Carlos Alberto, Heloisa B. de Hollanda: Lélia, fale um pouco de você, do caminho da politização de uma mulher negra.
Lélia Gonzalez: A barra é pesada. E sou mulher nascida de família pobre. Meu pai era operário, negro, minha mãe uma índia analfabeta. Tiveram 18 filhos e eu sou a 17ª. E acontece que nessa família todos trabalhavam, ninguém passava da escola primária, mesmo porque o esquema ideológico internalizado pela família era esse: estudava-se até a escola primária e, depois, todo mundo ia à batalha em termos de trabalho para ajudar a sustentar o resto da família. Mas no meu caso o que aconteceu foi que, como uma das últimas, a penúltima da família, já tendo como companheiros de infância os meus próprios sobrinhos, quer dizer, a visão de meus pais com relação a mim já foi uma visão de neta, praticamente. Então, eu tive a oportunidade de estudar, fiz jardim de infância ainda em Belo Horizonte, fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelos discursos pedagógico-brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra. E, claro, passei pelo ginásio, científico, esses baratos todos. Na Faculdade eu já era uma pessoa de cuca, já perfeitamente embranquecida, dentro do sistema, eu fiz Filosofia e História. E, a partir daí, começaram as contradições. Você enquanto mulher e enquanto negra sofre evidentemente um processo de discriminação muito maior. E, claro, enquanto estudante, muito popular na escola, como uma pessoa legal, aquela pretinha legal, muito inteligente, os professores gostavam, esses baratos todos… Mas quando chegou a hora de casar, eu fui me casar com cara branco. Pronto, daí aquilo que estava reprimido, todo um processo de internalização de um discurso “democrático racial” veio à tona, e foi um contato direto com uma realidade muito dura. A família do meu marido achava que o nosso regime matrimonial era, como eu chamo, de “concubinagem” porque mulher negra não se casa legalmente com homem branco; é uma mistura de concubinato com sacanagem, em última instância. Quando eles descobriram que estávamos legalmente casados, aí veio um pau violento em cima de mim; claro que eu me transformei numa “prostituta”, numa “negra suja” e coisas assim desse nível… Mas de qualquer forma, meu marido foi um cara muito legal, sacou todo o processo de discriminação da família dele e, ficamos juntos até sua morte. Depois veio o segundo casamento, com um mulato que hoje é branco. Hoje todo mundo olha pra ele… porque a percepção da questão da ascendência racial no Brasil é muito disfarçada, né? O cara dá um jeito assim… passa um creme rinse, fica mais claro, dá uma esticada no cabelo, tudo bem… E eu não quero dizer que não passei por isso, porque eu usava peruca, esticava cabelo, gostava de andar vestida como uma lady.
Desnecessário dizer que a divisão interna da mulher negra na universidade é tão grande que no momento em que você se choca com a realidade de uma ideologia preconceituosa e discriminadora que aí está, sua cabeça dá uma dançada incrível. Tive que parar num analista, fazer análise etc. e tal. E a análise nesse sentido me ajudou muito. A partir daí fui transar o meu povo mesmo, ou seja, fui transar candomblé, macumba, essas coisas que eu achava que eram primitivas. Manifestações culturais que eu, afinal de contas, com a formação em Filosofia, transando uma forma cultural ocidental tão sofisticada, claro, que não podia olhar como coisas importantes. Mas enfim: voltei às origens, busquei as minhas raízes e passei a perceber, por exemplo, o papel importantíssimo que a minha mãe teve na minha formação. Embora índia e analfabeta, ela tinha uma sacação incrível a respeito da realidade em que todos nós vivíamos e, sobretudo, em termos de realidade política. E me parece muito importante eu chamar atenção para essa figura, a figura de minha mãe, porque era uma figura do povo, uma mulher lutadora, uma mulher inteligente, com uma capacidade de percepção muito grande das coisas e que passou isso pra mim… que a gente não pode estar distanciado desse povo que está aí, senão a gente cai numa espécie de abstracionismo muito grande, ficamos fazendo altas teorias, ficamos falando de abstrações… enquanto o povo está numa outra, está vendo a realidade de uma outra forma. Inclusive os próprios discursos progressistas que nós vemos por aí têm esse tipo de deformação caracterizada pela impostação ideológica que assumem. A meu ver, o discurso ideológico deforma a realidade, quer dizer, é um discurso de desconhecimento/reconhecimento, na medida em que ele reproduz os interesses de determinados grupos.
