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Poesia e Vídeo-arte – algumas aproximações | de Renato Rezende

Alguns poetas brasileiros contemporâneos têm produzido vídeos que os inserem ao mesmo tempo no campo das artes visuais ou, sem que haja contradição nisso, num campo ampliado da poesia. Podemos citar André Sheik (Eu sou mais do que aparento), Laércio Redondo (Eu não te amo mais), Ricardo Domeneck (Garganta com texto), Laura Erber (História antiga), Renato Rezende (Ímpar; Tango), Guilherme Zarvos (Muro burro) e Domingos Guimaraens (Gema), entre muitos outros. Este ensaio procura delinear algumas aproximações históricas, teóricas e práticas entre a poesia e a vídeo-arte no contexto da produção brasileira.

Poesia e Pensamento

Discorrendo em seu blog sobre a separação entre poesia e música, oralidade e escrita, o poeta brasileiro Ricardo Domeneck lança uma provocação e um desafio: “Insisto: poesia não é uma parte da literatura, mas é a literatura que é apenas uma parte da poesia. Quem achar que isso é picuinha, sugiro que medite por pelo menos alguns segundos sobre as implicações desta idéia”.1 Se para Domeneck – e não nos interessa aqui investigar suas razões –, a literatura é apenas uma subdivisão da poesia, Susan Sontag, numa instigante nota de rodapé em seu ensaio “Contra a interpretação”, afirma ser o cinema uma “subdivisão da literatura”.2De fato, a forma hegemônica do cinema espetáculo, que, com seu modelo narrativo-representativo-industrial, se estabeleceu no início do século XX e se sobrepôs como fenômeno social e mercadológico às correntes do cinema de vanguarda e do cinema experimental, herdou sua linguagem narrativa do romance.3O romance, como gênero literário, por sua vez, surgiu no século XVIII com a definitiva ascensão da burguesia ao poder, e substituiu a poesia épica, de origem homérica, que vigorou na Europa pós-renascentista e produziu obras de grande fôlego e envergadura como Jerusalém LibertadaOrlando Furioso (obras que no século XX, com toda certeza, seriam estimulantes longas-metragens, e estão na origem de sucessos comercias como E o vento levouLawrence da Arábia eTitanic).

Do mesmo modo, como lembra o mesmo Domeneck em seu blog, é moeda corrente que a separação entre poema e música (ou seja, a forma por excelência da poesia lírica), ocorreu aos poucos após o desmantelamento das estruturas sociais do amor cortês, vigentes principalmente nas cortes provençais e catalãs do fim da Idade Média. Essa tradição ressurge com toda força, como um grande catalisador social, na forma de música popular, na era da cultura de massas e da indústria cultural, com a possibilidade da ampla difusão em ondas de rádio e reprodução em LPs, CDs etc., e portanto toda a discussão sobre o status literário da letra de música e de seus compositores não é sem fundamento. Amputada ou mancando seriamente de duas de suas três pernas (a épica e a lírica), a poesia se renova no Modernismo apostando todas suas fichas no pensamento e/ou no poema que discorre sobre si mesmo ou seu meio (a linguagem).4 No entanto, nos anos 1960, com o advento da arte conceitual, mas na verdade desde Duchamp, a filosofiaaproxima-se das artes visuais, que passam cada vez mais a gerar pensamento em alta voltagem, depreciando os valores preponderantemente estéticos que até então as orientavam. Neste contexto, e com a tecnologia da câmera de vídeo portátil, nasce, entre os artistas visuais, a vídeo-arte. Se o cinema, narrativo e metonímico, é literatura (ou seja, prosa), a vídeo-arte, metafórico e conceitual, aproxima-se da linguagem da poesia.

