Ano XIV 01
dossiê
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HISTÓRIA SOCIOPOLÍTICA DO CABELO CRESPO

Resumo: O cabelo já foi objeto de análise de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Tanto a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associá-lo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. C. R. Hallpike (1969), em resposta, é contrário a essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na sua importância simbólica, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas ao reivindicar que a importância do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. Desde a colonização, pressupostos racistas foram formulados e propagados e uma das suas premissas é a negação da beleza aos negros e negras. Nesse contexto, o cabelo foi – e continua sendo –, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude. Eventos históricos importantes, no entanto, marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização. Em âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire também nos anos 1930. Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. Nesse contexto, a radicalização em torno do uso do cabelo crespo considerado “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. Os reflexos desses movimentos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um impulso crescente no sentido de também ressignificar as características físicas associadas à negritude, destacando-as e valorizando-as.

Palavras-chave: racismo; escravidão; cabelo crespo; mulheres negras.

Abstract: Hair has already been the object of analysis by authors such as Freud, Charles Berg and Edmund Leach. Both the psychological approach of Freud and Berg as well as the anthropological approach of Leach were unanimous in associating it with a sexual connotation or, more specifically, with symbolic castration. In response, C. R. Hallpike (1969) is contrary to this connotation and associates the haircut to social control. While sharing a belief in hair’s symbolic importance, scholars of Racial Studies oppose to these perspectives by claiming that the importance of hair to black people is irrefutable due to their specific historical and political legacy. Since the period of colonialism, racist assumptions have been formulated and propagated and one of its premises is the denial of beauty to black people. In this context, hair was – and still is -, alongside skin color, one of the main diacritical signs of blackness. However, important historical events marked the revaluation of black beauty and impelled several subjects to reinterpret their own aesthetics through a more positive perspective. At a global level, several movements have articulated very strongly black and political aesthetics. In the 1930s, a Jamaican counter-discursive on aesthetics emerged from the Rastafarian Movement. Another milestone in the positive recognition of being black is Aimé Cesaire’s concept of negritude in the 1930s. In the 1960s and 1970s, with the movements “black is beautiful” and “black power”, natural afro-hair came to mean pride and power. In this context, the radicalization around the use of “afro-hair” considered “natural” was central, since it was reinforced as an icon of identity and culture. Reflexes of these movements could also be perceived in Brazil. From then on, there was a growing impulse to also re-signify these physical characteristics, highlighting and valuing them.

Keywords: racism; slavery; hair; black women.

Primeiras páginas

Neste artigo, discorrerei sobre a história sociopolítica do cabelo crespo a fim de elucidar como foi construído, historicamente, o discurso racista que tem o corpo negro como sua “superfície de inscrição”. Tal discurso atua produzindo subjetividades e afeta profundamente a vida daqueles que subjuga sob o estigma da inferioridade. As expressões “cabelo de negro” e “cabelo ruim” revelam a arbitrariedade de uma dimensão estética que associa a negritude à absoluta negação da beleza (Mercer, 1987). Longe de negar as consequências disso para os homens negros, me debruçarei, por uma questão de escopo, mais sobre as mulheres negras. Elas conhecem a violência do racismo desde muito cedo, principalmente através da maneira como a sociedade taxa o cabelo crespo como “ruim”. Acredito que esse é um dos discursos racistas mais abertamente postulados. Sendo construída social e historicamente, a rejeição/aceitação do ser negro permeia a vida delas em todos os seus ciclos de desenvolvimento humano: infância, adolescência, juventude e vida adulta. De modo geral, os primeiros esforços de transformação do corpo negro datam da infância e do desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo através do alisamento capilar (Gomes, 2008).

Importante começar dizendo que os significados do cabelo remetem a um campo fértil de pesquisa e perpassam a obra de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Mesmo a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associar o cabelo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. Em resposta, C. R. Hallpike (1969) nega essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na importância simbólica do cabelo, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas e mostram que a importância específica do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça (Banks, 2000).  Fora todas as tensões que existem quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos.

Segundo Banks (2000), apenas nos anos 1960, debates sobre o que as práticas com o cabelo representam entre mulheres negras surgiram na Academia. Quando o Feminismo Negro chega às universidades, está fortemente associado à necessidade de autodeterminação das mulheres negras sobre a sua própria estética. A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade (Kelley, 1997).

Para as mulheres negras, a geografia do corpo serve como um poderoso símbolo da ideologia racista. Um dos elementos-chave para compreender a relevância do cabelo como uma marca identitária entre elas é, justamente, através da história desse imaginário poderoso e dessas crenças dirigidas à negritude e ao corpo feminino.  Esse apanhado histórico remete ao processo de colonização, à escravidão negra e à diáspora africana e, nesse contexto, um nome ganha relevo: Sarah Baartman. Sua vida ilustra, dramaticamente, como o corpo feminino negro se tornou a manifestação física de todas as características negativas associadas à raça. Duplamente distanciada da cultura e ligada à natureza por ser mulher e negra (Ferreira e Hamlin, 2010), Sarah foi uma sul-africana que, adotada aos dez anos na condição de serva, foi levada para Europa para ser exibida nos chamados “circo dos horrores”. Lá recebeu, pejorativamente, o apelido “Vênus Hotentote”. Ela também ficou conhecida como “Vênus Negra” e sua história marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico.

As exibições de Sarah Baartman nos chamados “Circo do Horrores” ou “zoológicos humanos” eram oferecidas como possibilidade de entretenimento na Europa e ali a diferença racial atuou como mola propulsora capaz de gerar uma distância abissal entre europeus e africanos (Braga, 2015). Nas suas primeiras apresentações, ela era exibida como uma “fera selvagem”, saindo e voltando de uma jaula. Em Londres e em Paris, se tornou famosa entre o público como um “espetáculo”, exibida em cartoons, ilustrações e mesmo em reportagens de jornais. Entre os naturalistas e etnologistas, ela foi medida e observada em cada detalhe de sua anatomia, viva e morta. Nos “circos dos horrores”, corpos humanos eram exibidos como monstruosidades que tinham por função dar ao seu público mais confiança e consciência de si, de sua civilidade, de sua normalidade, de sua preeminência. Sarah permaneceu em Londres por quatro anos e, em 1814, foi vendida a um exibidor de animais francês (Braga, 2015). Para Stuart Hall, o caso de Baartmam reitera uma preocupação – ou até obsessão – com a demarcação da “diferença”; no caso da “Vênus Negra”, essa diferença foi patologizada. Simbolicamente, ela não fazia parte da norma eurocêntrica sobre o que significava ser uma mulher. Seu corpo foi lido, como um texto, a fim de reiterar a irreversível assimetria entre as “raças”. Ela era comparada com feras selvagens, com orangotangos – e não com a cultura humana. A sua “diferença” foi naturalizada e traduzida, sobretudo, na sua sexualidade. Ela foi reduzida ao seu corpo e seu corpo foi reduzido aos seus órgãos sexuais. Sarah também não existia como uma pessoa; ela era um objeto. Seu caso tomou ainda mais importância, à medida que Georges Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna. Ou seja, foi pelo corpo de Sarah que nasceu o conceito moderno de raça.

