Foto retirada da página do Facebook da Aquela Cia., postada em 4 out. 2012. Disponível em: <https://www.facebook.com/aquelacia/photos/a.533036633377004/533039206710080/?type=3&theater>. Acesso em: 15 fev. 2020.

dossiê
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A CIDADE COMO AUTOBIOGRAFIA EM RUBEM FONSECA E SÉRGIO SANT’ANNA

O flâneur/voyeur da urbe

Walter Benjamin, ao analisar a relação entre a obra de Baudelaire e a modernidade, cunha o conceito de Sociologia das grandes cidades para estabelecer essa simbiose entre um escritor que necessita estar em contato com a rua e a multidão e seu olhar de observador atento a tudo que o permeia: um flâneur, que depura em minúcias o ambiente que se dispõe a perscrutar, como se desse hábito de ver em detalhes os elementos que constituem uma urbe tirasse prazer e força motriz para narrar e integrar tais fatos em sua literatura, se perfazendo verdadeiramente em um voyeur da metrópole.

Benjamin ainda aprofunda essa relação entre o observar e o deleite resultante de tal ato visto que o gesto de olhar se sobrepõe a todos os outros sentidos do corpo humano, pois mesmo em uma grande cidade o som alto, estarrecedor, pode muitas vezes nos chegar primeiro e de forma mais impactante que a visão, sendo somente nessa percepção real do espaço e do contexto da urbe que pode ser devidamente decantado e compreendido.

A figura do flâneur, seja pela ótica de Benjamin e/ou pela de Baudelaire, atua e incide na cidade como um tipo de detetive que baseia sua investigação em apurar nos detalhes e na mínima essência tudo aquilo que a urbe pode lhe oferecer e transmitir, como um olhar “indolente” do artista sobre sua obra.

E tal detetive encontra-se na multidão, totalmente imerso e inserido na caótica paisagem urbana. O flâneur apresenta-se como o indivíduo que não se adequa a normas e padrões: ele é o personagem que persegue, um ser abandonado e quase invisível a seus semelhantes, que observa e acompanha indivíduos e elementos da cidade que o atraem, que chamam sua atenção e, de certa forma, lhe dão prazer.

Jérôme Dufilho, em sua análise do ensaio de Baudelaire O pintor da vida moderna, define assim a simbiose entre flâneur e a multidão:

O flâneur é passivo, olha e contempla, deixa entrar toda a luz da vida na memória: o espelho devolve a totalidade. Esse vidro liga-se ao do casamento com a vida, com a multidão, chegando até a fusão com elas. O flâneur é, ao mesmo tempo, a multidão que ele contempla e o desconhecido nessa multidão (Dufilho, 2010, p. 120).

Assim, podemos considerar flâneur a partir da ideia síntese de Benjamin, em que a multidão com seus infinitos transeuntes constituiria uma espécie de véu através do qual o flâneur vê e concebe a cidade.

Para pensarmos acerca da cidade, primeiramente podemos tomar emprestado o conceito de Beatriz Sarlo: “O passado biográfico destaca o que se perdeu (ou se ganhou) no presente da cidade moderna” (2010, p. 36). Ou seja, a cidade é  aquele território sempre aberto a explorações em que os sons e os cheiros permeiam o espaço completamente, incluso todo o manancial que o olhar humano pode abarcar em tão rico cenário; um local em que as experiências corporais e intelectuais de cada indivíduo se fazem presentes, contudo também lugar aberto às menores e maiores transgressões que cada pessoa pode cometer. A cidade moderna seria aquela imensa caixa de Pandora, que aberta revela o passado biográfico da urbe, e juntamente toda a problemática decorrente de seu desenvolvimento, pobreza, violência, caos urbano etc.

A imagem do flâneur transfigurada para o nosso tempo presente na visão da crítica é aquela que no seu ato de flanar está sempre sendo observado por outro. Todos na contemporaneidade ao andarem pelas ruas de uma grande metrópole olham e são vistos, por mais invisíveis que pareçam ou queiram parecer, como um espectador imerso na cena urbana.

Pensando nessa cidade traduzida e concebida como uma cidade escrita ficcionalizada e apropriada pela literatura, temos que “a cidade é tempo presente, mesmo seu passado só pode ser vivido como presente. O que nela se conserva do passado fica encrustado no que ela mostra como pura atualidade” (Sarlo, 2014, p. 142).

Portanto, como bem destaca Beatriz Sarlo, não há cidade sem um discurso sobre a cidade, uma vez que tal cidade apenas existe baseada nos discursos, tanto quanto nos seus espaços físicos, concretos, tangíveis. Na cidade se sobrepõem a todas as camadas ali amalgamadas e inseridas ao longo do tempo, um gigantesco palimpsesto com escritas justapostas, em que para pensar no presente é necessário voltar ao passado, não apenas para compreender a cidade, mas também para poder senti-la, perscrutá-la e ter paixão por tal espaço.

Renato Cordeiro Gomes aponta que é através da memória que é condicionada a leitura da cidade e sua busca reconhecível de sentido mais nítido. Visto que tal cidade é construída mediante a possibilidade de diversas leituras e interpretações que cabem ao leitor:

[…] O texto é o relato sensível das formas de ver a cidade […]. Essa cidade torna-se um labirinto de ruas feito de textos, essa rede de significados móveis, que dificulta a sua legibilidade. O livro de registro da cidade é um labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente (Gomes, 2008, p. 24).

Logo, essa leitura labiríntica da cidade que através de pistas, indícios deixados nos textos literários (que a têm por mote, objetivo e muitas vezes protagonistas) é o local por excelência de escritores que apresentam esse viés tão forte ligados às suas obras, como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna. Mediante sua leitura atenta pode-se extrair os contextos e os grupos sociais que ali se fazem tão presentes e enriquecem tanto a literatura dos dois, por isso grupos de minorias e marginalizados são tão exaltados e protagonizados em suas narrativas.

Pensando nas diferenças entre a cidade real, cercada de ruas e repleta de uma massa humana constante, e a cidade letrada, construída a partir do diálogo e do texto escrito, consideramos a classificação e diferença entre ambas exposta por Ángel Rama (2015, p. 46-7):

Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo de significações e inclusive as autonomiza em um sistema, a cidade real trabalha mais comodamente no campo das significantes e inclusive os afasta dos encadeamentos lógico-gramaticais.

Rama trabalha com estas distinções procurando separar de maneira mais lógica o que ele chama de “linguagem física” e “linguagem simbólica” que toda representação discursiva da cidade produz, como uma superposta a outra. A primeira é produzida na medida em que um visitante se perca na sua infinidade de labirintos e ruas, na sua multiplicidade e fragmentação. A segunda se dá na proporção em que se é capaz de ler toda a gama de significações e significados nesse texto, buscando reconstruir e estabelecer uma certa ordem.

E de tal modo através dos seus labirintos cercados por ruas da cidade letrada podemos alcançar “a cidade ideal”:

Há um labirinto de ruas que só a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem. Isso é obra da cidade letrada. Só ela é capaz de conceber, como pura especulação, a cidade ideal, projetá-la antes de sua existência, conservá-la além de sua execução material, fazê-la sobreviver mesmo em luta com as modificações sensíveis que introduz incessantemente o homem comum (Rama, 2015, p. 47).

Portanto, a partir desses conceitos podemos inferir que um escritor ao tomar a cidade como mote e protagonista de sua narrativa (de maneira que esta passa a compartilhar suas experiências, sua vida, seu passado e sua memória), tal espaço, transcendendo sua mera identidade de lugar no qual as pessoas vivem e transitam, rico em leituras e significações, espelha ao ser transplantado e ficcionalizado em literatura. Na literatura, a cidade ideal transformada em cidade literária comunga todos os anseios, desejos e vontades de escritores que a fazem ambiente de experiências tão ricas, fortes e vívidas.

Beatriz Sarlo destaca que essa cidade escrita, literária, sempre será composta de simbolização, deslocamento, imagem e metonímia, visto que escrevê-la e representá-la, pertencem a uma figuração, uma alegoria transmitida via texto, palavras e imagens. Por outro lado, a cidade real nos afoga em construções, decadência e toda a sordidez encontrada em uma grande metrópole.[1]

Assim, a cidade escrita é montada a partir do recorte feito da cidade real. O escritor recorta dali o que lhe importa e a absorve em sua narrativa, podendo tal fragmento corresponder ou não a uma realidade palpável. Sem esse pequeno subterfúgio não seria possível utilizar a cidade como evocadora de um passado, de uma memória, e no nosso caso, de um passado autobiográfico e totalmente referencial: “(…)sem esse ponto de fuga, a perspectiva da cidade escrita é a do presente: registra-se o que é, esquecendo, bloqueando ou eludindo o que foi” (Sarlo, 2014, p. 141). Dito isso, a cidade de fato é o presente em que vivemos, mesmo remetendo ao passado, só pode ser transposta e decodificada mediante esse presente.

Logo, toda narrativa fundada em um passado autobiográfico sobre a cidade e suas múltiplas representações para quem a escreve passa necessariamente por uma atualização do presente. Os dois autores aqui analisados se valem desta estratégia, na medida em que contam sobre seu passado flanando pelas ruas das cidades de sua infância; já hoje, no presente, tais lugares estão diferentes, o que impacta suas obras.

2. Rubem Fonseca e o encanto do Rio
2.1 Leituras de uma cidade

Como reza a lenda perpetuada por décadas, Rubem Fonseca no início de sua carreira como escritor subia disfarçado nos morros da cidade para descobrir in loco tudo aquilo que ele se propunha a escrever; passava horas e horas flanando pelas ruas da cidade, sempre muito atento a todos elementos que a constituem, focando nos detalhes, nos grupos sociais, na miséria, na violência e no caos predominante. Então, a semelhança com Augusto, de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, e todos os seus gostos e particularidades provavelmente não seja mero detalhe estilístico do conto.

Figura 1: Foto – Capa A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro
Figura 1: Foto – Capa A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro

Pela capa da edição especial já nos deparamos com o que será o texto: Augusto, um andarilho com desejo de ser escritor. Depois de ganhar um prêmio da loteria, ele abandona o emprego enfadonho na companhia de águas e esgoto e do nome de batismo Epifânio, resolvendo se dedicar ao que ama: escrever sobre o Rio de Janeiro. Tornando-se de um andarilho (e também escritor), procurando através de suas andanças “solvitur ambulando” descobrir todos os meandros e segredos das ruas do centro da cidade. E a Cidade é a grande protagonista da narrativa.

Como afirma Renato Cordeiro Gomes (2008, p. 175) em sua análise sobre o texto:

Augusto, o andarilho-escritor, tem a intenção de resgatar [a violência da destruição da memória da cidade] através do livro que escreve. Anda para escrever e restaurar a cidade pela letra. Sua escrita combaterá uma perversão com outra. Busca uma arte de andar pelas ruas do centro, atividade insólita em tempos pós-modernos.

Como um verdadeiro flâneur da urbe, Augusto como um detetive procura essa comunhão entre os espaços das ruas com seu passado histórico, já perdido pelo avanço da destruição e transformação do espaço urbano. Como um voyeur, ele observa através do olhar todo o significado composto nesse espaço, lendo com toda atenção “fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas” (Fonseca, 2009, p. 12).

O diálogo entre passado e presente se faz constante a todo momento. Augusto caminha pelas ruas saudosista do seu passado: marcas, lugares e imagens que foram destruídas pelo tempo, demolidas em prol de um progresso efêmero. Cinemas, prédios e construções históricas deram lugar a igrejas, farmácias, sapatarias etc. O passado biográfico da cidade, como vimos em Beatriz Sarlo, aqui se faz sentir como cicatrizes e traumas que ele carrega e procura recriar nas páginas de sua obra em construção.

Há menções a diversos marcos históricos da cidade, como o Teatro Municipal, o Real Gabinete Português de Leitura, ao Campo de Santana e aos antigos cinemas Ideal e Iris. Os lugares históricos que ainda existem estão marcados por novos tempos e camadas de leitura e de significado, como o flagra que Augusto dá nos grafiteiros que desenham nas paredes do Municipal.

Dois jovens escrevem com spray nas paredes do teatro, que acabou de ser pintado e exibe poucas obras de grafiteiro, NÓS OS SÁDICOS DO CACHAMBI TIRAMOS O CABASSO DO MUNICIPAL, GRAFITEROS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENSIDOS; sob a frase, o logotipo-assinatura dos Sádicos, um pênis, que no princípio causara estranheza aos estudiosos da grafitologia mas que já se sabe ser de porco com uma glande humana. ‘Hei’, diz Augusto para um dos jovens, ‘cabaço é com cê-cedilha, vencidos não é com s, e falta um i nos grafiteiros.’ O jovem responde, ‘Tio, você entendeu que a gente quer dizer, não entendeu?, então foda-se com suas regrinhas de merda’ (Fonseca, 2009, p. 24-25).

Passagem sintomática no conto, em que ao presenciar os grafiteiros desenhando nas paredes recém pintadas do teatro, Augusto sente que o tempo e o respeito ao passado findaram. As grandes construções, marcos e sobretudo a memória histórica e sentimental de uma cidade passaram, servindo apenas como instrumento para que novas manifestações artísticas apareçam, como um grande palimpsesto em que todos que dali adiante passarem e grafitarem seu espaço se inscrevem, pertencendo àquele nicho e contexto. Reforçado pela correção ortográfica de Augusto, e insultado pelos jovens pelas suas adequações às normas, seja ela gramatical ou de respeito a um marco institucional de um grande passado. A cidade ali escrita e descrita vai se desgarrando aos poucos, se descolando e tendo uma nova ressignificação no presente.

É através da memória de uma cidade passada que Augusto vai tentar reconstruir um presente e uma escrita que consiga dar conta dessa inócua dicotomia entre o que foi e o que se transformou. Entre o que havia e o que agora se encerrou:

Lendo a cidade presente, concreta, ele tenta ler a cidade passada, através dos pontos que formam a linguagem de sua cartografia afetiva, por meio de um processo anacrônico – andar a pé. Como um detetive, procura vestígios, peças desaparecidas ou em via de “demolição”, de um imenso quebra-cabeça. Procura pela memória o que permanece no transitório (Gomes, 2008, p. 175).

Através dessa leitura que Augusto procura interagir com todos os grupos que povoam as ruas da cidade: moradores de rua, prostitutas, cafetões, malandros, marginais, pivetes, donos do jogo do bicho com seus viciados apostadores, camelôs, catadores etc. Veremos detalhadamente na sua relação com as prostitutas e os moradores de rua, dois grupos sociais recorrentes e de grande preponderância na literatura fonsequeana.

Augusto, além de andar dia e noite pelas ruas da cidade, também ensina as prostitutas a ler e a falar corretamente baseado em um método próprio, a partir da leitura de jornais e sem soletração, pagando uma pequena quantia em sua casa, um sobrado com uma claraboia quase centenária, que abriga juntamente uma chapelaria feminina, em vias de falência, alugada pelo personagem sem nome, identificado apenas como “velho”. E ele é elo vivo de Augusto com o passado, pois sempre que se encontram lhe narra estórias e acontecimentos de seu passado que se entrelaçam ao passado da cidade.

No momento em que o conto é narrado Augusto está ensinando a Kelly, sua vigésima oitava aluna. Sua relação com as prostitutas se torna complicada pois ele não quer manter relações sexuais com ela e isso sempre acarreta muitos problemas:

Kelly pega a pedra e joga com força para cima. A pedra bate na clarabóia e cai no chão. Kelly dá um pontapé na cadeira, amassa o jornal numa bola, que joga em cima de Augusto. Outras putas já tinham feito coisas ainda piores, elas têm ataques de nervos quando ficam muito tempo sozinhas com um cara e ele não quer deitar com elas; uma quis pegar Augusto à força e deu uma mordida na orelha dele arrancando a orelha inteira, que ela cuspiu na latrina e puxou a descarga (2009, p. 73).

Augusto, assim, além de não ter uma orelha, anda sempre de óculos escuros e exala um odor característico pois faz um tratamento para um problema na mácula da retina à base de vitamina E com selênio, o que induz um dos personagens da narrativa, o pastor Raimundo, a concebê-lo como o demônio e a segui-lo pelas ruas da cidade. Augusto, o flâneur, de perseguidor dos transeuntes pitorescos do espaço urbano passa a ser ele o perseguido, invertendo a lógica da categoria elaborada por Benjamin.

Sobre os moradores de rua, Rubem Fonseca situa o conto em um Rio de Janeiro na iminência de sediar a Eco-Rio 92, e por isso precisava expelir todos os marginalizados do centro da cidade. Dois diálogos do protagonista com dois personagens, Benevides e Zumbi do Jogo do Bola, que exercem o papel de liderança em pequenos grupos situam a problemática tão grave das metrópoles:

Presta atenção bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo da marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente.
[…]Queremos ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, nossa sujeira, que sintam o nosso bodum em toda parte: que nos observem fazendo nossa comida, dormindo, fodendo, cagando nos lugares bonitos onde os bacanas passeiam ou moram. Dei ordem para os homens não fazerem a barba, para os homens, mulheres e crianças não tomarem banho nos chafarizes, nos chafarizes a gente mija e caga, temos que feder e enojar como um monte de lixo no meio da rua. E ninguém pede esmola. É preferível a gente roubar do que pedir esmola (Fonseca, 2009, p. 51, 56 e 72).

Figura 2: Foto – As ruas do Rio
Figura 2: Foto – As ruas do Rio[2]
Ao comungar com a cidade, Augusto se insere em todo o contexto que uma metrópole oferece: a sua leitura e a sua escrita partem dessa simbiose entre narrar o que vê, um voyeur integrado à urbe, e um flâneur, leitor incansável buscando decifrar todas as nuances e detalhes que ali se encontram, desde as pichações nos muros e prédios até a sujeira e os excrementos colados no asfalto. Uma leitura extremamente saudosista e que irá remeter ao passado e à infância do jovem José recém-chegado na cidade.

2.2 José e Augusto

Rubem Fonseca, ao escrever A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, deixa evidências e pistas ao longo da narrativa que Augusto, apesar de todas as excentricidades, tem muito de si nos gostos, preferências, gestos e no modo como de demonstrar carinho, paixão e interação com a cidade.

A simbiose se torna muito mais nítida em duas passagens do conto em que Augusto rememora o seu passado e a sua infância. Na primeira, Augusto recorda seus oito anos de idade lembrando do pai e de sua loja no centro da cidade – o mesmo que vemos em José. Do mesmo modo, em outro trecho ele dá vida à casa dos avós e à memória da figura de seu avô, que tanto o fascinava e amedrontava com sua aparência e preferências. Rubem Fonseca opera de tal modo o relato que se torna impossível dissociar a narrativa de Augusto com o seu passado biográfico/autobiográfico:

Quando tinha oito anos, conseguiu uma lente que servia para examinar fibras de tecidos na loja do seu pai, essa mesma lente que usa neste momento. Deitado, naquele ano distante, olhou pela lente a lâmpada no teto da casa onde morava, que era também um sobrado ali no centro da cidade, e cuja fachada foi destruída para dar lugar a uma imensa placa luminosa de acrílico de uma loja de eletrodomésticos; no rés-do-chão seu pai tinha uma loja e conversava com as mulheres fumando seu cigarrinho fino, e ria, e as mulheres riam, seu pai era outro homem na loja, mais interessante, rindo para aquelas mulheres (Fonseca, 2009, p. 23).

O interessante dessa passagem sobre o pai é que a partir da lente que Augusto usa para aumentar as letras do livro que lê (e que o pai utilizava para examinar a qualidade dos tecidos em sua loja) é que tal objeto serve como catalizador para uma lembrança de sua infância, como vimos em detalhes no primeiro capítulo. Ao usar a lente para olhar a lâmpada no teto da sua casa atual a recordação não apenas do pai, mas também do sobrado em que ficava ali perto, onde na parte de baixo funcionava a loja da família; do mesmo modo que o velho aluga a parte de cima para Augusto e tem sua lojinha de chapéus na parte baixa do imóvel. Em sequência Augusto narra seus medos de uma noite da infância:

Augusto lembra-se daquela noite, em que ficou olhando para a lâmpada no teto e através da lente viu seres cheios de garras, patas, hastes ameaçadoras, e imaginou, assustado, o que poderia acontecer se uma coisa daquelas descesse do teto; os bichos ora apareciam, ora desapareciam, e o deixavam amedrontado e fascinado. Afinal descobriu, quando o dia amanhecia, que os bichos eram as suas pestanas; quando piscava, o monstro aparecia na lente, quando abria os olhos, o monstro sumia. Depois de observar, no sobrado com claraboia, os monstros na lâmpada do grande salão – ainda tem pestanas longas e ainda tem a lente de ver tecidos –, Augusto volta a escrever sobre a arte de andar nas ruas do Rio (Fonseca, 2009, p. 23-24).

As lembranças da lente, do pai, da casa em que morava e da atual se juntam em sua memória e a evocação do medo e do passado retornam à mente de Augusto e o fazem refletir sobre sua situação atual, sobre a escrita de um enorme e gigante palimpsesto de recortes como quebra-cabeças de sua vida e sua arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro.