Metáfora e Metonímia

Roman Jakobson, em “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, discrimina dois modos de arranjo do signo linguístico: combinação e seleção. O primeiro trata da hierarquização das unidades linguísticas, das mais simples às mais complexas, o que as torna inseridas numa contextura sintagmática. O segundo trata da possibilidade de substituição paradigmática de um termo por outro afim. Jakobson identifica o primeiro modo, o da contiguidade, com o polo metonímico (característico da prosa), e o segundo modo, o da similaridade, com o polo metafórico (característico da poesia). Jakobson também distingue seis funções de linguagem, relacionando cada uma delas a um dos componentes do processo comunicativo, entre elas, a função poética é aquela que se foca na própria mensagem. A experiência dos elementos formais, ou seja, a experiência da linguagem em si mesma, é o que, para Jakobson, caracteriza a poesia.5 Segundo A. L. Rees, em seu A history of experimental film and video, a distinção entre prosa e poesia serve como um excelente guia para se compreender o projeto do cinema de vanguarda. Em fato – e aqui Rees cita o ensaio “Poetry and prose in the cinema”, de Shklovsky :

prosa e poesia em filme são dois gêneros distintos; não se diferem pelo ritmo – ou melhor, não apenas pelo ritmo – mas pelo fato de que no cinema de poesia elementos da forma prevalecem sobre os elementos do significado e são eles, e não o significado, que determinam a composição.6

 

Pensando nos termos de dois gêneros distintos em filme, os predominantemente metonímicos e os predominantemente metafóricos, chegamos na mesma distinção que existe na literatura entre prosa e poesia. Transcendendo a questão do meio (a imagem ou a palavra) e do suporte (a película e a página) e pensando nos gêneros artísticos de acordo com o uso que fazem de sua linguagem, seria lógico alinhar de um lado a vídeo-arte e o poema; e de outro o cinema narrativo e a prosa de ficção. Para Tunga, artista contemporâneo brasileiro cujo trabalho carrega fortes conteúdos psicanalíticos e faz uso recorrente de metáforas (é interessante notar que, para Lacan, a própria linguagem é metáfora, metáfora da metáfora, metáfora de um real inatingível), é o uso da linguagem (qualquer linguagem) que caracteriza a poesia:

Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é a coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.7

 

Neste sentido, por sua forte densidade metafórica – e pelas próprias palavras do artista, colocando-se como poeta –, alguns trabalhos em vídeo (e também em performance, quase sempre, aliás, acompanhadas de um texto) de Tunga poderiam ser considerados como poemas. Alguns desses exemplos são Medula e Quimera, ambos de 2005 e feitos em parceria com o cineasta Eryk Rocha.

Tempo e Espaço

Numa reação aos preceitos modernistas, entre as décadas de 1950 e 1960, prenunciando o advento da pluralidade do pós-modernismo, artistas começaram a ampliar as possibilidades de meios e suportes. No campo das artes visuais, a produção de imagens incorporou as tecnologias da fotografia, do cinema e do vídeo. Categoricamente definidas por Lessing em seu fundamental Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia como artes do espaço, com a apropriação dessas novas tecnologias, “as artes plásticas incorporaram o tempo ao seu universo eminentemente espacial, acontecimento que pode ser visto qual raiz e sintoma de sua própria contemporaneidade.”8

Nas narrativas que buscam contar a história da vídeo-arte ou do cinema experimental no Brasil, um esforço empreendido por pesquisadores como Arlindo Machado (organizador do catálogo e curador da exposição Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, no Itaú Cultural, São Paulo, 2003), Fernando Cocchiarale (organizador do catálogo e curador da exposição Filmes de artista. Brasil 1965-80, no Oi Futuro, Rio de Janeiro, 2007), Walter Zanini, André Parente, Luiz Cláudio da Costa, e muitos outros, nota-se – ao contrário do que aconteceu na Europa e nos EUA, berço do cinema underground e da vídeo-arte – uma constrangedora ausência de poetas entre os pioneiros.9 Em 1974, no Rio de Janeiro, quando artistas como Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger, Ivens Machado e, logo depois, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Miriam Danowski, tiveram acesso a um equipamento portapack trazido de Nova York por Tob Azulay,10 surgia a poesia marginal, de cunho contracultural, anedótico e anti-intelectual, e o máximo de interação entre ambos os campos parece ter sido a presença do poeta Chacal como juiz de futebol num filme de Luiz Alphonsus (Chacal é o juiz, 1976). No entanto, como atesta André Parente, havia um grande agenciamento com a poesia concreta:

