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iMaGeNSoNS: sincronias entre acontecimento e narrativa | de Marcus Bastos

O tempo montando sobre o corpo sua lanterna mágica e fazendo coexistir os planos em profundidade.
Marcel Proust

Dois homens passam apressados diante do Conjunto Nacional, fones-de-ouvido que parecem não impedir uma sintonia incompatível com os bulbos dentro da orelha[1]. Os fios brancos que balançam em volta do pescoço chamam menos atenção que a parada súbita diante de uma loja qualquer. Não porque, hoje em dia, o branco cintilante dos cabos de fone-de-ouvido cause menos estranheza que desejado por Steve Jobs ao incluí-los no iPod[2], mas pela coreografia que executam. Um deles pousa a mão sobre o ombro do outro. Evento minúsculo, que poderia desaparecer na ampla confusão paulistana, não fosse a ênfase nos gestos (decididos? desajeitados? tímidos? espalhafatosos?). Ainda mais que, mesmo sendo noite de lua cheia, é sem precedentes a concentração de acontecimentos[3] fortuitos nos 300 e poucos metros que separam as ruas Augusta e Padre João Manuel.

Sem saber, quem andava nos arredores participava de Como se fosse a última vez…, narrativa[4] em que voluntários encenam instruções ditadas por um roteiro sonoro ouvido em dispositivos portáteis guardados nos bolsos ou fixos no corpo de alguma outra forma. O mp3 distribuído para os inscritos na performance (uns também não sabem quem são os outros, e não podem ouvir o roteiro antes da hora marcada para o encontro) propõe gestos e atos que enredam o espaço público geralmente impessoal das grandes metrópoles em acidentes sutis, de sincronia imprevisível e cumplicidade discreta. O excesso de normalidade revela aspectos pouco percebidos, apesar de rotineiros, da situação proposta. Deslocando para outro contexto a afirmação de Deleuze, seria possível dizer que estão “entregues a algo intolerável: sua própria cotidianidade”[5]. Como num plano sem corte do cinema-direto, é radical a sincronia entre acontecimento e narrativa.

Remetendo a uma versão super realista da cena em que Cecilia salta para fora da tela, em A rosa púrpura do Cairo, a subtlemob[6] rompe o limiar entre ficção e realidade, conforme seus participantes se misturam aos transeuntes incautos (não aqueles aglomerados na multidão do conto de Allan Poe, mas quem circulava na região da Avenida Paulista em 27 de Novembro de 2010). Mais que semelhanças, as duas propostas tem diferenças significativas, que permitem discutir o que distingue o cinema de manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e o audiovisual em mídias móveis. Uma distinção óbvia entre o filme e a subtlemobé o enredamento complexo proposto no segundo, através da sobreposição entre trilha sonora fictícia e mundo real. O efeito de coincidência entre narrativa e vida, num espaço que oscila entre a rotina e interferências inesperadas, rearticula ambas de forma recíproca, imprevisível, difusa, constante durante o tempo em que a performance é executada, e imediata[7].

O filme de Woody Allen, assim como outros que se empenham em desestabilizar a barreira imaginária entre os espaços ficcional e de fruição, serão sempre jatos de luz acomodados entre as quatro arestas que emolduram a tela no fundo de uma sala de cinema. Como se fosse a última vez… materializa e amplia o trajeto da personagem vivida por Mia Farrow, que se projeta mundo adentro. Mimese literal das fraturas entre filme e público criadas por Godard, possivelmente o cineasta que procurou mostrar com maior insistência que seus filmes eram construções a partir de realidades contraditórias, e não decalques de mundos estáveis ou fabulações especulares de imaginários imaculados.

É como se a tecnologia tornasse possível o desejo reiterado de fratura entre tela e público, inaugurando um cinema espraiado, que dissolve o regime de exibição na forma de uma janela para o mundo, em favor de uma ocupação direta do mundo[8]. O que não garante qualquer tipo de vantagem irreversível para os formatos que se beneficiam da diferença entre projeção em sala de cinema e acontecimentos no espaço. Há tanto filmes capazes de extrapolar os limites impostos pela tela às experiências com imagem e som recortadas em seu quadrante fixo quanto obras em mídias digitais presas ao roteiro de seus programas — e vice-versa. E, se a exibição de filmes em salas escuras dá sinais de obsolescência, é antes pelo ritmo vertiginoso que faz o mundo girar em círculos como quem segue adiante, que pelo esgotamento da experiência cinematográfica[9].