O segundo ponto que podemos destacar desse possível entrelaçamento entre José e Augusto no conto se dá na já mencionada longa passagem em que o protagonista rememora seus parentes:

Augusto tem um destino naquele dia, como aliás em todos os dias que sai de casa; ainda que pareça deambular, nunca anda exatamente ao léu. Para na rua do Teatro e olha para o sobrado onde sua avó morava, em cima do que agora é uma loja que vende incenso, velas, colares, charutos e outros materiais de macumba, mas que ainda outro dia era uma loja que vendia retalhos de tecidos baratos. Sempre que passa por ali lembra-se de uma parente – avó, o avô, três tias, um tio postiço, uma prima. Nesse dia, dedica suas lembranças ao avô, um homem cinzento de nariz grande, do qual costumava tirar melecas, que fazia pequenos autômatos, passarinhos que cantavam em poleiros dentro de gaiolas, um macaco pequeno que abria a boca e rosnava como um cão. Tenta se lembrar da morte do avô e não consegue, o que o deixa muito nervoso. Não que ele amasse o avô, o velho sempre demonstrou dar mais importância aos bonecos que construía do que aos netos, mas ele compreendia isso, achava razoável que o velho preferisse os bonecos e admirava o avô por ficar dia e noite às voltas com seus maquinismos, talvez nem mesmo dormisse para poder se dedicar àquela tarefa, por isso era tão cinzento. O avô era a pessoa que mais se aproximava da ideia de um feiticeiro de carne e osso e o assombrava e atraía, como podia ter esquecido das circunstâncias da sua morte? Morrera de repente? Fora assassinado pela avó? Fora enterrado? Cremado? Ou simplesmente desaparecera? (Fonseca, 2009, p. 33)

O que primeiramente chama a atenção na citação acima é a reincidência da casa, como um ambiente repleto de memórias e recordações de uma infância, assim como fora no caso da loja do pai. O local no presente perdeu sua identidade original, pois ao longo do tempo foi transformado em diversos estabelecimentos comerciais e de variados tipos. A casa da avó obviamente já não é mais a mesma, porém Augusto toda vez que passa por aquela parte da cidade recorda-se de algum parente que ali conviveu por um período, tios, prima e, claro, os avôs. De todos esses fantasmas do passado, o que Augusto faz questão de frisar que mais o encanta, fascina e ao mesmo tempo o amedronta é a figura do avô, que permeia nesse dia suas lembranças.

O avô que passava os dias trancado com uma aparência macilenta pela falta de sol ao ar livre e que produzia pequenos autômatos – o que nos remete a um conto clássico de Hoffman, “O homem de areia[3]”, e aos que aparecem em algumas obras de Rubem Fonseca,  cujo maior exemplo desse fascínio que o autor demonstra pelos ventríloquos se dá justamente na passagem de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, em que Augusto presencia a cena de um homem sentado com seu cão conversando, e ao se despedir ouve o seguinte pedido: “Não vá ainda, diz o cachorro, o homem é um ventríloquo, quer fazer-me de bobo, pensa Augusto, é melhor que o homem seja um ventríloquo, cães não falam e se esse fala, ou se ele ouviu o cão falar, isso pode se tornar um motivo de preocupação” (Fonseca, 2009, p. 40).

E por fim, o protagonista não consegue se lembrar da morte do avô, o que o abala sensivelmente. Como o próprio afirma não sentir amor pelo avô, contudo pelos sentimentos contraditórios que despertava no então menino o marcou profundamente, um homem que preferia se dedicar às suas paixões, sozinho, isolado e que como um “feiticeiro” o atraía.

3. Sérgio Sant’anna e o deslumbre da paisagem

Lançado originalmente em 1977, Simulacros apresenta a estória de JP (Jovem promissor) aspirante a escritor, Vedetinha, Velho Canastrão e Prima Dona. Personagens-simulacros ficcionais sem nomes próprios, sob o jugo do dr. Philip Harold Davis (dr. PhD) que flanam, agem, interagem em diversas situações das mais esdrúxulas pelas ruas de Belo Horizonte.

Sobre as inusitadas peripécias elaboradas pelo dr. podemos destacar algumas que dão o tom experimental de comportamento social que pretendia o médico em relação ao grupo. Vestido de padre, JP tem a missão de ir de um ponto a outro do centro da cidade de mãos dadas com Vedetinha trajando uma colante calça roxa. No trajeto eles ouvem todo dia queixas e gracejos dos transeuntes, são perseguidos, e somos inseridos no contexto de toda grande cidade, com muitos marginalizados e pobreza pelas ruas, sendo acompanhado de perto pelo Dr. PhD.

Em outra cena o dr. PhD deseja que os personagens façam no Parque Municipal a representação de Chapeuzinho Vermelho. Primeiramente Vedetinha vestida a caráter é atacada por uma horda de mendigos famintos. Com medo e acuada foge em disparada deixando a cesta repleta de doces para trás para ser disputada a murros e dentadas por grupos e famílias de desabrigados. Em seguida é atacada por um tarado vampiro saindo das moitas e salva pelo Velho Canastrão vestido de lobo, que salta de uma árvore sobre o meliante, que foge completamente assustado e gritando por socorro. Na descrição feita do Parque Municipal à noite temos desde os indivíduos que atacaram Vedetinha até casais que se espreitam pelos cantos escuros, rufiões incautos esperando para darem o bote dentre outros. O contexto social dos grupos marginalizados é sobressaltado e entram em foco na narrativa.

O que primeiramente podemos observar e destacar é todo o esmero com que o autor burila o texto, o tratamento que aplica nesse contexto em que escreve e apresenta as palavras:

A literatura não traz a realidade para o texto, ela é encenação, apropriação de imagens e, nesse sentido, é, também, um exercício de poder, como qualquer outro. Na ficção de Sérgio Sant’Anna, o maior domínio da linguagem delimita um campo de poder. A palavra é uma moeda, cujo valor é definido pelo lugar social daquele que fala. Quem dispõe da autoridade do discurso tem a posse de um instrumento de dominação e não de libertação.
[…]Fugindo aos padrões tradicionais da literatura realista, a ficção do autor volta-se para a própria linguagem como palco onde se encenam as lutas pelo poder. […]. Sem qualquer transcendência, a literatura se reconhece jogo – encena suas próprias artimanhas. Céticos em relação à possibilidade de ir além dos limites da linguagem, os escritores no universo ficcional de Sant’Anna […] contemplam, de cima, a cidade, que, assim, não ameaça nem estimula a ilusão de que se poderia decifrar seus enigmas. Vistas à distância, suas luzes não ofuscam as “luzes” da razão que ordena a narrativa (Figueiredo, 2010 p. 240-241 e 251).

Como uma grande peça sendo montada ao ar livre Simulacros se insere na tentativa do autor primeiramente de dominar a palavra, o texto, a narrativa e o contexto. Tanto é que não sabemos até o final de quem é a voz que narra o romance, ficando uma ambiguidade sem resposta. A linguagem do autor procura explorar e trazer para a cena narrativa falando sobre si mesma e questionando-a, como bem aponta Luis Alberto Brandão Santos (2000). Tomando a cidade por palco, os personagens são deslocados pela vontade de um ser que os controla e domina, fazendo suas vontades e como marionetes obrigados a contracenarem.

É através da linguagem, do jogo narrativo estabelecido pelo autor que teremos o primeiro vislumbre do voyeur no romance, que apresenta assim como todos os elementos que compõem essa obra uma certa ambiguidade. Temos uma cena qualquer observada e nela se desenvolve uma determinada ação, porém tal cena sempre irá se desdobrar em outra e outra. A sequência narrativa apresenta-se de maneira frenética onde o leitor é inserido e lançado em pequenos fragmentos da estória e, ao mesmo tempo, já é conduzido para outro extremo da narração.

Portanto, o voyeur em Simulacros combina esse espelhamento com o leitor e outros personagens da narrativa que se desdobram em ações tendo o painel social da cidade por fundo. A cidade ali narrada é real, existe de fato, com pontos, marcos e referências indicadas pelo autor e por esses personagens que flanam e interagem com esse meio, como verdadeiros flâneur-voyeur da urbe.

JP em determinado momento ganha de presente do Dr. PhD um caderninho, como projeto e sonho de tornar-se um escritor, no qual deve escrever sempre uma narrativa objetiva, e desde esse momento ele passa a anotar tudo o que vê e sente pelas ruas da cidade. Nos moldes de Augusto, passa a seguir o Velho Canastrão em uma passagem se dedicando a anotar cada passo que realiza, sem esquecer do gestual e do corporal do homem. Em seguida tinha por tarefa elaborar um relatório que deveria ser apresentado satisfatoriamente ao doutor. O interessante desse contexto é que JP como um detetive da urbe precisa realizar tarefas que envolvam o olhar apurando os elementos da paisagem e ordená-los em uma narrativa coerente, direta e que dê conta de todos esses pontos. E arremete:

O fato é que todas as imagens – refletidas ou não em espelhos – são imediatamente formadas ou deformadas por aqueles que fixam com os olhos. Assim poderíamos concluir que todas as coisas não passam de imaginação. No caso das pessoas, esta imaginação as transformaria em personagens (Sant’Anna 1992, p. 57).

Ao ser incumbido de narrar a crônica familiar em que vive JP projeta em sua narrativa imagens daquilo que observa, pois ao não possuírem sequer nomes verdadeiros, as pessoas devem ser relatadas como imagens, simulacros em ação, ficcionalizando a realidade em prol da livre imaginação.

A guinada da estória começa a partir do casamento de JP e Vedetinha seguida logo após pela intensificação da experiência do doutor. É proposto que os habitantes da casa vivam em uma comunidade meio hippie, em que os corpos e as almas seriam então partilhados. E isso aumenta os ciúmes já exacerbados do Jovem Promissor, pois nota os olhares de cobiça do doutor a sua esposa, apesar dele já ter compartilhado a cama com Prima Dona. Tudo minuciosamente quantificado, relatado e observado in loco pelo grande cientista.

A seguir se dá o suposto suicídio do Velho Canastrão, o que acarreta o desenrolar dos fatos ao final apoteótico. Considerando o Dr. o demônio, Prima Dona convence Jovem Promissor a assassiná-lo. Este, por sua parte, levado principalmente pelos ciúmes e pela crítica severa que recebera sobre a qualidade pífia de sua obra, aceita a empreitada e induz Vedetinha, agora grávida, a fazer parte da trama macabra.

Simulacros, um romance de formação, nos apresenta a trajetória de um jovem até ficar pronto para tornar-se escritor, o que só ocorrerá depois de encenar o ritual de matança do pai. Percebe, entretanto, que, para legitimar a sua posição de autor, não basta simplesmente ocupar o lugar do pai e, movendo-se num esquema de valores semelhantes, acabar por repeti-lo. Descobre, finalmente, que é necessário rejeitar a história como processo generativo, rejeitar a estrutura paternal, em que o passado é um ancestral procriador, para afirmar a liberdade de escolher seus próprios modelos (Figueiredo, 2010, p. 239).

Ao matar o doutor, JP se livra do peso que o oprimia. Consegue finalmente dar forma e vazão à sua criatividade e ao espírito livre. Faz de sua narrativa de crônica familiar um texto, sem a chancela, reparos ou correções daquele que o incumbira de tal tarefa, “mata o pai” para celebrar a vida.

Ao final do relato, JP se encarrega de sustentar a casa e a esposa grávida arranjando um emprego público de carimbador através do tio deputado. Aos moldes de Epifânio (Augusto), trabalha em uma repartição pública pelas manhãs e tardes e à noite se entrega a sua grande alegria: a escrita de seu livro. Curiosamente, com o tempo, essa paixão se arrefece, primeiramente pelo carro comprado – sonho de consumo da classe média e que ocupava toda a família nas horas vagas e fins de semanas – e as saudades que sentia do doutor, porque sem ele sua vida não tinha emoção, não havia fatos novos e interessantes todos os dias, não tinha mais ninguém para dizer o que escrever e para finalmente o conduzir nos caminhos de uma boa narrativa, realista de fato.

Podemos pensar a obra como um grande palimpsesto, em que sua escrita se dá em camadas e nuances com alternância constante das vozes narrativas, fazendo com que ela a todo momento volte para si mesma, discutindo e refletindo sobre o próprio fazer literário e artístico de um escritor. Personagens que ganham vida e pessoas que se ficcionalizam.

A ambiguidade permeia todo o romance até o ponto final, onde não sabemos se de fato a criança é de JP ou do falecido doutor. E de maneira machadiana, ao vislumbrar o menino, JP reconhece nele além dos cabelos loiros e dos olhos azuis do doutor, a risada e o sorriso sem iguais. E como Bentinho com Capitu, JP abandona a mulher e o filho e resolve ganhar o mundo.

Tomando esses dados, podemos começar a pensar na cidade para Sérgio Sant’Anna. Refletindo a partir de duas páginas de Simulacros, em um tom extremamente pessoal e confessional, relata o que seria em caráter íntimo tal categoria e que podemos sintetizar sua descrição em todas as obras anteriores e posteriores do autor em que ela aparece como protagonista:

A cidade era o fracasso coletivo: suas ruas centrais sujas e mal cheirosas, os homens tristes e magros que as ocupavam. Os morros e declives habitados por gente miserável. O lixo, por toda parte, o descuido, relaxamento. A sujeira e o pó a transformarem-se num lamaçal, quando caíam, no verão as chuvas torrenciais. O pequeno rio, como um esgoto, a abrigar detritos. Os mosquitos, as baratas e os ratos. As moscas, infestando tudo, pousando nos alimentos a deteriorarem-se nos botequins, atormentando nos dias de calor. Os cães sem dono, famintos. As putas magras a espreitarem nos vãos das portas. As crianças abandonadas a dormirem junto às paredes dos edifícios; a engraxarem sapatos e exigirem esmolas; elas as crianças, que um dia se transformariam em assaltantes. No entanto, eles todos, os habitantes da cidade, deveriam perguntar-se por que eram ainda tão pouco os assaltantes, os ladrões e os assassinos; por que não ocupavam ainda todo o território da cidade? Consumindo de uma só vez, num impulso de justiça e crueldade, todos os seus insuficientes frutos. A cidade: chupá-la, esgotá-la, destruí-la. Assim se poderia recomeçar. Estabelecer novas fundações a partir do zero. A ânsia de recomeçar. Do princípio. Em novos termos. Porque a cidade era nossa falha lamentável. Nossa carência e podridão. A cidade era uma ferida (Sant’Anna, 1992, p. 65-67).

Podemos retirar vários e importantíssimos elementos deste longo trecho do autor de exaltação e paixão pela cidade, que bem poderia ter sido escrito por Rubem Fonseca e protagonizado por um Augusto procurando a perfeita comunhão com a urbe.

Ao classificar a cidade como um fracasso coletivo Sérgio Sant’Anna parte do seu olhar sobre o meio em que está inserido e interage com ele. Toda a sordidez e mesquinharia que compõem os grandes centros são relatadas em detalhes. Os homens que aí habitam e convivem sendo obrigados a viverem em meio ao caos, à violência, ao lixo e ao descuido do poder público. Os morros como depósitos de gente pobre que vive à mercê das chuvas de verão e dos frequentes alagamentos e deslizamentos de terra. Convivendo com ratos e baratas, esgotos a céu aberto e em meio à imundície.

É neste contexto urbano e social que está imersa a prosa do autor, repleto de referências às prostitutas, miseráveis, crianças abandonadas, pequenos meliantes e aos trombadinhas que povoam as ruas e dormem sob as marquises e relento, agiotas, gigolôs. Por isso o autor caracteriza nossa grande cidade como uma ferida. Porque ela deixa claro, escancaradas todas as mazelas e disparidades sociais que enfrentamos vendo na prática diariamente. A cidade esgota, suga e destrói a todos que nela vivem e sobrevivem. Por isso ela é uma falha lamentável.

Porém tal cidade não apenas comporta os extremos, os mais privilegiados e a imensa minoria carente: ela também tem em seu cerne a classe que está no meio: os intermediários que necessitam de empregos comuns e enfadonhos para sobreviverem no cotidiano. Os que moram em pequenos apartamentos lutando para ter o dinheiro do aluguel todo fim de mês, que reproduzem exaustivamente uma rotina diária e regrada, não podendo se dar a muitos luxos, confortos, lazer e entretenimentos, que em um momento de necessidade precisam também enfrentar hospitais públicos superlotados e em condições degradantes. Que usam o transporte público demorando horas por dia para se locomoverem de casa ao trabalho e vice-versa; e contam os dias para se aposentarem e passarem a velhice sentados no sofá em frente a uma televisão.

Reivindicando o direito “à cidade”, a ficção de Sant’Anna propõe um duplo deslocamento: muda o objeto da ficção (o universo a ser retratado é um universo estritamente urbano) e muda a linguagem dessa ficção (a mudança de objeto exige a busca de novas formas de narrar).
[…] Buscar a realidade como objeto para a ficção significa construir a ficção como um objeto produzido por essa realidade. Assim, a uma realidade urbana, corresponde uma ficção urbana. A vivência vertiginosa nas grandes cidades, correspondem vertigens narrativas. Incorpora-se ao olho do texto, a visão caleidoscópica da vida. Se a realidade, nos tempos atuais, progressivamente se ficcionaliza, através do poder de penetração cada vez mais intenso dos meios de comunicação de massa, a ficção de Sant’Anna se “realiza”, reafirmando seu desejo de incorporar a realidade. A incorporação da realidade acarreta, desse modo, uma progressiva afirmação da ficcionalidade (Santos, 2000, p. 86-87).

Ao incorporar a cidade como mote e protagonista de sua narrativa, Sérgio Sant’Anna desloca o texto em direção ao cotidiano. Consegue dar vida a personagens completamente imersos no caos. Uma ficção caleidoscópica que sempre procura entender e satisfazer a si própria sem se descolar totalmente do real. Toma o real como princípio e a partir dele perpassa todos os meandros da narrativa, fazendo a cidade pulsar e ganhar vida em suas linhas.

Na longa citação de Simulacros, o autor finaliza comentando aqueles que não se enquadram em nenhuma dessas categorias sociais pré-estabelecidas, que ele aponta como os mais atormentados, que possuem um inferno particular e um beco em círculo, e sobretudo, que carregam uma forma de cidade dentro deles próprios.  Os que trazem todos esses elementos são aqueles que narram em suas obras a paixão que concentram pela cidade. Uma cidade totalmente autobiográfica, íntima, particular, situada no coração de cada um que se debruça apaixonadamente sobre ela e lhe traz a vida através dos textos. Porque tal cidade mais do que muros, paredes, ruas, paisagens e indivíduos, ela é uma categoria dentro das pessoas.

Sérgio Sant’Anna renovou a prosa urbana a partir do final da década de 1960, juntamente com Rubem Fonseca e Dalton Trevisan através de suas narrativas breves; os três deram novas cores e matizes às mazelas sociais, enalteceram grupos que até então colocados literalmente à margem da literatura nacional, e sobretudo, deram-lhes voz, ação, papel e protagonismo nesses textos.

Trouxeram para o meio urbano e escancaram para a classe média que há um grupo aparentemente invisível aos seus olhos que necessitava – e necessita – ser entendido e priorizado na literatura dita contemporânea, e por isso mesmo, classes em que os palavrões, a violência, a linguagem chula e popular, sem rebuscamentos desnecessários e o caráter realístico das cenas narradas se faz preciso, só assim o texto imprime tintas fidedignas à realidade, que precisa ser vista e encarada, sem meias verdades e sem o véu de tantos que procuram ter seus olhos vendados pelo fatos que não querem ver ou minimamente perceber.


* Dejair Martins é pós-doutorando em Estudos de Literatura na UERJ. Desenvolve pesquisa relativa às formas híbridas que os diários íntimos assumem na contemporaneidade.

Referências

ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografía: exploraciones en los límites. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013.

BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Tradução: João Barrento. Belo Horizonte:

Autêntica, 2015.

DUFILHO, Jérôme. “O pintor e o poeta”. In: DUFILHO, Jérôme. TADEU, Tomaz. (orgs). Charles Baudelaire – O pintor da vida moderna. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

FIGUEIREDO, Vera Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: 7Letras, 2010.

FONSECA, Rubem. FONSECA, Zeca. A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

________________. Romance negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução: Enir Sader. São Paulo: Boitempo, 2015.

SANT’ANNA, Sérgio. Simulacros. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992.

SANTOS, Luis Alberto Brandão. Um olho de vidro: a narrativa de Sérgio Sant’Anna. Belo Horizonte: UFMG/FALE, 2000.

SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. Tradução: Monica Stahel. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

_____________. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920-1930. Tradução: Julio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Notas

[1] Leonor Arfuch tece o seguinte comentário sobre essa “cidade textual”: “É possível pensar a cidade como uma trama textual, narrativa, onde metáforas, metonímias, hipérboles e sobretudo oximoros se articulam sem cessar sob o olhar experiente do poeta ou do crítico, e talvez escape ao transeunte apressado” (2013, p. 30) [Tradução minha].

[2] Todas as fotografias aqui reproduzidas foram retiradas da edição de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro (Agir, 2009).