CA, HH: Aproveitando o que você falou sobre discursos progressistas, o que você pensa sobre a esquerda atual do Brasil?
LG: Bom, eu gostaria de colocar aqui que eu pertenço ao Movimento Negro Unificado, que estamos aí numa batalha violenta no sentido de conquista de um espaço para o negro na realidade brasileira, e o que eu tenho percebido é uma tentativa por parte das esquerdas em geral de reduzir a questão do negro a uma questão meramente econômico-social. Na medida em que se liquida o problema da luta de classes, na medida em que entramos numa sociedade socialista, o problema da discriminação racial está resolvido. A meu ver esse problema é muito mais antigo que o próprio sistema capitalista e está de tal maneira entranhado na cuca das pessoas que não é uma mudança de um sistema para outro que vai determinar o desaparecimento da discriminação racial. Ora, a partir daí – eu coloco a experiência do meu povo, a experiência do povo negro, em todo o decorrer da história brasileira e sobretudo a partir da Abolição da Escravatura pra cá – nós vamos perceber que sempre fomos isolados, sempre fomos chutados pra corner… a Abolição já fez isso de certa forma, a Constituição de 1891 sacramentou isso no momento em que estabeleceu que o voto do analfabeto era proibido, e a coisa permanece até os dias de hoje. A população negra, de um modo geral, constitui um dos contingentes mais representativos dos analfabetos do Brasil. E a partir daí, houve uma marginalização do negro em termos do processo político brasileiro, uma marginalização econômica, e, portanto, uma marginalização em termos econômicos-sociais. E todas as tentativas que esse povo enfrentou no sentido de denúncia e de conquista dos seus direitos, enquanto cidadãos brasileiros, foram de um modo geral, recebidos com indiferença ou então rechaçados como racistas às avessas, quer dizer, a gente passa por um processo e racismo violentíssimo, e quando a gente denuncia isso somos chamados de racistas às avessas.
As chamadas correntes progressistas brasileiras, elas minimizam da forma mais incrível as nossas reivindicações. Eu posso dar exemplo: há pouco tempo, em dezembro de 1978, no Encontro Nacional pela Democracia, promovido pelo Centro Brasil Democrático, eu estava ouvindo um dos deputados mais votados, uma das esperanças das jovens esquerdas brasileiras falando etc. e tal, e essa esperança de um pensamento de esquerda brasileiro colocou o seguinte: todos os regimes políticos brasileiros se caracterizam pela institucionalização da repressão social e esta repressão, no passado, se dera contra o índio e contra o negro, e no presente se dava contra a mulher e os pobres. Bom, eu me inscrevi, evidentemente, para fazer certas perguntas ao deputado. Então perguntei pro tal deputado como se explicava que no dia 7 de julho daquele mesmo ano de 1978 nós, os negros, estivéssemos reunidos nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo fazendo um ato público contra a discriminação racial e por que determinados setores da sociedade brasileira estavam aí brigando em função das leis que o governo pretendia impingir ao índio, no sentido de jogá-lo na mesma situação que jogou a nós negros com o 13 de maio. A população negra é imensa, ela constitui a maioria, sim, no sentido que os descendentes de africanos no Brasil constituem a maioria da população. Não é uma questão de cor, não, é uma questão de ascendência mesmo. Nós constituímos a maioria da população. No entanto ninguém levanta a questão do negro. Claro, nos debates, no que saiu nos jornais, silêncio total e absoluto sobre as denúncias que fizemos, os diversos painéis do encontro. Parece haver um modismo então com relação ao operariado, o que eu acho válido, mas nós temos que verificar uma coisa: que esse operariado brasileiro ainda é uma classe minoritária, porque dentro desse sistema que nós vivemos, nós sabemos que existe uma massa marginal crescente que nem chegou à categoria de operário. A grande maioria da população brasileira se encontra nessa situação e é claro que o negro está aí na medida em que ele está na base da chamada pirâmide social. Nós percebemos um tipo de silêncio total e absoluto com relação às nossas reivindicações.
