Ano XII 0201
2º semestre de 2017
artigo
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QUESTÕES DE CONSUMO E A FEMINIZAÇÃO DA REVISTA DA SEMANA

Resumo: O objetivo do presente artigo é mapear as mudanças pelas quais a Revista da Semana passou a partir de 1914, principalmente pela perspectiva dos universos de consumo que passaram a ser mediados pela publicação em seu redirecionamento editorial, com ênfase na análise dos aspectos composicionais presentes nas imagens publicadas nas capas da revista e nas novas seções relacionadas à literatura de aconselhamento. No período pré-1914, a publicação era marcada por uma forte valorização do universo masculino e, após esse período, as mulheres passaram a ser representadas de forma mais frequente, embora circunscritas a estereótipos de gênero próprios da época. No artigo, iremos discutir as implicações dessa mudança nas estratégias de circunscrição de um universo de consumo mediado pela publicação.

Palavras-chave: Consumo; mulheres; Revista da Semana; projeto editorial.

Abstract: The objective of this paper is to map the changes that Revista da Semana passed from 1914, mainly from the perspective of the consumption universes that began to be mediated by the publication in its editorial redirection, with an emphasis on the analysis of the compositional aspects presented in the images published in the magazine covers and in the new sections related to the counseling literature. In the pre-1914 period, the publication was marked by a strong appreciation of the masculine and, after that period, women came to be represented more frequently, although circumscribed to gender stereotypes. In this paper, we will discuss the implications of this change in the strategies of circumscription of a consumption universe mediated by the publication.

Keywords: Consumption; women; Revista da Semana; editorial project.

 

A Revista da Semana nasce em 1900 como um encarte do Jornal do Brasil e, em seu projeto editorial, estava pressuposto um público de classe média variado, composto tanto por homens quanto por mulheres. Tal como posto por Luca (2006, p. 121), “a Revista da Semana é unanimemente apontada como marco do surto (…) das chamadas revistas ilustradas” que “forneciam um lauto cardápio que procurava agradar a diferentes leitores, justificando o termo variedades”. Para a autora, a pluralidade de conteúdo cumpria uma função estratégica: “diante do relativamente minguado público dependia de se conseguir ampliar ao máximo os possíveis interessados, daí o recurso a uma rubrica ampla, que permitia incluir de tudo um pouco”.

Não obstante, em seus primeiros anos, a Revista da Semana deu uma ênfase acentuada à figura masculina, fato que pode ser observado pela marcante presença de fotografias e gravuras que retratavam homens em suas capas e no seu conteúdo interno. Nos dois primeiros anos da publicação, do total de imagens de capa com temáticas jornalísticas

[1], 69,4% eram compostas apenas por homens e somente 4,7% apenas por mulheres. Homens com mulheres compunham 15,3% das capas e 10,6% não continham pessoas na imagem (como paisagens, monumentos etc.). A masculinidade, portanto, para a Revista da Semana, se mostra na capa como um produto à venda. Ela se alicerçava principalmente a partir de algumas figuras-chave: o militar (presentes em 41,5% das capas com pessoas), os criminosos e os profissionais ligados a atividades que na época eram consideradas tipicamente masculinas (como médicos, cientistas e políticos). Os primeiros anos de publicação da Revista da Semana são marcados por essa orientação editorial.

A partir de 1914, há uma mudança radical no projeto editorial da publicação. Nesse momento a Revista da Semana se dedicará de forma mais pormenorizada às mulheres. Em 1915, ela deixa de pertencer ao Jornal do Brasil e é vendida a Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e Artur Brandão, que aprofundam essa readequação editorial. De acordo com Peixoto (2001), a partir desse período, a publicação foi pensada para “as senhoras e moças da sociedade, os frequentadores dos salões abertos para o five o’clock tea e do Municipal” (p. 12). Ou seja, embora fosse uma revista para o público geral e muitos homens ainda consumissem a Revista da Semana (com textos destinados a eles), passou-se para o direcionamento editorial de uma revista com um forte consumo feminino. Tal característica começa a aparecer nos aspectos composicionais de suas capas. Das 42 capas publicadas em 1914, 74% delas continham mulheres, em contraste com a marcante presença masculina dos anos anteriores. Quanto a essa divisão, é interessante notar que a presença de homens só é expressiva nas capas que noticiam a guerra, de forma que, em todas as outras, a presença de mulheres é dominante em uma orientação editorial que irá durar até, pelo menos, meados da década de 1930.