Se, durante o período em que permaneceu na Inglaterra, seu sucesso estava associado à sua exibição pública nos “circos dos horrores”, na França, o fascínio pelo seu corpo assume ares de interesse científico. Ela era exibida seminua em reuniões científicas onde mediam seu corpo, “observavam, desenhavam, escreviam tratados sobre, modelavam em cera, escrutinizavam cada detalhe de sua anatomia” (Hall, 1997, p. 265). Sarah despertou o desejo dos naturalistas de “se beneficiarem da circunstância oferecida pela presença, em Paris, de uma fêmea bosquímana que pode fornecer, com mais precisão do que jamais foi feito até hoje, as características distintivas desta raça curiosa” (Jean Le Garrec, 2002, p. 7 apud Ferreira e Hamlin, 2010).  Em 1815, o corpo nu de Baartman foi exposto ao olhar de cientistas e artistas no Jardin du Roi.  São as ilustrações registradas nessa exibição que compõem parte do livro de Cuvier e Saint-Hilaire, editado alguns anos mais tarde, “História Natural dos Mamíferos”. Nessa obra, Sarah Baartman é representada como uma espécie natural, dentre inúmeras outras, especialmente de macacos.

Depois da sua morte precoce em 1815 (há relatos de que ela acelerou esse processo através do uso excessivo do álcool quando já estava doente)[1], seu corpo foi moldado, dissecado e seu cérebro e sua genitália foram exibidos no Museu do Homem de Paris até 1974. A exibição de partes do seu corpo a transformou, literalmente, em separados pedaços de objetos, uma coisa, “um conjunto de partes sexuais”. Do relatório feito por Georges Cuvier sobre Baartman, nove das dezesseis páginas são usadas para a descrição da sua genitália (Blackledge, 2003, p. 141 apud Ferreira e Hamlin, 2010). O interesse de Cuvier em Sarah era inestimável: ela não era apenas uma mulher, mas, sobretudo, uma mulher negra. Duplamente distanciada da cultura, duplamente ligada à natureza (Ferreira e Hamlin, 2010).  Só quando pareceram “obsoletos”, os seus restos mortais foram arquivados nas prateleiras da reserva técnica do museu, sendo devolvidos à África do Sul após grande mobilização dos povos khoi-san já no governo de Nelson Mandela.  Com a devolução de seu corpo à África do Sul, Sarah Baartman, foi velada e enterrada na Cidade do Cabo em 2002 (Hall, 1997; Damasceno, 2008).

“Sartjee the Hotentot Venus”.
Sartjee the Hotentot Venus”. Fonte: https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1490165&partId=1&people=108609&peoA=108609-1-7&page=1

Se, no século XIX, o corpo europeu masculino representa a normalidade, o que, se não o corpo de uma mulher negra, para representar sua radical alteridade? Não foi por acaso que Jay Gould (1990) notou, ao visitar o Museu do Homem de Paris no início dos anos 1980, que próximo de onde estavam expostos os cérebros de franceses “notáveis” como Renée Descartes e Pierre Broca, representantes do racionalismo francês, não havia um só cérebro de mulher. Como contraponto, eram expostos próximos deles os genitais de “uma negra, uma peruana e da Vênus Hotentote” (Damasceno, 2008).

Segundo Hall (1997) não tem como não lembrar de Fanon em “Pele Negra, Máscaras brancas”, em como ele se sentiu desintegrado, como um homem negro, pelo olhar dos brancos: “os olhares do outro me fixaram lá” (Fanon apud Hall, 1997). Essa substituição da parte pelo todo, de uma coisa – um objeto, uma parte do corpo – pelo sujeito, é o efeito de uma importante prática representacional: o fetichismo. A história da “Vênus Negra” marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico. Esse discurso era estruturado em um quadro de “oposições binárias” entre a “civilização” (branca) e “selvageria” (negra).  Essas oposições também eram marcadas no corpo, polarizadas em seus extremos opostos. De um lado, refinamento, instituições, governos formais e leis, civilização dos costumes, da vida sexual, emocional e civil etc. foram associados à Cultura, à Europa; de outro, emoção e sentimentos, ausência do refinamento civilizatório na vida sexual e social foram associados à natureza, aos outros, a Sarah Baartman (Hall, 1997). Por isso que, para Mbembe (2014), a raça não passou de uma ficção útil.

No livro 400 years without a comb (1973), um clássico sobre a importância dos cabelos para as negras(os), Willie Morrow afirma que o pente era um artefato cultural muito valorizado na África. Tais pentes, feitos à mão em diferentes tipos de madeira, eram verdadeiras obras de arte. A escravidão, no entanto, forçou os escravizados a abandonar essa tradição. Segundo Morrow, além de deixar o pente para trás, a escravidão também significou a perda da liberdade, da dignidade e do amor-próprio. Os homens negros, por exemplo, diante da nova realidade de negação da sua humanidade e, consequentemente, da sua beleza, muitas vezes cortavam os cabelos extremamente curtos – o que era muito perigoso devido à exposição ao sol no trabalho escravo. Junto com a imposição de um novo padrão estético, os pentes africanos, ideais para o cabelo crespo, foram substituídos por novos artefatos completamente inapropriados para o trato com aquele cabelo (Morrow, 1973). Não é à toa que, frequentemente, é dito que alisar o cabelo é mais simples e fácil de cuidar; ora, isso é verdade se o regime de cuidado é moldado por assunções da branquitude (Taylor, 2016).

Uma das consequências da trágica vida de Sarah Baartman foi que, no espírito do público, ela se tornara a mulher africana “típica” (Braga, 2015). A sua vida remete às raízes históricas do estereótipo da hiperssexualidade da mulher negra e a sua história atravessou o Atlântico, chegando ao Brasil.  Registros de mulheres negras, de certa maneira, comparadas à vênus negra estão espalhadas pelos arquivos do período escravocrata: pinturas, depoimentos de viajantes, anúncios de jornal, relatos históricos (Braga, 2015). Com uma pesquisa que lançou o olhar também sobre os anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Amanda Braga (2015) pôde traçar e analisar a história da beleza negra no Brasil. Os anúncios de jornais brasileiros do século XIX guardam, em grande medida, a história de uma economia senhorial e, ao mesmo tempo, dependente de seus escravos. Impregnados pelo cotidiano do país e, consequentemente, pelo intenso comércio de negras escravizadas para fins sexuais, esses anúncios chegavam a ocupar dois terços dos jornais em questão. A constatação da continuidade da história da vênus negra, agora em solo brasileiro, é inevitável. Segundo Freyre ([1963] 2010, p. 114 apud Braga, 2015), “sucedem-se os casos de negros e negras de origem evidentemente hotentote ou bosquímana, que são as populações africanas culatronas por excelência”. Braga (2015) cita vários exemplos de anúncios de jornais tanto de venda de escravas quando de procura de escravas fugidas com menção a termos como “bundas grandes, nádegas salientes, empinadas para trás, nádegas gordas, traseiros arrebitados” etc.

Defendo que compreender como se deu, historicamente, a construção do discurso racista é fundamental para o fim de suplantá-lo. Nesse apanhado, a dimensão estética ganha ênfase, já que a negação da beleza negra é parte estruturante do racismo, que busca desumanizar suas vítimas.  O cabelo crespo/cacheado surge como uma questão desde muito cedo na vida dos negros, sobretudo das mulheres. A manipulação dessa parte do corpo tende a protagonizar os seus rituais de beleza, mesmo durante a infância.

O cabelo crespo no país do mito da democracia racial

É constitutivo do campo de estudos sobre as relações raciais brasileiras a comparação, implícita ou explícita, com os Estados Unidos (Figueiredo, 2002). Para esta pesquisa, a literatura norte-americana sobre cabelo foi muito importante, mas, para entender as nuances do caso brasileiro, é preciso discorrer sobre a especificidade do nosso racismo.  Segundo Lilia Schwarcz (1993), em finais do século dezenove, já perto do fim da escravidão, tomava força, no Brasil, um modelo racial de análise em resposta à hibridação das raças, a qual era tida, naquele contexto, como um grande “tumulto”. As teorias raciais chegam tardiamente aqui, recebendo, em contrapartida, uma entusiasta acolhida, principalmente nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa, onde estava localizada grande parte da elite pensante nacional (Schwarcz, 1993).