A comparação entre o instante de Como se fosse a última vez… e a cena de A Rosa Púrpura do Cairo permite listar algumas características dos formatos audiovisuais que surgem com a popularização das tecnologias de realidade mixta[10] ou realidade aumentada. A narrativa não acontece mais na tela, e sim em lugares específicos; o público não é mais espectador, mas participante (ou coautor); o roteiro nem sempre conta uma história, e geralmente propõe regras; nem sempre há atores, mas é comum o recurso a voluntários e o estímulo de acontecimentos espontâneos e temporários. Não há apenas uma coincidência entre acontecimento e narrativa, mas também a diluição da fronteira entre o lugar da narrativa e seu contexto[11]. Isso só é possível em função do uso cotidiano de dispositivos em rede que geram espaços informacionais cuja invisibilidade não os impede de remodelar de forma significativa arquitetura, geografia, fluxos sociais etc. São formas de construir espaços híbridos, em que ficção e realidade mudam de sentido de formas nunca imaginadas. Há elementos comuns ao universo dos games nesses formatos mais abertos, em que a participação se torna imprescindível para o desenrolar da narrativa.

Se assim a humanidade caminha entre virtualidades, resta saber qual o rumo do cinema em tempos de cultura digital. A resposta não é simples. Não bastasse a miríade de rotas que as tecnologias audiovisuais sugerem (resoluções cada vez mais altas, 3-D, síntese numérica, edição em tempo real, consumo em trânsito nas telas portáteis de celulares e tablets), certas reconfigurações da produção audiovisual parecem colocar em dúvida o próprio conceito de cinema como uma noção suficiente para explicar as sequências articuladas de imagem e som inventadas a reboque da multiplicidade de câmeras e dispositivos de edição surgidos nas últimas décadas.

O problema não é tanto a heterogeneidade de rumos sugeridos, mas a obtusidade das histórias do cinema melhor conhecidas. Conforme aponta Michael Punt, em The Jelly Babe OnMyKnee, “há alguma evidência de que o Cinematógrafo não emerge de uma obsessão com realismo e movimento como as histórias materialistas reivindicam”. Punt sugere que “a convergência de uma obsessão com outras dimensões e um desvio radical no relacionamento entre pessoas comuns e tecnologia convergiu para um número de máquinas e as reinterpretou, para satisfatoriamente estabilizar ideias irreconciliáveis. Não reconhecer este fato contribuiu para uma história frouxa do cinema, que se tornou uma barreira ao nosso entendimento do cinema, agora e no futuro”[12]. Este caráter ecsomático, que Punt atribui ao cinema, ressalta seu elemento mágico. Há algo de assombroso num mecanismo que faz corpos e coisas aparecerem diante do olhar e, além disso, mostra o invisível (o sonho de um personagem, os detalhes perceptíveis apenas em slowmotion etc.). A relação entre cinema e magia proposta por Punt (retomando um tema caro a Walter Benjamin) é uma chave para entender a história do audiovisual de uma perspectiva menos centrada no mecanismo de contar histórias. É uma forma de perceber o cinema como uma linguagem que modela experiências, pelo uso da luz. O filme como condutor de percepções advindas de mundos externos ao real[13]. Nesse sentido, haveria uma proximidade entre o cinema e o paranormal, na medida em que um filme é uma forma de incrustar no imaginário de quem o assiste mundos inexistentes ou extraordinários[14].

Esta abordagem outra da história do cinema não representa exatamente um surto de heterogeneidade. A produção audiovisual sempre foi mais versátil do que as histórias oficiais do cinema, com base no surgimento da chamada narrativa clássica. O primeiro cinema, a visual music e o cinema abstrato são apenas alguns exemplos de um tipo de imagem que remete antes às paisagens interiores da memória que aos acontecimentos do mundo, para retomar a contraposição proposta por Gilles Deleuze. O filósofo francês ressalta que “o cinema europeu defrontou-se muito cedo com um conjunto de fenômenos: amnésia, hipnose, alucinação, delírio, visões de moribundos e, sobretudo, pesadelo e sonho”. Para Deleuze, isso era “um meio de romper com os limites “americanos” da imagem-ação, e também de atingir um mistério do tempo, de unir a imagem, o pensamento e a câmera no interior de uma mesma “subjetividade automática”, em oposição à concepção demasiado objetiva dos americanos”[15]. André Parente recupera este tema em Tudo Gira: “As imagens-sonho formam um vasto circuito (“o envelope extremo de todos os circuitos”, segundo Deleuze), em série de anamorfoses em que cada imagem,na sua relação a imagem seguinte, que a atualiza, como na famosa imagem de O Cão Andaluz (1928), onde a imagem da lua, cortada por uma nuvem,  dá lugar a imagem de um olho, cortado por uma navalha”.

