a primeira imagem do amor veio quando vi minha irmã dormindo
a boca inchada de sono, entreaberta
e o ar através. a ideia de uma ferida que não cicatriza
.
a segunda imagem do amor, aprendi-a com uma planta específica. o artigo falava de certa flor
que repele o toque, e pensei nela entranhando-se, de modo a compor no movimento mesmo
uma nova ordem de vísceras
.
a terceira imagem do amor veio da boca da mãe
melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto dormir
com a cozinha suja
não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora na lâmina da faca pode chamá-los a entrar e
comer
essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas
só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar, fantasmáticos
mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas, compartilhando
o mesmo método na busca
de um fio de vida
.
a quarta imagem do amor, quando me percebi no hábito de erguer corpos débeis à luz:
no café, um plano de água e sal diante dos olhos ─ a cream cracker vazada, prismada pelo
amanhecer
.
a quinta imagem do amor
quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos quinze anos
o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e entre elas ramos
azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu diante do espelho
e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo, um pouco
acima dos seios, a trama de tentáculos
(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam “imortal”)
* Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Publicou A mulher submersa (poesia), seu primeiro livro, pela Editora Urutau. Em 2021, A mulher submersa recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Seu novo livro, Sal, tem publicação prevista para o começo do segundo semestre de 2022, pela Assírio & Alvim.