Ano XVI 0201
artigo
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54A! A INVISIBILIDADE SACRAMENTADA

Este ensaio propõe uma leitura sobre o bairro de Sacramento, usando como norte o percurso da linha de ônibus são-gonçalense 54A. Situado no município de São Gonçalo, o bairro é cercado por regiões de conflito armado, sendo ele próprio palco de constantes tiroteios. Suas estruturas urbanísticas são precárias, carecendo de meios indispensáveis para a vida, como o saneamento básico ou o acesso eficiente a tratamento médico público. O ensaio Necropolítica (2016) e o livro Crítica da razão negra (2014), ambos escritos pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, fornecem o aporte teórico para pensar em Sacramento e suas tessituras. O objeto de análise é o bairro de Sacramento e a linha de ônibus 54, representados na arte feita por mim: mulher, negra, moradora do bairro e passageira da citada linha de ônibus.

54A – uma janela para o Sacramento

O que mais me aproximou do pensamento de Mbembe em Necropolítica (2016) e Crítica da Razão Negra (2014) foi identificar em suas palavras sobre raça e sociedade a imagem de Sacramento, um bairro onde os ônibus lotados vão para “despejar” os trabalhadores no começo da noite. Lembrei-me desse local onde resido. Um lugar repleto de pessoas pobres e em sua maioria negras – é importante notar que entendo como pessoa negra aquela que é preta, mas também aquela que é parda.

O Negro, nomeado com tal por alguém que não ele mesmo, é a figura multiplicada a habitar tanto as páginas de Mbembe como o meu Sacramento. Pontuo isto tendo como base o axioma de Mbembe (2014), que cirurgicamente investigou o termo Negro, para expor a origem de caráter fetichista e reificadora dessa palavra enquanto ferramenta de construção do Outro. Sendo o Outro, o indivíduo nomeado Negro torna-se candidato ao “alterocídio” (Mbembe, 2014, p. 26).

Essa pessoa, nem rica, nem branca, é o trabalhador instrumentalizado para ser usado pelo sistema capitalista até que se esvaiam suas forças, ou até que seja abatido pela violência sistêmica. O “esvai-se” escrito aqui representa a realidade de uma parcela considerável de trabalhadores que não gozam de uma calma aposentadoria, pois precisam complementar a renda para sobreviverem. Dessa forma, “mesmo aposentados, 21% dos idosos continuam trabalhando, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil” (CNDL, 2018).

Ser não negro, no entanto, não afasta o trabalhador da reificação que tende a acometê-lo quando se é pobre. Para Mbembe (2014, p. 21) estamos caminhando cada vez mais em direção a um “devir-negro do mundo”, em que trabalhadores da modernidade vivenciam a precarização do trabalho em todos os âmbitos, tal ocorrera sistematicamente com os laboriosos negros ao longo da história. Exemplo disso é a retirada de direitos sofrida pela classe trabalhadora brasileira nos últimos anos. Para discorrer sobre a precariedade do trabalho reflito, principalmente, acerca da mobilidade entre locais de trabalho e residência.

Quando o ônibus da linha 54A – Alcântara x Meia Noite abrolha no ponto de parada em Alcântara, minha família abdica de todos os afazeres não concluídos e embarca imediatamente na referida condução, geralmente afoita. Não importa se ele partirá em cinco ou vinte e cinco minutos, o importante é ocupar seu espaço no raríssimo 54A e voltar para casa, com as bolsas pesadas. A imprevisibilidade é uma característica da tão estimada linha, então poucos deixam passar a oportunidade de apresentar seu Rio Card à máquina do Meia Noite.

Figura 1: Nataly Costa, 54A!, 2020
Figura 1: Nataly Costa, 54A!, 2020

 

Acontece que o dito ônibus, em seu percurso, passa pela rua Domício Porto Filho, que corta o bairro de Sacramento, situado no município de São Gonçalo. A um custo de três reais e noventa e cinco centavos, ele carrega os passageiros aos sacolejos, até o movimentado polo comercial de Alcântara. Sem asfalto nem calçadas, a Domício Porto Filho se transforma em um desafio ao fim de um dia exaustivo de trabalho ou estudo. Percorrê-la a passos médios custa de quinze a vinte minutos, em meio a densa poeira, temperaturas altas e perigos urbanos, por isso o ônibus torna-se um alento para os moradores da região.