[3] Neste que é a mais conhecida narrativa de Hoffman, que inclusive inspirou o ensaio de Freud sobre o “estranho”, temos o protagonista Natanael assombrado desde a infância pelo advogado Coppelius, amigo do pai, cuja sombra o persegue até a idade adulta. Nessa fase encontra o vendedor de barômetros e lentes Coppola, que identifica como sendo a mesma pessoa. Acaba por apaixonar-se por sua filha Olimpia, que na verdade é um autômato, uma boneca.

dossiê
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O A.R.T.E2 NAVEGANDO NO MAR DE HISTÓRIAS

1. A.R.T.E.2 e Mar de Histórias em parceria com a Associação de Moradores da Vila da Ilha do Fundão (AMAVILA).

Em março de 2019, em uma das etapas importantes para dar início aos projetos de extensão observamos que no acesso local da Vila da Ilha do Fundão há um templo evangélico, o Galpão Arte em Dança, um campo de futebol e um terreno baldio ao lado direito. Das cercanias avistamos o Parque Tecnológico, a Gráfica e o Depósito de móveis da UFRJ. À margem direita do Canal do Cunha está localizada a empresa Sermetal/Estaleiros e um manguezal com três píeres para desembarque da tripulação de pequenos barcos. Segundo a AMAVILA, a Vila é composta por 17 ruas distribuídas por uma a área de ocupação de 20.000 m2, habitada por 2.000 pessoas distribuídas em 350 residências aproximadamente. Há uma praça central com uma Igreja Católica e no entorno desta praça há algumas residências, onde também está instalado o terminal da linha interna dos ônibus da Cidade Universitária.

Desde o início da transferência ocasionada por decisão do poder público, a Vila foi ocupada por famílias de tipos sociais com hábitos diversificados acerca de seus saberes, vivências e inteligências. O modo de urbanização impositivo indica ter sido um motivo para esse local não apresentar seu próprio legado de tradição cultural. A fim de aprofundar esta observação, esta pesquisa dedica-se à tarefa de identificar a composição dos tipos sociais e os modos de vida dos moradores da Vila Residencial, ao observar como ocorrem suas relações cotidianas e buscar quais seriam as demandas solicitadas pela população local que pudessem ser contempladas de certo modo pelas atividades de extensão dos Projetos Mar de Histórias e A.R.T.E.2 (sigla para Arte Reciclagem Técnicas Educação e Extensão).

2. Breve histórico de ocupação da Vila pelos moradores

Entre os anos de 1949 e 1952 o Arquipélago de Inhaúma, formado por oito ilhas situadas na Baia de Guanabara, foi aterrado em grande parte pelo morro da ilha do Fundão para a construção do Campus da UFRJ. Por esse motivo, constatamos que os primeiros moradores da Vila Residencial vieram das ilhas de Inhaúma e em maior concentração nas ilhas de Sapucaia e do Catalão.  Em 1950, os operários que concluíram a obra do aterro da Cidade Universitária foram em parte incorporados como força de trabalho da UFRJ. Alguns destes trabalhadores (e seus familiares) atuaram como agentes de limpeza, vigilância e segurança e então tornaram-se moradores na Ilha do Fundão. Ao longo da década de 60, alguns familiares passaram a ter relações diretas ou indiretas nos postos de trabalho da Cidade Universitária da UFRJ. Em 1970, outras famílias que ocupavam as cercanias da Ilha do Fundão foram removidas pela Prefeitura Universitária, para atual localização da Vila, ao Sul da Cidade Universitária. Entretanto, a família Silva permaneceu com seus descendentes na Praia do Mangue, até 2018.

Atualmente com o advento da bolsa estudantil de auxílio moradia, os estudantes oriundos de diversas partes do Brasil e do exterior passaram a ocupar a Vila Residencial, morando em repúblicas construídas por moradores antigos, o que fez aumentar a demanda de infraestrutura do local. Por sua vez, este fator também gerou o aumento da atividade comercial com a abertura de restaurantes, bares, mercadinhos, salões de beleza, padarias e lojas de materiais de construção. Neste ínterim, as visões de mundo dos estudantes e demais moradores apresentam focos distintos em razão da noção de pertencimento à comunidade.  Apesar do crescimento econômico na Vila, percebemos pouca mescla cultural entre os tipos sociais locais, pois alguns moradores antigos entendem que os estudantes são hóspedes e por isso deveriam ser mais comedidos na forma de expressar seus modos de vida.

3. Os desafios do aprendizado social

Reunimos nossas atuações acadêmicas específicas e a vontade de realizar as atividades coletivas para além das cercanias da EBA/UFRJ. Uma questão inicial se deu em relação a como se formar grupos extensivos, comprometidos em todas etapas dos projetos e oficinas. Através da experiência em projetos de pesquisa no âmbito do PIBIAC e do PIBIC, desenvolvemos estratégias didáticas para o ensino das artes visuais nos diversos segmentos educacionais que envolvem ações de extensão. Os conteúdos teóricos relativos à arte, reciclagem, técnicas, memórias, saberes, educação e extensão são apresentados nos congressos, nos seminários acadêmicos e regularmente na Semana de Integração Acadêmica (SIAC) da UFRJ.

No sentido da arte, da educação e de técnicas desenvolvidas para as artes (plásticas, digitais e computacionais), acreditamos poder oferecer em oficinas práticas condições necessárias para ampliar o horizonte de experiências que estimulam a imaginação, tanto poética quanto geradora  de renda para novos artesãos. Discutimos as proposições apresentadas pelos participantes e a viabilidade destas para adaptar atividades em andamento e oficinas com potencial de serem realizadas. Assim, a participação dos estudantes, técnicos e comunidade convidada coloca como um desafio constante sobre os modos de ampliação das ações a fim de despertar o interesse do público nos projetos existentes. Este procedimento reforçou a aprovação dos projetos submetidos à congregação da EBA e à PR-5/UFRJ. A promover os interesses e necessidades da sociedade, os Projetos A.R.T.E2. e Mar de Histórias se comprometem com a comunidade acadêmica, sustentada no tripé ensino-pesquisa-extensão, pelas ações formuladas e aplicadas de acordo com o termo de parceria firmado entre a AMAVILA os coordenadores do projeto, para o interstício de junho/2019 à junho/2021. O encontro se deu em razão de uma demanda em atender ao projeto de extensão por Universidades Brasileiras, que promove a participação efetiva da comunidade acadêmica em outras esferas a fim de beneficiar a comunidade extramuros, fomentando possibilidades de transformação da sociedade.

O projeto A.R.T.E.2 (sigla para Arte, Reciclagem Técnicas Educação e Extensão) associado ao projeto Mar de histórias: tecendo redes de afeto trata dos parâmetros da educação interdisciplinar e interprofissional dialogando com os laboratórios de pesquisas acadêmicas LaMIE e LAB01 da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ainda colaborando junto a outros projetos de pesquisa e extensão a universitária da UFRJ e ONGs do Rio de Janeiro.  Nesses projetos são mediados conteúdos programáticos baseados nas disciplinas de cerâmica, arte digital e computacional, desenho e animação, criação da forma-composição e da cor-perspectiva. Os projetos dialogam com os métodos gerativos e construtivos da imagem para realizar uma produção de artefatos, através de suas oficinas, operando como geradores de uma identidade visual capaz de agregar valores culturais locais.

Com o objetivo de disseminar as modalidades de expressão artística interligadas aos contextos culturais e educacionais nas comunidades, o Projeto A.R.T.E.2 promove métodos de ensino artístico inclusivo e democrático. Contando com a preciosa atuação dos técnicos e dos monitores mediadores selecionados após cursarem as disciplinas regulares de artes.  As oficinas com a produção conversam artística contemporânea, com os conteúdos sobre reciclagem e as técnicas artísticas que possam ser aplicados em diversos contextos socioculturais:  técnicas de modelagem, tipos de moldes, gravura em tecido e papel, encadernação, máscaras e cultura brasileira; mulheres aristas brasileiras, desenho de paisagens, pessoas, fauna, flora e mobiliário urbano, matilhas encontradas na UFRJ, mulheres artistas da EBA/UFRJ, arte cerâmica e arte digital.

Por sua vez, o Projeto Mar de Histórias: tecendo redes de afeto, teve início dentro do Campus Fundão, posteriormente estendeu-se para a cidade de Paraty e para o Observatório do Valongo na cidade do Rio de Janeiro. O plano de trabalho considera que a partir da oralidade, o narrar vem se tornando uma experiência enfraquecida. O projeto consiste em oferecer cursos de desenho de livre e de técnicas de silk screen, de xilogravura e de encadernação, para confecção de livros artesanais que registrem os saberes e memórias locais e assim busca novas formas de garantir que a palavra e a imagem permaneçam como uma experiência potente e capaz de transformar uma realidade hostil. No segundo período de 2019, o tema abordado nas oficinas foi a memória da natureza brasileira. Sendo assim, o público das oficinas de desenho artístico registrou a flora e a fauna da Ilha do Fundão, produzindo material imagético para trazer visibilidade sobre importância de manutenção e preservação da paisagem local.

4. A atuação dos projetos na Vila

Em agosto de 2019 promovemos a Oficina Mat Ilhas: Cor e Desenho na AMAVILA (Figura 1). Esta atividade foi de suma relevância para traçarmos um diagnóstico da comunidade e elaborar estratégias para sensibilizá-los a participar do evento. A partir disso, fizemos entrevistas semiestruturadas e vídeos para conhecer os pormenores da rotina dos moradores da Vila Residencial e seus interesses em atividades de extensão. Com o apoio dos dirigentes da AMAVILA, também contatamos os coordenadores e monitores de outros projetos de extensão para estabelecer parcerias. A atividade foi organizada da seguinte forma: com a carga horária de 17h (13h de preparo e 4 de aplicação, num total de 1 aula), contou com 2 (dois) mediadores, atendeu a 8 (oito) cursistas, na faixa etária de 7 a 10 anos. Observando que no primeiro momento houve uma timidez das crianças em relação ao grupo de mediadores, que logo se aproximaram em pequenos grupos até completarem o total de 8 cursistas.

O tema tratado foi o abandono de animais domésticos na ilha do Fundão e como este fato influencia a rotina local, devido as matilhas circularem pelas cercanias e ruelas da vila residencial. A Oficina Mat Ilhas foi realizada com uma parte explicativa sobre o tema por meio de apresentação de multimídias. Adiante, com material elaborado pelos monitores mediadores, oferecemos às crianças uma série de desenhos de cães para colorirem observados nas matilhas da Ilha do Fundão. Sugerimos que nomeassem os cães com nomes de gosto pessoal; assim cada desenho colorido foi batizado com os nomes de: Bela, Caju, Pietro, Onshamre, Vadinha, Mel, Negão e Podosk. Desta forma, sensibilizamos as crianças para pensarem sobre as zoonoses, a importância dos afetos e o respeito aos animais. Como desdobramento do projeto, a partir do material obtido na oficina com as crianças, foi elaborada uma intervenção artística a ser exposta em outros locais para atingir outros públicos.

Figura 1. Ação de extensão Matilhas: Cor e desenho – Amavila/ UFRJ e uma matilha de cães da Ilha do Fundão /UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 1. Ação de extensão Matilhas: Cor e desenho – Amavila/ UFRJ e uma matilha de cães da Ilha do Fundão /UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

Baseados no diagnostico traçado pela Oficina Mat Ilhas, debatemos sobre qual seria o melhor caminho para valorização da autoestima e da sustentabilidade através das práticas artísticas. Direcionamos o plano de trabalho para elaborar atividades de acordo com a agenda disponível das salas, a carga horária necessária, a criação dos artefatos com temas livres e sua comercialização. A venda seria em pontos escolhidos nas dependências da UFRJ e da Vila residencial e os valores seriam calculados no modelo de contribuição consciente. Assim, treinamos os monitores mediadores construindo parâmetros de práticas docentes específicas, posicionando-os como líderes da equipe de acordo com as técnicas aplicadas em cada oficina, vislumbrando atingir os desdobramentos do mercado.

Por princípio dos projetos que pretendem abarcar temas como a representação da cultura brasileira, estabelecemos para as oficinas os temas identidade, pertencimento, memória e cultura brasileira. Desta maneira buscamos resgatar processos artísticos de integração, referenciados na atuação de mulheres artistas pesquisadoras professoras da EBA que nos oferecem um legado de processos didáticos, a exemplo de Celeida Tostes, Simone Michelin, entre outras. Isto posto, realizamos exercícios para esquematização das etapas de cada proposta, a citar: o levantamento da infraestrutura na AMAVILA, a elaboração das listas de ferramentas e de materiais de consumo e grade de horários conciliados às atividades de outros projetos de extensão.

Figura 2. kit básico de materiais e equipamentos, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2.
Figura 2. kit básico de materiais e equipamentos, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2.

Custeamos as oficinas para depois de estabelecidos Projetos A.R.T.E.2 e Mar de Histórias para ainda encontrar editais adequados que tornem os projetos futuramente sustentáveis. Embora sejam utilizados alguns produtos reciclados, foi necessário comprar materiais básicos. Sendo assim, montamos kits de materiais, como mostra a Figura 2, para oficinas com contribuição voluntária dos professores envolvidos. Destacamos que a área de atuação ficou limitada às cercanias da UFRJ em razão de adaptação das atividades de acordo com os recursos disponíveis. Além do material básico o custo relativo ao translado e a alimentação dos monitores mediadores também foram custeados pelos professores responsáveis, pois nenhum monitor até o momento dispõe de bolsa institucional para tais projetos de extensão.

A oficina formas e moldes de silicone para fabricação de velas artesanais (Figura 3) treinou monitores do Time Enactus/UFRJ para ampliarem o repertório de modelos e otimizarem a produção de velas artesanais. O grupo aprendeu com o Time Enactus técnicas básicas de fabricação de velas feitas com óleo de cozinha usado. Dada a necessidade de infraestrutura adequada, as atividades foram realizadas em três encontros de 4h de duração. Adelson Nascimento, servidor da UFRJ lotado na EBA, técnico em formas e moldes, atuou como o mediador líder da proposta desta oficina. Com participações diversas pudemos estimular o convívio no trabalho amistoso e afetivo entre estudantes, monitores mediadores, o técnico e professores envolvidos, em razão da importância de disseminar essas práticas para a comunidade, ativando a primeira parceria do A.R.T.E.2 com outro projeto extencionista fora da Escola de Belas Artes.

Figura 3. Ação de extensão Oficina de Formas e moldes de silicone, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 3. Ação de extensão Oficina de Formas e moldes de silicone, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

A apresentação da proposta foi desenvolvida durante 4 dias de oficina. Foram apresentados alguns objetos para serem usados como formas na produção de velas. Uma estrutura foi criada para que os moldes de silicone pudessem ser feitos de cano de PVC, acetato, madeira ou argila. O objetivo das atividades foi expandir a criatividade e mostrar ao participante que qualquer objeto de uso cotidiano pode ser usado como base para o molde, desde que apresente uma estrutura volumétrica mais adequada para a elaboração das velas, criando assim um repertório amplo de possibilidades. No segundo encontro foram feitos os moldes de silicone e cada participante se empenhou em um projeto de molde um. Também, foram feitas modelagens em barro como formato de base para outras produções em moldes em silicone.

As características dos matérias empregados se impõe durante os processos de aprendizado e execução. Quanto ao uso do silicone, vale observar, sua durabilidade e resistência aos processos de moldagem são determinados por variáveis de ordens diversas, sendo uma delas o tipo e qualidade da borracha utilizada. A materialidade emborrachada do silicone possui flexibilidade, elasticidade e fidelidade de cópia; a estrutura antiaderente, permite um desmolde fácil, e de aspecto aproximado ao objeto matriz referente, a resistência dos moldes propicia o aumento da reprodutibilidade, a inferir na rentabilidade de venda dos objetos resultantes. Ainda que durante o desmolde o silicone apresente certa fragilidade, o que requer recomendações durante essa etapa, para que seja realizada cuidadosamente, por exemplo com auxílio de estilete.

Para reforçar a importância das conexões entre os projetos de extensão da UFRJ, o projeto foi até a AMAVILA para dar continuidade na atividade de produzir moldes de silicone, de acordo com as orientações dos monitores do Time /Enactus/UFRJ. As velas decorativas foram feitas a partir de óleo de cozinha usado ali e para evitar o descarte irregular desse material na tubulação sanitária da comunidade. A oficina de formas e moldes de silicone atendeu à demanda de aperfeiçoamento dos 6 (seis) monitores do projeto Guta/Enactus/UFRJ, atuante na AMAVILA, que tem como objetivo a criação de novas formas para as velas artesanais, fabricadas através do reaproveitamento do óleo de cozinha coletado na comunidade.

Figura 4. Ação de extensão Oficina de Gravura em tecido e papel, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 4. Ação de extensão Oficina de Gravura em tecido e papel, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

A Oficina de gravura em tecido e papel (Figura 4) foi conduzida pelo monitor mediador Douglas Suzano. Com objetivo de ensinar técnicas de impressão em papel e em tecidos, foram confeccionadas pinturas à mão livre e através de produção de carimbos, moldes de estêncil para estamparia e impressos a partir de modelos oferecidos pelo monitor e criados pelos participantes. Por necessidade de infraestrutura apropriada, a oficina de velas foi realizada no Espaço Vila em Dança, gentilmente cedido. Foi possível traçar o perfil variado do grupo de participantes, por exemplo, entre senhoras moradoras da Vila Residencial e estudantes da EBA. O objetivo da oficina foi integrar os participantes através da produção artística sob o viés da sustentabilidade. Vale ressaltar que os relevantes resultados produzidos em gravura em tecido de algodão cru e em ecobags provocaram os monitores mediadores a trocarem de posição fazendo as atividades propostas junto dos moradores, estreitando laços afetivos.

Para a produção de carimbos, foram escolhidos desenhos a serem reproduzidos nas placas de EVA, recortados e colados nos suportes de MDF. Foram explicadas as classificações das cores em neutras branca, preta e cinza) e primárias (azul, amarela e magenta) e como misturá-las para obterem cores secundárias (verde, laranja e roxa) e terciárias (marrom, roxo-avermelhado, laranja-avermelhado, laranja-amarelado, verde-amarelado, verde-azulado, roxo-azulado). Preparadas as tintas e aplicadas aos carimbos com rolinhos de espuma, pressionadas sobre folhas de papel para a impressão. O processo de preparação de carimbos demanda esforço e tempo, devido a precisão dos cortes, da secagem da cola, do preparo das cores, no entanto durante o processo de aplicação das estampas os resultados são rápidos e compensam o empenho inicial. O ato de carimbar e pintar os tecidos de algodão cru serviu para confeccionar caminhos de mesa e capas de caderno. Ao fim das atividades foi proposto aos aos participantes que gravassem as estampas pintadas nas sacolas de ecobags, com intuito de estimular a produção com possibilidade de valor de mercado. Em depoimentos posteriores foi marcante para o grupo ver o sorriso e a alegria dos participantes satisfeitos com os rápidos resultados dos trabalhos, ainda mais após saberem que os tecidos estampados fariam parte da atividade subsequente (a oficina de encadernação).

Durante a realização da Oficina de gravura em tecido e em papel surgiu o interesse dos cursistas e monitores sobre o tema de atividades artísticas para pessoas com necessidades especiais, levando os coordenadores do grupo a realizarem uma palestra com convidados na Oficina de Encadernação Artesanal, em conjunto com a Oficina de encadernação sobre Brinquedos educativo e sustentável aplicadas a autistas, ministradas pelos estudantes Erick Ricardo Teixeira e Marcelle Simões da Rocha, estudantes da Escola de Belas Artes da UFRJ que desenvolvem brinquedos educativos. No primeiro momento das oficinas houve uma retração dos cursistas em relação ao grupo. Com a aplicação das diferentes oficinas, o trabalho foi se fortificando e houve uma integração social e de aprendizado entre os pares.

Figura 5. Ação de extensão Oficina de Encadernação Artesanal, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 5. Ação de extensão Oficina de Encadernação Artesanal, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

A Oficina de encadernação artesanal (Figura 5) foi liderada pela monitora Flavia Fontes. As atividades foram adaptadas para serem realizadas na sala multiuso da AMAVILA. Para introdução, foram propostas duas técnicas de encadernação, sem costuras, usando grampeadores e cola para fixar as folhas das cadernetas e outra por costura manual usando agulha e linha, para fixar os blocos de papel e formar um caderno. Foram produzidos cadernos costurados se valendo de linhas e fitas, com capas forradas em tecidos e alternativas decorativas a fim de tornar os cadernos atrativos aos olhos de um possível comprador, indicando o cuidado para se manter a qualidade no acabamento dos produtos tendo em vista a finalidade de venda. Monitores mediadores ofereceram todo o suporte para o grupo de participantes na composição das capas e encadernações. Foi demonstrado como fazer um modelo de encadernação em estilo carteira com uma nova forma de costura e a colocação de um fecho simples em um caderno de capa semirrígida e encadernação japonesa com capa rígida revestida em tecido.

O objetivo dessa oficina foi promover a inclusão social, estimular a criatividade com a iniciação artística e contribuir para a geração de renda dos moradores da Vila Residencial da Ilha do Fundão. A oficina de encadernação absorveu os resultados desenvolvidos na Oficina anterior de gravura em tecido e papel, utilizando as imagens criadas para ampliar as chances de confeccionar artefatos personalizados e produtos com valores culturais produzidos pelos participantes locais e assim pudessem gerar uma identidade própria a cada nova encadernação. Os resultados das oficinas foram compreendidos por todos de maneira tão positiva que dali surgiu a ideia de montar uma banca de vendas. A banca de produtos foi realizada e ficou em exposição no hall do Prédio da Reitoria durante um dia. Para a geração de renda foi aplicado o conceito da contribuição consciente, no qual o preço dos produtos é negociado pelo comprador a partir de um preço sugerido.

