resenha
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O DIREITO À DÚVIDA: SOBRE PRÉ-HISTÓRIA, DE PALOMA VIDAL

O livro mais recente de Paloma Vidal, Pré-história (2020), conta em fragmentos o relacionamento de um homem e uma mulher, do encontro inicial – não o primeiro, mas o mais marcante na memória da narradora – até o afastamento definitivo. Essa história, porém, é contida entre duas declarações de intenção que põem para funcionar a obra, uma no começo e outra no final do romance. A primeira é: “Este livro é a sombra de um outro que eu queria escrever para te ferir”, que lemos num fragmento em itálico (o único italicizado) que explica que a narradora desistiu de escrever um livro para escrever outro (Vidal, 2020, p. 12). Há, assim, um livro desejado e um livro possível; este é o que lemos, aquele podemos apenas intuir. Na última página antes dos agradecimentos, lemos a outra declaração de intenções: “Ninguém pode terminar por mim” (idem, p. 120), explica a narradora, que deve então escolher como fechar o romance. Esse gesto narrativo – declarar que estamos lendo algo escrito sobre a sombra de um livro ausente, um livro desejado, e que esse livro possível termina porque, afinal, todo livro precisa terminar – parece indicar um pathos que distingue o romance dentro da cena contemporânea. Este é um romance sobre a impossibilidade de afirmar – impossibilidade de escrever o que se deseja, de se chegar ao fim da história –, impossibilidade sobre a qual ergue-se essa obra literária.

A pré-história (prelúdio de uma história que não é contada) começa com o encontro da narradora, filha de um casal de psicanalistas argentinos radicados no Brasil, com um adolescente de 13 anos que usa uma estrela do PT. Esse marco mítico do relacionamento ocorre em agosto de 1989, antes do primeiro turno das eleições presidenciais que levariam Fernando Collor de Mello à presidência. Em fragmentos curtos, dirigidos a um “você” que identificamos com o homem que um dia foi o adolescente com o broche de estrela, ficamos sabendo de alguns detalhes do relacionamento de três décadas do casal: um encontro na praia, um beijo, um tempo de distância, o reencontro, o namoro, o filho que tiveram, os interesses em comum, desentendimentos e a separação, quando ela percebe que a sensibilidade dele “em algum momento deixou de estar onde eu a esperava” (idem, 66). Deixou de ser aquela imaginada por ela a partir da figura do jovem com a estrela do PT. Esse momento parece ocorrer perto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, embora a narradora apresente indícios anteriores de não comunicação.

 

Capa de Silvia Nastari (Divulgação)
Capa de Silvia Nastari (Divulgação)

 

O romance, portanto, é a história de um relacionamento, narrada pela mulher e direcionada ao homem. Os fragmentos curtos narram cenas dessa relação ou refletem sobre ela, divagam sobre a história (do Brasil, da Argentina e da família da narradora), sobre as indecisões da escrita e sobre as incertezas das identidades de uma família que veio para o Rio de Janeiro fugindo da ditadura argentina. Num efeito curioso, essa estrutura em fragmentos, que acentua a impossibilidade de escrever a história de um relacionamento que se desfaz na política (talvez mais do que “por causa da política”), produz uma espécie de solidão, como se a narradora escrevesse sobre si mesma e para si mesma, apesar de a história (ou pré-história de uma história que não está no livro) falar de um presente que podemos chamar de concreto e apesar do livro ser endereçado a um “você”.

Muitos dos elementos que encontramos no romance já haviam sido explorados pela autora em contos (de A duas mãos, de 2003, e Mais ao sul, de 2008), poemas e romances (como em Algum lugar, de 2009, e Mar azul, de 2012): o jogo com a autobiografia e a ficcionalização do eu; o fragmento; a identidade nacional e os vestígios das história nacional (especialmente traumática nos países latino-americanos que passaram por ditaduras) nas histórias de vida; e os relacionamentos familiares e amorosos do ponto de vista da mulher. Aqui, no entanto, eles são direcionados mais claramente para a política do que em seus livros anteriores, algo que tem sido uma tendência da ficção contemporânea (sobre isso, ver Bandeira de Melo, 2020). Afinal, o “tema” do livro – a maneira como as tensões políticas do presente produzem cisões ideológicas onde antes parecia haver harmonia – é quase o mesmo de dois romances publicados no mesmo ano do livro de Paloma Vidal, Solução de dois Estados, de Michel Laub, e A tensão superficial do tempo, de Cristovão Tezza. O interessante de Pré-história é que, apesar de tocar nessas questões contemporâneas, ele parece insistir em algo que chamo aqui de “direito à dúvida”, que produz um tipo de literatura que tira sua potência da negatividade, isto é, daquilo que o romance não consegue falar a respeito do presente.