O objetivo do presente artigo é mapear as mudanças que a Revista da Semana sofreu nesse período, principalmente pela perspectiva dos universos de consumo que passaram a ser mediados pela publicação a partir de seu redirecionamento editorial, com ênfase na análise dos aspectos composicionais presentes nas imagens publicadas nas capas da revista e nas novas seções relacionadas à literatura de aconselhamento. O interesse na análise de imprensa para entender o consumo está no fato de que, em tais produções, não há uma intencionalidade explícita de venda de um produto e, portanto, as relações entre comunicação e consumo mostram-se a partir da articulação de campos discursivos ligados aos ideais de felicidade, aos mapas de sucesso, às políticas de visibilidade e aos comportamentos validados nos processos de subjetivação do eu a partir do consumo. Há, na Revista da Semana nesse período, certo modelo de mulher engendrado – ligado a um ideal imaginado de sociedade e de seus modos de funcionamento, em uma hierarquização de valores sociais, regras e normas e, fundamentalmente, de afetos que garantem a adesão imaginária a essas normas. Tais elementos podem ser correlacionados a valores de consumo que não estão postos na comercialização de produtos específicos, mas sim na venda de modos de vida validados, como será esmiuçado a seguir.

Os universos de consumo mediados pela Revista da Semana

 Conforme colocamos anteriormente, em 1914, 74% das capas com temática jornalística continham mulheres na capa. A divisão de gêneros aqui não é apenas temática, mas se expressa também em certos aspectos composicionais. Das capas com mulheres, 64,5% são compostas por personalidades que podem ser identificadas pelo nome – muito embora seus nomes não apareçam necessariamente expostos. Nos outros 35,5%, as mulheres retratadas representam coletividades, processos ou instâncias sociais (as enfermeiras, por exemplo). Além disso, em 77% das capas com mulheres, elas aparecem sozinhas, de forma que é possível inferir que elas passam a ser valorizadas em suas individualidades e não a partir de suas relações no projeto editorial urdido.

No que diz respeito às capas com homens, a composição é ligeiramente diferente. Entre estas, em apenas 36% delas os homens são identificados pelos nomes, ao passo que, nas restantes (64%) eles são representados como uma coletividade ou metaforizações de processos – especialmente vinculados aos assuntos da guerra. Os homens estão em conjunto (acompanhados de outros homens) em 55% das capas (estando sozinhos em 44% delas).

Quanto a outros dados da composição imagética, também é possível inferir algumas questões. Nas capas com ambos os sexos há a totalidade de ângulos retos, porém, nas capas com mulheres, há a prevalência do plano médio (com 58% das incidências) e do plano geral (com 41%). Nas capas masculinas, há a prevalência do plano geral (com 90% das incidências). Isso conota uma valorização do personagem nas capas com mulheres, ao passo que as capas com homens valorizam uma situação (com a interação personagem e cenário).

Além disso, nas capas com mulheres, há a prevalência do equilíbrio dinâmico (54,8%) em detrimento do estático (45,2%). Nas capas com homens, há a prevalência do equilíbrio estático (em 82% delas). Lembramos aqui que o equilíbrio dinâmico sugere uma ideia de movimento e de leveza em comparação ao equilíbrio estático, reforçando lugares comuns a respeito da constituição da masculinidade e da feminilidade no período.

Capa da edição de 01/08/1914
Capa da edição de 01/08/1914
Capa da edição de 31/08/1915
Capa da edição de 31/08/1915

 

Em 1915, as características descritas se aprofundam. Nesse ano, 88% das capas publicadas tinham mulheres na capa e em apenas 12% havia a presença masculina – e ainda restrita aos assuntos que versavam sobre a cobertura de guerra. Das capas com mulheres, 75% delas possuíam personalidades que podiam ser identificadas pelo nome, ao passo que dentre as capas com homens, 66% eram relativas a personagens que figurativizavam processos ou instâncias sociais. Além disso, em 86% das capas, as mulheres apareciam sozinhas – o que acontece em apenas 50% das capas com homens. Também nesse ano, portanto, há a valorização do feminino nas capas.