Figura 6. Ação de extensão Oficina de Máscaras em papel machê, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 6. Ação de extensão Oficina de Máscaras em papel machê, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

Os conteúdos da Oficina de Máscaras em papel machê (Figura 6) foram desenvolvidos sobre temas referentes à cultura popular, propondo exercícios de sensibilização e estímulo da criatividade através da confecção de máscaras de papel reciclado. Destaca-se entre os objetivos, disseminar à comunidade participante diversas modalidades de expressão artística interligadas aos contextos culturais e educacionais, a cidadania, as ações de reciclagem de materiais e a produção artística. A oficina de máscaras teve a participação de diversos monitores dos projetos, entre os quais a monitora Jecie Guimarães se empenhou em todas etapas. Os propósitos dos exercícios foram preparar duas bases de máscaras a partir do formato de cabeça humana para discutir identidade e criatividade. Foram exibidas imagens de máscaras folclóricas e em seguida aplicados exercícios com espelho onde os participantes fechavam os olhos e conduzidos a   se imaginarem com a fisionomia de animais, para depois ao mirar o próprio rosto no espelho, pudessem procurar alguma semelhança com o animal imaginado. Em seguida, foram feitas moldagens diretas do rosto com folhas de papel alumínio, como estudo da ergonomia do formato da cabeça humana com moldagem direta. Para servir como memória na produção de máscaras ocorreram exercícios lúdicos e teatrais nos quais os participantes puderam agregar valores estéticos e identitários nas formas das máscaras. Para o encontro subsequente preparamos a base de máscara sobre balão de látex inflado e foram coladas dissolvendo com cola com um pouco de água para fazer o empapelamento dos balões com tiras de papel cortado aproveitado de revistas e jornais. As bases de balões de papel colê foram estruturadas com arames e depois cobertas com papel branco para dar base uniforme para a pintura. Usamos massa de papel machê preparada com papel higiênico, cola e vinagre, além de sucatas, para dar relevo às características das máscaras, posteriormente pintadas para enfatizar as expressões desejadas.

Ao final pudemos realizar um desfile de máscaras, que reuniu diversos projetos de extensão universitária com uma grande festa de final do ano. Foi criada uma metodologia específica, promovendo o ensino artístico inclusivo e democrático, valorizando a autoestima da comunidade da Vila Residencial, e articulando a participação dos projetos com seus resultados levando a banca de vendas para o Sarau Integrates Internacional como um dos modelos possíveis de expansão da Oficina. Onde se observou uma importante relação entre as participantes que realizaram as máscaras e crianças que puderam brincar com os objetos numa interação entre diferentes gerações.

Figura 7. Ação de extensão Oficina de Desenho de naturalista, Amavila/ UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2
Figura 7. Ação de extensão Oficina de Desenho de naturalista, Amavila/ UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E.2

A Oficina de desenho de naturalista (Figura 7) foi elaborada para registrar a fauna e flora do Campus da UFRJ entre outros locais a partir da compreensão dos métodos de desenho perceptivo e desenho analítico, com o intuito de demonstrar que qualquer pessoa interessada pode desenvolver habilidades de realizar um desenho, uma vez que tenha  oportunidade de se expressar plasticamente. Sendo assim, as inscrições foram divulgadas entre a comunidade acadêmica discente da UFRJ com o apoio da Decania do CCMN/UFRJ. Deram-se início as atividades nos jardins internos do complexo de edificações deste local e para que os participantes internalizassem os conteúdos foram realizados quatro encontros, sendo o primeiro dedicado a apresentação de um diagnóstico histórico e paisagístico dos jardins no projeto arquitetônico do CCMN para identificar quais os tipos de plantas e quais as funções elas se destinaram nos jardins.

Realizamos exercícios de sensibilização aplicados de forma que os participantes escolhessem e descrevessem oralmente e detalhadamente as formas e linhas das plantas que viam no jardins. Foram observadas as proporções das plantas escolhidas com a escala humana, bem como entre os tamanhos das diferentes plantas e entre o tamanho das folhas em relação ao galho, ao caule, flor e fruto. Em seguida demonstramos como transpor estas relações do corpo para o papel com linhas de apoio, realizando esboços representativos das imagens vistas. Mostramos os tipos de representação gráfica com o grafite da luz e da sombra, destacando a figura do fundo, e evidenciando os volumes observados através da hachura; realizamos estudo das cores com exercícios de observação com descrição oral das cores percebidas nos jardins em relação a incidência da luz natural, explicamos como preparar cores do círculo cromático e foram feitos exercícios livres através das técnicas do lápis de cor aquarelável.

Embora, identifiquemos dinâmicas distintas entre as oficinas descritas, as proposições alicerçadas na busca por estratégias de inclusão social geraram oportunidades mais igualitárias para a comunidade refletindo sobre sustentabilidade através da arte. Em nossa análise percebemos que laços afetivos foram fortalecidos entre participantes na medida em que as atividades artísticas promovidas estimularam o interesse das ações coletivas, da possibilidade de realizarmos exposições artísticas e de comercializarmos produtos confeccionados por todos. A integração foi acelerada, através da criação de duas redes ssociais, a fim de propiciar diálogo, interação e partilha de valores, hábitos e objetivos comuns.

Com a realização dos eventos expositivos dos resultados, foi promovida a intenção de se criar um acervo teórico e imagético para futuras ações acadêmicas, para transferência de conhecimento e geração de estratégias didáticas interdisciplinares, contribuintes ao ensino das artes visuais em todos os segmentos educacionais. Tais resultados serviram para a completude do ciclo criativo que fica demonstrado ocorrer a partir da ressignificação na interação com outros públicos, com a divulgação dos projetos e dos processos de criação alcançados; e nesse caso acrescidos da dinâmica vivenciada com a promoção e venda dos objetos confeccionados.

Figura 8. Intervenções artísticas no campus da Cidade Universitária/UFRJ Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2
Figura 8. Intervenções artísticas no campus da Cidade Universitária/UFRJ
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2

Cada Projeto teve um direcionamento final, como no projeto Mat Ilhas, que como citado, foi proposto intervenções artísticas (Figura 8) no campus da Cidade Universitária/UFRJ, uma vez demarcado territórios de ocupação usados como espaços expositivos transitórios, tal como se observam a rotina das matilhas que lá habitam. Com isso, a pesquisa teceu os conceitos de Etologia, Cartografia, Antropologia e Arte Pública, como instrumento de poder critico, político e social no cenário da cultura brasileira contemporânea. A interação do público com a instalação proposta aconteceu através de gestos de carinho e fotografias com as esculturas. A intervenção artística Mat Ilhas foi apresentada na na SIAC 2019 da UFRJ e publicada como artigo nos Anais do Scientiarum História XII, em 2019.

Figura 9. Contribuição Consciente Hall do Prédio da Reitoria da UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2
Figura 9. Contribuição Consciente Hall do Prédio da Reitoria da UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2
Figura 10. Contribuição Consciente Faculdade de Letras da UFRJ. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2.
Figura 10. Contribuição Consciente Faculdade de Letras da UFRJ.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2.
Figura 11. Contribuição Consciente Sarau Integrartes Internacional. Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2
Figura 11. Contribuição Consciente Sarau Integrartes Internacional.
Fonte: Acervo dos projetos de Extensão Mar de história e A.R.T.E2

A partir do equilíbrio entre a ideia de sustentabilidade e o custo de produção, foi proposto uma Ação de Extensão de Contribuição Consciente dos artefatos produzidos nas Oficinas realizadas na AMAVILA/UFRJ (Figura 9), promovidas em três ações, sendo: uma banca de venda no Hall do Prédio da Reitoria da UFRJ (06/11/2019), uma banca de venda no Sarau Integrartes Internacional – 100 anos de Helenita de Sá – EARP /Amavila (16/11/2019) e uma banca de venda realizada na Faculdade de Letras da UFRJ, em 22/11/2019 (Figura 10). Esses produtos (cadernos, tecidos estampados, bolsas, máscaras) foram oferecidos ao público por ações de venda dentro e fora da comunidade com a estratégia de recebimento de contribuição consciente dos compradores, ou seja, os valores foram sugeridos para que os compradores tivessem a liberdade de pagar o que achavam que cada produto valia, dada a ação promovida e o benefício social esclarecido durante a ação de venda. A presença dos participantes durante as vendas colocou os compradores em contato com outras pessoas, abrindo uma nova etapa de comunicação e compartilhamento da experiência nas oficinas e elevando a autoestima dos participantes, além de ampliar a divulgação do projeto. Junto ao Sarau (Figura 11), o grupo realizou mais duas atividades um desfile de máscaras pela AMAVILA, com a participação de coordenadores, mediadores, cursistas, moradores e crianças da comunidade da Maré, criadas na Oficina de máscara em papel machê, movidos por uma bandinha de música do evento. Com o término das atividades em dezembro de 2019, os participantes promoveram uma confraternização das Oficinas para consolidar a amizade gerada entre todos e pensar juntos os desdobramentos futuros das Oficinas.

5. Conclusão

Em relação as ações de Extensão de Contribuição Consciente dos artefatos produzidos nas Oficinas realizadas na AMAVILA/UFRJ, foram promovidas três ações, no Hall do Prédio da Reitoria da UFRJ, com a participação de três cursistas e membros do grupo de extensão, com a maior arrecadação das três ações e com uma recepção muito boa da comunidade acadêmica, inclusive pelos intercambistas, todos interessados nas explicações sobre as oficinas e sobre os produtos gerados. Dos 100% obtidos de recursos com estas ações teve retorno de 75% da arrecadação.

Na Contribuição Consciente no Sarau Integrartes Internacional – 100 anos de Helenita de Sá – EARP /Amavila, com a participação da maioria dos cursistas e membros do grupo de extensão, teve retorno de 5% da arrecadação e contou positivamente para o grupo para estabelecer aproximação de membros de outras ações extensionistas realizadas na vila, bem como divulgar o os projetos para a comunidade da Amavila e membros de outras localidades que frequentaram o evento. A última apresentação da banca de vendas foi realizada na Faculdade de Letras da UFRJ, pelos membros do grupo de extensão, com destaque das monitoras Catarina Xavier Lopes da Silva e Melissa Anselmo dos Santos, obtendo retorno de 20% da arrecadação. Todo dinheiro arrecadado foi entregue pelos mediadores para uma pessoa da comunidade, eleita pelas cursistas, com um caderno anotado o número de peças vendidas e valores arrecadados. O montante será investido na execução de aventais ou bolsas para as próximas oficinas em 2020. Neste primeiro passo da Contribuição Consciente houve um retorno de 10% do que foi investido em insumos e equipamentos, surgindo uma necessidade do grupo em rever a substituição de materiais e técnicas para barateamento dos produtos e realização de um maior número de ações de contribuição consciente, possibilitando num futuro próximo a rentabilidade na execução do artesanato para as cursistas.

Durante as ações propostas foram coletados depoimentos de cada participante, seus modos próprios de se fazer presente nas oficinas e suas histórias foram contadas também no modo de existência de cada objeto de arte que dali surgiu. A participação foi aos poucos sendo ampliada com o agenciamento de pessoas de diferentes faixas etárias e diferentes níveis de escolaridade, que passaram a trocar experiências e a criar juntos. Com isso, consideramos que os encontros nas oficinas produziram resultados que foram além da economia financeira, pois promoveram o que podemos chamar de economia do afeto; essa capaz de gerar outras revoluções que não se provam por números, mas por bem estar social que, por sua vez facilitam outros benefícios financeiros. Sendo assim, deflagramos nossas ações futuras com a pretensão de remodelar em 2020 as ações na AMAVILA, intensificando nossa atuação na comunidade e abrindo novas parcerias de extensão. Elaboraremos publicações de artigos acadêmicos e a modelagem de um e-book sobre os projetos. Não obstante, buscaremos captar recursos financeiros providenciar os equipamentos e materiais necessários e a reforma da saleta destinada para das ações compartilhada pelo LaMIE, LAB01 e Laboratório de Cerâmica da FAU. Solicitaremos bolsas de monitoria nos programas de fomento para alinhavar redes de ações com outros projetos de extensão.

Por fim, agradecemos as cursistas das oficinas pelo carinho de nos trazer bolos, pães e fazerem o café a cada oficina e a motivação para realizar uma festa na sede da AMAVILA para fechamento das atividades do grupo. Ressaltamos o empenho do Sr. Antônio Avelino pela cooperação e agilidade em suprir as necessidades das oficinas como presidente da AMAVILA. Pela colaboração na formalização dos projetos e oficinas agradecemos à coordenação de extensão da Escola de Belas Artes e especialmente a Sra. Vanessa Nofuentes. Não podemos deixar de destacar a grande contribuição do técnico de oficinas do Curso de Artes Visuais/Escultura o Sr. Adelson Nascimento que gentilmente, se disponibilizou para participar das reuniões, acompanhar e atuar na oficina de moldes e formas de silicone, em suas horas de almoço e folgas. À Professora Andrea de Lacerda Borde da Oficina Integrada de Cerâmica EBA/FAU e coordenadora do Laboratório de Cerâmica, ao Professor Andrés Pássaro fundador e colaborador do LAMO/FAU e à professora Ana Célia do Projeto Vila em Dança deixamos aqui registrado todo o reconhecimento por colaborarem com entusiasmo das ideias, da doação de mobiliário e do compartilhamento dos espaços físicos e pela sorte de terem cruzado nosso caminho ao longo desta trajetória.


* Katia Correia Gorini, Ana Cecilia Mattos MacDowell, Maria da Graça Muniz Lima e Aurélio Antônio Mendes Nogueira são professores da Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Adelson Alves do Nascimento é Técnico em moldes da UFRJ.

Caio Vasconcelos Maia, Catarina Xavier Lopes da Silva, Douglas do Nascimento Suzano, Flávia Lucia da Silva Fontes, Jecie de Araújo Gonçalves, Karine Corrêa da Silveira e Melissa Anselmo dos Santos são graduandos da Escola de Belas Artes da UFRJ. Isabella Maria do Livramento Gonçalves é graduanda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.

Referências

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FREIRE, Leticia de Luna. Próximo do saber, longe do progresso: história e morfologia social de um assentamento urbano no campus universitário da Ilha do Fundão –RJ. Dissertação de mestrado no PPGA-UFF. Niterói, 2010.

KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins. Fontes, 1998.

MATIAS, Lindon F. Por uma cartografia geográfica – Uma análise da representação gráfica na geografia. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Geografia, São Paulo,1996.

MICHELIN, Simone, ORG. Luciferinas. Rio de Janeiro: Aeroplano, Instituto Oi futuro, 2011.

NOGUEIRA, Aurélio Antônio Mendes, Perspectiva de Observação, Apostila de aula. Departamento BAR/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.

TOSTES, Celeida Moraes. Memorial de concurso para professor titular da UFRJ. Rio de Janeiro, 1991.

dossiê
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COPACABANA, RIO DE JANEIRO, RJ

Este ensaio foi apresentado no seminário Espécies de Espaço, realizado na PUC-Rio e depois publicado em livro pelos organizadores. Como em muitas outras vezes, foi Renato Cordeiro Gomes, amigo e parceiro da vida toda, quem me incentivou a escrevê-lo. Vai reproduzido aqui, com poucas modificações, como homenagem ao grande estudioso das cidades, autor de Todas as cidades, a cidade.[1]

Em janeiro de 1958, Rubem Braga publica aquela que se tornará uma de suas mais conhecidas crônicas, “Ai de ti, Copacabana”, exercendo mais uma vez a maestria que muito contribuiu para dar à crônica, no Brasil, prestígio tanto como forma de jornalismo quanto de literatura, especialmente pela posição única que o autor ocupou em nosso cânone: ser considerado um grande escritor tendo sido, por toda a vida, unicamente cronista.

Capaz de moldar sua escrita ao tema escolhido, lírico diante da borboleta, coloquial ao descrever a cena de rua, dramático ao falar dos personagens da cidade, nesta crônica Rubem Braga assume um tom bíblico, senhor de mares e terras, arrebatado pela defesa de seu espaço, de seu território. Demiurgo, capaz de prever o futuro, o cronista ergue-se ameaçadoramente sobre os vendilhões que avançavam às joias da princesinha. E, sem piedade, prevê a todos, a Copacabana e a seus habitantes, futuro negro.

Diz Rubem Braga:

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

Para terminar em enlutada despedida de amante abandonado:

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Metafóricas ou não, muitas dessas previsões irão se cumprir nos anos que se seguiriam. Equivocou-se, porém, o escritor ao imaginar que Copacabana cantava sua última canção. Degradada, empobrecida, rodeada por favelas, emparedada por torres de cimento, a Copacabana superpovoada se tornará abrigo dos solitários e tema de poetas e escritores. Espaço de paradoxos, de dores, de desigualdades extremas, a Copacabana que foi tema de Hollywood foi se tornando espaço especial da criação literária.

Não há nisso, porém, ao falarmos de Rio de Janeiro, tão grande ineditismo. É inspirada no estudo que Renato Cordeiro Gomes fez do grande autor do Rio de Janeiro, João do Rio, cronista do Centro da cidade no início do século, não apenas do Centro elegante que se queria Paris, mas do Centro das vielas e ruas escuras, das casa de ópio e outros vícios, que evoco a cidade dos vícios e os vícios da cidade.

Na apresentação que faz do autor para a coleção Nossos Clássicos, Renato cita João do Rio, que, em “A alma encantadora das ruas”, alerta os cariocas: “Olhai os mapas das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical.” Pois é justamente isso que atrai João do Rio, o desejo de falar da “Cosmópolis” – e agora a expressão é de Ribeiro Couto, também lembrado por Renato –, “Cidade do vício e da graça”. Mais adiante, usando o pseudônimo de Godofredo de Alencar, Paulo Barreto/João do Rio define o interesse do escritor, do artista, de forma provocante e bastante contemporânea: “Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha.”

Copacabana incorpora-se à cidade em 1892, quando é inaugurado o Túnel de Copacabana, o Túnel Velho, mas é depois da abertura do Túnel Novo, em 1906, que começa a se transformar de areal em espaço de crescimento da cidade e atração para visitantes e estrangeiros. Em 1910, Copacabana tem vinte mil habitantes e, em 1923, oferece-se ao gosto europeu com a inauguração do Copacabana Palace e sua arquitetura destinada a lembrar hotéis de elegantes balneários franceses.

É a partir daí que Copacabana passará a frequentar a literatura. Com o gosto art decó, o mesmo que vai inspirar a construção dos cinemas da cidade e a novidade dos arranha-céus, Copacabana surge no romance brasileiro já como espaço de elegância e sedução. No início dos anos 1920, Benjamin Costallat coloca sua personagem de maior sucesso, a fútil Mlle. Cinema, na varanda de um dos edifícios art déco que surgiam no bairro – como os edifícios Itaóca (rua Duvivier), Tuyuty (rua Ministro Viveiros de Castro), ou os edifícios Ophir e Guahy (rua Ronald de Carvalho) –, a contemplar a nova avenida. Assim se inicia O marido de Mlle. Cinema:

Rosalina, na janela, observava.
Pela Avenida Atlântica, cruzavam-se automóveis velozes.
A praia, com seu colar iluminado, estendia-se muito branca na noite escura.
Um lindo luar prateava o oceano.

As meninas que faziam o footing com “o passo e o andar de modelos parisienses” não poderiam imaginar que o bairro abrigasse, no início do século seguinte, 161.178 habitantes, ou seja, 3,4 habitantes por metro quadrado, tendo entre seus moradores 16,7 por cento de idosos e servindo de refúgio especialmente para aqueles que a vida tornou solitários: viúvos (10,8%) e divorciados (6%.)

A verdade, porém, é que no início da década de 1960 todo um ciclo da vida de Copacabana chegava ao fim. A Copa das boates elegantes, dos pianos em nightclubs, a Copa das crônicas de Antonio Maria, melancólico intérprete maior do bairro que começava a desaparecer.

Chegados os anos 60, mais precisamente depois de 1964, Copacabana e a crônica começam a definhar. Gênero que só viceja em liberdade, a crônica carioca padecerá de raquitismo durante bem duas décadas. Os anos do regime militar inibirão o país, a cidade, o bairro, o jornalismo. E Copacabana começará sua decisiva transformação.

No decorrer dos anos 1960, parca será a presença de Copacabana em nossa literatura. Clarice Lispector deixará que sua sombra – a do Leme, em especial – surja por entre as narrativas, como em A paixão segundo G.H., em que a narradora se encosta à murada da área para fumar um cigarro: “Olhei para baixo: treze andares caíam do edifício.” Mais do que o Leme da escritora, nesta e em outras obras, é certo espírito opressor do espaço fechando-se em torno dos habitantes que povoa sua ficção.

Com a transferência da capital para Brasília, a cidade começa a se modificar. A vida política que se organizava em torno de copos de uísque nos apartamentos ou boates de Copacabana espalha-se pelo país. É nos anos 1970 que as previsões de Rubem Braga vão se fazendo mais nítidas. A decadência da noite, cuja vida se transferira para Ipanema, a especulação imobiliária, o aumento de moradias empobrecidas são, de algum modo, compensados pela reforma urbanística que moderniza o bairro, com o aterro das praias e o alargamento da avenida Atlântica.