CA, HH: Pelo que você está colocando parece que o pensamento de esquerda no Brasil, agora, não estaria conseguindo se articular com as reivindicações e lutas de, por exemplo, minorias culturais como negros e índios…
LG: Certo. Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria cultural a gente não é não, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é “pretuguês”. Se a gente levar em consideração, por exemplo, a atuação da mulher negra, a chamada “mãe preta”, que o branco quer adotar como exemplo do negro integrado, que aceitou a democracia etc. e tal, ela, na realidade, tem um papel importantíssimo como sujeito, suposto saber nas bases mesmo da formação da cultura brasileira, na medida em que ela passa, ao aleitar as crianças brancas e ao falar o seu português (com todo um acento de Kinbundo, de Ambundo, enfim, das línguas africanas), é ele que vai passar pro brasileiro, de um modo geral, esse tipo de pronúncia, um modo de ser, de sentir e de pensar.
CA, HH: A própria colocação dessas coisas em termos de minoria já dá uma dica de como elas são pensadas.
LG: Não há dúvida… As esquerdas atuais têm minimizado tranquilamente as nossas reivindicações. Embora nós (nós somos teimosos, estamos aí na luta, é lógico) … Por exemplo, a questão da Anistia que é uma questão que mobilizou, em nível urbano, os grandes centros urbanos brasileiros. Nós participamos do movimento de Anistia, estávamos aí nas passeatas com nossas faixas, Movimento Negro Unificado. Claro que a nossa fala foi devidamente censurada na hora de chegar e colocar as nossas reflexões, as nossas chamadas de atenção…
CA, HH: O que você chama de censuradas?
LG: Censuradas pelo seguinte: por exemplo, na hora de ler a moção do apoio do Movimento Negro, a moção foi lida e só leram o que interessava ao discurso geral. Agora, a questão específica não foi colocada. E qual é a questão específica? A imagem do negro que é passada, a repressão policial em cima do negro é uma das coisas mais terríveis… não há muita diferença entre Brasil e África do Sul. África do Sul nós temos um apartheid legalizado etc. e aqui nós temos um apartheid social que não precisa legalizar; o sistema racial brasileiro, a discriminação racial brasileira é uma das mais incríveis que eu já vi.
CA, HH: Funciona perfeitamente.
LG: O pessoal aqui diz: “não existe racismo no Brasil” e o povo complementa da seguinte maneira: “porque o negro não se põe no seu lugar”. Além de uma discriminação, uma divisão racial do trabalho que a gente percebe tranquilamente há uma divisão racial do espaço também. Aí nós vamos perceber o seguinte, que a atuação da polícia, da repressão policial, ela é típica… então veja: no nosso caso, quando eu falava de semelhança com África do Sul, a polícia brasileira ataca as favelas, invade as casas das pessoas, rouba os objetos das famílias e, vejam, a questão do desemprego, da própria crise econômica brasileira, como ela é articulada com o racismo… Nós tivemos o caso do Aézio[1]. Isso pra nós é secular, é secular essa história. É preso, é torturado, muitas vezes obrigado a confessar crimes que ele nem cometeu, quando, não é simplesmente liquidado…Retomando a questão da Anistia: no momento em que o pessoal do Movimento Negro de São Paulo colocou, lá no Congresso, o problema do negro que reage individualmente a um estado de coisas que aí está, num tipo de revolta que se dá a nível muito mais emocional… daí a existência do nosso movimento no sentido de articular isso com uma reivindicação organizada e com um tipo de discurso político já articulado para denunciar esse estado de coisa.
CA, HH: Se existe um discurso branco de direita que tradicionalmente segregou o negro do ponto de vista institucional e pedagógico e você diz que a esquerda negando o movimento de vocês, está fazendo o jogo do poder, então que espaço resta pra vocês atuarem politicamente? E qual a capacidade real da mobilização ou de articulação de um outro discurso que você vê para o movimento negro?
LG: Aí a gente cai diretamente na questão do eurocentrismo, se percebe que a sociedade brasileira como um todo é uma sociedade culturalmente alienada, culturalmente colonizada na medida em que todos os valores de um pensamento, de uma arte, enfim, de tudo que vem da Europa, do mundo ocidental, é o grande barato. E é por aí que dá pra gente entender, inclusive, a impostação do próprio discurso da esquerda que é um discurso que se articula dentro dos valores de uma civilização ocidental; ora, o nosso propósito, o nosso objetivo, o que é uma dureza – é exatamente tentar subverter a ordem desse discurso, no sentido do povo mesmo.
CA, HH: No caso dos países africanos, como Moçambique, toda a política foi encaminhada no sentido de preservar os valores culturais do negro, que eram recalcados, porém a articulação é marxista e visa mudar uma estrutura capitalista de colonização de uma maneira que é claramente ocidental. Como você vê isso?