No que se refere às técnicas de composição, também há a predominância do ângulo reto em todas as capas e a maior frequência do plano médio (67%) e do equilíbrio dinâmico (52%) nas capas com mulheres e do plano geral (66%) e do equilíbrio estático (83%) para as capas com homens.

As capas publicadas no período estão em correlação com o conteúdo interno da publicação que, contudo, em relação ao período anterior, apresentam poucas mudanças. Na edição de 05 de junho de 1915, é possível observar as seguintes pautas: uma foto da Mme. Laurinda Santos Lobo, as festas das regatas de Botafogo, a soirée íntima do Club 24 de Maio, algumas fotos obtidas à porta do Cine Palais, “o cinema chic da avenida”, reportagem intitulada “Interiores elegantes: a casa de Madame Santos Lobo”, a cobertura social das movimentações políticas da semana, material literário, algumas crônicas de moda, a cobertura sobre submarinos ingleses na guerra, uma fotografia da imperatriz da Rússia, uma reportagem sobre engenhos explosivos, cobertura sobre personalidades brasileiras em Washington, reportagem sobre a companhia edificadora, “um estabelecimento que honra o Brasil”; cobertura fotográfica do “festival do Germânia, em benefício da Cruz Vermelha Alemã”, reportagem sobre reprodução de aves, além de diversas seções de aconselhamento. Como pode ser observado, as pautas articulam-se ao colunismo social, característica já presente no período anterior, e com a diferença de que as mulheres passam a obter um destaque um pouco maior no enquadramento dos assuntos.

Uma das mudanças editoriais mais sensíveis pode ser observada em relação às colunas, ligadas ao que na época se denominava “literatura de aconselhamento”, uma prática comum em várias revistas desse período. As temáticas envolvidas nessas editorias abarcavam desde conselhos médicos e de beleza até sugestões de comportamento e consultórios sentimentais. Uma parte importante da Revista da Semana passou a ser destinada em um primeiro momento às Cartas de Mulher: crônicas sobre fatos da atualidade assinadas por “Iracema”. Normalmente posta no início da revista, essa seção, segundo Buitoni (2009, p. 60) embora não se destinasse somente às mulheres, caracterizava-se justamente por apontar os fatos do cotidiano sob um ponto de vista feminino. A autora destaca um texto, publicado em novembro de 1918, que saudava o término da Primeira Guerra Mundial a partir do ponto de vista de uma narradora que soube da notícia em uma loja de chapéus: “Eu me achava numa casa de chapéus, aonde acompanhava uma amiga. (…) Entre as vendeuses, havia uma mulher magra, loira, com vestígios de beleza e vestida de preto, com a aparência de idade em que já se pode ser a mamãe de jovem soldado”.

Posteriormente inaugura-se o Jornal das Famílias que, segundo a sua própria linha fina, dedicava-se às “modas, costuras e bordados, a vida no lar, receitas e conselhos práticos, economia doméstica e alimentação”. Trata-se de uma seção destinada a dar conselhos práticos, de higiene e de cuidado com a família para jovens moças. Entre os textos publicados ali podemos encontrar, por exemplo, colunas sobre como agir socialmente de acordo com as regras de etiqueta em voga – como em uma edição que anunciava que “os gestos, a maneira de andar e o som da voz revelam melhor e mais completamente o íntimo da personalidade humana do que a palavra, o olhar e o sorriso” – assim, “duas senhoras da mesma idade, uma de educação fina, a outra de educação vulgar, têm um andar muito diferente e seria impossível confundi-las se estivessem elas igualmente vestidas e enchapeladas” (Revista da Semana, 08/10/1921).