O deslocamento da vida boêmia e do convívio de intelectuais e políticos fará desta década o momento de maior modificação na vida do bairro, tomado pelos automóveis da era JK e com o gabarito das construções liberado.

Adriana Prieto em Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves
Adriana Prieto em Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves

No início de 1970, com Um edifício chamado 200, o dramaturgo Paulo Pontes torna célebre o maior “cabeça de porco” do bairro, o Barata Ribeiro, 200, com seus 507 apartamentos distribuídos em doze andares. Mudou de nome e numeração, mas o Edifício Richard, no número 194, continua sendo o que disse o escritor João Antônio: “um dos crimes mais consideráveis da nossa construção civil. E um dos pontos mais críticos a que pode chegar a chamada civilização do quarto-e-sala.” Ô, Copacabana, de João Antônio, celebrará, em livro de 1978, as previsões de Rubem Braga.

Nesse momento, a própria cidade já se modificara. E seguida às remoções do governo Lacerda, ao surgimento de Vila Kennedy e da Cidade de Deus, a cidade vai-se partindo, como vai mostrar, bem depois, Zuenir Ventura.

Lembro então, aqui, a importante pergunta que faz Henri-Pierre Jeudy em seu Espelho das cidades:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiura de suas construções?
Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo. Assim é a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Completando mais adiante:

A cidade resiste ao que se espera dela, sobretudo quando não se espera mais nada, e ao que vão fazer com ela, sobretudo quando se crê poder decidir o que ela se tornará.

João Antônio é um caso peculiar de amor a Copacabana. Nascido e criado em São Paulo, muda-se para o Rio de Janeiro no fatídico ano de 1964. Vez por outra tenta voltar para São Paulo, inutilmente. É no Rio, e mais especialmente em Copacabana, que o autor de Malhação do Judas Carioca encontra material para sua literatura, tão malcomportada quanto sua própria vida. Pelas ruas do bairro que atravessa nos horários mais improváveis ou do alto de seu apartamento na praça Serzedelo Correa – que assim define: “ela também é Rio de Janeiro, além de norte, sul, nordeste do país e estranjas”. Com essa espécie de novela-reportagem (chamava a alguns de seus escritos “conto-reportagem”), é aquela Copacabana de todos os vícios e algumas virtudes que entra de vez para a literatura brasileira.

Em dura e corajosa narrativa, que escala todos os personagens que habitam o bairro das manhãs às madrugadas, do Leme à Galeria Alaska, da domingueira pau-de-arara à prostituição da rua Prado Júnior, João Antônio vai apresentando também o salva-vidas à beira-mar, os fanáticos por futebol, o suburbanos que chegam no fim de semana, os moradores do antigo Barata Ribeiro 200 celebrizado por Paulo Pontes e de quarto-e-salas semelhantes, como o edifício Master, de 1955, que deu origem em 2002 ao premiado filme de Eduardo Coutinho.

Do alto das favelas Babilônia, Pavãozinho, Cantagalo, aos becos de “botequins acrilizados”, o interesse de João Antônio era bem definido. A Copacabana que lhe interessa não é a de saudades, nem do cotidiano regular, trabalhador. “Os antigos são uns chatos. Ficam falando uma porção de bagulhos que não tem nada a ver”, e, mais adiante: “Nosso bairro mantém certas manias ridículas, como conservar a Confeitaria Colombo, da rua Barão de Ipanema ou A Marisqueira, da Barata Ribeiro (…) Nenhum desses lugares tem a vida, a confusão e a badalação de uma Adega Pérola.”

O escritor termina o livro com a apologia da contradição, dos paradoxos, em turbilhão amoroso que caracteriza grandes momentos de sua obra. Vale a citação:

Copa injuriada, mal lambida, prejudicada, velha antes do tempo, mijada e cagada pelos cachorros, marafona fanada, os letreiros das fachadas de tuas lojas estão ficando passados, marafona muquirana, muquira, lambona, estuprada, matas cachorro a grito e jacaré a beliscão, haja-te Deus, pasto de energúmenos, caxinguenta outrora linda, atopetada de carros e viventes até onde não aguenta e diz chega. És a que nos resta. (…) É a infeliz, a que foi, calada. Lá no fundo dos olhos, morteiros hoje, de cadela mansa, onde o tempo se esconde, ela ainda atiça, volta e meia, depois da espreita, matreiro, debochado, raro, um brilho, aquele que espeta, chamado dos dezoito anos.

A Copacabana que entra nos anos 1980 é o espaço por onde circulam culturas múltiplas, forçadas pela densidade demográfica crescente a um convívio quase íntimo. A proximidade entre o morro que se expande e o asfalto que encurta toma aí uma configuração inédita que irá, mais tarde, se reproduzir muitas vezes pela cidade.

Provocativamente, falo de segmentos urbanos de desejos profundamente diferentes que circulam por um mesmo espaço geográfico, partilhando, queiram ou não, das mesmas imagens na noite ou no dia. Falo de um convívio com os mesmos cenários, cercados pelos mesmos habitantes sempre que circularem pelos lugares públicos. O texto de João Antônio aparece como um importante turning point na constituição de um imaginário artístico que feche o foco, seja como for, no bairro de Copacabana.

A meu ver, a partir daí, o discurso literário que se ocupará de Copacabana será, sobretudo, a tradução de dois sentimentos. O primeiro é o desejo de encontrar nesse espaço o refúgio da solidão. A intimidade forçada dos edifícios, o trânsito devorador, o ar pesado pela poluição são também antídotos contra o silêncio forçado, contra o excessivo despertencimento. Ao cimento claustrofóbico, bem ou mal, se opõem as praias, importantes sobretudo por estarem onde estão, com sua clareza, sua beleza consoladora. A noite agressiva é, de certa forma, o oposto do abandono, do desamparo.

O outro é a constatação de que a partilha desse espaço de vícios e pecados, de obscenidades, de infrações, é também o espaço da eliminação da censura. Copacabana surge então como suspensão do controle (a despeito do ímpeto de síndicos, vizinhos, igrejas evangélicas) das ruas ao imaginário literário.

É com uma literatura que tem Copacabana como espaço de criação que surge aquela que me parece ser a mais importante e consistente autora da literatura feminista dos anos 1970: Sonia Coutinho. São dessa fase os contos de Nascimento de uma mulher, Uma certa felicidade e Os venenos de Lucrécia. O último verão de Copacabana é de 1985.

De Os venenos de Lucrécia cito o texto em um único parágrafo – e fôlego – do excelente “Doce e cinzenta Copacabana”:

Acorda com o quarto mergulhado em cinzenta penumbra, embora talvez não seja tão cedo quanto parece, o apartamento fica em andar baixo, de fundos, dá para o quadrado de edifícios de um quarteirão não muito extenso de Copacabana, o céu só é avistado erguendo-se bem alto a cabeça (tenta inutilmente espreitá-lo, de longe, através da cortina semicerrada) – um “céu amuralhado” – abre os braços e, de um lado, deitada na grande cama de casal comprada num brechó a preço de nada, toca em pilhas de roupas emboladas, livros, bolsas, papéis (sua mãe jamais compreenderá como se pode dormir numa bagunça dessas e, ainda mais, sem nunca usar camisola, toda vestida ou, como agora, sem roupa nenhuma), do outro lado tateia a mesinha de cabeceira, em busca do relógio: parado, naturalmente, (…) não tem compromisso certo de trabalho, depois que deixou o emprego de fotógrafa de jornal – não! (torna a repetir) não foi uma demissão! – estavam com excesso de pessoal e ela queria mesmo ficar mais disponível, sentia-se muito presa, trabalhando até nos fins de semana, sem tempo para se dedicar à fotografia de arte – e desde quando ganhou o prêmio do Salão não pensa em outra coisa, tem talento, dizem, só que, anda descobrindo, o emprego era bem mais divertido, uma coisa meio pioneira, despertava atenção e merecia algumas regalias, uma mulher fazendo cobertura fotográfica até da Polícia, aos sábados, agora só aparecem coisas desinteressantes, fotos de aniversários de criança e casamentos, felizmente tem suas economias, dinheiro não é problema imediato, gosta apenas da palavra, free-lance, quem sabe uma definição para sua maneira de viver, não é uma free-lance da vida? e às vezes acha até que está perdendo o medo, enfim já cumpriu um itinerário não tão curto, a partir da primeira trepada com aquele namorado lá da cidadezinha (ela tinha dezessete anos) e o que sofreu dos pais, quando descobriram (um ano no colégio interno, ouvindo as freiras falarem do que acontece quando se perde a pureza), e a fuga depois, logo que pôs a cabeça no lugar, para o Rio, para Copacabana.

Dos ricos ou visitantes estrangeiros da avenida Atlântica aos miseráveis andrajosos, na Copacabana que chega ao século XXI, o escândalo não é mais possível. Surge aí a positividade de uma decadência. As coleções de monstruosidades tão caras ao século XIX incorporaram-se às ruas do bairro. Seres de identidade sexual ambígua ou dupla, adultos/crianças e crianças/mulheres, deformados ou modificados, pivetes e aposentados, qualquer ser habita as ruas de Copacabana.

Ao sofrimento dessas exposições corresponde também a liberdade do mostrar-se. Os amores vendidos convivem com os amores liberados. Todas as violências são possíveis, mas todos os amores são também possíveis. O kitsch dos objetos turísticos convive plenamente com obras artísticas na potencialidade infinita desse território urbano.

Essa visão da cena urbana em liberdade sintetiza-se de forma excelente em um momento da poesia de Italo Moriconi, em Quase sertão, de 1996:

Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.

O poema se completa magnificamente pelo título: “Copacabana”.

Para abreviar a trajetória até a literatura contemporaníssima, a literatura do “agora, agora” que vem me interessando de forma especial, pulo para o final dos anos 1990, a caminho do início do século XXI.

A Copacabana que chega ao final do século descobre uma interlocução nova com o universo global, antes de mais nada por seus aspectos menos cobiçáveis. A violência, as populações de rua, os desabrigados, as vítimas dos excessos do capitalismo, o desapreço à natureza, os resultados dolorosos da desigualdade circulam como imagens a viajar por mídias de todo o mundo, parecendo povoar – ainda que em proporções diferenciadas – cenas protagonizadas por todas as cidades globais.

São muitas as cidades feridas, para usar a expressão feliz de Barbara Freitag. E é essa mesma especialista em cidades que estabelece a distinção entre cidades em ruínas e cidades feridas. Diz ela:

Diferentemente de “cidades em ruínas” ou “cidades mortas”, onde a vida já foi extinta, depois de ataques externos ou enfermidades internas, a “cidade ferida” ainda dispõe de uma população urbana disposta lutar pela “cura”de sua cidade, esforçando-se por tratar das feridas e devolver à cidade outrora orgulhosa a dignidade e a beleza que a distinguiam das outras.

Dentre as vozes que se manifestam como porta-vozes desse esforço pela busca da dignidade, ainda que sem qualquer intenção expressa ou exercício de militância démodé, estão os diversos escritores contemporâneos que falam de dentro do estômago da baleia: Silviano Santiago, Sérgio Sant’Anna, Arthur Dapieve e mesmo um visitante como Marcelo Mirisola do conto “Rio Pantográfico”.

Foi ainda com essa voz que João Paulo Cuenca começou sua carreira de escritor em 2003 com Corpo presente:

Copacabana amanhece isolada do resto do mundo por pedras e pelo mar. O Túnel Novo abre caminho pra onde a vida parece desenrolar sem culpa. O ressentimento dos duzentos mil moradores começa a escorrer pelos bueiros dos botecos em cada esquina, cinco por quarteirão. São poucos os que veem o dia surgir vermelho. Vagabundos, garis, entregadores de jornais, meia dúzia de travas, putas cansadas, cachorros e alguns velhos andando na praia. (…)  O sol se desprende do mar, esquenta o sono das putas, gringos por trás de cortinas prateadas, mendigos e pivetes sob marquises, cobertores imundos. Ilumina janelões na avenida Atlântica. Brilha em cada fresta de ar-condicionado, desenha o teto de conjugados porcos, superpovoados, ilumina quadros caros, coberturas e a piscina do Copacabana Palace, espia basculantes, esquenta as lágrimas de crioulas gostosas, cicatrizando feridas, pingando sangue pelo chão, a oração de beatas que rezam ajoelhadas em frente do espelho de cômodas gastas, o passeio de cachorrinhos estúpidos, o tédio dos porteiros, essa gente sem esperança que dorme cada vez menos enquanto seus dias somem num ralo comum. O sono dos velhos é cada vez menor. Amanhece em Copacabana, as crianças vendendo pó na Djalma Ulrich. Sonhos caindo do céu. Amanhece por trás dos prédios, amanhece o que é feio no que é belo. Amanhece até que não exista diferença.

Nem princesinha do mar, nem Iemanjá salvadora, nem marafona muquirana. Simplesmente, Copacabana é aqui.[2]

Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla
Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla

* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural.

Notas

[1] Espécie de espaços: territorialidades, literatura, mídia (Belo Horizonte: UFMG, 2008) foi publicado com organização dos responsáveis pelo seminário, Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Todas as cidades, a cidade teve sua primeira edição em 1994 (Rio de Janeiro: Rocco) e, republicado em 2008, tornou-se referência para estudos sobre literatura e cidade.

[2] Se quisermos retomar o tema deste estudo/homenagem ao meu amigo que morava na rua Júlio de Castilhos, será fundamental nos dedicarmos ao importante romance de Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso (2015), que se passa todo na Copacabana de nossos dias.

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O CETICISMO METAFICCIONAL DE SEBASTOPOL, DE EMILIO FRAIA

“O fundo daquela história […] era verdade; mas, ao transmitir os detalhes, o junker inventava e se vangloriava.”
Liev Tolstói, “Sebastopol em agosto de 1855”

Entre 17 de outubro de 1854 e 11 de setembro de 1855, a cidade de Sebastopol, na península da Crimeia, foi palco de um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Crimeia (1853-56), entre a Rússia czarista e a aliança liderada pela França de Napoleão III. Enfrentavam-se duas forças imperialistas – as antigas nações da Europa ocidental e a Rússia que se ocidentalizava. Liev Tolstói participou das batalhas e essa experiência serviu de base para três contos longos, publicados em 1855 como Crônicas de Sebastopol e que seriam retomados em cenas de Guerra e paz (1869). A experiência também serviu para uma transformação em Tolstói. Diante dos horrores da guerra, o escritor, cuja literatura discute e ao mesmo tempo é veículo do esforço russo de modernização e ocidentalização, começa a questionar o sentido da defesa da pátria grande e a validade da guerra. Escreve ele no início do segundo conto, “Sebastopol em maio”:

Muitas vezes me veio um pensamento estranho: e se um dos lados em guerra propusesse ao outro enviar apenas um soldado de ambos os Exércitos? […] se de fato as complexas questões políticas entre representantes racionais de criaturas racionais devem ser resolvidas por meio de uma luta, que lutem esses dois soldados – um para tomar a cidade, o outro para defendê-la.
Esse raciocínio apenas parece paradoxal, mas é justo. […] Das duas, uma: ou a guerra é uma loucura, ou, se as pessoas praticam tal loucura, não são absolutamente criaturas racionais, como nos habituamos a pensar, sabe-se lá por quê (Tolstói, 2015, p. 182).

Vale da Sombra da Morte (1855), fotografia de Roger Fenton (1819-1869) que retrata um campo de batalha da Guerra da Crimeia: o palco desocupado. Há duas versões da foto, com e sem as balas de canhão.
Vale da Sombra da Morte (1855), fotografia de Roger Fenton (1819-1869) que retrata um campo de batalha da Guerra da Crimeia: o palco desocupado. Há duas versões da foto, com e sem as balas de canhão.

Para nós, que conhecemos a transformação por que passou Euclides da Cunha quando, quarenta anos depois da experiência de Tolstói, foi cobrir para o jornal O Estado de S. Paulo a Guerra de Canudos, essa mudança soa familiar. Presenciar a inutilidade da guerra faz com que Tolstói privilegie relatos sobre os indivíduos que estavam na guerra – a insegurança de um oficial, o encontro de dois irmãos que acabam indo juntos para a batalha, os feridos nos hospitais de campanha – e não sobre as grandes decisões dos comandantes e as vitórias heroicas dos generais. Leva-o também a experimentar formas literárias diversas e modernas, misturando gêneros – ficção, reportagem e digressão –, pontos de vista narrativos, registros de linguagem.

É preciso ter como referência essa obra de Tolstói, de 1855, quando lemos o primeiro livro de contos de Emilio Fraia. Sebastopol (2018), que reúne três histórias de Fraia, faz uma clara referência aos contos do jovem Tolstói logo no título, assim como nos nomes de cada conto, que repetem os de Tolstói. E em pelo menos dois pontos o escritor brasileiro dialoga com o clássico russo. Primeiro, Fraia parece citar, nos textos que abrem e fecham o volume, cenas e acontecimentos do livro de Tolstói. Segundo, Fraia repete a pergunta de Tolstói sobre a diferença entre a experiência e o relato da experiência; afinal, o soldado, de volta do terror da batalha, inventa e se vangloria, mesmo que seu relato se baseie numa experiência real.

Este é o primeiro livro que Fraia publica sozinho. O autor, nascido em 1982, escreveu junto com Vanessa Barbara o romance O verão de Chibo (2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. É também coautor, em parceria com o ilustrador DW Ribatski, da HQ Campo em branco (2013). Sebastopol, que recebeu elogios de autores como Sérgio Sant’Anna e Marçal Aquino, é uma tentativa bem-sucedida de produzir um livro de contos com unidade temática e formal. O andamento e o tom das três narrativas são similares, assim como a questão que as permeia: o estatuto da ficção e o desencontro entre experiência e narrativa. Embora haja nos três relatos uma carga de não dito e questões abertas que podem ou não ser elucidadas ao longo das histórias, Fraia tem uma linguagem segura e precisa. Além disso, utiliza recursos formais interessantes. No segundo conto, por exemplo, alterna entre os pontos de vista do narrador e dos personagens com destreza, sem recorrer a travessão ou aspas, e entrelaça planos narrativos diferentes (o passado dos dois personagens principais e o presente, em que há o encontro dos dois). O recurso dominante, no entanto, é a metaficção, ou seja, a distribuição de comentários sobre o estatuto da ficção e sobre os limites da narrativa. Como numa piscadela, o livro indica que o leitor precisa procurar uma chave metaficcional para interpretar os contos, que a narrativa ali é um enigma que deve ser decifrado para que se tenha acesso ao verdadeiro sentido da obra.

Um dos elementos metaficcionais mais interessantes utilizados por Fraia é a descrição de obras de arte (livros, quadros, filmes) ficcionais. No primeiro conto de Sebastopol, “Dezembro”, uma ex-escaladora começa a reavaliar a narrativa que construiu sobre sua vida ao assistir a um filme de arte, feito por uma mulher chamada Pikman, que conta uma história muito parecida com a sua.

No vídeo, de tempos em tempos uma mulher surgia, uma mulher de cabelos ondulados, nariz grande e lábios finos. Seria você, senhorita Pikman? Ela nunca encarava de fato a câmera mas narrava a história, que, à medida que se desenrolava, se parecia cada vez mais com a minha, e ao mesmo tempo era completamente diferente também (Fraia, 2018, p. 38).

Esse instrumento metaficcional, que Fraia utiliza com competência, tem uma longa tradição na literatura moderna. Um dos modelos mais fortes, claro, é Jorge Luis Borges. As histórias de Borges estão coalhadas de livros, bibliotecas e mapas inventados e impossíveis. “Exame da obra de Herbert Quain”, por exemplo, é na verdade um artigo sobre um escritor ficcional que teria inspirado o autor em “As ruínas circulares”, outro conto do mesmo livro (Borges, 2007, p. 62-8).

Na literatura brasileira atual, além do gosto borgiano pelo exercício de imaginação, há um diálogo com certas tendências contemporâneas das artes dramáticas e plásticas. Cito alguns exemplos, dos muitos possíveis. Paisagem com dromedário (2010), de Carola Saavedra, é uma tentativa de diálogo da literatura com a arte conceitual. É composto da transcrição de 22 gravações que, descobrimos ao fim, fariam parte de uma instalação. A vista particular (2016), de Ricardo Lísias, é um romance sobre um artista que faz performances e instalações. Uma das obras é uma instalação que reproduz uma favela dentro do museu, inclusive a violência policial a que a população das comunidades desassistidas está sujeita. A obra ficcional descrita por Lísias guarda muitas semelhanças com obras de Lola Arias, artista argentina, especificamente com Chácara Paraíso, de 2007, que encena numa favela cenográfica o treinamento de policiais militares paulistas. Um terceiro exemplo: no conto “Aquele vento na praça”, incluído na revista Granta dedicada aos “melhores jovens escritores brasileiros”, Laura Erber trabalha uma série de referências e conceitos do campo das artes plásticas para imaginar a vida e a obra de artistas (Granta, 2012, p. 25-36).