Diante do enfraquecimento da escravidão, que resultou em seu fim, e da necessidade de realização de um novo projeto político para forjar uma identidade para o país, os modelos raciais de análise tornaram-se um caminho teórico viável para justificar o status quo da época. Embora hoje seja bastante renegado, esse foi um momento na história intelectual do Brasil no qual pressupostos racistas foram abertamente postulados (Schwarcz, 1993). De acordo com tais modelos de análise, era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades raciais. Assim, teorias como o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo começaram a se difundir, no Brasil, a partir dos anos 1870. Vale relembrar a importância de Sara Baartman para a constituição desses pensamentos na Europa. Como já foi dito, Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna.  Ele apresentou a genitália de Sara a fim de sustentar sua tese acerca da origem comum dos seres humanos, posição conhecida como monogenismo. Sua proposta colocava Sara Baartman como “o elo perdido entre os seres humanos e os macacos” (Ferreira e Hamlin, 2010).

Através do racismo científico, a alternativa escolhida para o país foi a de negar a civilização aos negros e mestiços, sem citar os efeitos da miscigenação já avançada, e expulsar “a parte gangrenada” e garantir que o futuro da nação seria “branco e ocidental” (Schwarcz, 1993). Imigrantes europeus, então, foram trazidos ao Brasil como mão-de-obra livre. Os negros e negras foram jogados à margem da sociedade.

Após esse momento em que o racismo científico foi amplamente difundido no Brasil, em 1933, com a aparição de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, iniciou-se uma grande mudança na maneira do pensamento social e político brasileiro encarar a questão racial.  Não só na figura de Freyre, mas, de certo modo, a modernidade brasileira, seja nas ciências sociais — que tiveram em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jr. (1965 [1937]) seus primeiros expoentes —, seja na literatura regionalista — expressa por Jorge Amado (1933, 1935), José Lins do Rego (1934, 1935) e outros – tentou superar esse discurso racialista e valorizar a herança cultural brasileira (Guimarães, 1999). Uma ênfase especial precisa ser dada à obra de Gilberto Freyre, porque, ao romantizar a violência colonial, foi basilar para o surgimento da grande falácia das relações raciais no Brasil: o mito da democracia racial. A obra freyreana introduziu, de fato, um marco diferencial em relação às teorias raciais do século XIX. Além da substituição do conceito de “raça” pelo de cultura, ele tinha “novos objetos” de análise: a família, a intimidade e a sexualidade presentes nas relações sociais e raciais cotidianas (Guimarães, 1999; Pacheco, 2013). Na sua leitura, a miscigenação da sociedade brasileira teria contribuído no sentido de uma “democratização racial”.  Freyre propunha a ideia de houve, no Brasil, um encurtamento da distância entre a casa grande e a senzala, já que, para ele, os portugueses não tinham “preconceitos inflexíveis”, chegando a afirmar, inclusive, que estes tratavam com doçura os seus escravos (Freyre, 2006, p. 298). Em consequência de uma suposta plasticidade social maior do que qualquer outro colonizador europeu – devido a um passado étnico “híbrido” -, a colonização portuguesa, segundo o argumento freyreano, tinha como característica o “equilíbrio de antagonismos” (Freyre, 2006, p. 280).

O ideário antirracialista que buscava negar o discurso do racismo científico acabou prestando um grande desfavor para a população negra brasileira. Isto é, a redução do antirracismo ao antirracialismo e sua utilização para o fim de negar a existência de uma violência real tornaram-se uma eficaz ideologia racista. As raças, então, embora não existam num sentido biológico, existem na sociedade e pautam as atitudes racistas (Guimarães, 1999). O mito da democracia racial, ao negar uma realidade, criava uma dificuldade maior, a de ter de enfrenta-la e supera-la. Uma das suas consequências, segundo Florestan Fernandes (2008), é o dilema racial brasileiro, qual seja: o contraste entre o mito e a realidade de subalternização e opressão. A perpetuação do mito e do seu consequente dilema racial faz não só com que grupos mantenham suas estruturas de poder, mas também que, ao mesmo tempo, os negros, submetidos à dominação, fiquem propensos à impotência para impor sua vontade e corrigir a situação (Fernandes, 2008).

Convidado por Roger Bastide, Florestan Fernandes produziu um estudo revolucionário para a compreensão do Brasil. Seu trabalho trouxe uma nova visão das relações raciais oposta ao modelo então dominante de Gilberto Freyre, transfigurado no plano da ideologia nacional na noção de democracia racial (Soares; Braga; Costa, 2002). Ao estudar sobre como se deu a integração dos negros, pós-Abolição, na sociedade de classes, Fernandes mostrou que estes não conseguiram desfrutar de uma igualdade de condições para participar da sociedade capitalista emergente. Na realidade, passaram por um processo de pauperização e miséria social. Os mecanismos de dominação da época da escravidão permaneceram mesmo com o seu fim formal (Fernandes, 2008). As possibilidades de inclusão na nova sociedade eram esporádicas para os negros e negras.  Em sua quase totalidade, a sociedade de classes permanecia não igualitária e fechada àqueles cuja história é marcada por séculos de opressão. Além de relegados à margem e submetidos a um árduo processo de pauperização e miséria social, segundo Fernandes, os negros e negras não dispunham de meios materiais e morais para o ingresso na ordem competitiva (Fernandes, 2008).

Em 1979, Hasenbalg argumenta, ainda, que a integração subordinada dos negros criou uma situação de desvantagens permanentes, que o preconceito e a discriminação racial apenas tendiam a reforçar. Ou seja, ele afirma que a desigualdade racial coexiste e se alimenta da desigualdade social. A persistência histórica do racismo não deve, então, ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racial dominante (Hasenbalg, 1979).

Esse breve apanhado sobre as relações raciais no Brasil ajudará a iluminar também a nossa história da beleza negra. Ainda segundo Florestan Fernandes (2017), foi a população negra que reivindicou significados novos para o 13 de Maio de 1888. Primeiro, a data foi desmascarada, nas décadas de 1930 e 1940, como uma falácia social: a Abolição não passara de uma artimanha, pela qual os escravos sofreram a última espoliação. Decorrente dessa interpretação, a militância negra passou a defender que do próprio negro dependia uma “Segunda Abolição”. A ressignificação da data, reflexo da compulsão libertária coletiva dos negros, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. 20 de novembro, a data da morte desse grande líder quilombola, símbolo da resistência negra frente aos horrores da escravidão, é contraposta ao 13 de Maio. Esse novo olhar enxerga a liberdade não como uma dádiva, mas sim como uma conquista (Florestan, 2017). Segundo Gato (2018), Florestan Fernandes foi, além de pioneiro, bastante perspicaz na forma como percebeu a maneira através da qual as contestações do preconceito racial articuladas nos jornais da imprensa negra nas décadas de 1920 e 1930 construíram uma visão crítica sobre a história nacional condensada na utopia de uma Segunda Abolição (Gato, 2018).