O bairro de Sacramento, sacramentado em sua ausência de urbanização ou até humanização, segue sem rede de esgoto tratado, sem ruas asfaltadas e com poucas possibilidades de locomoção, como serviços de transporte como Uber e 99, pois a região é temida por seus constantes confrontos armados. Não posso deixar de ressaltar que os Correios também temem Sacramento. Não são feitas entregas postais nessas cercanias sacramentadas.

O temor que Sacramento impõe não parte do receio de seus visitantes de perder os bens materiais em um assalto. Não. Nesse bairro, residencial, o que acomete os de fora é o risco da “destruição material de corpos humanos” (Mbembe, 2016, p. 125). Aqui emprestei as palavras de Mbembe novamente, para lembrar que o ato de entrar no bairro em um automóvel, não baixar os vidros das janelas, não ligar o pisca-alerta e não acender o farol do carro é arriscar a própria vida. O bairro, germinado em um vale densamente povoado, é fruto de disputa entre facções rivais. Os tiroteios se abundam quando de tempos em tempos os “alemães” tentam invadir o local: “Troca de tiros entre traficantes deixa morador ferido no Sacramento em São Gonçalo – Facções disputavam o controle das drogas” (Troca…, 2017). As máquinas de guerra desfilam entre transeuntes acostumados à guerrilha urbana, à luz do dia, em meio à movimentação sempre acalorada do bairro, bem servido de comércio e delícias palatáveis, como um copo grande de açaí coberto por doces e afins a um preço razoável. Às vezes, os tiros trocados impedem a passagem do 54A. Isso é lamentado fortemente pelos adeptos da apreciada condução.

Sacramento pode ser pensado como um bairro dormitório, abandonado pelas autoridades, mas fervilhante de vidas que insistem em preencher seus espaços. É uma zona repleta de terra batida, com casas precárias e gente trabalhadora e desassistida. Esses proletários, que no sentido mais puro da palavra produzem proles, são os pais das crianças e adolescentes que brincam ou vagam pelas ruas de Sacramento, a despeito das balas que passam traçantes ou da poeira que o 54A levanta quando surge sacolejante. Eles são meus alunos no CIEP Mora Guimarães, eles são filhos de alguém, mas antes de tudo, eles são do vale ainda repleto de árvores, cravado em um município com aproximadamente 1.091.737 habitantes, segundo o IBGE (2020).

Essas meninas e meninos, “a prole”, passam pela vida com um tom de efemeridade. Foi nesse Sacramento que uma bala perdida atingiu Yasmin Cristina Gomes Silva, de 14 anos, no ano de 2018. A aluna do CIEP Mora Guimarães não retornou às aulas, pois perdera a visão dos dois olhos por causa do ferimento à bala. O seu corpo seguirá marcado pela guerra urbana, e, ao contrário das vítimas pensadas por Mbembe (2016), Yasmin não pode encarar a marca que lhe foi imposta.

Esses corpos trazem em si mesmos uma memória tatuada, como um arquivo vivo, palpitante, que alerta aos moradores e visitantes onde eles estão. Eles não estão nas zonas protegidas, cercadas de muros erguidos pela classe média, eles não estão nos condomínios de luxo da classe alta, eles estão em Sacramento, onde as memórias são faladas, às vezes sussurradas, mas raramente escritas.

Achille Mbembe, em Necropolítica (2016, p. 123), apresenta o pressuposto de que a soberania se situa na potência de eleger quem vive e quem morre. Nesse cenário, aqueles que portam as armas, que possuem falos e detêm a autoridade provida pelo crime organizado ou pelo Estado exercem o “direito de matar”. Yasmin viu-se impotente, em meio aos projéteis que lhe cobraram os dois olhos. É provável que o 54A não tenha podido passar pelo Complexo do Anaia no fatídico dia em que a bala encontrou a aluna do CIEP 423.

Ainda pensando no conceito de permissão para viver, como proposto por Mbembe (2016), é válido citar que Sacramento não tem um posto de saúde. O mais próximo da localidade é o posto do bairro vizinho, Barracão, que serve aos moradores do entorno. A pequena unidade médica, no entanto, sempre é acometida pela partida repentina de seus médicos. Assustados com a dinâmica da região, os clínicos vêm e vão, não permanecendo no posto nem o suficiente para que seus nomes sejam aprendidos pelos pacientes. Quaisquer tratamentos mais refinados requerem o deslocamento para longe das cercanias de Sacramento. Ademais, andar pelas ruas do bairro se torna um desafio e tanto para aqueles que têm alguma dificuldade de locomoção.