Na mesma edição, a seção “Preceitos de Hygiene” aconselhava que “o riso é excelente para a saúde e dá novo vigor a todo o nosso ser. Um riso bem sincero e bem franco dilata os nossos pulmões, ativa a circulação do sangue e dá um tom rosado à mulher que ri”. Além dos benefícios inegáveis à saúde, a revista relata as benesses sociais de um bom sorriso, vinculando o sorriso largo ao sucesso no casamento:

Muitas vezes um rapaz teme pedir em casamento uma moça cujos lábios finos e cerrados denotam um mau gênio. O homem é egoísta e deseja, sobretudo, o seu bem-estar, tanto físico quanto moral. Ele deseja sempre atingir a felicidade completa e não se cansa de a procurar, tendo a convicção íntima de que o acordo não pode reinar num casal quando a mulher tem mau gênio. A amabilidade, a mulher devia sabê-lo, é uma verdadeira força. Por seu bom humor e sua amabilidade, a mulher toma império sobre seu marido (Revista da Semana, 08/10/1921).

As seções de aconselhamento eram mesmo bastante disciplinadoras e mostravam de forma evidente a ideologia conservadora da Revista da Semana. Na edição de 01/10/1921, a coluna Conselhos Sociais explicava porque “o que se chama uma moça moderna não é mais que uma falsificação da verdadeira moça” que “perdeu o que fazia o encanto da sua primavera”. Criticando os novos costumes, a coluna dizia às “moças chamadas a seguir o caminho sagrado do casamento” que elas “devem saber em que grandes e magníficos deveres ela terá a honra de empenhar a sua vida. Mas ela pode, tomando consciência do estado de esposa e de mãe ao qual ela aspira, guardar a sua candura, sobretudo não fazendo alarde de conhecer precocemente aquilo que, por tradição, uma donzela deve ignorar; tal sabedoria é aliás tão deplorável como perigosa”:

Em grande parte, o nosso mal atual vem daí: sob o pretexto de desemburrar-se, a moça atira-se no campo da ciência completa do que, por falta de discernimento, resulta muitas vezes a perversão do espírito. Para guardar a alma pura das moças, não lhe deem senão gostos simples. Antes, a entrada na sociedade não se fazia tão cedo; as toaletes de baile eram modestamente decotadas; não usavam joias ricas antes do casamento, nada de meias de seda nem roupas de baixo de luxo, todo o vestuário era simples. Hoje o enxoval de uma menina comporta roupas de seda, em todos os coloridos, ricas rendas, bordados de fadas, joias riquíssimas. O vestido de baile de uma moça moderna só pode servir para afastar os pretendentes sérios. E, muitas vezes, esse luxo não corresponde ao dote nem ao que se chama abominavelmente as esperanças. Os costumes antigos tinham o seu lado bom e o casamento mais estabilidade (Revista da Semana, 01/10/1921).

Na edição de 05 de junho de 1915 é possível encontrar, por exemplo, a coluna Consultório da Mulher, composta por conselhos sobre itens de beleza que devem ser adquiridos, dados pela Mme. Selda Polocka, “a eminente especialista nos tratamentos de pele e de cabelo”. Segundo ela:

A cabeça não deve lavar-se com sabão, nem tampouco com preparados ácidos, que quebram o cabelo, nem com soluções de alcatrão. O Shampoo-Powder é o preparado ideal para uma perfeita higiene da cabeça. Limpa, desinfeta, tonifica, remove a caspa, refresca o couro cabeludo. Toda mulher ciosa da conservação e saúde do seu cabelo deve lavar a cabeça de oito em oito dias. Nunca compreendi porque se esquecem tantas mulheres de prestar aos seus cabelos os cuidados que têm com o seu rosto. Por isso mesmo seus cabelos embranquecem e caem prematuramente. A limpeza é a vida do cabelo, não me cansarei de repetir. Quase todas as doenças se evitariam com cuidados de higiene (Revista da Semana, 05/06/1915).