Há outros exemplos, um pouco mais recuados, nas obras de Sérgio Sant’Anna e Bernardo Carvalho. Em Onze (1995), de Carvalho, parte da narrativa trata de um artista holandês cujo trabalho parece remeter às obras de Cildo Meireles (Zero Cruzeiro, 1974-78) ou de Jeff Koons, com seus jogos com o mercado de arte. Kill, o artista de Onze, falsifica dinheiro para abalar o sistema financeiro. “Ao contrário da arte conceitual ou outras artes, que precisam ser reconhecidas como arte para causar algum impacto – pensem em Duchamp, por exemplo –, ao contrário, o trabalho de Kill perdia-se na realidade, era como um vírus injetado na realidade” (Carvalho, 1995, p. 84), escreve um crítico de arte fictício e, Onze. Nos quase cinquenta anos de carreira de Sant’Anna, há inúmeros exemplos, como os recentes “O homem-mulher II” (Sant’Anna, 2014, p. 139-83), que descreve a obra de um dramaturgo fictício. No mesmo livro, encontramos os contos “Madonna” (p. 55-6), em que um ladrão explica sua relação com uma obra de arte roubada, a Madonna (1892-95) de Edvard Munch; e “Amor a Buda” (p. 128-35), que descreve a escultura Tentação (Tangseng e Yaojing) (2005), de Li Zhanyang (desta vez, duas obras reais, mas “ficcionalizadas” ao se incorporarem ao relato literário).

Essas obras parecem nos dizer que a ficção é capaz daquilo de que nenhum outro discurso é capaz. Só a ficção pode aproximar o pensável do impensável. Podemos, por meio da ficção, pensar objetos que não existem. Com isso, ampliamos o que pode ser pensado. Quando, ficcionalmente, Lísias extrapola a obra de Arias, transformando a encenação da artista argentina numa violência real dentro do mundo ficcional, ele consegue imaginar aquilo que, no mundo concreto, parece impossível; o universo possível feito de palavras tem limites mais amplos do que o universo concreto das artes que trabalham com o corpo e com objetos.

Essa literatura conceitual, porém, corre um risco que o teatro pós-dramático e as artes plásticas conceituais também enfrentam. Não à toa, uma das análises que mais dão conta desse tipo de literatura vem não da crítica literária, mas da crítica da arte. O risco dessa ficção é cair na armadilha que Jacques Rancière identifica na estética relacional do crítico e curador Nicolas Bourriaud: ao antecipar o efeito que se espera causar no receptor, essas obras tendem a “conceitualizar essa identidade antecipada entre a apresentação de um dispositivo sensível de formas, a manifestação de seu sentido e a realidade encarnada desse sentido” (Rancière, 2012, p. 71). Traduzindo os conceitos de Rancière, podemos dizer que essa arte (ou, aqui, essa literatura), embora se proponha a questionar estatutos pétreos da arte ou da ficção “modernas” (a autoria, a originalidade, a separação entre ficção e realidade, a função contemplativa da arte pura), acaba por construir uma identidade entre a forma sensível (a matéria própria da ficção: as palavras, as frases, a narrativa), o sentido correto de sua interpretação e a realidade sobre a qual essa obra fala. São obras que incluem em si sua interpretação e sua própria crítica; obras que, diante do medo de que o conceito esteja cifrado demais, repetem-no, exibem-no claramente. No caso da literatura metaficcional, o risco é que, embora descrevam obras fictícias (ou ficcionalizadas) enigmáticas, os contos e os romances podem ser transparentes. São obras de consenso, não de dissenso.

Qual seria, portanto, a mensagem consensual dos contos de Sebastopol? Volto ao primeiro. Nele, a narradora é uma escaladora que sofre um acidente no Everest e tem as pernas amputadas – como os soldados que vemos ser amputados no primeiro conto de Tolstói sobre a Guerra da Crimeia. Ela se torna palestrante motivacional, mas, certo dia, encontra um filme de arte que parece contar sua história. Essa história é e não é a dela, o que a leva a questionar o estatuto da narrativa. Afinal, o que é mais verdadeiro: a história que ela conta nas palestras e nos livros de motivação, ou a história contada por outra pessoa; a história de superação que ela construiu para si mesma, ou a história, mesmo que imprecisa, narrada do ponto de vista de outra pessoa? O leitor de Tolstói é capaz de identificar aqui a dúvida do narrador das Crônicas de Sebastopol. Os combatentes, quando retornam do campo de batalha, não sabem realmente o que aconteceu e criam uma narrativa que os proteja, uma vez que “durante todo o tempo o combate transcorria numa espécie de sombra e de inconsciência, a tal ponto que tudo o que se passava lhe[s] parecia ter ocorrido em outra parte, em outro tempo, com outras pessoas” (Tolstói, 2015, p. 224).

Oficiais ingleses fotografados por Roger Fenton em 1856: a guerra registrada como teatro
Oficiais ingleses fotografados por Roger Fenton em 1856: a guerra registrada como teatro

No segundo conto de Fraia, uma reformulação de um texto que o autor havia publicado na revista Granta em 2012, um casal chega a uma pousada desativada no meio de uma região rural. Depois de uma briga, a mulher vai embora, e o homem, o brasileiro-peruano Adán, passa os dias com o proprietário da pousada, bebendo e contando sua vida. Certo dia, Adán some, e o proprietário, Nilo, junto com seu único funcionário, esvazia a piscina para ver se ele morreu afogado. No final da história, Nilo visita um vizinho que quer comprar seu sítio e lá encontra um porco. Seria o mesmo porco que Adán viu um dia perdido no meio da vegetação? O porco está doente e vai ter que ser sacrificado. Nesse momento, Nilo ouve o ronco de um motor. Seria Adán indo embora no Fusca que havia deixado na pousada desativada? O conto termina aberto. Afinal, concluímos, não é possível unificar vida nenhuma numa narrativa linear, e o conto demonstra essa impossibilidade. Lembra-nos o narrador que, quando contamos nossas vidas, narramos histórias que correm paralelas, sem nunca se encontrarem (Fraia, 2018, p. 72). As histórias servem, portanto, para chegarmos a essa conclusão: nenhuma vida cabe numa narrativa uniforme e linear.

No terceiro, mais uma vez uma narradora em primeira pessoa. Nadia, uma estudante universitária com nome russo, começa a trabalhar para um dramaturgo, Klaus, que fez algum sucesso no circuito alternativo no passado, mas agora está decadente. A pedido de Klaus, ela pesquisa sobre um pintor russo, Trúnov, que pintava quadros na região de Sebastopol durante o cerco da cidade. Trúnov faz, na pintura, o que de certa forma Tolstói fez nos contos sobre a Guerra da Crimeira: em vez de pintar o encontro sangrento dos batalhões inimigos, retrata os personagens individuais, na sua solidão e em seu drama pessoal. Lembramos o autor de Guerra e paz, que pede que o leitor veja não o palco amplo da guerra, mas o simples soldado: “Olhe bem para esse soldadinho do destacamento das carroças de carga que conduz uma troica de cavalos baios para beber água, cantarolando baixinho e tranquilo para si mesmo, e logo fica claro que ele não vai se perder na barafunda dessa multidão, a qual, aliás, para ele nem existe” (Tolstói, 2015, p. 163).

No conto de Fraia, Klaus está escrevendo uma peça sobre o pintor, ou melhor, sobre o fracasso de Trúnov em pintar um quadro sobre os horrores da guerra. Na peça, um soldado pede que Trúnov o retrate em batalha. O pintor tenta, mas não consegue. Decide retratá-lo sozinho, como no dia em que o conheceu. Antes de terminar o quadro, recebe a notícia da morte do soldado. Então abandona o trabalho, que ficará esquecido por décadas e só será redescoberto nos anos 1960.

A encenação de Klaus também será um fracasso, como foi um fracasso a tentativa de Trúnov de retratar tanto os horrores épicos da guerra quanto o drama da solidão do soldado. (Algumas das imagens mais famosas da guerra são de Roger Fenton, pioneiro do fotojornalismo, que, no entanto, devido às limitações técnicas da época, retratou principalmente soldados posando, como em uma pintura.) Mais uma vez, é o estatuto da ficção, tanto da pintura quanto do teatro, que é questionado. O que a ficção é capaz de dizer?, pergunta-nos o conto. Nós mentimos ao contar nossa história, como a escaladora; falhamos ao tentar unificar nossa vida em um relato, como Nilo e Adán; só podemos falar de nosso fracasso, como Klaus e Trúnov: só podemos falar do fracasso da ficção como representação de algo externo.

Além do comentário metaficcional sobre o estatuto da narrativa, Fraia espalha ao longo do livro comentários sobre o andamento dos contos. Embora os narradores variem – o conto do meio é narrado na terceira pessoa, ainda que Adán às vezes assuma a narração, enquanto os outros dois têm narradoras em primeira pessoa –, o ritmo lento, a estrutura em blocos curtos e o tom simples mas elusivo unificam os três relatos. Essa proposta de transformar o relato curto em uma experiência de duração, na qual o leitor experimente a temporalidade da narrativa, é anunciada em pontos diferentes do livro. (Entendo aqui duração como o tempo como é experimentado pelo sujeito, ao contrário do tempo cronológico, exterior.) No primeiro conto, a narradora enuncia para seu companheiro de escalada, o italiano Gino: “eu sei que você prefere as longas durações” (Fraia, 2018, p. 43). No segundo conto, Fraia escreve: “As horas seguintes transcorrem como uma partida de pontos longos, longuíssimos” (p. 53), a repetição de “longos”, com a ênfase do superlativo, reforçando a afirmação do ritmo. No terceiro, por fim, a narradora comenta a conversa que teve com Klaus a respeito do acontecimento – a chegada do soldado que pede a Trúnov que o pinte – que deveria dar movimento ao enredo da peça que estão escrevendo: “o tal episódio de muito movimento […] estava longe de ser um episódio movimentado de verdade, porque o que Klaus gostava nas coisas era tudo, menos movimento. Ele gostava do que chamava de tempos longos, de chuva, de molhar bolachas no leite, e, claro, ele gostava de gente maluca e perdida” (Fraia, 2018, p. 103).

Há, por fim, mais um elemento importante nos contos de Fraia. Como já dissemos, as histórias que abrem e fecham o volume são narradas em primeira pessoa, por duas personagens femininas. O autor consegue evitar, na maior parte do tempo, colocar marcas de um discurso feminino e mimetizar os lugares-comuns do que se espera de uma literatura “feminina” ou “intimista”. Essas narradoras, no entanto, compartilham com o narrador e os personagens do segundo conto, o único em terceira pessoa, o mesmo tom reflexivo. Narradores e personagens meditam sobre o estatuto da narrativa e a natureza da experiência. No entanto, essas reflexões ocasionalmente soam deslocadas, como se um grande narrador, aquele que unifica o tom e o ritmo lento dos relatos, estivesse falando pela boca dos personagens e das narradoras.

Logo no primeiro conto, por exemplo, a narradora, ponderando sobre a experiência que lhe valeu a amputação, se pergunta: “Quem é que pode pensar que num dia se acorda bem, alimentando o sonho de escalar uma montanha, e no fim da jornada um pedaço do seu corpo simplesmente não existe mais?” (Fraia, 2018, p. 35). O leitor possivelmente pensou que isso poderia acontecer, já que todo ano morrem dezenas de escaladores no Everest. Peguemos outro exemplo, no segundo conto. Enquanto se embriaga com o proprietário da pousada desativada, Adán elabora suas reflexões sobre seu passado e sobre o conflito entre narração e experiência:

Naquele tempo, eu não tinha nada. Às vezes olho para essa época e penso: ela faz parte de uma outra vida, que casualmente é a minha também, mas que poderia não ser, porque nós temos mais de uma vida, e elas não necessariamente se parecem umas com as outras, às vezes não existe nem mesmo uma continuidade entre elas, mas depois de um tempo aprendemos como falar das vidas passadas, e elas se tornam vidas inofensivas à medida que são contadas e à medida que pensamos entender o que significam. Isso nos acalma. Mas é claro que essa é só mais uma ilusão entre tantas. O que eu acho é que a gente conta e repete as histórias porque tem medo delas. No fundo é isso. Um pedido de ajuda. Queremos que alguém nos ajude, nos proteja delas (Fraia, 2018, p. 58).

Essa digressão, estranha na boca de um velho bêbado, parece responder às interrogações da protagonista do primeiro conto, quando ela põe em dúvida a narrativa que construiu a fim de poder tocar a vida adiante. É como se a mesma questão, o mesmo ceticismo em relação à narrativa da experiência, habitasse o discurso de todos os personagens, porque, afinal, esse ceticismo é o que o livro quer dizer ao leitor. É essa a mensagem que deve ficar da leitura.

Ao operar nesses dois níveis – um nível que individualiza os personagens e as vozes e outro que os unifica no mesmo ritmo narrativo e no mesmo sentido final –, Sebastopol ilustra as possibilidades e os riscos de uma metaficção cética que usa histórias, referências (históricas e intertextuais), vozes e personagens diversos para discutir os limites da ficção.


* Lucas Bandeira de Melo Carvalho é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, desenvolve projeto de pós-doutorado no programa do PACC-Letras da UFRJ. Agradece à Faperj pelo apoio a esta pesquisa.

Referências

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

CARVALHO, Bernardo. Onze. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

FRAIA, Emilio. Sebastopol. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018.

GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LÍSIAS, Ricardo. A vista particular. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

SAAVEDRA, Carola. Paisagem com dromedários. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

SANT’ANNA, Sérgio. O homem-mulher. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

TOLSTÓI, Liev. Contos completos. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Referência audiovisual

ARIAS, Lola. Chácara Paraíso. São Paulo: Goethe Institut São Paulo e SESC, Av. Paulista, 2007. Disponível em: <http://lolaarias.com/proyectos/chacara-paraiso/>.

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ASSÉDIO SEXUAL NO EMPREGO DOMÉSTICO

1. Introdução

Uma ampla literatura tem demonstrado que o assédio sexual praticado contra trabalhadoras domésticas no local de trabalho representa um problema difundido no mundo inteiro. Em países com uma história marcada pela escravidão e pelo colonialismo, como o Brasil, esse problema está vinculado ao trabalho sexual, imposto às escravas e à prática do concubinato (Gonzalez, 1983; Nakano Glenn, 1992; Stoler, 1991). Nos países ricos, muitas vezes está associado à posição vulnerável das mulheres imigradas por elas não terem documentos regularizados (Vellos, 1997; Parreñas, 2001; Zarembka, 2003; Hondagneu-Sotelo, 2007). É um fenômeno igualmente difundido na América Latina (Wade, 2013; Drouilleu, 2011). Embora no Brasil se trate de uma violência conhecida de todos, e na literatura sobre o trabalho doméstico as referências sejam recorrentes, existem poucas pesquisas específicas sobre esse tema (Vieira, 1987; Barbosa, 2000; Goldstein, 2003; Brites, 2007; Santos, 2009). Segundo DeSouza e Cerqueira, trata-se de um “âmbito de pesquisa que até agora recebeu pouca atenção” (2009, p. 1266). Alguns estudos recentes apresentam informações valiosas. Na pesquisa de Mori et al. (2011) sobre as condições de vida e de trabalho das trabalhadoras domésticas em Salvador e em Brasília, o questionário incluía uma pergunta sobre o assédio sexual: com base nos dados coletados, os autores notam que se trata de uma violência ainda comum.[1] O trabalho de DeSouza e Cerqueira baseia-se em um questionário distribuído em Porto Alegre entre 366 trabalhadoras domésticas não sindicalizadas. Os dados revelam que “26% da amostra relatava ter vivido alguma forma de assédio sexual no trabalho nos últimos 12 meses” (2009, p. 1273).

A escassez de pesquisas detalhadas sobre o assédio sexual praticado contra as trabalhadoras domésticas por parte dos empregadores pode ser explicada considerando-se as resistências – de origens diferentes para as pesquisadoras e as trabalhadoras domésticas – encontradas na abordagem de uma violência que foi naturalizada no discurso dominante sobre a formação da sociedade brasileira e, vista como legítima por muitos homens das classes dominantes (Ribeiro Corossacz, 2018). Desse modo, como notou Segato (2006) ao referir-se à escassez de estudos acadêmicos sobre a figura da babá (tradicionalmente pobre e negra), também nesse caso o racismo pode ter desempenhado um papel, deslegitimando como objeto de pesquisa acadêmica a análise de uma violência que afeta mulheres pobres e negras, cuja presença é fundamental na vida familiar dos acadêmicos e das classes brancas abastadas. Graças às lutas das trabalhadoras domésticas e das mulheres negras contra o sexismo, o racismo e sua imbricação, houve mudanças importantes, mas ainda é difícil avaliar a extensão do fenômeno no passado e no presente. Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa conduzida entre 2013 e 2017, que oferecem sugestões iniciais para a análise desse fenômeno, igualmente úteis para compreendermos os motivos pelos quais esse problema foi pouco pesquisado. Em particular, meu interesse é analisar como esse assédio ocorre e como as mulheres reagem a ele, contribuindo, assim, para a compreensão dos significados desse tipo de violência.

2. Trabalho doméstico remunerado, divisão sexual do trabalho e racismo

Para compreendermos o problema do assédio sexual vivido pelas trabalhadoras domésticas, é necessária uma visão que o situe dentro das condições gerais do trabalho doméstico remunerado e dentro da divisão sexual do trabalho. A literatura sobre o trabalho doméstico observou como esse tipo de atividade é confiada às mulheres e subdividida entre diversos grupos de mulheres (para algumas referências, ver Nakano Glenn, 1992; Parreñas, 2001; Ehrenreich, Hochschild, 2003; Mojoud e Falquet, 2013). Apesar das diferenças entre as mulheres na distribuição da carga de trabalho doméstico e em sua remuneração, e apesar das transformações que se referem às relações entre os sexos, essa é uma atividade que continua sendo desenvolvida por mulheres (Hirata, 2002; Ávila e Ferreira, 2014), que é considerada feminina e da qual os homens se encarregam muito pouco. De resto, o fato de ser um trabalho atribuído a elas é a razão pela qual não é reconhecido como trabalho e, portanto, prestado gratuitamente (Delphy, 1998). Por conseguinte, é fundamental analisar as implicações da distribuição do trabalho doméstico entre grupos de mulheres, distintos por classe e raça e, ao mesmo tempo, considerar o quadro geral do trabalho doméstico: um trabalho que todas as mulheres – e alguns grupos delas mais do que outros – realizariam naturalmente, ou seja, para o qual se sustenta que tenham capacidades inatas; um trabalho que tem “não valor” (Delphy, 1998), que é considerado sem qualificações, tornado invisível e, por isso, gratuito ou remunerado com salários baixos.

Os dados relativos ao Brasil, examinados por Bruschini (2006), demonstram como os afazeres domésticos recaem sobre as mulheres, sem diferenças no que se refere à cor e em relação a homens da mesma cor. Entre as pessoas que declararam ocupar-se de atividades domésticas (68% das entrevistadas), 68,3% são mulheres e 31,7% são homens. Ainda entre aqueles que declararam ocupar-se de atividades domésticas, encontramos 45% de homens brancos e 44,3% de homens negros, 88,7% de mulheres brancas e 91% de mulheres negras (2006, p. 348). Um dado interessante refere-se à distribuição das tarefas domésticas entre os filhos: 80% das filhas declararam ocupar-se da casa, contra 38% dos filhos, o que demonstra como o atual modelo educativo reproduz, desde os primeiros anos de vida, a tradicional divisão sexual do trabalho doméstico, no qual cabe à mulher cuidar do lar. As diferenças entre as mulheres surgem em relação a duas variáveis que, juntas, contribuem para a definição de classe: os anos de instrução e o trabalho remunerado. Quanto mais anos de instrução elas possuem, menos horas semanais dedicam às atividades domésticas. Do mesmo modo, também para aquelas que têm uma atividade remunerada fora do domicílio, é menor o número de horas dedicadas às atividades domésticas. Esses dados são muito importantes porque, se lidos atentamente, podem ajudar-nos a entender não apenas como a divisão sexual do trabalho doméstico é idêntica dentro dos grupos de cor, mas também como nela se insere o racismo, que diferencia as mulheres em relação ao acesso à instrução e ao mercado de trabalho. De fato, não podemos compreender as relações sociais entre os sexos de forma isolada; é necessário analisá-las no conjunto das relações sociais, consideradas em sua mútua reprodução (Kergoat, 2004, p. 42). A combinação entre racismo e sexismo faz com que as horas de atividades domésticas não cumpridas pelas mulheres mais instruídas, que trabalham fora de casa – ou seja, pelas mulheres brancas –, sejam cumpridas por aquelas mulheres que, historicamente, não tiveram acesso à instrução básica nem aos estudos universitários, ou seja, pelas mulheres negras e pobres, e não pelos homens. As atividades domésticas não realizadas por mulheres brancas que não cuidam da casa porque trabalham fora ou porque foram educadas para não as fazer não são realizadas pelos homens de seu núcleo familiar, e sim por outras mulheres, pobres e negras. Em sua totalidade, a divisão sexual do trabalho doméstico permanece inalterada. Se é certo que um dos pilares do racismo é o fato de que os brancos devem ser servidos pelos negros e de que no Brasil esse “servir” ainda remete a relações de escravidão, também é importante entender que o racismo não age em um vazio social, mas se combina, nesse caso, com o sexismo. Não é apenas o racismo a produzir a separação entre mulheres que podem pagar para outra mulher cuidar dos próprios filhos e da própria casa e mulheres que, ao contrário, têm como única possibilidade de emprego assumir o trabalho doméstico de outras mulheres. Nesse caso, o racismo funciona como um mecanismo que contribui para reproduzir o sexismo, uma vez que se insinua em uma estrutura social em que os homens não são considerados os primeiros responsáveis pelas atividades domésticas e de cuidado. Esse é um exemplo de como as relações sociais se produzem mutuamente, ativando e/ou transformando outras relações sociais, o que nos leva a desenvolver uma análise que se concentre na imbricação das relações sociais de classe, raça e gênero (Crenshaw 1989; Ochy 1999; Hill Collins e Bilge 2016).