Nesse momento, era preciso “reeducar a raça”. Com a voz dos negros endereçada aos negros, a ideia era subtrair-lhes os estereótipos consagrados pelos séculos anteriores: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça” e a hiperssexualidade. Concursos de beleza, então, foram promovidos por essa população a fim de, além de auxiliar na construção de um conceito de beleza negra, responder à imagem da mulata promíscua que surgira na escravidão (Braga, 2015).  Segundo Guimarães (2001), tratava-se de uma “reeducação da raça negra, no sentido de sua completa aculturação e distanciamento de suas origens africanas, a começar pela educação formal”. Havia um elemento educativo como componente primeiro na proposta da primeira imprensa negra (Guimarães, 2001, p. 91 apud Braga, 2015), já que era preciso lutar contra os estereótipos que eram justificados cientificamente pelo racismo científico já mencionado. Bastide e Fernandes (1959, p. 228-229 apud Gomes, 2008), ao examinar os artigos dos jornais dos líderes negros entre 1925 e 1937, em particular, o jornal A voz da Raça da associação A Frente Negra, em São Paulo, destacaram a presença de uma ambivalência de ideologias, o orgulho da cor e um sentimento de inferioridade que, segundo os autores, levava à imitação do branco e dos seus pontos de vista. Não era só classe. Essa ambivalência é resultante da tensão entre uma imagem estereotipada construída em um processo de dominação e a luta pela construção de uma autoimagem positiva (Gomes, 2008).

Os primeiros concursos de beleza negra promovidos para e pela população negra, então, surgem a fim de construir não só um conceito de beleza negra, mas, principalmente, uma resposta à imagem da “mulata promíscua”. O primeiro deles remonta a 1916. As mulheres eram, por exemplo, chamadas de “senhorinhas” a fim de trazer uma conotação de respeito. Nesse momento, a beleza negra não passa pelo corpo negro, mas pela sua moral. Sobre o concurso Miss Progresso (não há imagem da vencedora, mas há da vice e da quarta colocada), pode-se perceber já um critério de beleza claro nas fotografias estampadas: a preferência pelo cabelo alisado (Braga, 2015).

Apesar de as três primeiras décadas do século XX terem ficado marcadas pelos resquícios do período escravista, houve, em contraproposta, uma imprensa militante, pulverizada entre vários periódicos e que oferecia voz, visibilidade e espaços de sociabilidade aos negros. O que essa publicidade vendia era um ideal de beleza eugênico, historicamente construído e perpassado por relações de poder. Naquele contexto de romper com os estereótipos, o alisamento capilar também era uma maneira de ascender. Ou seja, a busca por uma inserção social passava pela estética, ainda que isso custasse uma profunda manipulação de seu corpo. A exemplo das publicações do Jornal Progresso – escrito por negros e para negros – nas quais já havia muitas propagandas de produtos e locais para alisamento capilar (por exemplo o “salão brasil”, “especialista em cabelos de pessoas de cor”). Esse momento constitui a normalização de um processo que, como foi mostrado, remonta à escravidão (Braga, 2015).

Importante frisar que não pretendo engessar um olhar sobre a estética negra que associe o alisamento unilateralmente à imitação da branquitude. Estudos mostram que alisar aparece, muitas vezes, como uma alternativa de ascensão social (Tyler, 1990 apud Banks 2000; GOMES, 2008).  A análise dessas experiências que reduzem tudo à imitação do padrão branco negligencia as implicações profundas e a trama complexa que envolvem a relação negro e cabelo na esfera da dominação, da cultura e da subjetividade. O alisamento, claro, deve ser contextualizado e questionado devido à violência estruturante do racismo. Ao mesmo tempo, também pode ser visto como integrante de um estilo de o negro usar o cabelo. O que quero dizer é que a discussão sobre a expressão estética negra não pode ser cristalizada.

A partir de 1931, a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro dariam continuidade a vários ideais. A Frente Negra Brasileira, fundada em setembro de 1931 tinha, dentre os seus militantes, o negro, dramaturgo, ator e ex-senador da república Abdias do Nascimento. Com núcleos em vários outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, a sua proposta fundamental era a educação dos negros (Munanga e Gomes, 2006).  Com o lema “congregar, educar, orientar”, tratava-se de um movimento de massa cujo principal objetivo era resgatar os negros da condição de exclusão. Os militantes da FNB defendiam que, através da educação, seria possível ajustar o comportamento negro, formatando-o num dado padrão de comportamento social e moral (Braga, 2015). Devido aos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político em 1936. Com o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, a FNB, que se caracterizava como partido político, é fechada. Raul Joviano do Amaral tentou dar continuidade à organização, fundando a União Negra Brasileira; a repressão do Estado Novo, no entanto, era muito acirrada. Seu jornal, A Voz da Raça, deixou de circular e, em 1938, a União Negra Brasileira deixa de existir (Munanga e Gomes, 2006).

Há uma ideia de que a Frente Negra teria sido uma organização conservadora, de direita. Há também críticas no sentido de que ela não se interessava por uma transformação mais profunda na ordem social e nas relações e comportamentos da população branca, limitando-se a afirmar a existência do racismo. Ou, ainda, a ideia segundo a qual a Frente nutria uma admiração pelo fascismo europeu, com alguns líderes monarquistas. Segundo o escritor Márcio Barbosa (1998), muito dessa visão sobre o caráter conservador da Frente Negra deve-se ao seu presidente, Arlindo Veiga dos Santos, um militante monarquista que realmente nutria simpatias pelo fascismo, prezando com muita determinação regras de disciplina e autoridade. Essa postura, no entanto, não refletia todo o grupo (Munanga e Gomes, 2006).

Após a ditadura do Estado Novo, há uma consciência internacional mais evoluída na militância negra. Em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN) surge no Rio de Janeiro. Fundado e dirigido por Abdias do Nascimento, o objetivo do TEN era abrir as portas das artes cênicas brasileiras para os atores e atrizes negros. O TEN foi responsável por lançar grandes atores e atrizes competentes, expressivos e talentosos. Alguns são mais conhecidos do grande público e outros são nomes cujo talento é reconhecido apenas dentro do circuito artístico e por pessoas da geração do TEN: Aguinaldo Camargo, Grande Otelo, Ruth de Souza, Haroldo Costa, Lea Garcia, Abdias do Nascimento, entre outros. Isso sem falar de um dos seus fundadores ter sido o grande poeta pernambucano Solano Trindade. O TEN foi responsável também pela publicação do jornal Quilombo, o qual retratou o ambiente político e cultural de mobilização antirracista no Brasil. Além de montar espetáculos teatrais, o grupo do Teatro Experimental do Negro promovia cursos de alfabetização.  O jornal Quilombo foi uma produção muito diferente dos outros jornais militantes que o antecederam. Talvez o mais importante motivo dessa diferença tenha sido a sua inserção e sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional (Munanga e Gomes, 2006).

Havia agora, portanto, o comprometimento com o movimento internacional na luta pela descolonização. Algumas das reportagens do Quilombo exemplificam essa preocupação, a exemplo de matérias sobre a “ku-klux-klan”. Junto à eclosão de movimentos raciais pelo mundo – e da cobertura que a imprensa negra brasileira fazia de tais movimentos – aconteceu, na sociedade brasileira, o surgimento de um discurso que, embalado pela ideia de democracia racial, acusava as organizações negras de propagar um “racismo às avessas” (Braga, 2015).

O TEN buscava o resgate da cultura negra de raiz africana e um dos modos que encontrou foi a promoção de concursos de beleza para mulheres negras que valorizasse seu próprio padrão estético: contra os concursos que só aceitavam mulheres brancas. Os concursos “Rainha das mulatas” e “Boneca de Pixe” não duraram muito; foram, entretanto, importantes pela introdução de toda uma discussão sobre a estética negra, que não apenas afirmava um conceito de beleza construído entre o corpo e a moral, como também criavam espaços para socializá-los (Braga, 2015). Vale lembrar que a primeira miss Brasil negra, Deise Nunes, só venceu em 1986, 32 anos depois do surgimento do concurso Miss Brasil. Em âmbito global, a primeira Miss Universo negra, Jannelle Commissiong, de Trinidad e Tobago, venceu em 1977 após 26 anos de surgimento do concurso.