A revista Navilouca, publicada em 1974 pelos poetas Waly Salomão e Torquato Neto, com magnífico projeto gráfico dos artistas plásticos Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, mostra a grande efervescência que existia na cena da contracultura carioca, em que havia um grande agenciamento entre a poesia concreta, as artes plásticas neoconcretas, a música tropicalista e o cinema marginal.11

 

Na verdade, como corrige o próprio Parente, “em conseqüência da ruptura neoconcreta, a forma moderna e seus esquematismos racionalistas entram em declínio, sobretudo no Rio de Janeiro”.12 Se há um agenciamento entre as experiências do cinema e vídeo de vanguarda com a poesia, esse se dá em São Paulo, onde reside e trabalha o grupo Noigrandes. O foco das propostas da poesia concreta, no entanto, é fazer o caminho inverso daquele que fazem as artes visuais ao se apropriarem do vídeo: enfatizando a materialidade plástica dos vocábulos, os concretistas proclamam uma poesia verbivocovisual,13 que foi preponderantemente uma arte do espaço (e não do tempo).

Desta forma, tanto em sua vertente marginal, quanto em sua vertente concretista, e por diferentes razões, a poesia dos anos 1970 manteve-se distante das experimentações em vídeo que faziam os artistas plásticos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estando Gullar, o poeta entre os neoconcretistas, nesta época exilado, e focado em poemas politicamente engajados, não houve um desenvolvimento das propostas neoconcretas em poesia.14 Nas décadas seguintes, novos poetas de extração concretista, como Arnaldo Antunes e André Vallias, além dos próprios Campos, desenvolveram uma série de poemas visuais e vídeo poesias em computador, buscando sempre uma isomorfia entre palavra e imagem.15Philadelpho Menezes foi encontrar na poesia visiva italiana, oriunda do Futurismo e suas preocupações com o movimento e a performance, a possível ponte que não houve no Brasil entre a poesia e a vídeo-arte experimentais:

No plano estético, além da grande e evidente diferença entre ambas (a presença da imagem visual na poesia visiva, enquanto a poesia concreta se dá dentro dos limites da verbalidade) é também facilmente observável a distinção no âmbito da construção formal. Enquanto a poesia concreta se funda numa construção racional e medida que fazia interagir formalmente as palavras do poema, a poesia visiva se pauta pela caoticidade da armação, numa proposital fórmula desestrutural, que se choca frontalmente com a índole construtivista do poema concreto. Se este se põe na vertente vanguardista de reconstrução sintática da linguagem, de reelaboração de modos composicionais precisos – a ponto de daí derivar um esquematismo na fase mais ortodoxa, que, afinal, é onde se pode entrever uma poética específica do concretismo – o poema visivo exibe uma faceta desorganizada que o alinha com uma vertente oposta, a das vanguardas irracionais.16

 

Um excelente exemplo do emprego do tempo como elemento constitutivo, suporte e assunto do trabalho é o recente A carta roubada, de Helena Trindade, que reverte o vídeo para virtualmente reconstituir um exemplar rasgado do livro de Edgar Allan Poe.