LG: É ocidental sim… A gente não pode negar evidentemente o avanço que houve com o estabelecimento de estados socialistas negros como é o caso de Angola, Moçambique e mesmo Cuba e Guiné Bissau. Eu não estou muito segura, hoje, de que realmente a orientação de Moçambique seja a mesma de quando o Zé Celso fez o “25”[2], em termos de manutenção dos valores culturais… Agora, o que eu estou querendo colocar é o seguinte: me parece que a gente tem que ver a questão, nós, do terceiro mundo, os chamados povos de cor, temos que ver é o seguinte: é que nos parece que os discursos mais avançados, mais progressistas do ocidente, com relação a nós, não chegam perto, não conseguem tocar uma outra forma discursiva que caracterizou a resistência desses povos[3].
CA, HH: Levando um pouquinho mais longe, no caso do Brasil, esse discurso de resistência cultural não tem que estar articulado com uma ação política mais concreta, ao invés de se isolar?
LG: Veja, o Movimento como um todo não está isolado, não, o Movimento está ligado aos setores oprimidos dentro da sociedade e ele reivindica, grita e denuncia em função desses setores também. Agora, o que acontece é o seguinte: o discurso que se diz representante desses setores, não absorve… A grande verdade é essa! A gente cai na temática cultural porque …
CA, HH: O grande raciocínio sobre isso ainda é Gilberto Freyre…
LG: Claro. Nesse sentido, em termos da questão racial e cultural, a esquerda brasileira não difere da direita não. Eu não vejo grandes diferenças… acaba caindo no mesmo discurso de Gilberto Freyre… de mata-raça…
CA, HH: Será que esta dificuldade da esquerda incorporar este discurso negro não é o mesmo tipo de dificuldade dela incorporar os traços da contracultura?
LG: Não há dúvida…
CA, HH: E o movimento Black Rio?
LG: Numa época eu mesma achei que o Black Rio era uma alienação. Eu estava dentro de um discurso de esquerda, não é? Então, eu pensava que o Black Rio era uma alienação… estes crioulos querendo imitar, aqui, os crioulos americanos Aí, depois, você começa analisar mais profundamente e vai verificar os seguinte: no momento em que esta mocidade toda, estes jovens todos, são alijados, por exemplo, das próprias Escolas de Samba, que foram invadidas por uma classe média branca, que foram recuperadas pelo sistema em termos de indústria turística e não encontram mais um eco dentro da Escola de Samba… E tem mais: o crioulo tem isto mesmo, é uma questão cultural… é ouvido, é a transação da música, a transação do som. Veja, o chamado Movimento Black Rio, Black São Paulo, Black Porto Alegre, ele pintou a partir de ouvir música, de sentir o ritmo. É claro que o sistema capitalista tenta aproveitar estes crioulos, vender discos e estes negócios todos. Agora, o que me parece, em termos de Movimento Black, é que… veja as esquerdas caíram em cima dizendo que era uma coisa alienada… Agora, o fenômeno, em si mesmo, me parece uma busca desta identidade perdida no nível das Escolas de Samba, que eles tentam recuperar.
CA, HH: E o caso Gilberto Gil?
LG: O Gil vai ser o cara que, como todo crioulo que toma um pouquinho de consciência, fica perplexo. A verdade é esta. Eu digo isto aos meus alunos negros. A gente quando chega na universidade é um bando de perplexos. Porque é tanta coisa em cima, ao mesmo tempo é um discurso que tenta te cortar. Cortar o teu pé. Puxar o tapete.
No caso do Gil, o que eu percebo nele é exatamente aquela do negro que está com uma visão universal da questão e que evidentemente não pode se encaixar, se enquadrar, dentro dos limites de um discurso de esquerda e nem tão pouco da direita, óbvio. O que a gente vai perceber, é exatamente isto… é um cara que incomoda, mas que incomoda mesmo, muita gente. Porque o Gil está nos interstícios… aquele jogo de cintura que ele tem e que o pessoal pensa que só existe em roda de samba… Não, jogo de cintura no nível de cuca é o que ele tem mesmo. Então, ele vai nos interstícios e vai deixando o recado dele.
CA, HH: E o Gil como um dos pratos favoritos dos “Patrulhas”?