Isso se dá principalmente pela estratégia formal, começando pela moldura: as duas declarações de intenção que anunciam o início e o fim da obra. Outro elemento que conforma essa estratégia são as repetições, espalhadas pelo texto, de frases e palavras em torno de um tema principal, enunciado logo na abertura em itálico do romance: o que é simples e o que é complexo?; as coisas são complexas ou nós as complicamos? É como se essa dúvida (a narradora se pergunta se estaria complicando as coisas, como “você”, o destinatário, costumava acusá-la de fazer) se projetasse na estrutura do livro, coalhado de tempos verbais ou advérbios que significam indecisão (“É o que me fez escrever ‘talvez’ 14 vezes até agora”, encontramos na página 32). Essas estratégias parecem marcar um desejo de fugir da assertividade, de neutralizar “a natureza assertiva da língua”, como sugeriu Roland Barthes (2003, p. 90), isto é, evitar o simples recorrendo à simplicidade de uma pergunta constante: foi assim mesmo que aconteceu? Essas dúvidas são reforçadas por reflexões sobre a própria escrita, como quando a narradora explica escolhas (“Volto às frases curtas. Uma de cada vez. São como passos”, diz na página 47), e pela deriva entre relato (pretensamente autobiográfico) e ficção (“As palavras não me dizem mais nada e eu começo a inventar”, lemos na página 36).

São esses os elementos que minam qualquer tentativa do romance de dar uma interpretação fixa do presente (do esgarçamento do tecido social pela radicalização política), ao mesmo tempo que aceita o desafio de comentar o presente. É dessa impossibilidade, transformada em forma, que o romance tira seu efeito: a história daquela mulher e daquele homem termina no presente porque houve uma pré-história que os separou, mas contar essa história – encontrar sua origem pré-histórica – é um ato desde o princípio fadado a fracassar.

Se essa descrição estiver correta, parece que o romance tensiona duas experiências literárias: por um lado, o impulso de fundamentar a narrativa nos debates correntes; por outro, de transformar o romance em um espaço propriamente literário, que fala sobre o desejo de escrever, sobre a luta com a página em branco, sobre a solidão do escritor, da obra e do leitor. Aqui, claro, estou me referindo à ideia blanchotiana de “espaço literário”: desviando sempre da afirmação para a dúvida e pronunciando o silêncio, é como se o escritor quebrasse o vínculo com o não literário e, com isso, “o vínculo que une a palavra ao eu” (Blanchot, 2011, 17), ao mundo real, ao referente exterior da literatura. Desse modo, o uso da primeira pessoa por Paloma Vidal, um “eu” que o tempo todo reflete sobre suas limitações enquanto narradora, parece muito mais a anunciação de um lugar de dúvida do que o lugar do signatário de um pacto autobiográfico. Por isso ela tenta alcançar alguma segurança narrativa na busca pela “primeira pessoa do plural” (Vidal, 2020, 96), um nós impossível, que seria capaz de dar alguma segurança à história.

O outro impulso, aquele que ancora a narrativa no presente, porém, não deve ser esquecido. Pelo contrário, a especificidade “temática” de Pré-história é importante. Não é à toa que o romance use essa forma fragmentada, sempre na deriva entre a afirmação e a negação, entre o eu enunciativo e o nós impossível, para construir uma história que fala de tensões contemporâneas. Na verdade, é essa impossibilidade que, paradoxalmente, comunica algo sobre o contemporâneo e dá ao romance sua qualidade (ouso dizer) política. Esse algo é uma interrogação. Dar conta desses destinos (o destino de uma geração – caracterizada no romance pelas citações do rock brasileiro dos anos 1980 – que assistiu à volta da democracia representativa e sua crise) é impossível, como é impossível assumir uma primeira pessoa do plural, porque nenhuma das respostas é certa: nem a simplicidade, nem a complexidade. A literatura não vai responder às nossas angústias; ela pode apenas instituir um espaço de solidão num presente que pede que sempre busquemos respostas. É o direito à dúvida que me parece que o romance de Paloma Vidal recupera. É também o direito à individuação, mas uma individuação que não abre mão de compartilhar as experiências coletivas. E esses direitos, contrapostos à certeza de quem vê o mundo como simples, não significam isolamento, isenção e impotência, mas resistência.


*Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.

 

Referências

BANDEIRA DE MELO, Lucas. Dívida e castigo: o apocalipse da nova classe trabalhadora na ficção de Fernando Bonassi, Remate de Males, Campinas, SP, v. 40, n. 1, p. 41-68, 2020, DOI: 10.20396/remate.v40i1.8657538.

BARTHES, Roland. O neutro. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2002].

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 [1955].

VIDAL, Paloma. Pré-história. Rio de Janeiro: 7letras, 2020.

VIDAL, Paloma. Mar azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

VIDAL, Paloma. Algum lugar. Rio de Janeiro: 7letras, 2009.

VIDAL, Paloma. Mais ao sul. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.

VIDAL, Paloma. A duas mãos. Rio de Janeiro: 7letras, 2003.