Uma análise sobre como a beleza negra foi abordada pelos próprios movimentos negros no pós-Abolição foi importante, porque, no seu transcurso, foi possível enxergar as tensões que sempre estiveram presentes. Mesmo o “olhar dos negros sobre os negros” recaiu na dificuldade de romper com pressupostos racistas. Apesar de todo o mérito, é notória a falta de questionamento desses estereótipos e, em certa medida, a assunção de que, para melhorar as questões raciais, o caminho era a equiparação com os padrões brancos dominantes. Esse questionamento, no entanto, não tardou em acontecer. Eventos históricos importantes marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização.

“Say it loud: I’am black and I’m proud!”[2]

Em um âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Caracterizado como um movimento antirracista, anticolonial, religioso e afro-centrado, o Movimento Rastafari tirou sua inspiração dos escritos de Marcus Garvey, um importante nome da luta antirracista (embora ele nunca tenha se convertido à religião).  Usando dreadlocks e elogiando a pele negra e a beleza “natural”, o movimento foi um símbolo poderoso de liberdade dos padrões estéticos brancos (Barrett, 1977 apud Tate, 2007).  Nesse contexto, os dreadlocks implicavam um link simbólico entre sua aparência “natural” e a África, como uma maneira de reinterpretar a narrativa bíblica que identifica a Etiópia como “Zion” ou Terra Prometida. Apesar da conotação primeira ter sido religiosa, os dreads se popularizaram em grande escala – via, especialmente, a militância crescente do reggae. Os dreadlocks também abraçam a ideia do “natural” na maneira em que celebram a materialidade da textura do cabelo crespo, o ideal para ser “emaranhado” e transformado em dread (Mercer, 1987).

Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire nos anos 1930.  Principal movimento literário francófono, africano e afro-caribenho, a “negritude” foi protagonizada não apenas por Césaire, escritor e político francês nascido na Martinica em 1913, mas também por Léopold Senghor, um político e escritor senegalês que foi presidente do Senegal de 1960 a 1981 (Appiah, 1992).   Aqui, a invocação da raça ou a tentativa de estabelecer uma comunidade racial visava, primeiro, a criação de um vínculo e o surgimento de um lugar como base em resposta a uma longa história de sujeição. Nos poetas da negritude, a exaltação da “raça negra” é um imenso grito cuja função é salvar da degradação absoluta os indivíduos que haviam sido subjugados à insignificância. Para Mbembe (2018) essa invocação da raça nasce de um sentimento de perda (Mbembe, 2018).

Com o mesmo apelo à valorização das raízes africanas, esses movimentos redirecionaram a consciência negra no Caribe (Gomes, 2008). Marcus Garvey também foi importante por participar com alguns outros seguidores e artistas do “Harlem Renaissance”, movimento que, dentre outros aspectos, clamava que os negros parassem de alisar o cabelo e abraçassem a sua beleza. Em 1920, o Harlem Renaissance defendia a repatriação da África e uma geração de poetas, escritores e dançarinos abraçaram tudo aquilo que tivesse uma conotação africana a fim de renovar um novo senso estético coletivo para a comunidade afro-americana dos Estados Unidos (Craig, 1997 apud Banks, 2000).

Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. James Brown perfeitamente expressou esse momento no seu hit de 1968: “say it loud – i’m black and i’m proud” (“Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!”). Naquele momento, as pessoas que não usassem seu cabelo como um afro – ou porque a textura não permitia, ou simplesmente porque preferiam alisar – eram consideradas “uma contradição, uma mentira, uma piada” (Gayles, 1993). O “black is beautiful” foi um movimento cultural e comportamental norte-americano dos anos 1960 que reposicionava a ordem simbólica dominante, que tratava as características físicas associadas aos negros como esteticamente inferiores. Para Mercer (1987), a radicalidade do slogan “black is beautiful” está na função do “IS”, como marcando uma afirmação ontológica da beleza negra, indo de encontro à negação do Song of Songs que a Europa reescreveu (na versão da Bíblia de King James) como “I am black but beautiful”.

Embora as pessoas associem muito fortemente o “black is beautiful” exclusivamente ao movimento norte-americano, as suas raízes, na verdade, remontam à luta antirracista na África do Sul. No violento contexto do apartheid sul-africano, um grupo de estudantes decidiu se organizar politicamente, debruçando-se sobre os problemas históricos do país e construindo um conceito libertário intitulado Consciência Negra. O conceito de Consciência Negra teve como principal protagonista Steve Biko, assassinado pelo regime do Apartheid. O conjunto de ideias do movimento extrapolou as fronteiras sul-africanas e influenciou a organização dos negros em diversos países, inclusive no Brasil (Gomes, 2008). Assim como os Panteras Negras nos EUA, o movimento Consciência Negra na África do Sul, nas décadas de 60 e 70, ajudou não só a pensar estratégias políticas de combate ao racismo como também formulou um conjunto de ideias que inspiraram o ativismo de jovens militantes negros em outros países.  A valorização da estética negra esteve fortemente presente nessa militância, já que suas reflexões eram sobre os condicionamentos mais profundos do racismo. É assim que surge o slogan “negro é lindo” (“black is beautiful”). Steve Biko afirma que a importância desse slogan reside na maneira como desafia uma crença na inferioridade negra que é, via de regra, assimilada pelos próprios negros, levando-os a uma negação de si (Silva, 2001, p. 34-37 apud Gomes, 2008).

Em 1966, no contexto de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, surgiu o movimento chamado “Black Power”. O país estava vivendo uma mudança significativa na sua luta por justiça racial e a década de 1960 assistiu a urgência do desmantelamento legal de uma sociedade segregada. Com a ênfase na história dos negros, da África e da escravidão, o movimento Black Power trouxe também um ímpeto pela mudança comportamental e estética. Nesse contexto, o cabelo Afro ocupou papel central, além da maneira de vestir, o uso dos “dashikis” e até a mudança de nomes para nomes africanos. Em síntese, além da defesa da necessidade de uma luta organizada, o movimento acarretou uma mudança em direção às raízes africanas (Ture e Hamilton, 1967).

Parte importante da agenda da luta antirracista norte-americana, o movimento Black Power tinha como central o conceito de autodefinição. Para esses militantes, a autodefinição era um componente essencial para a “revolução das mentes”: pré-requisito para uma mudança mais ampla.  Antes mesmo da ascensão econômica, então, os negros precisariam definir a si mesmos positivamente, porque, aprisionados na vergonha de si, seriam incapazes de alcançar a liberdade. Por isso, o uso das distinções físicas e culturais foi uma arma na luta pela libertação. Eles proclamaram que os negros são, de fato, lindos. A valorização da herança africana e da cultura negra pareceu essencial. Aqui, especialmente, fica óbvio que o Black Power buscava mais do que a garantia de direitos civis. Tratava-se um conceito cultural revolucionário que demandava importantes mudanças nos padrões da cultura norte-americana hegemônica (Deburg, 1992).

O Black Power colocou o conceito de “negro” de cabeça para baixo, despindo-o de suas conotações negativas em discursos racializados, transformando-o, assim, em uma expressão de uma identidade afirmativa de grupo. Esse movimento estimulou os negros norte-americanos a construírem a “comunidade negra” não como uma questão de geografia, mas antes em termos da diáspora africana global. “Negro” se tornou uma cor política. A ideologia do Black Power não reivindicava apenas um passado ancestral pré-determinado, mas, no próprio processo, também construía uma versão particular dessa herança.  Já que os processos culturais são dinâmicos e o processo de reivindicação é também mediado, o termo “negro” não precisa ser construído em termos essencialistas, mas pode ter diferentes significados políticos e culturais em contextos diferentes (Brah, 2006).