É possível encontrar, também, a seção Momento Elegante, que combinava conselhos práticos da vida (especialmente direcionado a mulheres) com cobertura de eventos importantes: “No domingo, houve uma regata na Bahia de Botafogo. Raras são as festas esportivas que conseguem ter um aspecto tão deslumbrante e tão prodigiosa magia. A tarde, o céu, os morros altos, a verdura, toda a maravilha dispersa da paisagem concorriam para a glória da festa”. Na sequência, o texto comenta o comportamento de mulheres no local:

Procurei guardar nas raízes remotas do meu ser a imagem nítida daquela forma singular e perfeita que enchia de graça a festa e a tarde. Fixei-a e ouvi-a. Ela falava ciciante para o companheiro, comentando a tarde bela, a pureza do céu, a alegria da multidão, toda a radiosa mocidade que a cercava (Revista da Semana, 15/06/1915).

Os signos da diferenciação e da elegância passam a ocupar grande parte das preocupações da revista de forma que “a busca dos sinais de distinção estava na ordem do dia, traduzidos por práticas também estimuladas e assimiladas via periodismo. A começar pela vestimenta, seguida das relações de sociabilidade, a ida ao prado, aos recitais” (Martins, 2001, p. 382).

A moda, por exemplo, ocupava grande parte das colunas de aconselhamento. Em um estudo sobre essa temática na Revista da Semana, de 1915 a 1918, Czrnorski e Meyer (2016, p. 250) apontam para o fato de que a moda aparece na publicação como um mecanismo de condecoração social, de forma que o vestir-se bem se configurava um ato de significação demarcador de identidades e posicionamentos de classe que ultrapassava a mera vestimenta e se espalhava em direção a atos e comportamentos tomados como adequados. “Verifica-se, então, um costume, um comportamento consolidado pela moda vigente que propunha trajes para mulheres – manhã, tarde e noite – para bailes, passeios, visitas, chás, teatro, interior (para o lar), campo, recepções, e cada qual com seus respectivos ornamentos e detalhes”. Assim “para o público feminino elitista, consideravam-se certas maneiras de convívio em sociedade como regras de etiqueta, cordialidade, saber conversar com as pessoas e ser agradável. O bom gosto da escolha da vestimenta era critério para ser, ou não, considerada distinta”. As seções de moda, portanto, eram acompanhadas por textos que versavam sobre comportamento, vida cotidiana, habilidades domésticas, decoração, cuidados com a beleza, entre outros.

Certa Europa imaginada compunha o ponto nodal a partir do qual a Revista da Semana organizava seus aconselhamentos sobre moda e comportamento. “A combinação dos adornos, dos tecidos requintados, ter bom gosto na escolha do vestuário seguindo as tendências da moda etc., não bastavam para as mulheres das elites cariocas” uma vez que “para ser considerada ‘chic’, distinta e elegante, era necessário ter os ‘trejeitos’ apropriados, saber se comportar em sociedade, frequentar bailes, teatros, os chás de caridade e ter o conhecimento das ‘prendas domésticas’” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 256), em um complexo afetivo-editorial que enfatizava a beleza também como um conjunto de valores morais e habilidades específicas.

Para Czrnorski e Meyer (2016) a qualidade dos tecidos utilizados tanto no vestuário quanto na decoração do lar era um importante elemento de distinção nas reportagens da Revista da Semana, de forma que era constante a sua categorização em elegantes ou mais simples. A qualidade do material não raro era correlacionada também às atividades e papéis destinados às mulheres, ganhando um caráter moral. Os ornamentos também eram um fator de distinção relevante e normalmente eram acompanhados de descrições sobre os lugares e ocasiões adequados de uso. Os cuidados de beleza também eram importantes como fatores de diferenciação social, sendo a manutenção da juventude a principal temática tratada. Não raro, as mães eram tomadas como responsáveis pela manutenção da beleza de suas filhas, como responsáveis pelos cuidados que iriam mantê-las jovens por mais tempo a partir da adoção de um conjunto de práticas. “Esse comportamento pode ser entendido como mais um elemento de distinção entre as classes sociais, contribuindo na construção do arquétipo do chic”, uma vez que “a beleza fazia parte do ‘conjunto’ na construção da imagem das mulheres das classes mais abastadas, diferenciando-as daquelas que não tinham tempo nem capital para tal” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 264).