Um bom ponto-de-partida para discutir a consistência do termo cinema, e sua capacidade de abranger os formatos audiovisuais mais recentes aqui discutidos, é o livro Expanded Cinema, de Gene Youngblood. Mesmo interessado em fenômenos discrepantes da cinematografia mais convencional, Youngblood não abandonou a palavra usada para descrever a linguagem inventada e reinventada por nomes como Meliés, Godard e Von Trier. A diversidade de cinemas existentes na história do cinema parece encorajar o apego ao termo, mesmo que o próprio Youngblood considere que seu livro surge “no fim da era do cinema como o conhecemos, o começo de uma era de troca de imagens entre homem e homem”[16].

Youngblood declara a transmissão do pouso na Lua um emblema desse momento em que os homens passam a ver outras imagens. Ele descreve com sagacidade o efeito de desrealização produzido pela lineatura espessa da imagem de tevê em baixa resolução (basta imaginar que um aparelho da época tinha um número de linhas equivalente a menos de um quarto do tamanho das telas de computador mais comuns às vésperas de 2012). A textura porosa, associada ao feito inédito, que muita gente pensava ter sido uma simulação, tornavam a transmissão incrível (tão sensacional quanto difícil de acreditar, para usar o sentido que Flusser propõe no artigo Coincidência Incrível[17]).

O texto de Youngblood deixa entrever os efeitos da combinação entre imagem precária e realidade fantástica no imaginário da época. Mesmo mentes esclarecidas e poderosas como a do teórico, ou visionários como Stewart Brand (criador do Whole Earth Catalog, uma das publicações símbolo da contracultura), demonstram mais fascínio que discernimento, quando falam sobre a missão da Apollo 11. Certamente, o pouso do homem na Lua produz efeito equivalente à descoberta de Copérnico. Ver o planeta como um ponto mínimo num espaço vasto faz pensar em quanto um corpo é insignificante diante de tamanha amplitude.

Ver o planeta como um ponto mínimo e perceber que as imagens em movimento tornam-se menos precisas no registro eletrônico mudam o mundo de forma definitiva, mas isso é assunto para um longo livro, em parte já escrito por Youngblood. Corte, então, para o cinema: os filmes já não eram tão épicos quanto a realidade; as imagens, no início de um processo de multiplicação que se revelaria vertiginoso, já não eram sempre nítidas ou amplas como o cinemascope. O regime audiovisual torna-se, aos poucos, um regime de maior granularidade sintática e também se configura a partir de seus modos de transmissão.

Quem viu as primeiras imagens em movimento também sentiu um deslocamento cujo fascínio é difícil discernir[18]. Foi preciso mais de meio século para que os novos cinemas construíssem um repertório de filmes engajados em procedimentos capazes de reverter o amortecimento produzido por esse truque de luz (para usar a expressão precisa usada por Wim Wenders no título do filme em que resgata os primórdios do cinema na Alemanha). E, ao mesmo tempo em que o cinema reverte esse elemento que oscila entre o mágico e o demiúrgico, surgem novos deuses na tela[19]. O mundo que recebe a tevê de salas abertas é o mesmo em que, ainda segundo Youngblood, Michael Snow, “confronta diretamente a essência do cinema: os relacionamentos entre ilusão e fato, espaço e tempo, sujeito e objeto”[20]. Wavelenght, um de seus filmes mais conhecidos, tem uma única tomada de mais de quarenta minutos. Um amplo estúdio, pouco a pouco dissecado por um zoom sistemático. É um dos muitos filmes da época que igualam sua duração à duração dos acontecimentos filmados (numa espécie de etnografia reversa como a proposta por Andy Warhol em seus retratos filmados). É uma cinematografia mais interessada em revelar os procedimentos da câmera diante do mundo, que preservar a autenticidade do que é mostrado, transformando pessoas e coisas em personagens de ficção feitas de realidade. São filmes que ilustram a provocação feita por Godard, quando afirma que o documentário é uma ficção sobre a vida dos outros.