O resultado da pesquisa mostra como a questão da divisão sexual do trabalho, que atribui às mulheres as tarefas domésticas, não representa um tema principal de mobilização para as ativistas e as trabalhadoras. Os temas sobre os quais elas mais se debruçam e se mobilizam dizem respeito ao reconhecimento da dignidade do trabalho doméstico como profissão, ao reconhecimento dos mesmos direitos trabalhistas e previdenciários e à luta contra o racismo na sociedade brasileira. Uma distribuição mais igualitária das tarefas domésticas entre homens e mulheres dentro da família não constituiu um horizonte explícito de luta, embora a batalha das trabalhadoras domésticas represente um desafio real ao mecanismo que naturaliza o trabalho doméstico como atividade feminina e especialmente das mulheres negras e pobres. Nas entrevistas realizadas, percebeu-se que muitas vezes poder cuidar da própria casa é algo valorizado e, quando não é possível fazê-lo, esse trabalho é delegado a outras mulheres.[2] Portanto, se por um lado o trabalho doméstico automaticamente atribuído às mulheres não constitui, por si só, uma realidade a ser transformada, por outro, há maior envolvimento na luta contra o racismo, que se vincula a experiências de discriminação, vividas diariamente (ver também Bernardino-Costa, 2015).

O racismo e as desigualdades de classe são as dimensões predominantes nas narrativas das trabalhadoras domésticas. Por sua vez, são sistemas de opressão que criam cisões entre as mulheres, fragmentando o trabalho doméstico em unidades de incumbências separadas, que juntas reproduzem o efeito de liberar a coletividade dos homens desse tipo de atividade. Esse mecanismo é importante para compreendermos por que as esposas dos molestadores, as empregadoras, geralmente preferem não acreditar nas denúncias das trabalhadoras, ou seja, por que é difícil que ocorra uma aliança entre mulheres de origens sociais diferentes diante do assédio sexual vivido pelas trabalhadoras domésticas.

3. Características do trabalho doméstico remunerado no Brasil

Por razões históricas (herança da escravidão) e por causa da resistência por parte dos atuais empregadores a reconhecer o pleno estatuto das trabalhadoras domésticas, elas constituem uma das categorias mais vulneráveis no que se refere aos direitos trabalhistas. Um dos elementos evocados para explicar as dificuldades em considerar o trabalho doméstico um trabalho para todos os efeitos diz respeito à especificidade de seu local de exercício, que ao mesmo tempo é casa particular e local de trabalho, e ao tipo de relação que historicamente se construiu entre a trabalhadora e a família empregadora. Trata-se de um trabalho e de uma categoria que tendem a não ser formalizados, justamente por estarem associados à dimensão familiar e de cuidado, aos afetos e às relações que compõem as atividades de cozinhar, lavar, limpar e passar roupa. Vale notar como essas atividades domésticas são concebidas e sentidas como intrinsecamente femininas e impossíveis de ser contabilizadas, regulamentadas e formalizadas pela lei (por exemplo, as resistências às inspeções por parte das autoridades competentes, OIT/FORLAC, 2015), mas não de ser controladas de maneira detalhada pelo/as empregadore/as. O documento da OIT fala oportunamente de resistência cultural como um dos elementos que impedem a formalização desse trabalho. Portanto, o problema estaria no tipo de atividade e no fato de essas mulheres trabalharem na casa de uma família, sobretudo na cozinha, lugar associado às atividades femininas e, por conseguinte, percebido como particularmente difícil de ser reconhecido como “local de trabalho”. Além disso, existe a solidão do trabalho dentro de casa. Conforme sustenta uma sindicalista de Campinas: “Porque ela tá lá, sozinha. Então ela tá em situação vulnerável.”

Segundo dados referentes à época da pesquisa, no Brasil havia 6,2 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 92,6% mulheres e 61% negras (DIEESE, 2013). Além dos dados estatísticos, diversas estudiosas (Santos-Stubbe, 1998; Goldstein, 2003) evidenciaram como o trabalho doméstico é associado à negritude. Não encontrei dados sobre a cor dos empregadores nem sobre eventuais mudanças ocorridas nas últimas décadas, que seriam informações úteis para compreendermos de maneira mais aprofundada os múltiplos níveis de relações sociais que se concretizam no trabalho doméstico remunerado. Segundo Silva, “o emprego de ajuda doméstica remunerada aumenta com o nível de renda e com a brancura da pele” (Silva, 2010, p. 23). Por sua vez, Pinho e Silva observam como a branquitude e a negritude se constroem justamente por meio das relações domésticas, e notam “como o amplo emprego do trabalho doméstico remunerado reforça a associação entre branquitude e poder e a naturalização da posição subordinada das mulheres negras” (2010, p. 109).

Foto: Zilka Salaberry e Jacira Sampaio em Sítio do Pica-pau Amarelo.
Foto: Zilka Salaberry e Jacira Sampaio em Sítio do Pica-pau Amarelo. Fonte: www.pinterest.co.kr

De 1999 a 2009, houve um aumento na proporção das trabalhadoras domésticas com idade entre 30 e 44 anos, passando de 36,9% a 42,5% (Pinheiro, Fontoura, Pedrosa, 2011, p. 39). Isso faz pensar que as mulheres jovens de classe popular tendem a buscar outras atividades de trabalho, talvez justamente por serem menos estigmatizadas. O trabalho doméstico remunerado está se transformando: o número de mensalistas tem diminuído, e o de diaristas, aumentado (OIT/FORLAC, 2015). Ambos os dados evidenciam que, por parte das mulheres que tradicionalmente desenvolveram essa profissão, existe um esforço para buscar alternativas de trabalho ou para redefinir as condições desse emprego. É possível observar um duplo movimento: se de um lado as trabalhadoras domésticas lutam pelo reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho para todos os efeitos, de outro, essa profissão continua sendo estigmatizada, e as mulheres de classe popular e negras, quando podem, procuram outro emprego, conforme se verificou também nas entrevistas em que as mulheres declararam desejar que as filhas tenham outra profissão.

Com o sexismo e a opressão de classe, o racismo marca de modo estrutural a vida das trabalhadoras domésticas (Oliveira, 2008). É importante lembrar que o racismo age não apenas na definição do trabalho doméstico remunerado como um trabalhado adequado a mulheres pobres e negras, mas também dentro do próprio trabalho doméstico: “Mesmo representando 62% do total de trabalhadoras domésticas no país, as negras recebiam, em 2009, uma remuneração média de R$ 364,84, ao passo que as domésticas brancas recebiam R$ 421,58” (Pinheiro, Fontoura, Pedrosa, 2011, p. 53). Portanto, é necessário considerar de que modo as condições do trabalho doméstico remunerado são constantemente produzidas a partir da imbricação entre racismo, sexismo e desigualdades de classe.

O Brasil está entre os países que criaram as mais avançadas medidas legislativas para equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos outros trabalhadores. Contudo, essa categoria ainda não goza dos mesmos direitos das outras categorias (OIT/FORLAC, 2015). As importantes melhorias obtidas são resultado da batalha das sindicalistas domésticas que trabalharam obstinadamente pelo reconhecimento de seus direitos (Bernardino-Costa, 2015). Desde os anos 1930, elas se organizaram em associações e levaram adiante sua luta por meio de alianças com o movimento negro e o movimento feminista, buscando sempre o reconhecimento do Estado: o ponto principal foi obter o reconhecimento do direito de ter direitos (Cornwall e Oliveira, 2014). Com efeito, as resistências a reconhecer as trabalhadoras domésticas como uma categoria profissional igual às outras estão profundamente radicadas na sociedade brasileira. No texto da Constituição de 1988, apesar da luta das trabalhadoras, elas foram excluídas de importantes direitos trabalhistas, o que demonstra que o Estado foi um agente ativo na exploração das mulheres negras e pobres. Apenas em 2013, após anos de luta, foi aprovada a Proposta de Emenda nº 72. Contudo, em junho de 2015, com a promulgação da lei 150/2015, que recebia as modificações introduzidas pela PEC 72/13, alguns direitos previstos pela PEC, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), deixaram-nas em desvantagem em comparação com outros trabalhadores. Durante as entrevistas, algumas sindicalistas exprimiram frustração por essa situação: “A posição dos sindicatos de trabalhadoras domésticas contrasta com o discurso oficial de ‘segunda abolição da escravidão’” (Acciari, 2016, p. 127), como foi definida a PEC 72/13. Embora se tenham alcançado resultados importantes, em um contexto marcado por políticas neoliberais de precarização de todos os empregos, ainda hoje o trabalho doméstico se caracteriza por ser uma profissão não equiparada às outras.

Portanto, a história das iniciativas das trabalhadoras domésticas se caracteriza pelo fato de elas terem tomado publicamente a palavra, produzindo discursos e exigências políticas em um contexto em que sua subjetividade foi representada no discurso dominante branco e de classe alta como invisível, mas silenciosamente presente com suas atividades de cuidar da casa e da família branca de classe média alta (Gonzalez, 1983). Esse quadro é importante para compreendermos os obstáculos encontrados pelas trabalhadoras domésticas ao abordarem a questão do assédio sexual no local de trabalho. Do ponto de vista histórico, a atitude mais comum é negar que se trata de violência. Em face dessa negação, o silêncio foi o modo mais frequente que as trabalhadoras encontraram para enfrentar essa violência e seguir em frente. Contudo, permanecer em silêncio não significa consentir (Mathieu, 1991).

Foto: Reprodução/Eu Empregada Doméstica. Ilustração de Laudelina de Campos Melo (1904-1991). Fonte: https://medium.com/afetosperifericos/busca-por-humaniza%C3%A7%C3%A3o-ainda-%C3%A9-o-principal-objetivo-de-trabalhadoras-dom%C3%A9sticas-37de6d74e114.

4. As mulheres entrevistadas e a entrevista

O material desta pesquisa foi coletado durante encontros com sindicalistas e trabalhadoras domésticas. Entre 2013 e 2014, entrevistei no Rio de Janeiro 19 trabalhadoras domésticas, 4 mulheres ativas no Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, a advogada que trabalhava para ele e uma líder histórica da luta das trabalhadoras domésticas na mesma cidade. Em 2015, entrevistei em São Paulo 2 sindicalistas do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, uma trabalhadora doméstica e a advogada que trabalhava para o sindicato, e 4 sindicalistas do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, em Campinas. Em 2017, estive com um grupo de 4 mulheres ativas no Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, de Nova Iguaçu (Rio de Janeiro, todos esses sindicatos são afiliados à Contracs). As sindicalistas e as advogadas realizam seu trabalho gratuitamente. No mesmo ano, entrevistei Israel, responsável pelo Sindicato dos Empregados Domésticos de Natal, único caso, que eu saiba, de um sindicato que tem como chefe um homem assalariado e que não é trabalhador doméstico. A situação do Sindicato de Natal me pareceu uma exceção em relação às outras realidades sindicais nacionais.[3] Nesse sindicato, tive dificuldade para entrevistar a mulher que, com o responsável, atendia tanto por telefone quanto pessoalmente e tinha o cargo de tesoureira. Essa mulher não quis ser entrevistada, alegando que era Israel, e não ela, quem poderia dar as informações. Quando lhe perguntei o que ela fazia no sindicato, respondeu-me: “Eu faço tudo aqui, desde lavar o chão e arrumar as salas até atender o telefone e os clientes.” A situação do sindicato de Natal parece reproduzir a divisão social do trabalho, segundo a qual as atividades domésticas competem à mulher, enquanto o aspecto mais profissionalizante do trabalho realizado no sindicato é reconhecido e atribuído de modo mais explícito ao homem. Durante o período em que fiquei na sala de espera, pareceu-me evidente que a mulher tinha um ótimo preparo no que se refere aos direitos trabalhistas, além de saber lidar profissionalmente e com muita firmeza com situações difíceis do ponto de vista emocional.

As trabalhadoras entrevistadas têm idades entre 34 e 67 anos, com uma prevalência de mulheres na faixa dos 50 anos. As mais velhas começaram a trabalhar quando tinham cerca de 8 a 10 anos, muitas vezes sem terem terminado a escola. De 20 entrevistadas, 5 se declararam negras, 6 pardas, 5 brancas ou amarelas, com uma prevalência entre estas últimas de mulheres provenientes do Nordeste. A 4 trabalhadoras não tive oportunidade de perguntar a cor. Segundo minha percepção, tratava-se de duas negras, uma de origem nordestina e uma branca. De 20 mulheres, 9 declararam nunca ter sofrido assédio sexual, mas sabem que se trata de um problema comum; 11 declararam ter sofrido assédio ou tentativa de assédio por parte dos maridos de suas patroas quando estas não estavam em casa. A esses dados acrescentam-se aqueles relativos às sindicalistas que também foram trabalhadoras domésticas: de 10 ativistas, 3 sofreram assédio sexual por parte do próprio patrão.

É necessário deter-se nas condições estruturais do encontro entre a antropóloga e as entrevistadas: de um lado, uma trabalhadora doméstica pobre e, na maioria dos casos, não branca; de outro, uma mulher branca, de classe média, facilmente identificável como uma possível empregadora. O único modo de superar as dificuldades inerentes a essa assimetria social estrutural é ter consciência dela no momento em que se instaura o diálogo. Nesse sentido, durante as entrevistas, busquei os termos adequados para abordar os temas mais difíceis, primeiramente dialogando com as sindicalistas e, depois, perguntando à trabalhadora somente ao final da entrevista se algum patrão lhe “faltou com o respeito”. Essa foi a expressão mais alusiva, porém, ao mesmo tempo, mais clara e eficaz para abordar o tema do assédio sexual, que eu sabia ser difícil de tratar e nomear.[4] Nessa perspectiva, eu tinha consciência de que não seria possível abordar o assunto sem antes me aproximar da vida das entrevistadas e daqueles problemas que eram sentidos como os mais prementes em seu trabalho. Em alguns casos, falei abertamente de “assédio sexual”. De fato, dependendo do tipo de diálogo instaurado com a entrevistada, foi possível nomear de maneira explícita o problema do assédio. Minha franqueza ao fazer as perguntas tornou mais fácil para elas exprimir-se ou esconder-se atrás de respostas evasivas e, para mim, delimitar os espaços possíveis para o diálogo. Além disso, ao apresentar o tema, sempre deixei claro que condenava esse tipo de comportamento. Conforme veremos mais adiante, quase sempre a mulher do empregador que molesta nega o fato e assume a defesa do marido. Nos casos em que a trabalhadora afirmava ter tido esse tipo de experiência, tentei compreender o quanto lhe era possível falar sobre o assunto, ou seja, até que ponto eu poderia fazer-lhe perguntas sem desrespeitar suas emoções. “Como aconteceu, quando, onde, como você reagiu e como reagiu o patrão” são perguntas que nem sempre pude fazer.

Essas considerações são importantes para entendermos o campo da pesquisa, no sentido de avaliarmos as possibilidades de acesso às informações sobre o assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas. Com efeito, se de um lado é necessário perguntar e interpelar as mulheres sobre esse tema, considerado tabu porque revelaria a “culpa” da mulher e não a do homem, de outro, é necessário compreender os obstáculos que limitam a possibilidade de nomear essa violência. Por exemplo, Elisa, de 35 anos e que se define como amarela, sofreu e reagiu ao assédio de seu patrão. Na entrevista, afirmou que falou a respeito apenas com a irmã, embora tenha evitado mencionar os detalhes. Para entender o quanto é doloroso conseguir contar a experiência de assédio sexual, cito as palavras de Oliveira, histórica ativista das trabalhadoras domésticas: “[…] a experiência que tive na infância, quando um homem de 60 anos se masturbou na minha frente, olhando para mim e me pedindo para segurar seu órgão sexual. Foram necessários muitos anos para que eu conseguisse falar a respeito. Nem mesmo no movimento eu conseguia tocar no assunto. Não tinha coragem de falar sobre essa situação de violência sexual no meu local de trabalho” (Cornwall e Oliveira, 2014). Portanto, é necessário entender as múltiplas dificuldades para as trabalhadoras domésticas em abordar o tema do assédio sexual. Essas dificuldades estão ligadas ao contexto da entrevista, ao estigma associado ao fato de essas mulheres serem objeto de assédio sexual, de modo geral, e no âmbito do trabalho doméstico remunerado, de modo específico.

5. Trabalho doméstico, escravidão e assédio sexual

A comparação entre trabalho doméstico remunerado e escravidão surge constantemente nas pesquisas (Melo, 1989; Kofes, 2001; Goldstein, 2003; Ipea, 2011; Bernardino-Costa, 2015). Como já notado por Gonzalez (1983), a figura da mucama foi transposta para a da trabalhadora doméstica, cuja característica é ter de oferecer serviços domésticos e sexuais. Também nas minhas entrevistas fez-se referência ao período da escravidão. Laura, de 54 anos, define-se como morena clara e afirma ter sofrido tentativas de assédio: “Porque eles acham que a empregada doméstica, como não tem família aqui, é submissa a eles [para fazer] qualquer coisa. Entendeu? Acham que, porque você trabalha na casa deles, é obrigada a fazer tudo o que eles querem. Não é assim. Você é uma trabalhadora.” E depois explica: “Ainda existe muita escravidão como antigamente.” Evocar a escravidão para descrever uma situação de trabalho em uma sociedade capitalista é um modo de denunciar a falta de direitos e a violência extrema que vivem as trabalhadoras domésticas. Segundo Carneiro, o trabalho doméstico é “o elo de continuidade entre a sociedade colonial e a atual” (2015, p. 7). Um dos elementos que contribui para construir a continuidade entre a figura da escrava de origem africana e a trabalhadora doméstica é justamente o assédio sexual por parte dos empregadores ou de seus filhos. Na literatura, há registros de que os donos de escravos violentavam as próprias escravas e as usavam para iniciar os filhos na vida sexual (Freyre, 1986). Essa realidade historiográfica foi naturalizada e englobada no senso comum e difundida por meio de lugares-comuns e expressões como “ter um pé na cozinha”, que indicam como pessoas que podem ser consideradas brancas na realidade têm um parentesco com a mulher escrava ou a trabalhadora doméstica negra. A prática de “iniciar” na sexualidade heterossexual os rapazes das famílias brancas abastadas com as trabalhadoras domésticas é conhecida e foi corroborada pelas violências que os homens adultos perpetravam contra elas. Numa pesquisa anterior estudei a “iniciação sexual” com as trabalhadoras domésticas, entrevistando homens brancos de classe média alta, e observei que se tratava de uma iniciação em relações de domínio de classe, raça e sexo, uma violência que teve um papel central na formação de certo modelo de masculinidade branca heterossexual (Ribeiro Corossacz 2014 e 2018).

A continuidade entre o período da escravidão e o presente ainda vive. Segundo uma sindicalista do Rio, hoje, quando é o filho que assedia a trabalhadora, os pais “nem acreditam, porque na época da escravidão os filhos se iniciavam com as mucamas, né? Então tem pais que acham que ainda estão na época da escravidão, né?”. Os pais acreditam que seja um comportamento legítimo, e não que se trate de uma violência, justamente porque, no passado, era algo aceito. Também entre as entrevistadas, as relações sociais da escravidão são evocadas para se tentar dar um sentido ao assédio sexual sofrido. Débora, de 24 anos, parda, conta: “Você tá trabalhando ali na casa dele. Você tá fazendo as coisas pra ele. Eu não sei [o que se passa] na cabeça dele: já que ela é minha empregada… Como se fosse no tempo da escravidão, sabe? Patrão que tinha as escravas, que também eram objeto sexual dos patrões. Então às vezes eu fico pensando: será que eles acham isso até hoje também?”. As palavras de Débora permitem entender a sobreposição entre trabalho e cor, razão pela qual a trabalhadora doméstica é associada à escrava negra, independentemente de sua cor.

6. Vergonha, silêncio, resistência

Segundo as sindicalistas, raramente as trabalhadoras domésticas procuram o sindicato para denunciar o assédio sexual por parte dos patrões. É um assunto sobre o qual têm dificuldade em falar, até mesmo com as sindicalistas, como me fazem notar algumas. Conforme uma sindicalista de Nova Iguaçu, as trabalhadoras acham que “não serve para nada; elas pensam que não vale a pena contar porque é a palavra delas contra a palavra deles, e eles têm mais dinheiro. As patroas não vão acreditar, mas vão achar que elas são as responsáveis, quem provocou. Elas preferem ir embora, sem falar nada”.

As dificuldades para nomear esse tipo de violência devem ser relacionadas ao fato de que, se as trabalhadoras relatam o ocorrido, quase nunca são levadas a sério pela mulher do patrão. É a história, por exemplo, de Elenilda, de 47 anos, branca, que me contou sua experiência:

“Aí ele pegou e falou assim: ‘Elenilda, senta aqui.’ Quando eu fui sentar na cadeira, ele veio com um negócio grande, aí eu saí correndo. Aí eu cheguei pra minha patroa e falei. Ela disse: ‘Não, mas ele é médico; não vai fazer isso, não’.”