Complementarmente a esses aspectos, a revista também criava diferenciações a partir de uma espécie de manual de boas maneiras, que indicava quais eram as leituras adequadas, quais conhecimentos de mundo dever-se-ia ter, quais as vivências necessárias, os hábitos mais saudáveis, os modelos de educação, entre outros aspectos do comportamento social. “Nesse sentido, as mulheres descritas na revista como chics, elegantes e distintas frequentavam os salões, os bailes, os teatros, as cerimônias importantes, sendo que, nesses ambientes, o cumprimento às normas de conduta, designadas para o público feminino, era rigorosamente observado” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 267).

Soma-se a essa questão o ideal higienista da Primeira República. Um corpo limpo e saudável passa a ser valorizado como uma questão importante e é ligado às formas de beleza. É possível notar um tensionamento entre a dificuldade de adaptar a moda europeia aos padrões climáticos nacionais (com seus tecidos grossos e pouco confortáveis às áreas tropicais), as dificuldades impostas pelas modas (com seus vestidos longos que se sujavam com facilidade) e tal ideal higienista. Não obstante, a ambição do Brasil moderno presente na Revista da Semana combinava certos preceitos de higiene à elegância e sofisticação, mesclando-os aos ideais de beleza. Um dos apelos mais importantes da publicidade do período e das colunas de aconselhamento voltava-se justamente para exploração da morte e da doença. “A concorrência entre os fabricantes de remédios fortaleceu a necessidade de recorrer a testemunhas ilustres e a exibir o nome de médicos, mesmo quando o produto anunciado era apenas um sabonete” (Sant’anna, 2014, p. 36). Não é por acaso que uma das editorias de aconselhamento da Revista da Semana chamava-se justamente Consultório da Mulher, embora pouco falasse de saúde e muito de beleza nesse espaço.

Acompanhado da simbiose entre os modelos de beleza e o ideal higienista, há também uma renovada valorização da aparência jovem. Ao contrário da valorização da tradição e dos laços de sangue que sustentavam parte do imaginário da elite monarquista, a República irá movimentar um trabalho simbólico de valorização do novo de forma que o combate à velhice conquista um espaço importante da publicidade:

Gilberto Freyre reconheceu que o período imperial havia morrido ‘sob as barbas brancas e nunca maculadas pela pintura do imperador D. Pedro II’, ao passo que, em seu lugar, resplandeciam as barbas escuras dos jovens líderes republicanos, ávidos pelo poder (Sant’anna, 2014, p. 25).

A questão comportamental não vinha sozinha na Revista da Semana, estando associada de maneira orgânica a universos de consumo bastante determinados. Tal como exposto por Martins (2001) cabia às mulheres “muitas das decisões de gastos diários. Desde os fortificantes para a prole, dentifrícios para a família, produtos alimentícios, sabonetes de qualidade no apuramento higiênico aos remédios para a ‘saúde da mulher’, produtos largamente anunciados pelas revistas”, tanto na publicidade como nas colunas de aconselhamento. “A aquisição de figurinos era o primeiro passo para a produção dessa nova mulher, atenta aos ditames da moda, via Paris” (Martins. 2001, p. 379).

Para tratarmos dessa questão é interessante observar que, conforme posto por Stillerman (2015, p. 111), as práticas de consumo sempre foram atravessadas pelas questões de gênero. Ao longo do século XIX, o consumo vulgar feito para o mantimento da casa era considerado uma atividade menos prestigiada e, por isso, pensada como uma atividade tipicamente feminina, um comportamento que se prolonga no século XX. Durante as primeiras décadas, as mulheres passam a ser representadas de uma maneira mais consistente como “especialistas em consumo”, principalmente a partir da óptica de um cuidado com a família e especialmente com as crianças. Apelava-se ao senso de responsabilidade das mulheres com a saúde de seus filhos e o bem-estar do marido.

A partir desses parâmetros é possível estabelecer que no projeto afetivo-editorial da Revista da Semana, a mulher era projetada como responsável pelo consumo da casa e, portanto, como fiadora desse conjunto de valores ligados à distinção. O consumo das mulheres, nesse sentido, não estava restrito aos produtos que ela própria consumia, mas sim ao consumo da família como um todo.