A radicalização em torno do uso do cabelo crespo “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. O uso do cabelo no estilo Afro passa a ser privilegiado, numa releitura do que era enfatizado pelos ativistas do Movimento de Consciência Negra sul-africano. Todos esses movimentos articulavam muito fortemente estética e política (Gomes, 2008). Embora o Afro tenha sido claramente mais poderoso símbolo estético das políticas do Black Power e do Black is Beautiful, associá-lo exclusivamente a esses movimentos recai numa velha narrativa masculinista. Muitos pesquisadores cometem esse equívoco; consequentemente, a associação do afro com a militância pós-1960 tornou-se “senso comum” no mundo dos acadêmicos que estudam sobre cabelo. Kelley (1997), no entanto, atenta para os perigos dessa abordagem. A autora considera, então, os episódios mais antigos de mulheres negras intelectuais e, também, os esforços dos cabelereiros profissionais especializados em cabelo crespo. Esse é um capítulo pouco explorado da história sociopolítica do cabelo crespo.

Com raízes nos círculos burgueses de alta moda no fim dos anos 1950, o Afro foi visto por negros e brancos de elite como um símbolo de “exotismo feminino”. Entre alguns círculos, ou pela busca por um cabelo saudável ou pelo desejo de expressar solidariedade para com os países africanos que se tornaram independentes, o Afro ganhou destaque como algo fashion (Kelley, 1997). Nesse âmbito, chegou a ser celebrado mesmo nos círculos burgueses de maioria branca. Ainda mais importante, é preciso enfatizar que, logo no início da década de 1960 (antes do “Black Power”), mulheres negras como Odetta, Abbey Lincoln e Nina Simone passaram a usar o cabelo sem alisamento (Jones and Jones, 1971 apud Kelley, 1997). Ou seja, mulheres negras também foram precursoras do Afro como estilo político.

Com os movimentos “Black is Beautiful” e, sobretudo, “Black Power”, o Afro passou a ser associado à rebelião.  Tornou-se, assim, símbolo da masculinidade negra e foi essencial para o surgimento da imagem do militante, do “virulento homem negro”. Essa masculinização do Afro permaneceu mesmo após os movimentos e contribuiu para um retrocesso contra as mulheres negras com cabelo natural. Mesmo tendo sido uma mulher negra, Angela Davis, um dos grandes nomes do movimento “black power”, o uso do cabelo afro por ela também recaiu nos problemas dessa masculinização – como será melhor explorado adiante. Por isso que, para as mulheres negras, mais do que para os homens negros, assumir o cabelo crespo “natural” tem consequências diferentes. Mais do que a valorização da negritude ou da descendência africana, significa uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina (Kelley, 1997).

No fim dos anos 1960, em meio a esses movimentos que ressignificaram a estética negra norte-americana, uma mulher negra teve destaque particular e foi diretamente associada ao cabelo Afro (Banks, 2000). Nascida em 1944, em Birmingham, um dos principais centros dos conflitos raciais dos EUA, Angela Davis é filósofa e um dos maiores nomes do feminismo negro. Através da circulação da sua foto como uma das pessoas mais procuradas pelo FBI, tornou-se mundialmente famosa. Membro dos Panteras Negras, Davis foi acusada injustamente de crimes e chegou até a ser presa, o que despertou a campanha Libertem Angela Davis” (“Free Angela Davis”), que mobilizou ativistas e intelectuais do mundo inteiro. O período em que permaneceu injustamente presa serviu para fortalecer o seu engajamento pela abolição do sistema carcerário.

Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Fonte: https://www.geledes.org.br/angela-davis/

O “Black Panther Party” (Partido dos Panteras Negras), do qual Angela Davis era membro, pode ter parte de sua atuação resumida no seu próprio slogan: “for self defense” (pela autodefesa). Contra a ideia de uma militância exclusivamente pacífica, os Panteras Negras surgiram como herdeiros políticos de Malcom X, assassinado em 1965, e aderiram à tática de guerrilha urbana contra a violência perpetrada contra a população negra – sobretudo a violência policial. Nesse momento, os Estados Unidos viviam forte tensão, conflito racial e a luta dos Movimentos Pelos Direitos Civis, cuja principal expressão foi Martin Luther King. A militância do “Black Panther Party” também consistiu na composição e distribuição de livros de bolso sobre o Direito a fim de introduzir a população negra no conhecimento básico de seus direitos legais. Assim, com armas e livros nas mãos, os panteras negras deixaram claro para a polícia que os negros não seriam mais vítimas, mas sim sujeitos conhecedores de seus direitos perante a lei (Deburg, 1992).

Como há sempre tensões envolvidas quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos, esses movimentos não ficaram isentos de contradições e ambivalências. Aliás, em quase todos os trabalhos produzidos sobre os significados do cabelo para negras e negros, a ambivalência é uma das categorias centrais. Em certa medida, o “Black Power” e o “Black is Beautiful” normalizaram a beleza negra racializada, criaram uma ideia de “beleza negra natural” (Tate, 2007). Por isso que, em “The making of a permanet Afro”, Gloria Wade Gayles (1993) discute como o Movimento pelos Direitos Civis influenciou a decisão dela de usar um Afro. Naquele contexto, o cabelo alisado significava uma contradição em relação à afirmação da negritude.  Até hoje, essas ideias culturais sobre o que significa ser negro estão presentes, por exemplo, na dificuldade em enxergar força e empoderamento em uma mulher negra de cabelo alisado (Banks, 2000).

Mercer (1987) problematiza o notório apelo à naturalidade e à originalidade africana presente tanto com o aparecimento do estilo de cabelo rastafári, quanto com o “afro”, nos EUA, onde “Afro” sugere um link com a África através do nome e de sua associação com um discurso político radical.  Ambos invocam a “natureza” para inscrever “África” como símbolo de oposição política e pessoal à hegemonia do Ocidente. A associação também é parte de um processo contra-hegemônico que ajudou a redefinir os negros norte-americanos não como negros, mas como afro-americanos.  Acontece que nenhum cabelo é apenas “natural”, mas sempre marcado ou remarcado por convenções sociais e intervenções simbólicas.  A ideia do cabelo “natural” e o consequente link entre “África” e “natureza” implicam uma oposição a qualquer técnica artificial, como se qualquer elemento de artificialidade fosse imitação da Europa, identificação com os ideais estéticos brancos. Ou seja, essa “estética do natural” é utilizada a fim de se opor a qualquer artifício como signo de influência eurocêntrica.  Esses estilos, no entanto, nunca foram apenas naturais: foram estilisticamente cultivados e politicamente construídos em um momento histórico particular como parte de uma estratégia de contestação contra o poder da branquitude. Apesar de radical e importante, essa tática de inversão de categorias foi limitada. Uma razão é que o “natural” invocado não é um termo neutro; ao contrário, como já foi dito, é uma ideia ideologicamente criada segundo a lógica binária e dualista da cultura Europeia. A associação da África à natureza foi fundamental para a hegemonia do ocidente (Mercer, 1987).