Mente como meio

Em sua tese de doutoramento sobre Deleuze, Peter Pál Pelbart afirma que, para o filósofo francês, o cinema serve “para revelar determinadas condutas de tempo”, construindo com tais condutas diversos tipos de imagens, que permitem a Pelbart entrever no filósofo um interesse mais radical, “ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento.” 17 Para Deleuze, a linguagem imagética do cinema revelaria, ou pelo menos indicaria, a concepção dopensamento em sua origem. A intuição de Deleuze aproxima-o das reflexões de Eisenstein – um dos precursores e maiores realizadores do cinema –, cuja teoria de montagem é, na verdade, uma teoria sobre a cognição humana. Em seu artigo “Cinema (interativo) como um modelo de mente”, Pia Tikka parte dos pressupostos de Eisenstein e das pesquisas da neurociência contemporânea para propor, dentro do contexto do cinema interativo, um interpretação da imagem em movimento como padrão de dinamismo mental:

Minha hipótese inicial parte da premissa de que a ação de enquadrar uma imagem é condicionada por uma interação conflitante entre a percepção antecipatória do cineasta e a percepção perceptiva da imagem, surgindo em decorrência desse conflito no processo de enquadramento de uma imagem padrões artisticamente significativos.18

Intrigada pela condição especular da vídeo-arte – estudada no trabalho de alguns de seus pioneiros, como Richard Serra e Vito Acconci –, que funde sujeito e objeto, artista e técnica, Rosalind Krauss, num instigante ensaio de 1976, propõe o narcisismo como o meio (medium) do vídeo. Ela explica:

Por um motivo, essa observação tende a criar uma fissura entre a natureza do vídeo e a das outras artes visuais. Pois essa declaração descreve condição mais psicológica do que física, e, embora estejamos acostumados a pensar em estados psicológicos como assuntos possíveis das obras de arte, não pensamos na psicologia como constituinte de seu medium. Por seu lado, o medium da pintura, da escultura ou do filme tem muito mais a ver com os fatores materiais e objetivos, específicos de uma forma particular: pigmentos cobrindo superfícies, matéria estendida ao longo do espaço, luz projetada através do celulóide em movimento. Isto é, a noção demedium contém o conceito de objeto-estado, separado do próprio ser do artista, pelo qual suas intenções devem passar.
O vídeo depende – como tudo que se queira experimentar – de um conjunto de mecanismos físicos. Então, talvez seja mais simples dizer que este dispositivo – em seus níveis presentes e futuros de tecnologia – compreende o medium da televisão e nada mais acrescentar. Entretanto, no contexto do vídeo, a facilidade de defini-lo nos termos de seus mecanismos não parece coincidir com a exatidão; e minhas experiências pessoais a esse respeito continuam a me instigar ao modelo psicológico.19

Krauss foi discípula de Greenberg, e parece ter herdado dele as preocupações em relação ao meio. Com efeito, como vimos no capítulo 2 (“Alguma rotação”), é sintomático que Greenberg tenha encontrado grandes dificuldades em definir qual seria a especificidade da poesia, instaurando para ela um meio essencialmente psicológico e sub ou supralógico, e percebendo uma inversão de sentidos entre poesia e pintura (esta sim de seu interesse):

Seria conveniente por um momento considerar a poesia “pura”, antes de passar à pintura. A teoria da poesia como encantamento, hipnose ou droga – como um agente psicológico, portanto – remonta a Poe e, em última instância, a Coleridge e Edmund Burke, com seus esforços para situar o prazer da poesia na “Fantasia” ou “Imaginação”. Mallarmé, contudo, foi o primeiro a basear nessa teoria uma prática consistente de poesia. O som, ele concluiu, é apenas um auxiliar da poesia, não o próprio meio; além disso, a poesia hoje é sobretudo lida, não recitada: o som das palavras é parte de seu significado, não aquilo que o contém. Para livrar a poesia do tema e dar plenos poderes à sua verdadeira força afetiva é necessário libertar as palavras da lógica. A singularidade do meio da poesia está no poder que tem a palavra de evocar associações e conotar. A poesia já não reside nas relações das palavras entre elas enquanto significados, mas nas relações das palavras entre elas enquanto personalidades compostas de som, histórias e possibilidades de significado. […] O poeta escreve não tanto para expressar como para criar algo que vai operar sobre a consciência do leitor, não o que comunica. E a emoção do leitor derivaria do poema como um objeto único e não dos referentes externos ao poema. […] No caso das artes plásticas, é mais fácil isolar o meio e, por conseguinte, pode-se dizer que a pintura e a escultura de vanguarda atingiram uma pureza muito mais radical do que a poesia de vanguarda. […] A pintura ou a estátua se esgota na sensação visual que produz. Não há nada para identificar, associar ou pensar, mas tudo a sentir. A poesia pura luta pela sugestão infinita; as artes plásticas puras, pela mínima.20