Os significados que preenchiam simbolicamente os sentidos distintivos que tais produtos deveriam ter se encontravam na cobertura jornalística que, imaginariamente, preenchiam o que significava ser elegante e sofisticado naquele desenho social. Esse direcionamento do projeto afetivo-editorial da Revista da Semana se mantém até, pelo menos, meados da década de 1930, quando outros pressupostos editoriais passam a ser dominantes no mercado de revistas brasileiro.

As relações de consumo nem sempre se deixam entrever nos lugares mais óbvios. Na Revista da Semana elas estão mediadas não apenas pelos anúncios que são publicados em suas edições – como lugares em que a evocação ao consumo aparece de forma mais imediata – mas também nas reportagens jornalísticas – não necessariamente no nível dos seus conteúdos específicos, mas sim, no complexo afetivo-editorial que é urdido pela publicação. Tal complexo afetivo-editorial é marcado tanto por um projeto editorial específico, comum às revistas ilustradas do período, em associação a mecanismos de convocação que são historicamente marcados.

As revistas ilustradas do início do século XX constituíram-se como espaços privilegiados de representação de uma sociabilidade da época “num momento em que a ascensão de uma classe média e a promoção da vida urbana contribuía para o surgimento de novos espaços públicos e eventos sociais para atender à demanda desses novos grupos: eventos, recepções, óperas, teatros, dentre outros” (Czrnorski; Meyrer, 2016, p. 252), constituindo-se em um mediador importante das relações de consumo.

O modelo afetivo-editorial da Revista da Semana está inserido em um contexto em que, pautada pela “reestruturação das cidades e do perímetro urbano”, de forma que “os passeios, bailes, chás, eventos de caridade, dentre outros, eram uma forma de socialização. O aumento dos espaços e das redes de sociabilidade levou à necessidade de um preparo específico para as novas atividades, passando, essa preparação, a integrar a educação formal e informal”. Tal modelo de educação implica em ideais de “civilidade, polidez, relacionado, nesse contexto, aos manuais de boas maneiras, aos protocolos que ‘devem’ ser seguidos conforme as regras da ‘boa educação’” (Czrnorski; Meyrer, 2016, p. 266). Ele materializava-se em variados aspectos: desde a forma de agir (andar, conversar, socializar, vestir) até os conhecimentos de mundo necessários para a socialização nesse imaginário. Eram esses elementos que, de uma maneira geral, formavam o complexo afetivo-editorial da Revista da Semana ao resumir todos esses aspectos sob o signo da elegância, materializado em imagens específicas.

O complexo afetivo-editorial da Revista da Semana é marcado justamente pela valorização dos signos da distinção social, evocando uma estrutura sentimental em que a convocação ao ser elegante era a linha mestra das estruturações do material jornalístico encontrado tanto em termos de escolha de assuntos quanto do enquadramento dado aos textos e às fotografias publicadas. A massificação da fotografia na imprensa brasileira acentuou a importância da aparência física (Sant’anna, 2014), mas não era apenas isso que estava em jogo na publicação: embelezar-se, para a Revista da Semana, é um signo de distinção (não é algo ao alcance de todos) e envolve um complexo afetivo-editorial que engloba comportamentos, habilidades e objetos demarcados.

A distinção é uma marca constituinte das relações de consumo, tal como explorado por diversos autores clássicos. Para Bourdieu (2007) a constituição do gosto – que é um aspecto determinante em muitos níveis dos atos de consumo – não é aleatória: ela é socialmente determinada e está diretamente vinculada aos sistemas de classificação social hierarquicamente estruturados. O que chamamos de estilo de vida, assim, “é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos” como mobília, vestimentas, linguagem etc., “a mesma intenção expressiva, princípio de unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados” (Bourdieu, 1983, p. 83). Para Douglas e Isherwood (2004), os atos de consumo são muito pouco marcados pela utilidade que os objetos possuem, mas sim, pelo valor acordado socialmente que é atribuído a eles e, por conseguinte, demarca certas posições sociais para o sujeito. Também para Baudrillard (1996, p. 10), o consumo “é uma função social de prestígio e de distribuição hierárquica”, de forma que podemos “considerar os objetos em si próprios e a sua soma como índice de pertença social, mas é muito mais importante considerá-los, na sua escolha, organização e prática, como o suporte de uma estrutura global do ambiente circundante, que é simultaneamente uma estrutura ativa de comportamento”.

