Ano XVII 01
1º semestre de 2022
poesia
Tempo de leitura estimado: 3 minutos

[O AMOR ─ CINCO IMAGENS]

a primeira imagem do amor veio quando vi minha irmã dormindo

a boca inchada de sono, entreaberta

e o ar através. a ideia de uma ferida que não cicatriza

.

a segunda imagem do amor, aprendi-a com uma planta específica. o artigo falava de certa flor

que repele o toque, e pensei nela entranhando-se, de modo a compor no movimento mesmo

uma nova ordem de vísceras

.

a terceira imagem do amor veio da boca da mãe

melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto dormir

com a cozinha suja

não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora na lâmina da faca pode chamá-los a entrar e

comer

essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas

só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar, fantasmáticos

mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas, compartilhando

o mesmo método na busca

de um fio de vida

.

a quarta imagem do amor, quando me percebi no hábito de erguer corpos débeis à luz:

no café, um plano de água e sal diante dos olhos ─ a cream cracker vazada, prismada pelo

amanhecer

.

a quinta imagem do amor

quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos quinze anos

o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e entre elas ramos

azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu diante do espelho

e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo, um pouco

acima dos seios, a trama de tentáculos

(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam “imortal”)


* Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Publicou A mulher submersa (poesia), seu primeiro livro, pela Editora Urutau. Em 2021, A mulher submersa recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Seu novo livro, Sal, tem publicação prevista para o começo do segundo semestre de 2022, pela Assírio & Alvim.