Tal entendimento parece dialogar com as ponderações de Claude Esteban em seu Crítica da razão poética:

Chegou-se a declarar que todo empreendimento artístico constituía uma experiência de mediação entre o material bruto, esse dado do tangível, e a figura secundária que nos restitui dele. Mas a poesia, […] a poesia, por sua vez, opera não sobre o concreto – matéria, cor, sonoridade –, mas já no interior desse meio mediado constituído pela linguagem. É a essas palavras dissociadas do real, a essa estrutura abstrata de signos que o poeta deve, precisamente, restituir a virtude de imediatidade, e mais ainda, de presença real. Mas tal empreendimento de encarnação será na verdade possível dentro do sistema verbal – e o poeta não terá de considerar falacioso esse horizonte que o solicita, onde palavra e presença se equivalem num ato demiúrgico que inventaria ao mesmo tempo a coisa tangível e seu nome? 21

Se, como quer o pensador e poeta franco-espanhol, o poeta já opera com algo distanciado da realidade, ou seja, com algo já criado, a linguagem (verbal), sua arte é, desde um ponto de vista, o duplo de um duplo, sombra de uma sombra, sonho de um sonho: espelho; ora, a condição especular da vídeo-arte é justamente o que Krauss encontra como fundamento de seu narcisismo. Talvez tenha sido um insight relacionado a esta condição especular da (de toda?) linguagem que tenha levado o artista multimeios Arthur Omar (apresentado em seu site como fotógrafo, cineasta, vídeo-maker, músico, poeta) a afirmar que “o verdadeiro ambiente da arte é a mente”.22 Questões de linguagem e identidade são problematizados pelos meus vídeos Ímpar e Tango, que fazem uso da minha própria imagem.

Isomorfia e enjambement

Em seu ensaio “Extremidades do vídeo: novas circunscrições do vídeo”, Christine Mello, empregando conceitos como ‘extremidades do vídeo’ e ‘infiltrações semióticas’ (a capacidade dos signos de operar em zonas de fronteira), analisa alguns processos de compartilhamento do vídeo na arte contemporânea. Segundo a autora, tal perspectiva expandida do vídeo “implica em observar os seus trânsitos na arte como interface”, entendendo interface como ‘fronteiras compartilhadas’ que colocam o vídeo em contato com “estratégias discursivas distintas ao meio eletrônico e interconectam múltiplas ações criativas em um mesmo trabalho de arte.”23 Entre outras, tais ações incluem, por exemplo, o videoclipe, a vídeo-dança, a vídeo-instalação, a vídeo-performance, a vídeo-poesia, a vídeo-escultura e o vídeo-teatro. Diz Arlindo Machado sobre a especificidade do vídeo:

Sabemos, pelo simples exame retrospectivo da história desse meio de expressão, que o vídeo é um sistema híbrido, ele opera com códigos significantes distintos, parte importados do cinema, parte importados do teatro, da literatura, do rádio e mais modernamente da computação gráfica, aos quais acrescenta alguns recursos expressivos específicos, alguns modos de formar idéias ou sensações que lhe são exclusivos, mas que não são suficientes, por si sós, para construir a estrutura inteira de uma obra. Esse talvez seja o ponto chave da questão. O discurso videográfico é impuro por natureza, ele reprocessa formas de expressão colocadas em circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores, e sua ‘especificidade’, se houver, está sobretudo na solução peculiar que ele dá ao problema da síntese de todas essas contribuições.24