Outro exemplo é o já mencionado “Harlem Renaissance”. Um de seus espetáculos, chamado “New Negro”, invocava uma África mitológica, imaginária de nobre selvageria e primitiva graça, o que nada mais é que a reescrita da mitologia romântica criada pelo Iluminismo Europeu (Mercer, 1987). Mbembe (2014) também tece críticas semelhantes aos poetas da Negritude, porque, para eles, o “negro” passa a ser quase uma essência, uma “arma miraculosa” com que todos os negros da diáspora se identificariam.  Nesse movimento, esses poetas estariam endossando a narrativa que existe por trás da ideia racializada do “negro”.  Essa tática contra-hegemônica de inversão se apropriou de uma versão romântica particular da natureza como um meio de empoderar os sujeitos negros; por permanecer na lógica binária dualista, o momento de ruptura, no entanto, foi delimitado pelo fato de que foi apenas uma África imaginária que foi colocada em jogo (Mercer, 1987).

A reivindicação tanto de uma africanidade como de uma americanidade fez parte dos supracitados movimentos de ressignificação da estética negra.  Segundo Mbembe (2014) isso aconteceu como reflexo da “dupla consciência” da maioria dos pensadores negros da época. Mercer (1987) defende, ainda, que não há nada de particularmente africano nos dreads e no Afro: eles são estilos especificamente diaspóricos. Em África, eles não significam africanidade. Ao contrário, eles podem implicar uma identificação com o “primeiro mundo”, como uma imagem metropolitana de negritude, embora esses estilos expressem fortemente um desejo de “retorno às raízes”. Essa associação com a “naturalidade” e, consequentemente, com a natureza tem muito mais a ver com a Europa do que com a África (Mercer, 1987).  Longe de negar a grande importância desses movimentos, é preciso sempre ter atenção e cuidado para que a afirmação da diferença não recaia na inversão do mesmo. Sendo o racismo estruturante na sociedade, a linha entre a sua superação e manutenção é muito tênue. A atenção aos limites alarga a compreensão das possibilidades de tais processos. Apesar desse olhar cuidadoso, o mais evidente e importante são os méritos de movimentos que reivindicam algo tão fundamental para a relação das pessoas consigo mesmas que é a beleza.

Infelizmente, esses estilos de cabelo também foram, em certa medida, despolitizados e absorvidos pela moda. Uma vez comercializado no espaço do mercado, o Afro perdeu sua significação específica como um enunciado político-cultural negro.  Dissociado de seus contextos políticos originais, tornou-se, em alguns espaços, apenas um acessório fashion. Angela Davis discutiu as ambivalências de ser reduzida a um penteado e todas as sutis implicações da sua associação ao Afro.

Ela relata o episódio em que uma mulher advertiu um homem que não a reconheceu: “Você não sabe quem é Angela Davis? Você deveria se envergonhar!”. Ao que ele respondeu: “Oh! Angela Davis! O Afro!”. Essa associação fez com que ela se sentisse humilhada ao perceber que, uma única geração após os eventos que a construíram como uma pessoa pública, ela era lembrada apenas como um “penteado”. Isso reduziu toda uma política de libertação ao universo fashion, além de demonstrar a fragilidade e a mutabilidade das imagens históricas, particularmente as associadas à história afro-americana (Davis, 1994).

A associação do Afro à moda, a um glamour revolucionário, fez Davis também relembrar um artigo da New York Magazine que a listou como uma das quinze maiores influenciadoras fashion do último século. Como, após a acusação de assassinato, sequestro e conspiração, a ampla circulação de várias fotografias dela tiradas por jornalistas disfarçados de policiais e por ativistas, sua imagem é reduzida ao universo fashion?  Ela se sentiu violada (Davis, 1994). Como já mencionei, ela viveu um verdadeiro terror quando o FBI a colocou na lista dos dez mais procurados criminosos do país. Foragida, tentou mudar completamente sua aparência a fim de não parecer mais perigosa. Esse aspecto, na minha opinião, reitera o quanto o cabelo crespo é colocado fora das noções de feminilidade. Assumir o cabelo “natural” tem implicações diferentes para mulheres e homens negros. Angela Davis, para romper com a imagem de perigo que foi atrelada a ela, usou uma peruca com cabelo liso, longos cílios, sombras, blush etc. tudo que ela achou que poderia remeter ao glamour feminino. Essa pareceu uma maneira de anular a probabilidade de ser percebida como uma revolucionária perigosa. O que a impactou, então, foi que, de repente, essa imagem “revolucionária” e que ela tentou camuflar com artifícios de feminilidade pudesse se transformar, uma geração depois, em glamour e nostalgia (Davis, 1994).

A ampla divulgação de sua foto na lista dos procurados do FBI, na qual ela aparece com o cabelo Afro, teve fortes consequências na sua vida e na de outras mulheres negras, porque implicou na criação de imagens genéricas das mulheres negras com cabelo “natural”. Ela ouviu que talvez centenas ou milhares de mulheres que usavam o mesmo tipo de cabelo foram assediadas e até presas pela polícia, pelo FBI ou por agentes de imigração durante o tempo em que ela esteve foragida. A sua fotografia identificou um vasto número de corpos femininos negros com estilo black power como alvos de repressão. Esse é o passado secreto que existe por trás da associação do seu nome ao Afro. A transformação deste em uma “nostalgia fashion” apaga as consequências políticas que existiram não só na vida de Angela Davis, mas também na de muitas outras mulheres negras. Segundo ela, “nós precisamos encontrar maneiras de incorporar o Afro na memória política e social, em vez de usá-lo como algo que encoraja a atrofia de tamanha memória” (Davis, 1994). Mercer (1987) sugere que o fato de o Afro ser neutralizado e incorporado tão rapidamente reflete que a sua intervenção estética opera em um terreno já mapeado pelos códigos simbólicos da cultura branca dominante.

Apesar de tanto homens negros quanto mulheres negras rejeitarem alisar o cabelo no contexto desses movimentos de ressignificação da estética negra, houve diferentes implicações para as mulheres negras (Craig, 1997; Kelley 1997).  Para elas, assumir o cabelo “natural” não é só uma valorização da negritude ou da descendência africana, mas uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina que inclusive muitos homens negros reiteram. Marcus Garvey, cuja importância nesse contexto histórico já foi mencionada, foi reportado como fascinado pelo longo cabelo da sua esposa. Em suas memórias, a segunda esposa de Garvey, Amy Jacques Garvey que, diferente se sua primeira esposa, tinha a pele mais clara e o cabelo longo ondulado escreveu que ele era fascinado pelo comprimento e pela textura do seu cabelo, que ele considerava suave (Garvey 1963:186 apud Rosado, 2007). Enquanto, em público, Marcus Garvey defendia o orgulho racial negro e a nova definição de beleza negra, ele era privadamente fascinado pelo longo cabelo da esposa. A própria propensão de Garvey indica que a batalha em torno do cabelo é ao mesmo tempo pública e extremamente privada (Rosado, 2007).

A partir desse apanhado histórico dos movimentos de ressignificação da estética negra, podemos compreender melhor como seus reflexos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um movimento crescente no sentido de também ressignificar essas características físicas, destacando-as e valorizando-as. A redefinição do lugar estético do cabelo crespo ocupa um lugar fundamental, como mostra a etnografia de Gomes (2002) em torno dos chamados salões de beleza étnicos na cidade de Belo Horizonte. Nilma Lino Gomes desenvolveu uma pesquisa etnográfica realizada em quatro salões étnicos da cidade de Belo Horizonte a fim de compreender o significado social do cabelo e do corpo e os sentidos a eles atribuídos por indivíduos negros. Evidente que a importância do cabelo e do corpo não se limita aos salões. O contato com eles, no entanto, levou-a a refletir que ser negro no Brasil está relacionado com uma dimensão estética, com um corpo; daí o seu potencial enquanto resistência política.  Na sua pesquisa, o cabelo do(a) negro(a) é considerado não de maneira isolada, mas dentro do contexto das relações raciais construídas na sociedade brasileira. A autora trabalha com quem assumiu o cabelo crespo através de uma revalorização que extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico-racial a que pertence.