 

Figura 2: Nataly Costa, Poças na rua Domício Porto Filho, 2020
Figura 2: Nataly Costa, Poças na rua Domício Porto Filho, 2020

 

Ainda assim, nem só de agruras vive Sacramento. O bairro ainda tem o privilégio de possuir uma persistente parte da Mata Atlântica e plantas vindas de outras regiões. Assim ele exibe fartas mangueiras, suntuosas palmeiras, coloridos ipês, leucenas abundantes, flamboyants, cajueiros, jaqueiras e goiabeiras e, ainda que pareça improvável, também altos pinheiros.

O local é um exemplo da preservação da floresta nativa que ocupa cerca de 30% do estado do Rio de Janeiro, segundo o INEA (2020). A fauna do bairro também é variada: saguis, pica-paus, jiboias e gambás misturam-se a inúmeros animais domésticos como cabras, vacas, cavalos, porcos, gatos e muitos cachorros. O 54A, em sua passagem pelo bairro, vez ou outra diminui sua velocidade para respeitar a passagem de rebanhos que seguem sem pressa.

As ladeiras de Sacramento, por sua vez, são imperiosas. Elas cobram do viajante grande vigor e empenho. Não é à toa que no bairro existe um local apelidado Morro do Céu. Os que vivem lá têm o costume de subi-lo em zigue-zague, na esperança de que a caminhada de um lado ao outro e um pouco para cima amenize o penar da subida. Quem faz esse caminho é curiosamente observado pelas famílias de saguis. Do alto do Morro do Céu é possível divisar não só quase todo o Sacramento, como os bairros do Barracão, do Pacheco, da Amendoeira e do Bichinho. Bichinho, por sua vez, é um pedaço de Sacramento, área de forte confronto e limite de alcance para os mais assustados. É pelo Bichinho que o 54A passa para sair de Sacramento e rumar, bairro a bairro, até chegar em Alcântara.

O 54A – Alcântara x Meia Noite tem um irmão gêmeo: 54 – Meia Noite x Fórum. Com extensão maior de percurso, essa linha parte do Anaia e vai até próximo ao Clube Mauá, no centro de São Gonçalo. Enquanto o 54A tem um total médio de 9,7 km, o 54 tem 17,5 km. Sua frequência é ainda menor que a de seu semelhante. Outra linha que despontava em Sacramento era a 553 – Legião x Niterói, mas desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil a linha perdeu sua regularidade, passando raramente pelas cercanias do bairro. Segundo o site Moovit, a linha 54A – Meia Noite x Alcântara tem 37 paradas, com duração de viagem de vinte e dois minutos em média, funcionando em todos os dias da semana.

As três linhas não têm ar-condicionado, mas evitam uma caminhada na Domício Porto Filho, tomada por lama e poeira, ou a sensação térmica alta nos verões do Rio de Janeiro. Assim, quando as estações de calor chegam, o 54A se torna imprescindível para a saúde dos moradores de Sacramento. O bairro está localizado em um município com a média de temperatura em torno de 35°C.

São Gonçalo, estabelecida como tal em 1890, tem a extensão territorial de 249,25 km² e pertence à região metropolitana do Rio de Janeiro. O segundo maior colégio eleitoral do Estado, caracteriza-se por sua segregação socioespacial. A heterogeneidade de classes no município destaca-se pela diferença entre bairros bem assistidos pelas autoridades, habitados pela classe média, e bairros desassistidos, habitados pela classe baixa.

O artigo “A segregação socioespacial no município de São Gonçalo, RJ: uma análise a partir do acesso ao saneamento básico” (Britto et al., 2017) discute a desigualdade no município a partir da reflexão acerca do saneamento básico. Seus autores, Ana Lucia Britto, Andreza Garcia de Gouveia, Thiago Giliberti Bersot Gonçalves e Rosa Maria Formiga Johnsson, concluíram que, embora a região apresentasse recortes elitizados, como a presença de shoppings, por exemplo, a população pobre segue negligenciada.

Sacramento está inserido na parcela desassistida de São Gonçalo, mas mesmo dentro de seu próprio espaço o bairro apresenta bolsões de territórios privilegiados: as cercanias que beiram a estrada de Santa Izabel têm inúmeras farmácias, comércios alimentícios de toda sorte, lojas de roupas, eletrônicos e cuidados pessoais. As residências têm acabamento e as ruas próximas à estrada começam a esboçar algum concreto. Aqueles que vivem perto da estrada não dependem do 54A. Eles são servidos pelo 01 – Santa Izabel x Alcântara, que vez ou outra disponibiliza ônibus com ar-condicionado.