LG: Claro que um discurso que não esteja dentro das categorias ou, melhor dizendo, das noções nomeadas por estes patrulheiros como noções políticas vai ser totalmente combatido e chamado de alienante, pois não se enquadra dentro dos objetivos deles. O caso do Gil é o caso de um discurso profundamente político, meu nego, é uma grande política. É um discurso que denuncia a partir do lugar simbólico e não do imaginário, a grande verdade é esta. Denuncia estas limitações, fechamento do discurso das Patrulhas Ideológicas. Então, a meu ver é um discurso com muita profundidade política e que a gente nem está sacando ainda… E o artista mesmo é isso. O artista mesmo pra valer é o cara que se coloca fora. Então já está denunciando mil coisas.
CA, HH: Aí eu queria ligar isso com a questão da contracultura que que a gente falou momentos atrás. Eu falo em uma contracultura no sentido de uma consciência emergente, que era comportamental numa certa época e que se refletiu na atuação cultural… poesia, cinema, teatro. E que estaria próxima do movimento negro no sentido de uma coisa que não cabe bem…
LG: Veja você o seguinte: em termos de Movimento Negro, o Gil, o Caetano, esse pessoal todo dá uma puta força pra gente… eles estão sacando, estão percebendo. Por exemplo, no ano passado, no Parque Laje, ele segurou a barra de um show, onde vários artistas participaram mas outros se negaram… Vejam vocês, o último show do Movimento Negro, realizado no final de julho, foi um fracasso. Por que? Se a gente analisar, politicamente, o fracasso do show do Movimento Negro se explica porque, de repente, nesse um ano de atuação, a gente conseguiu abrir um espaço e começou a incomodar. Convidamos muitos cantores para participar e o pessoal furou tranquilamente. Houve momentos, assim, terríveis. Por exemplo, o cara que foi transar o som, ele saiu do escritório e sumiu, não chegou… E o show foi se dando sem som. Dos grandes nomes convidados, ninguém apareceu. Porque ninguém quis se comprometer. Muitos por medo. Aquele medo que caracteriza, inclusive, a nossa comunidade. A gente sabe disso, que há uma repressão violenta, que o pessoal tem medo, realmente. De outro lado, tinha muita gente comprometida com os discursos de esquerda, não podia dar força pro movimento. Então, o nosso show foi uma coisa terrível, uma coisa tétrica. E o público saiu puto. A maioria do público negro.
CA, HH: Esse foi o show da A.B.I. [Associação Brasileira de Imprensa]?
LG: Foi o show da A.B.I. … Em nível de discurso político, o Movimento Negro está incomodando muita gente. Não há dúvida. Exatamente por quê? Porque a gente está tentando justamente colocar… veja, não quero dizer que a gente não reproduza elementos de um discurso de esquerda. Reproduzimos, sim, não há dúvida. Mas a gente coloca a especificidade da questão racial. E a esquerda não quer aceitar isso. E veja, no nível da produção de um outro lugar simbólico, que é o caso do Gil, também incomoda. Parece-me que estes aspectos, a gente tem que observar
CA, HH: O movimento negro de esquerda, em São Paulo, parece estar muito acirrado… talvez pela própria condição do negro paulista… chegando a ser mediador entre a Bahia e o Rio de Janeiro…
LG: Não, ao contrário, O Rio de Janeiro é que é o mediador entre Bahia e São Paulo. Porque, por exemplo, o negro paulista tem uma puta consciência política. Ele já leu Marx, Gramsci, já leu esse pessoal todo. Discutem, fazem, acontecem etc. e tal. Mas de repente você pergunta: você sabe o que é Iorubá? Você sabe o que é Axé? Eu me lembro que estava discutindo com os companheiros de São Paulo e perguntei o que era Ijexá, que é uma categoria importante para a gente saber mil coisas, não só no Brasil como na América inteira. Os companheiros não sabiam o que era Ijexá. Ah! Não sabem? Então vai aprender que não sou eu que vou ensinar não, cara! Vai quebrar a cara. De certa forma, me parece que há um esforço, por exemplo, do pessoal do Movimento de fazer esta síntese entre resistência cultural e denúncia política… O Movimento Unificado significa exatamente isto.
Então, o caso de São Paulo me lembra muito os negros americanos: puta consciência política, discurso político ocidental…dialetiza, faz, acontece, etc. Mas falta base cultural. A base cultural está tão reprimida… Na Bahia tem-se muito mais consciência cultural (que é um negócio que sai pelos poros) do que consciência política (que existe). Há também uma transação a nível cultural. A gente está no samba, na macumba; a gente está transando todas. E tem mais é que transar. O Rio, em um determinado momento, é o pessoal mais avançado do Movimento, apresenta estrutura de organização e perspectiva maior que São Paulo ou Salvador.