Referindo-se à hibridização entre o vídeo e a criação textual (ou seja, a literatura, a poesia), Machado observa que “uma das conquistas mais interessantes da vídeo-arte foi justamente a recuperação do texto verbal, a sua inserção no contexto da imagem e a descoberta de novas relações significantes entre códigos aparentemente distintos”.25 No Brasil, foram os concretistas e seus herdeiros que mais investigaram essas relações – especialmente Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, mas também Júlio Plaza (em parceria com Paulo Leminsky e outros poetas) e, mais recentemente Arnaldo Antunes e André Vallias – criando poemas iconizados, ou poemas dotados de qualidades cinemáticas, privilegiando sempre uma unidade rítmico-formal, uma isomorfia: palavra e imagem em comunhão íntima. É justamente contra tal isomorfia que prega o poeta e filósofo brasileiro contemporâneo Alberto Pucheu. Ao estudar os “institutos poéticos” propostos por Agamben, Pucheu afirma a fissura, a falha, inerente à origem de toda linguagem, e para a qual a poesia (assim como a filosofia e o pensamento crítico) aponta, mantendo-a aberta:

enquanto o concretismo viu no verso “a unidade rítmico-formal” e, assim, sua morte, Agamben lê no enjambement o abismo entre o sintático e o semântico, entre o sonoro e o sentido, lê na cesura, algo portanto no interior de um mesmo verso, uma interrupção provocadora do mesmo abismo entre o significante e o significado e, assim, algo onde a unidade já se mostra cindida, impossível. nele, os institutos poéticos, formais, estruturais, nos fazem retornar constantemente ao lugar de nascimento do poema, obrigando-nos a realizar novos e novos renascimentos. o poema é aquilo que não quer de modo algum se afastar de sua origem.26

A sutil e eficaz exploração do descompasso entre poesia e imagem é a força por trás dos trabalhos – dos poemas – em vídeo Quando fui carpa e quase virei dragão(2007) e Algumas perguntas (2005) da artista visual Brígida Baltar. Mais distanciado da tradição concretista, a vídeo-arte parece ser capaz de resgatar a poesia – em um campo ampliado – de uma forma mais contemporânea, eliminando preceitos e dogmas (como o isomofirsmo) que ainda encarceram a poesia intersemiótica produzida a partir do campo da poesia.

André Sheik – Eu sou mais do que aparento

 

Ricardo Domeneck – Garganta com texto (2006)

 

Laura Erber – História antiga

 

Renato Resende – Ímpar e Tango

 

Guilherme Zarvos – Muro burro

 

Domingos Guimaraens – Gema

 

Helena Trindade – A carta roubada

 

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.

NOTAS

1 DOMENECK, Ricardo. “O tal de voco do verbo visual”. http://ricardo-domeneck.blogspot.com, entrada de 24/06/2008. Ele continua: “É com alegria que podemos observar a maneira como alguns poetas brasileiros estão passando a aproveitar-se da era digital para retornarem a um trabalho pluralista com a poesia, experimentando com vídeo e poesia sonora, gravando leituras e performances, colaborando com músicos profissionais. Nada há de “vanguardismo” neste fenômeno, mas do testemunhar do nascimento de suportes tecnológicos que permitem ao poeta RETORNAR às características dormentes do fazer poético.”

2 SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 21.

3 Ver PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale.

4 Para Haroldo de Campos, “Na poesia de vanguarda, o poeta, além de exercitar aquela função poética por definição voltada para a estrutura mesma da mensagem, é ainda motivado a poetar pelo próprio ato de poetar, isto é, mais do que por uma função referencial ou outra, ele é complementarmente movido por uma função metalingüística: escreve poemas críticos, poemas sobre o próprio poema ou sobre o ofício do poeta.” CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp. 152-153.