Apesar de os salões populares que atendem à clientela negra serem uma realidade no Brasil há muitos anos, não havia uma ênfase na afirmação racial ou na luta política. Os espaços de beleza considerados étnicos surgem junto com a efervescência dos supracitados movimentos sociais, no final da década de 1970, e fortalecem-se nos anos 1980 e nos anos 1990. Esses espaços são criados não somente para o tratamento dos cabelos crespos, mas, principalmente, para a construção de um discurso afirmativo de negritude (Santos, 2000). O cabelo crespo passa por um processo de revalorização, o que não deixa de apresentar contradições e tensões próprias do processo identitário. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que pertence. Por isso que o entendimento do significado e dos sentidos do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e a desvelar as nuances do nosso sistema de classificação racial (Gomes, 2008). Além dos salões étnicos, outro bom indicador das mudanças ocorridas nesta área também é fornecido pela imprensa. O lançamento da revista Raça Brasil, em setembro de 1996, é um marco.

As vendas de Raça Brasil contrariaram três dogmas do mercado editorial: o de que os negros não têm poder de compra de produtos supérfluos; o de que revistas que trazem negros na capa não vendem e o de que o negro brasileiro não tem orgulho da raça… (Jornal da Tarde, 13/10/96 apud Figueiredo, 2002).

O sucesso da revista, constatado pela tiragem expressiva de 300 mil exemplares já no primeiro número, foi importante também pelo estímulo que prestou para debates acerca da existência de produções específicas para o consumidor negro. Ficou evidente a existência de uma classe média negra e, consequentemente, de um poderoso nicho de mercado. Não por acaso, em todos os números, invariavelmente, há matérias sobre cabelo (Mizrahi, 2015).

Marcado pelo mito da democracia racial, o Brasil reproduz um racismo ambíguo: real, mas mascarado pela ideia falaciosa de harmonia racial. Nesse cenário, a ode à mestiçagem tem papel central. Como já foi mencionado, tal mito prestou e ainda presta um grande desfavor à população negra brasileira. Esse discurso também perpassa a ressignificação da estética negra: o maior salão para cabelos crespos no Brasil é justamente o que esvazia a questão racial.

Com 39 filiais pelo Brasil e uma recém-inaugurada (em 2017) em Nova York, o Instituto Beleza Natural tem como principal serviço a transformação de cabelos crespos em cabelos cacheados. Suas criadoras são duas mulheres negras que, a partir da própria experiência com seus cabelos, impulsionaram um novo tipo de tratamento capilar. Zica Assis foi babá e faxineira e, embora amasse seu cabelo black power, foi obrigada a alisá-lo para conseguir um emprego. Inconformada, ela se debruçou no estudo para se tornar cabelereira e passou 10 anos pesquisando uma fórmula para tratar seus cabelos sem perder a originalidade do fio. Nesse processo de estudo árduo sobre cabelos, ela se tornou uma expert em fios crespos, cacheados e ondulados. Em 2013, a revista americana Forbes incluiu Zica na lista das 10 mulheres mais poderosas do Brasil. Leila Velez também partiu da sua experiência situada de mulher cacheada e de origem humilde (trabalhou no McDonald’s e, ainda aos 16, foi promovida a gerente). Ela desenvolveu o conceito de uma experiência única para as clientes e o compromisso com preços acessíveis e resultados verdadeiros. Em 2014, Leila Velez foi escolhida uma das Young Global Leaders pelo Fórum Econômico Mundial de Davos[3].

O Instituto Beleza Natural é a maior rede de salões voltada para o tratamento de cabelos crespos no Brasil e, segundo Cruz e Figueiredo (2015), o seu sucesso está relacionado aos sentidos de uma identidade brasileira com base nas noções de morenidade. As autoras defendem ainda que um dos fatores que contribuem para o sucesso do salão é exatamente o silenciamento da raça e a emergência da identidade cacheada, que parece estar em perfeita consonância com o discurso da identidade nacional. No Instituto Beleza Natural, há uma recusa ao cabelo alisado, no sentido de torná-lo liso, mas há, igualmente, uma recusa ao cabelo crespo, considerado sem balanço. Com o uso de produtos químicos, o que para a clientela dos salões étnicos pode ser visto como negação da raça, o Instituto Beleza Natural entrelaça inserção social, afirmação de traços mestiços e autoestima (Cruz e Figueiredo, 2015).

Transição capilar: um novo capítulo

Infelizmente, não caberá, no escopo deste artigo, discorrer sobre esse novo momento na “história sociopolítica do cabelo crespo”. Vale dizer, pelo menos, que está, atualmente, em evidência um novo capítulo na história da ressignificação da estética negra. Fenômeno transnacional, articulado, principalmente, via internet, a transição capilar vem sendo vivenciada e compartilhada por milhares de mulheres negras no Brasil e em outros países. Esse processo consiste na ressignificação de cabelos que eram quimicamente alisados e no retorno ao cabelo natural. Para se livrar da química, é necessário esperar o crescimento de um cabelo totalmente novo, o que acarreta, por exemplo, o “problema das duas texturas”, qual seja: o contraste entre a parte alisada e o cabelo novo que cresce na raiz. Uma das partes mais importantes é, justamente, o corte do cabelo quimicamente tratado; muitas mulheres, inclusive, não esperam muito o crescimento do cabelo natural e optam pelo BC (“big chop” ou grande corte, em português), o que significa raspar a cabeça ou cortar o cabelo bem curto. Esse processo é muito difícil e marca profundamente a vida dessas mulheres.

Já que o enxergo como um capítulo de uma longa história, o movimento pela transição capilar apresenta continuidades em relação aos antigos movimentos aqui trabalhados (assim como no “black is beautiful”, por exemplo, essas mulheres estão reivindicando a beleza negra com ênfase na aceitação do cabelo “natural”). Apesar dos pontos em comum, o boom pela transição tem suas especificidades.  Por exemplo, podemos associá-lo a dinâmicas do capitalismo neoliberal cuja tendência é uma maior individualização e consequente fragmentação das pautas políticas, bem como da identidade racial (GOMES, 2008). Autoras como Ingrid Banks (2000) e Ashley Dunn (2015) também discorreram sobre a mudança existente na nova gramática social do uso do cabelo crespo e atrelaram o ressurgimento da importância do cabelo a partir da década de 1990 ao crescimento do individualismo. Defendo que, apesar dessa associação, a transição capilar, acarreta, via de regra, o reconhecimento de uma identidade negra antes negligenciada. É um processo que vai muito além do cabelo e implica a negociação de identidades complexas, sobretudo em um país que vive sob a égide de um racismo ambíguo.

Conclusão

Longe de encerrar qualquer debate, busquei iluminar uma discussão cara no âmbito das relações raciais: a importância da estética negra na luta política antirracista. A negação da beleza negra remete ao período escravocrata e o cabelo crespo foi e continua sendo, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude.  A maneira como a sociedade naturalizou um discurso que taxa o cabelo crespo de “cabelo ruim” mostra a arbitrariedade de uma faceta do racismo cujas marcas são profundas na vida das pessoas negras. Compreender como se deu a construção desse discurso é fundamental para desmantelar o projeto histórico de hegemonia racial dos brancos.


* Anita Maria Pequeno Soares é formada com dupla-titulação em Ciências Sociais pela UFPE e em Sociologia pela Universität Hamburg. Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e, atualmente, doutoranda no mesmo programa.

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Notas

[1] As fontes diferem em alguns anos em relação às datas de seu nascimento e morte.

[2] “Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!” (tradução minha)

[3] Fonte: http://www.belezanatural.com.br.