Uma série de fatores conduzem a esse contexto em que não se fará mais cinema como antigamente. A história dos novos cinemas e da videoarte são melhor conhecidas, ao menos no âmbito dos estudiosos da linguagem audiovisual, que a convergência entre produção de imagem e transmissão. Em ArtoftheElectronic Age, Frank Popper afirma que “a circulação instantânea de informação dissociada dos limites geográficos, resultante [da chegada de tecnologias sofisticadas de processamento de informação], sobrepujou nossa percepção tradicional do mundo”[21]. É um processo que se articula pelo gradual abandono da tela como janela para o mundo. Os dois trabalhos analisados a seguir ilustram esse processo. Não é uma cronologia exata, já que as instalações surgiram antes que os ambientes virtuais. Em todo caso, é significativa a forma como ambos fraturam de alguma forma a lógica de enquadramento. Ambos permitem propor um trajeto da história do audiovisual que vai do surgimento do enquadramento ao estilhaçamento da tela, tendo como estágio intermediário a invenção das interfaces que permitem ao usuário mudar o enquadramento[22].

Um bom exemplo é Desertesejo, de Gilbertto Prado. É um ambiente de realidade virtual que explora a tensão entre encontro e isolamento. Modelado em VRML[23], permite que seus usuários experimentem diferentes pontosdevista, conforme o avatar[24] que escolhem. Navegar pelo ambiente implica duas formas de escolha. É possível movimentar a câmera por meio de gestos do mouse, transformando o usuário em coautor dos ângulos e travellings executados. É possível rastejar, voar ou caminhar pelos desertos inventados com precisão irônica. A riqueza das experiências possíveis tem menos relação com o realismo inverossímil que com o convite ao retiro compartilhado. Tanto em termos de metodologia de desenvolvimento, quanto em termos de resultado, o projeto se apoia em pesquisa de campo minuciosa. Mesmo que não se trate de um mapeamento estatístico ou de um levantamento topológico exato, a situação de estar em um deserto informa a produção do espaço virtual proposto.

Há sempre elementos que remetem à etnografia nessas experiências em que a extensão do tempo é elástica e modelável. Provavelmente porque os filmes etnográficos e o cinema-direto foram as primeiras experiências audiovisuais de sincronia entre acontecimento e narrativa. Mas, nos ambientes virtuais, a duração estendida assume outro sentido, na medida em que é um convite à exploração. A despeito da capacidade de reconstituir em detalhes os mundos que representam, os ambientes virtuais 3-D funcionam no reverso do contemplativo. Tampouco procuram um afastamento prudente entre câmera e mundo, como forma de preservar a autenticidade do registro. Pelo contrário, sugerem que apenas o mergulho no ambiente permite compreender seus aspectos com maior intensidade. É esse entendimento mais subjetivo (no sentido que Deleuze opõe a imagem-memória do cinema europeu à imagem-ação do cinema norte-americano) que aparece em Desertesejo, para propor um terceiro incluído[25].

A obra de Gilberto Prado atua no limiar entre o prolongamento da experiência e o gesto sobre o ambiente. Da mesma forma que os raccords falsos deslocam o espectador de um filme do seu lugar de conforto, a experiência do vazio subverte as vontades de quem navega na Internet. Ao fazê-lo, Desertesejo indica um elemento central da experiência contemporânea: a estranha simetria que, ao mesmo tempo, aproxima e afasta as pessoas conforme suas vidas são transmitidas de forma intermitente. Ambientes de rede são tidos como espaços de compartilhamento remoto, que aproximam distâncias e conectam diferenças. Mas nem sempre é assim. Como numa versão multiplicada da letra de Cazuza, Desertesejo propõe solidão a dez de dia.