5 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, s/d. O autor, no entanto, deixa claro que “qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora.”, pp. 127-128.

6 REES, A. L. A history of experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999, p. 34. No original: “Shklovsky’s 1927 essay ‘Poetry and Prose in the Cinema’ states that prose and poetry in film are ‘two different genres; they differ not in their rhythm – or rather, not only in their rhythm – but in the fact that in the cinema of poetry elements of form prevail over elements of meaning and it is they, rather than the meaning, which determine the composition.”

7 Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. In: Revista Azougue 10. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.

8 COCCHIARALE, Fernando. “Sobre filmes de artista”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 11.

9 Para constatar a presença determinante de poetas na história do cinema experimental e do vídeo nos EUA e na Europa, tanto como produtores quanto como inspiradores ou interlocutores, ver REES, A. L. A history of Experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999. Por exemplo, discorrendo sobre as origens da vanguarda americana no pós-guerra, Rees diz: “Other film-makers were poets and writers: Sidney Peterson, Willard Maas, Jonas Mekas, Brakhage, who broke most radically with narrative to inaugurate abstract montage, was strongly influenced by Pound and Stein on compression and repetition in language. [ ] It rehearsed the old argument between film-as-painting and as camera-eye vision, each claiming to express film’s unique property as a plastic form. By turning to the poets and writers of experimental modernism – Pound, Eliot, Joyce, Stein – the film-makers distanced themselves from the direct drama and narrative tradition in realism.”, pp. 58-59.

10 Ver MACHADO, Arlindo. “As linhas de força do vídeo brasileiro”. In: MACHADO, Arlindo (org). Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

11 PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 30.

12 Ibid, p. 31.

13 A poesia concretista foi no fim das contas bem mais verbivisual do que voco. Diz o plano-piloto da poesia concreta, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, e publicado originalmente na revista Noigrandes 4, 1958: “dado por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente cultural. espaço qualificado: estrutura espacio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido específico (fenollosa/Pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógica-discursiva – de elementos. ‘Il faut que notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideógraphiquement au lieu de analytico-discursivement’ (Apollinaire). einsenstein: ideograma e montagem.” In: AMARAL, Aracy (org). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.

14 Regina Vater, no entanto, incluiu uma foto de Hélio Oiticica vestindo um parangolé na exposição “Brazilian Visual Poetry”, da qual foi curadora, no Mexic-Arte Museum, em Austin, Texas, 2002.

15 Para um excelente estudo sobre alguns destes trabalhos ver: ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual Vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

16 MENEZES, Philadelpho (org). A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994, pp. 204-205.

17 PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.27.

18 TIKKA, Pia. “Cinema (interativo) como um modelo de mente” Tradução de Renato Rezende. In: MACIEL, Kátia (org). Transcinema. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

19 KRAUSS, Rosalind. “Vìdeo: a estética do narcisismo”. Tradução de Rodrigo Krul e Thais Medeiros. Arte & Ensaio. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ. Ano XV, número 16, julho de 2008. pp 144-157

20 GREENBERG, Clement. “Rumo a mais um novo Laocoonte”. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. In: FERREIRA, Glória e COTRIM DE MELLO, Cecília. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 54-55.

21 ESTEBAN, Claude. Crítica da razão poética. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 187.

22 http://www.museuvirtual.com.br/arthuromar/. Seu trabalho Mola cósmica é uma escrita visual, em que frames de um vídeo se tornaram um alfabeto.

23 MELLO, Cristine. “Extremidades do vídeo: Novas circunscrições do vídeo”http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/17772/1/R0788-1.pdf

24 MACHADO, Arlindo. Apud RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1998, pp. 156=157.

25 Ibidem p. 157.

26 PUCHEU, Alberto. “Entrevista de uma pergunta só”. Entrevista a Francisco Bosco. Inédito.