Depois do ocorrido, Elenilda conversou a respeito com seu pai e decidiu deixar o emprego sem receber o pagamento devido. Posteriormente, em outra casa, o patrão tentou ter relações sexuais com ela, que também nesse caso decidiu ir embora.

Conforme o relatado por trabalhadoras e sindicalistas, nos casos de assédio sexual, quase nunca a empregadora acredita na trabalhadora, defende o marido ou o justifica e, em alguns casos, manda a trabalhadora embora, acusando-a de ser a culpada. Tornamos a encontrar aqui a típica inversão, segundo a qual não seria o homem a agredir a mulher, mas a mulher a provocar o homem ou mentir sobre a agressão sofrida. A inversão das responsabilidades é o pressuposto para sugerir e reativar a ideia de que, no fundo, a mulher teria consentido e não deveria ter permitido que o assédio acontecesse (Mathieu, 1991). Como em muitos casos essas mulheres não podem perder o emprego, essa situação determina uma restrição da própria liberdade de escolha e de ação. Uma sindicalista do Rio de Janeiro lembra como o perfil dessas mulheres que não conseguem falar é muitas vezes aquele de mulheres “sozinhas, que não têm marido. São chefes de família. Pra não perder o emprego, elas ficam quietas e não… não falam nada”.

O mecanismo da inversão das responsabilidades também está presente quando algumas trabalhadoras, inclusive as sindicalistas, ao serem indagadas se conhecem episódios de assédio por parte dos patrões, respondem identificando como elemento provocador o modo como algumas trabalhadoras domésticas se vestem (com decotes, saias ou shorts muito curtos) ou se comportam (“dão confiança”). Portanto, pode acontecer de as próprias trabalhadoras serem reprodutoras de uma cultura que responsabiliza as mulheres pelo comportamento dos homens, reproduzindo a ideia de que o homem “reage” à visão de corpos sexualmente provocadores. Em algumas situações, porém, as mulheres da família assumem a defesa da trabalhadora doméstica. É o caso de Luana, de 53 anos, que se define como negra e recebeu apoio da filha adulta do patrão idoso, que tentara assediá-la; ou de uma sindicalista negra que contou que, quando criança, a patroa a colocava para dormir em sua própria cama, e somente mais tarde entendeu que esse era um modo de a patroa protegê-la de possíveis agressões por parte de seu marido.

Nas entrevistas com as sindicalistas, também se discutiu como a vergonha e o medo são sentimentos difundidos entre as trabalhadoras molestadas e podem tornar-se um freio, impedindo-as de denunciar os patrões ou relatar o assédio. Em alguns casos, as sindicalistas têm a sensação de que houve assédio, mas se dão conta de que as trabalhadoras não conseguem nomear essas violências, mesmo que expressem muita raiva. Portanto, as sindicalistas sabem reconhecer que a não denúncia e a não nomeação das violências são um modo de enfrentá-las, de resistir, e são capazes de acolher essas modalidades de comunicação. Isso é possível porque compartilham com as trabalhadoras as mesmas experiências e condições de vida e conhecem as opressões estruturais de classe, raça e gênero, que tornariam uma ação individual de denúncia particularmente onerosa.

É interessante notar que o responsável pelo sindicato de Natal foi o único a nomear espontaneamente a questão do assédio sexual quando lhe perguntei quais eram os principais problemas relatados pelas trabalhadoras que se dirigem ao sindicato. Na entrevista, tive a impressão de que, pela sua experiência, a denúncia desse fenômeno é mais difundida, embora ele tenha descrito os mesmos mecanismos observados pelas outras sindicalistas: é muito raro fazer uma denúncia às autoridades judiciárias, que, de todo modo, tendem a não acreditar ou a contestar a falta de “provas concretas”, e é reconhecida a diferença de poder entre o homem que molesta e a trabalhadora doméstica.

Portanto, a primeira dificuldade diz respeito justamente à possibilidade de nomear o assédio sofrido e receber crédito, e isso contribui para a dificuldade de avaliar a efetiva extensão do fenômeno. O silêncio de muitas trabalhadoras domésticas sobre o tema do assédio sexual deve ser reconduzido aos obstáculos que elas encontram quando nomeiam essas violências, e não considerado um indicador de sua ausência. A dificuldade em nomear e denunciar esses assédios deve ser entendida como o resultado da experiência específica dessas mulheres na imbricação das relações de classe, raça e gênero, que produziu a ideia de que as mulheres pobres e negras são sujeitos sexuais disponíveis, cuja palavra tem menor legitimidade. Esses elementos participam igualmente da atitude difundida entre homens da classe média branca, que admitem ou toleram o assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas, representando-o como uma forma de “iniciação sexual” masculina, como uma expressão legítima para dar livre curso a uma sexualidade masculina, definida como incontrolável (Ribeiro Corossacz, 2014).

Por essas primeiras observações, parece compreensível que sejam pouquíssimas as trabalhadoras que decidem denunciar o assédio às autoridades judiciárias. As três advogadas que entrevistei no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Nova Iguaçu[5] contaram como é raro levar adiante uma causa desse tipo. Sobretudo a advogada de Nova Iguaçu relatou que nunca recebeu casos como esses. Comparada ao ato de falar a respeito com as sindicalistas, a possibilidade de denunciar às autoridades representa outra passagem, que corre o risco de ser apenas fonte de frustrações e humilhações. De fato, uma escolha como essa significaria tornar pública a violência e sofrer o estigma a ela associado; não obstante, segundo as advogadas do Rio e de São Paulo, dificilmente levaria a uma vitória processual.

Por fim, com base no que foi relatado pelas sindicalistas e pelas trabalhadoras, podemos supor que, no passado, o fenômeno fosse mais amplo, enquanto nos últimos anos se reduziu. Essa mudança deve ser relacionada às lutas das sindicalistas por melhorias nas condições de trabalho. Contudo, todas elas têm consciência de que o fenômeno do assédio sexual existe e de que muitas vezes é silenciado pelas próprias trabalhadoras domésticas. Anazir Maria de Oliveira (Dona Zica), histórica líder das trabalhadoras domésticas do Rio de Janeiro, ressalta o quanto é difícil, antes de tudo, “relatar o fato”. Em sua opinião, os episódios de violência contra as trabalhadoras domésticas diminuíram em comparação com o passado, mas ela insiste no fato de que se trata de um fenômeno “muito oculto”. Justamente por isso, nos encontros de formação organizados pelo sindicato, o tema sempre é abordado com o objetivo de estimular as trabalhadoras a denunciar e reagir e de oferecer um espaço e um apoio que as acolha e torne possível a denúncia. Existe também uma ideia corrente, compartilhada tanto pelas sindicalistas quanto pelas trabalhadoras, segundo a qual hoje em dia as jovens trabalhadoras reagem aos assédios porque estão mais conscientes dos seus próprios direitos.

Além disso, pelos testemunhos coletados, parece menos frequente que seja o rapaz da família a molestar a trabalhadora doméstica. Segundo a advogada do Rio, hoje esse fenômeno é menos frequente também porque os jovens têm relações sexuais com moças da própria classe social antes do casamento, enquanto no passado isso era proibido ou menos tolerado. A chamada “iniciação sexual” com a “empregada” parece menos difundida. O perfil do molestador que aparece nos testemunhos é o de um homem adulto. Contudo, para compreendermos o quão efetivamente essa situação mudou, são necessários mais dados, que podem ser obtidos com pesquisas sobre como os jovens de hoje veem a trabalhadora doméstica.

Portanto, as trabalhadoras e ativistas têm consciência dos obstáculos e da exposição a ulteriores formas de violência que as mulheres enfrentariam ao denunciar, ou seja, a negação por parte da empregadora, o redimensionamento do episódio e a dificuldade para obter justiça.

7. As reações

Dos relatos emergem algumas situações recorrentes de assédio sexual: o homem se apresenta nu, com o sexo para fora da calça, e tenta agarrar a trabalhadora, que procura desvencilhar-se, às vezes fechando-se em um cômodo. Também é comum que o homem se esfregue na mulher ou a apalpe enquanto ela trabalha (lavando, cozinhando) ou quando pede a ela para fazer um serviço. Em outros casos, o homem entra à noite no quarto onde dorme a trabalhadora e a molesta.

A maior parte das trabalhadoras domésticas entrevistadas que viveu situações de assédio reage deixando o emprego sem dar explicações sobre o motivo pelo qual vai embora e sem receber o pagamento devido. Esse comportamento também foi observado na pesquisa de Mori (2011). A escolha por ir embora sem denunciar indica o quanto está radicada nas trabalhadoras a convicção de que falar é inútil: diante dessa situação, optam por uma ação liberatória, pois têm consciência das dificuldades de transformar sozinhas as relações sociais. Trata-se, portanto, não apenas de uma forma de rebelião à violência do assédio e da deslegitimação da própria palavra, mas também de um exercício da própria subjetividade. Naira, que tem 50 anos e se define como parda, viveu duas experiências de assédio. Segundo ela: “A gente sempre acha que a gente vai pagar o preço.”

Maria José, de 70 anos, chegou ao Rio vinda do Nordeste quando tinha 20 anos para fugir da seca. Contou-me: “Eu tinha 21 anos [no momento do assédio]. Mas acontece que eu vim praticamente da roça, era uma moça boba, né? Assim, eu não tinha nenhuma experiência de vida, não tinha nem namorado, e ele me assediou. Foi horrível, porque eu tava na cozinha lavando louça, e ele saiu do quarto dele nu e entrou na cozinha, e aquilo pra mim foi horrível, né?”.

O assédio continuou. O patrão se masturbava na frente dela ou pedia-lhe para tocá-lo. Na conversa, não foi possível ter mais informações. Ao me contar essas experiências, Maria José chorou. Muitos anos depois, ao participar do Teatro do Oprimido com outras trabalhadoras domésticas, Maria José conseguiu falar a respeito pela primeira vez: “Chorei no dia e tudo, porque a gente guarda aquilo e não tem coragem, tem vergonha de contar.” Seu relato incentivou outras trabalhadoras a narrar vivências semelhantes, que serviram de base para a preparação de um espetáculo teatral sobre o tema.

Em diversas entrevistas, notou-se que um ponto central é a possibilidade de as mulheres denunciarem o assédio ou simplesmente falarem sobre ele. Laura, de 54 anos, parda, conta: “Mas tem muitas que ficam caladas. Eu falei pra ele: ‘Ó, se você tentar me assediar outra vez, eu falo pra sua esposa.’ E ele: ‘Tem certeza que você conta?’ Eu falei: ‘Conto.’ Aí ele: ‘Eu mando você embora… Você vai ter coragem?’ Eu falei: ‘Vou.’” Situação semelhante é contada por Zezé, de 71 anos, proveniente do Nordeste. Em uma das duas experiências de assédio que sofreu, pediu ao patrão que parasse. O homem respondeu: “Cala a boca, Zezé!” Ela, por sua vez, disse-lhe: “Eu não vou calar porque o senhor tá aí.” O fato de os homens não quererem que as mulheres falem denota a consciência de que seu poder nunca é absoluto: as mulheres podem falar. Os homens reconhecem que o ato de nomear essas violências representa o primeiro passo da rebelião e, por isso, tentam deslegitimar a palavra das mulheres. Outra mulher que viveu duas experiências de assédio especifica que, em um caso, o homem tinha “medo de eu falar”.

Débora, de 34 anos, define-se como parda. Aos 12 anos, chegou ao Rio vinda do Nordeste. Aos 15, começou a trabalhar como doméstica. No momento da entrevista, trabalhava em diversos apartamentos, mas no passado trabalhou e viveu em um apartamento onde cuidava da casa e dos filhos do casal. Nesse emprego, a certa altura o patrão começou a entrar com frequência em seu quarto, para procurar roupas, até que uma noite tentou assediá-la. Ela achou que ele estivesse bêbado e, na manhã seguinte, conversou com ele, dizendo-lhe que não podia comportar-se desse modo e que, da próxima vez, o denunciaria. Por um tempo, o assédio não tornou a acontecer, até que uma noite se repetiu. Na manhã seguinte, Débora estava decidida a denunciá-lo. Pediu para falar com ele e para que a demitisse. Ele lhe perguntou por que queria ir embora, e ela lhe explicou que lhe avisara da primeira vez e que, naquele momento, não queria mais ficar. Ele lhe pediu desculpas, dizendo que tinha bebido. No final, ela decidiu ficar, mas não dormir mais no local de trabalho, alegando que decidira voltar a estudar. Assim, podia justificar sua escolha aos olhos da patroa, à qual não contara o ocorrido. Concluiu seu relato da seguinte maneira: “Porque eu particularmente penso assim: no trabalho, o patrão no lugar dele, e eu no meu. Não sei, o patrão vê a gente ali, também como a gente tá como empregada, não sei se eles acabam vendo a gente como objeto pra eles. Não sei se é isso que eles pensam”. Conforme sustenta Ávila, o trabalho doméstico remunerado comporta a ideia segundo a qual se espera uma disponibilidade permanente da trabalhadora (2010). Essa disponibilidade se refere não apenas às horas de trabalho, mas também, como nota Gonzalez (1983), às atividades e aos papéis, podendo incluir a apropriação do seu corpo sexual.

Protestar é nomear o assédio por aquilo que ele é, um ato ilegítimo de violência. Na entrevista com dona Zica, emerge outro aspecto central para entendermos a dinâmica do silêncio em torno dessas violências: o papel desempenhado pela cor na possibilidade de nomeá-las. Aos 15 anos, dona Zica saiu do interior para trabalhar no Rio de Janeiro, na casa de uma senhora, onde dormia todas as noites, exceto aos domingos, quando a mãe ia buscá-la. O irmão da patroa a assediava, batia com muita força à porta do seu quarto e com insistência, às vezes chegando a forçá-la. “Eu ficava morrendo de medo. Abrir eu não ia abrir, mas tinha medo que ele forçasse… Foi muito assim, muito sério; eu acabei confessando pra minha mãe o que tava acontecendo, e aí ela me tirou do emprego. Entendeu? Mas eu tive sorte. Porque ele poderia entrar, né? E concluir a intenção dele.” A mãe não explicou à empregadora o motivo real pelo qual decidiu levar a filha embora, apenas deu uma desculpa. “Mas naquela época… Era calado mesmo, né? Acontecia, e [a gente] ficava calada, entendeu?”. Explicou-me que atualmente, ao contrário, não é assim. O sindicato dá informações e indicações de como denunciar. Mais adiante na entrevista, insistiu: “Nunca reclamei. Reclamei com a minha mãe, e ela me tirou da casa.” Quando lhe perguntei qual a cor das pessoas para as quais trabalhava, ela me respondeu: “Brancos. Mais um motivo pra não acreditarem, né?”. Entre os testemunhos coletados, essa afirmação é a única que expõe explicitamente a questão de como a cor pesa na definição de quem merece crédito na denúncia do assédio sofrido, problema do qual as sindicalistas e advogadas têm consciência. Na afirmação de dona Zica, subentende-se que os outros componentes da família não teriam acreditado nela por eles serem brancos e ela, negra. Desse modo, dona Zica expõe a questão de como a classificação da cor dos sujeitos envolvidos condiciona a própria possibilidade de nomear a violência. Falar a respeito com a mãe significa saber que se tem acesso à credibilidade porque se faz referência a uma rede de relações sociais, a uma comunidade, que pode reconhecer as condições de trabalho e de opressão em que Zica se encontrava. A longa militância de dona Zica e seu percurso de conscientização da exploração do seu trabalho podem explicar a escolha de explicitar o papel que o racismo desempenha em estabelecer o que é nomeável, crível e condenável.

Na entrevista, dona Zica também relaciona a questão da credibilidade com o sentimento de culpa que muitas trabalhadoras experimentam quando vivem situações de assédio: “E nesses acontecimentos, aquilo que eu tava te falando: um caso assim, de um sentimento até de culpa da própria empregada, né? Por que que eu não lutei, por que que eu não falei, por que eu não fiz isso? Geralmente, é uma outra questão: os pais (dos filhos que assediaram, n.d.r.) não acreditam.” Portanto, romper o silêncio em torno do assédio sofrido significa enfrentar a experiência de não ser levada a sério por ser uma trabalhadora doméstica e negra, e essa experiência se concretiza quando a família empregadora a acusa de ser “mentirosa”, isso é, a família pode “até mandá-la embora… Fazer com que ela fique um pouco inibida, porque como é que ela vai provar?… Tá totalmente isolada ali. Vai provar como?”.

8. Conclusões

Os dados coletados nesta pesquisa demonstram o quanto é difícil a abordagem do tema do assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas, antes de tudo por elas próprias. Com efeito, essa experiência de violência é caracterizada pela imbricação das discriminações de classe, raça e gênero. Trata-se de uma violência de gênero que não pode ser isolada de outras formas de opressão, como a pobreza e o racismo. Por trás da dificuldade das trabalhadoras domésticas em nomear e denunciar o assédio sexual, é necessário reconhecer o contexto social mais amplo, que, no plano individual e coletivo, nega e deslegitima suas vivências de opressão estrutural e suas palavras para nomeá-las. A escassez de dados sobre esse fenômeno está ligada a dois fatores principais: a histórica tendência a negar a violência estrutural que afeta as mulheres pobres e negras; a dificuldade de um ambiente universitário, durante muitos anos composto por pessoas brancas de classe média, em abordar a imbricação de racismo, sexismo e desigualdades de classe na vida das trabalhadoras domésticas.

Apesar das dificuldades estruturais em abordar o assunto, a possibilidade de falar sobre as experiências de assédio sexual durante a entrevista tornou-se para as trabalhadoras uma oportunidade não apenas para denunciar, mas também para compartilhar uma análise mais ampla sobre as condições de trabalho e de vida. Assim, a compreensão dessas experiências de assédio só se torna possível se a entendermos em relação às outras formas de opressão, de classe e de raça que elas vivem. Um aspecto a ser ressaltado é a reflexão das trabalhadoras sobre a posição das empregadoras ante o assédio sexual perpetrado pelo marido. Mesmo sendo o assédio sexual, como a própria expressão indica, um assédio marcado pelas relações sociais de sexo, não há entre as trabalhadoras uma expectativa de solidariedade de gênero por parte da empregadora, pois elas reconhecem que outras relações de poder interferem e que também e contemporaneamente marcam esse assédio em termos de raça e classe. Nas falas das entrevistadas, as desigualdades de classe e o racismo constituem o principal terreno de encontro entre trabalhadoras domésticas e empregadoras; por isso, elas avaliam que para a empregadora é mais importante acreditar no marido do que na trabalhadora, validando assim o próprio privilégio de classe e raça e reproduzindo o racismo e a opressão de classe. Isso não significa que não reconhecem quando as empregadoras enxergam a situação de violência perpetrada pelos homens da família, como demonstram os dois casos relatados. Assim, nas falas das entrevistadas há uma visão da realidade em termos de imbricação de relações sociais: mesmo não utilizando o termo, elas vivem e descrevem a constante interligação entre as opressões de raça, sexo e classe.

Nesse quadro, o papel do sindicato é fundamental. A dificuldade em nomear o assédio é percebida pelas sindicalistas como uma forma de omissão falante que elas respeitam justamente porque há um reconhecimento recíproco. Com efeito, elas têm consciência dos obstáculos que as mulheres enfrentariam se fizessem uma denúncia e, portanto, reconhecem o silêncio como uma forma de “resposta estratégica a posições de relativa falta de poder” (Gal, 1991, p. 182). É justamente essa análise que permite dar apoio para sair do silêncio. Se considerarmos a dificuldade das trabalhadoras em nomear o assédio no mais amplo contexto da combinação de racismo, sexismo e desigualdades de classe que elas vivenciam, entenderemos como o silêncio se torna uma forma de resiliência, um modo para denunciar o nível de opressão vivido e o sentimento de impotência.


* Valeria Ribeiro Corossacz é doutora em antropologia social pela E.H.E.S.S. de Paris em cotutela com a Università di Siena. Sua área de pesquisa é a imbricação de racismo, sexismo e desigualdade de classe. É professora de antropologia na Universidade de Modena e Reggio Emilia, Itália. É autora, dentre outros, dos livros O corpo da nação. Classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro (UFRJ Editora, 2009), e White middle-class men in Rio de Janeiro. The making of a dominant subject (Lexington Books, 20018).

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Notas

[1] Em Brasília, de 25 entrevistadas, 7 declararam ter sofrido assédio sexual (2011, p. 145).

[2] Contudo, é necessário aprofundar com dados ulteriores o modo como ocorre a distribuição do trabalho doméstico nas famílias das trabalhadoras domésticas.

[3] Ao contrário dos outros sindicatos encontrados, o de Natal não tem vínculos com a CUT, mas é filiado à Força Sindical de São Paulo, do qual, no entanto, Israel lamenta nunca ter recebido apoio.

[4] Barbosa nota como muitas vezes é embaraçoso tratar desse assunto, seja por parte do pesquisador, seja por parte das entrevistadas (2000).

[5] No Rio e em Nova Iguaçu, também havia outras advogadas que trabalhavam para o sindicato; porém, não consegui entrar em contato com elas.