Na Revista da Semana, a distinção articulava-se não apenas nesse nível mas também como marca constituinte de seu projeto afetivo-editorial, na articulação de uma espécie de manual de boas maneiras que, a partir de uma perspectiva bastante didática, mostra aos seus leitores quais preenchimentos deveriam ser dados ao signo genérico da distinção, guiando-os através dos caminhos do bom gosto.

A elegância era uma palavra-chave da distinção no período da Primeira República, de forma que “o andar e a prosa das mulheres eram muito importantes” para os cronistas do período: “enfeava-as definitivamente ou, ao contrário, dava-lhes graça e formosura” (Sant’anna, 2014, p. 13). Trata-se de uma herança ainda do século XIX, de forma que “nos centros urbanos em desenvolvimento no começo da República dizer que alguém era elegante figurava um elogio importantíssimo. A deselegância podia trazer sofrimentos atrozes, mesmo quando a sua definição permanecia vaga ou unicamente concentrada nas vestimentas e no porte físico” (Sant’anna, 2014, p. 30). Nesse sentido, manuais de comportamento (muitos deles importados da Europa) eram artigos comuns obtidos por mulheres do período. A Revista da Semana apresenta-se como um manual de comportamento, preenchendo progressivamente o signo vazio da elegância com um conjunto de características físicas e comportamentais que deveriam ser observados por seus leitores e estão materializados nas imagens e fotografias publicadas.

Ao longo do período estudado é possível notar que a elegância e a distinção são articuladas por diferentes tipos de materiais imagéticos. Em suas primeiras capas, nos primeiros anos da publicação, há o topos viril do militar e dos homens de poder que, paradoxalmente, é complementado com a virilidade do criminoso, ambos com a função de demarcar certas características masculinas tidas como desejáveis e atraentes, perpassando desde um modelo comportamental específico até a delimitação de certo savoir faire, seja pela via do positivo (no militar) ou da negação (no criminoso). A partir do final da década de 1910, essas figuras não são mais as protagonistas nas capas e a revista se consolida como uma revista feminina, trazendo em suas capas pela primeira vez a figuração da mulher complementada por uma escolha editorial que privilegia as colunas de aconselhamento. Nessa fase, os apelos à elegância e ao bom gosto ficam mais evidentes, contudo é inegável que eles estiveram presentes em todo o período estudado, especialmente se for considerado o conteúdo das imagens internas da revista. Desde 1900, a Revista da Semana dava uma grande atenção aos eventos da grande sociedade e às imagens do progresso brasileiro, no esforço de construir um ethos para a elite da época. É possível considerar que o conteúdo das fotos internas da Revista da Semana dava materialidade para o ideal de elegância construído nos textos, constituindo-se como as exemplificações dessa espécie de guia ou manual de boas práticas de elegância que era construído pela publicação.

O signo da elegância para A Revista da Semana é enquadrado como uma instância intransitiva, ou seja, desejável em si algo intrinsecamente almejável em seu projeto afetivo-editorial. Tal elegância, contudo, tem um significado múltiplo e flutuante que é preenchido de diferentes formas pelas fotografias que são publicadas. As imagens na Revista da Semana funcionam como suportes materiais dos afetos que dão conteúdo ao que significa ser distinto.

O consumo de produtos, bens e serviços não é colocado de maneira direta: ele está articulado nas afetividades evocadas que direcionam a um enquadramento minimamente comum do mundo – e especialmente do que é necessário consumir para habitar um recorte pautado pela elegância, sofisticação e distinção. Trata-se de um complexo afetivo-editorial que utiliza convocações para o consumo que são historicamente marcadas e que irão mudar ao longo do tempo.


* Eliza Bachega Casadei é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Professora titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (PPGCOM-ESPM).

 

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.

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[1] Foram descartadas da contagem capas que não versassem sobre temas jornalísticos (como aquelas que continham pinturas ou outras obras artísticas), de acordo com os objetivos da pesquisa.

 

Recebido em: 23 de fevereiro de 2017
Aprovado em: 06 de outubro de 2017