CA, HH: Quem é o militante negro?
LG: O que me parece é o seguinte: vamos encontrar elementos negros de classe média, que já ultrapassaram a própria condição de classe média e se vêm sobretudo como negros. Neste caso se situa o Movimento Negro Unificado. Tem pessoas com formação universitária e outras que moram em favela ou em subúrbios perdidos, tem cara que é trocador de ônibus, tem cara desempregado, evidente. Inclusive, nós sabemos que a grande resposta pras nossas indagações está na comunidade. E nós temos esses vícios também. Isso a gente reconhece tranquilamente. Nós temos os vícios desse discurso do dominador internalizados. Sobretudo no nível do pessoal mais politizado que veio do movimento estudantil, etc. Trazem esses vícios de linguagem, ideológicos. Então, de repente, quando topam com a comunidade, não entendem nada e querem impor valores. Veja, por exemplo, a noção de Democracia. Se você chegar num Candomblé, onde você pra falar com a Mãe de Santo, tem que botar o joelho no chão e beijar a mão dela e pedir licença, você vai falar em Democracia? Dança tudo. O que a gente tem que ver são essas coisas, esses valores que estão aí.
CA, HH: Aproveitando isso que você está falando, como você vê a aproximação Brasil-África?
LG: A África é um barato muito diferente do que a gente imagina, diferente, principalmente, do que os negros americanos imaginam. Uma das coisas que eu chegava dando porrada em cima deles é isso: a África de vocês é um sonho, não existe. Nós aqui no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um Candomblé, da macumba… Você vê, por exemplo, a posição da mulher na família negra; é um negócio muito sério… A figura da mãe. Freud ia se fartar, se ele fosse transar esse negócio de Édipo na África, porque é uma loucura mesmo. Agora, me parece, pelo que eu vi da África, pelo que eu vi nos EUA, pela transação que eu tive com o pessoal do Caribe… me parece que o Brasil tem um papel assim, importantíssimo, nessa síntese, de uma visão africana e de uma visão da diáspora. Porque veja, nós internalizamos discursos diferentes, do índio e do branco. Não há dúvida que internalizamos. E a coisa que vai sair é uma outra coisa. Porque você não pode negar essa dinâmica dos contatos culturais, das trocas, etc. e tal. Parece-me que nós poderemos levar inclusive para a África um tipo de resposta que os africanos ainda não encontraram.
Esta resistência cultural que o negro apresenta onde quer que esteja, a gente só vai entender em um conhecimento muito profundo, muito sério, das instituições das diferentes culturas africanas.
* Lélia Gonzalez foi filósofa, ativista, política, professora e pioneira dos estudos de raça e gênero.
[1] Aézio da Silva Fonseca era servente de pedreiro e apareceu enforcado na 16ª Delegacia, na Barra, após ser preso sob acusações, não comprovadas, de assédio, em outubro de 1979. O caso foi seguido pela imprensa internacional. Sete policiais foram condenados.
[2] Lançado em 1979, no Teatro Oficina, dirigido por Zé Celso e Celso Lucas e filmado durante as comemorações após independência de Moçambique. O filme retrata o processo de liberação, da resistência à luta contra a dominação colonialista.
[3] De algum tempo para cá a referência à de pendência começou a substituir, modificar ou simplesmente complementar, a referência ao subdesenvolvimento, entre intelectuais como entre algumas correntes políticas. Se houve algum ganho na passagem (e eu creio que algum houve) não estou muito seguro que tenha sido clareza teórica ou política. (…) A noção de “dependência” entendida em um sentido global como indicando a “especificidade estrutural” dos países latino-americanos, não é de molde a facilitar as tentativas de uma conceituação rigorosa. (…) A imprecisão da noção de dependência (…) está em que ela oscila, irremediavelmente, do ponto de vista teórico, entre um approuch nacional (real, possível ou desejável) à economia e à estrutura de classes, joga um papel decisivo na análise. No segundo, pretende-se que a dinâmica das relações de produção e das relações de classe determine, em última instância, o caráter (real) do “problema nacional”
Francisco Weffort, Estudos Cebrap, nº 1, 1971 (nota no original).