Barulhento e musical, Sacramento apresenta fartura em apreço por ruídos e pavor pelo silêncio. Até os animais do bairro se esforçam determinadamente para excluir toda possibilidade de calmaria. Os rádios em alto som disputam entre si, entoando sambas de raiz, pagodes, louvores e o já tradicional funk “proibidão”. Nessa efervescência de sons, o bairro agita-se cedo nas manhãs e dorme tarde da noite, a despeito da pandemia.

Seguindo a tradição musical, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Sacramento foi fundado em 1996. A agremiação tornou-se pentacampeã em São Gonçalo entre os anos de 1999 e 2003. A vermelho e branco de Sacramento tem como seu símbolo um pégasus, tendo homenageado os funkeiros Claudinho e Buchecha em 2003 com o enredo “Os meninos de São Gonçalo que encantaram o mundo, Claudinho e Buchecha”.

Faz-se aí, na história da Unidos do Sacramento, um intento de arquivamento. A história da escola de samba é uma das poucas informações a respeito do bairro encontradas na internet, além das notícias sobre a violência urbana, é claro. O registro escrito da história contemporânea de São Gonçalo encontra-se espalhado ao vento pela web. A oralidade, no entanto, é a ferramenta furtiva, que narra e faz lembrar as histórias desse lugar à margem.

 

Figura 3: Nataly Costa, Pés Cansados, 2020
Figura 3: Nataly Costa, Pés Cansados, 2020

 

É a partir desses constructos de imagens psíquicas entrelaçadas (Mbembe, 2014, p. 180) que é tecida a memória à qual recorro para entrar no campo da representação, aqui exposta em palavras e ilustrações. Nelas o apreço pelo 54A vem borrifado com pitadas de uma indignação saturada. Vem ao lado do desalento por não termos ruas pavimentadas. Vem de mãos dadas com a constatação de que nossas necessidades não são visíveis aos olhos das autoridades. Mbembe (2014) concluiu que quem tem a potência de decidir o que deve ser visto e o que não deve ser visto na colônia manda. Reflito que é daí que vem essa inquietante invisibilidade de Sacramento. Nesta cegueira planejada o próprio trabalhador deixa de se enxergar. Deixa de ver as agruras e as bonanças que o cercam. Ao não se ver ele se anula, perdendo o precioso poder de massa que classe trabalhadora possui.

Ao tornar-se novamente vidente a classe tem a potência de encarar-se outra vez. De ver os calos das mãos e a insistente lama nos pés. Embora as bocas possam reclamar da precariedade da locomoção no bairro, são os pés as verdadeiras testemunhas torturadas que percorrem a lama, a poeira, os buracos e as pedras. São eles que se apressam quando o confronto armado chega. Então é justo que eles, os pés cansados, sejam aqui representados na ilustração Pés Cansados.

São os Pés Cansados que sustentam o peso do corpo e têm contato com o solo desnudo. São neles que se agarra a amálgama formada na via não pavimentada. Longe de ser como uma romântica terra fresca bucólica, essa amálgama é composta por lixo, excrementos de animais de toda sorte e água empoçada. As poças insistentes, que retornam a despeito da tentativa dos moradores de enterrá-las, tornam-se referência para quem quer indicar determinado ponto da rua Domício Porto Filho: “Ali! Logo depois da poça perto da igreja!”.

Por isso, nesta ilustração, assim como na ilustração Poças da Domício Porto Filho, o requadro da imagem é baixo, para que possamos ver ao nível do solo. Para que possamos olhar o que está perto do chão, fazendo toda a dinâmica do avançar e do carregar acontecer. Não é por acaso que esses Pés Cansados, que sustentam todo o corpo e seus acessórios, se assemelham com a massa de trabalhadores esmagados pelo sistema capitalista liberal.

Trabalhadores sacramentados

Essa região é apenas mais uma de muitas. É produto de um sistema capitalista liberal que sustenta as diferenças de classe, que racializa e depois nega o racismo, que ignora as questões de gênero e que abandona o trabalhador afogado numa multidão a se proliferar. Nesse cenário o laborioso torna-se uma máquina endividada cuja vontade própria já se encontra esquecida. O respeito por si, por sua condição humana, por seu trabalho, é eclipsado pelo desejo de possuir os “espelhos e miçangas” que a modernidade oferece em troca da sua labuta dura e incessante.

É através do desejo que a colônia domina o colonizado (Mbembe, 2014, p. 205). Foi esse o grande segredo que o filósofo camaronês compartilhou em seu livro. Assim, numa confusão que emaranha o “bem estar” com o “possuir”, o trabalhador segue tentando captar e acumular um capital que raramente é acumulado por ele, uma vez que a mobilidade entre classes é rara e a própria existência de classes – tão distanciadas entre si – condena o trabalhador a viver incessantemente uma réplica cristalizada de sua subalternidade. Mbembe observou que estamos muito distantes de uma era pós-racial, da mesma forma que nos encontramos distantes de uma justiça de classes.

Ainda assim é possível tomar para si o nome “trabalhador”. É possível apoderar-se dele subvertendo-o em favor do grupo. Mbembe (2014) comentou como um termo abjeto, como a palavra Negro, difundida pelos colonizadores, pôde ser subvertido e transformado em beleza, orgulho e insurreição. Uma reviravolta que toma o nome das mãos dos colonizadores e o transforma em combustível para a resistência. Negro torna-se poder.

O “devir-negro do mundo” tem sua amostra nesse bairro da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, onde a música só para quando os tiros começam, os trabalhadores seguem repetindo um misto de viver e sobreviver. Seguem desconhecendo a força que têm como categoria e classe. Sem perceberem que, assim como a palavra “Negro” fora subvertida em prol do empoderamento e da luta contra o racismo, a palavra “Trabalhador” pode tornar-se uma potência, capaz de revolucionar a sociedade e entregá-la a quem sempre a sustentou.

Sacramento é a realidade da imutabilidade de um bairro invisível aos olhos das autoridades competentes. Os anos se passam, o bairro cresce demograficamente, preenche-se de comércios diversos, mas segue sem asfalto, sem calçadas, sem previsão. Mesmo assim, para além da permanente insistência do descaso para com Sacramento, lá está o 54A, a esperança de que não vamos carregar as bolsas pesadas a passos cansados. Isso, é claro, se apresentarmos nossos Rio Cards à máquina do Meia-Noite.

54A!


*Nataly Costa é licenciada em Educação Artística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestranda em Artes Visuais pela UFRJ, ilustradora e quadrinista independente.
Referências

BRITTO, Ana Lucia; GOUVEIA, Andreza Garcia de; GONÇALVES, Thiago Giliberti Bersot; JOHNSSON, Rosa Maria Formiga. A segregação socioespacial no município de São Gonçalo, RJ: uma análise a partir do acesso ao saneamento básico, XVII ENANPUR, São Paulo, 2017. Disponível em: http://anpur.org.br/xviienanpur/principal/publicacoes/
XVII.ENANPUR_Anais/ST_Sessoes_Tematicas/ST%204/ST%204.7/ST%204.7-01.pdf
, acesso em: 14 set. 2020.

CNDL. Mesmo aposentados, 21% dos idosos continuam trabalhando, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil. CNDL, 11 dez. 2018. Disponível em: https://site.cndl.org.br/mesmo-aposentados-21-dos-idosos-continuam-trabalhando-revela-pesquisa-cndlspc-brasil/, acesso em: 14 set. 2020.

IBGE. População estimada: Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Estimativas da população residente com data de referência 1º jul. 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama, acesso em: 14 set. 2020.

INEA. Estudo do Inea confirma conservação da Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro. INEA, 9 jun. 2020. Disponível em: http://www.inea.rj.gov.br/estudo-do-inea-confirma-conservacao-da-mata-atlantica-no-estado-do-rio-de-janeiro/, acesso em: 14 set. 2020.

MBEMBE, Joseph Achille. Necropolítica, Arte & Ensaios, Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dez. 2016.

MBEMBE, Joseph Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2014.

MOOVIT. 54A – Meia Noite x Alcântara. Disponível em: https://moovitapp.com/index/pt-br/transporte_p%C3%BAblico-line-54A-Rio_de_Janeiro-322-870417-678803-0, acesso em: 14 set. 2020.

TROCA de tiros entre traficantes deixa morador ferido no Sacramento em São Gonçalo – Facções disputavam o controle das drogas, O São Gonçalo, São Gonçalo, 18 dez. 2017. Disponível em: https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/49700/troca-de-tiros-entre-traficantes-deixa-morador-ferido-no-sacramento-em-sao-goncalo, acesso em: 14 set. 2020.