Em palestra no Intermeios[26], Christine Mello analisa o ambiente dos cinco céus compartilhados como melhor exemplo da articulação entre estar junto e estar sozinho. Mello considera a possibilidade de ver, em tempo real, uma amostra do céu na cidade do usuário que navega pelo ambiente, colocada em conjunto com amostras do céu nas cidades dos demais usuários, uma metáfora exemplar das possibilidades de compartilhamento. Ao inserir Desertesejo no conjunto das obras de Gilberto Prado, a crítica e curadora mostra como o artista se ocupa de formas de gerar comunidade (algo que ela identifica em seus trabalhos, desde as experiências pioneiras de arte postal). Para Mello, Prado atua nesse desvio em que não basta estar em rede, em que é preciso deixar-se contaminar pelos efeitos dissipadores que a rede sugere. Parece pouco, mas faz muita diferença, diante da vertigem de cliques desencontrados que tornaram-se a experiência mais comum em espaços cuja vocação seria, supostamente, aproximar as pessoas. Basta pensar no que acontece com as redes sociais.

Circuladô, de André Parente, reconfigura o sentido do cinema de várias maneiras. A obra explora a circularidade de movimentos que levam ao transe, dos sufis que giram sobre seu próprio corpo, a um corisco à beira da morte, passando por Thelonious Monk no palco, o Édipo de Pasolini, e uma pombagira. São cenas de filmes e documentários tiradas de contexto, que em conjunto ganham novos sentidos, e também propõem um discurso mais amplo. A obra é construída em giros, como num zoetrópio. As imagens se repetem, aproximando o círculo do loop, provavelmente a figura de linguagem central da cultura digital[27]. E a própria configuração do espaço é circular, posicionando o interator no centro, diante de um mecanismo que ele pode girar.

Em Tudo Gira, Parente lembra que o zoetrópio foi dos primeiros dispositivos de imagens em movimento. Inventado em 1834 por William Horner, o zoetrópio foi batizado “Daedalum” ou “roda do diabo”. Ele afirma que “o zoetrópio é um tambor contendo ranhuras ou frestas que permitem ao espectador visualizar um conjunto de imagens em seu interior. Essas imagens formam uma animação. Na época em que o zoetrópio foi inventado, as imagens eram geralmente feitas à mão. Posteriormente o zoetrópio se tornou um instrumento dos animadores, que podem utilizá-lo para testar o processo de intervalo-ação”.

Se a magia da sala escura estimula o transe pelo fluxo de luz diante de seus olhos, Circuladô é um convite ao trânsito pelo contraste entre claro e escuro, reiterado a cada volta dos corpos em torno deles mesmos. Encontro às claras, este chamado à vertigem distancia, no melhor dos sentidos, a instalação de André Parente do cinema convencional. Conjunto de imagens potentes, a obra demanda uma atitude ativa do público. Como se, ao mostrar como os círculos levam ao êxtase, propusesse um formato em que a experiência do transe pudesse acontecer em interface, num gesto que emancipa quem participa do jogo proposto. É um mecanismo sofisticado, na medida em que atua no território sensível no limiar entre as representações de estados de fuga do real e o estímulo a potências que o cotidiano apaga.

Nas palavras do próprio artista (ainda no artigo Tudo Gira), “trata-se de misturar, em um único trabalho, dispositivo e conceito, loops mentais e loops físicos, imagens de giro e dispositivos circulares, imagem em movimento e movimento do espectador. Ou seja, fazer desse trabalho uma ponte que conecta os dispositivos pré-cinematográficos aos dispositivos pós-cinematográficos tendo como conteúdo e como forma a questão do giro e do corpo da imagem”.

O transe tem um sentido emancipatório muitas vezes desprezado pela cultura ocidental. Mesmo que hoje em dia o racionalismo não seja mais tão central, ainda há grande resistência a reconhecer o papel que estados alterados de percepção podem desempenhar no engendramento de novas formas de entender o mundo. A obra de Parente coloca a questão de forma sucinta, mas consistente, ao oferecer um mecanismo por meio do qual o interator gira junto com as imagens da obra, e ao fazê-lo altera seu giro. Não é apenas uma forma de interação, mas antes um convite ao compartilhamento de gestos e de imagens que produzem pensamento háptico. Se alguém já sonhou tocar a tela quando assistia a um filme, essa é uma boa oportunidade. Diferente de muitas das obras de arte digital, que exploram a interação pela interação, Circuladôsemantiza de forma rara sua interface, que não é apenas um dispositivo para manipular as imagens da instalação, mas também uma chave para entender os sentidos que giram na obra.

A interface de edição disponível em Circuladô esgarça os sentidos do circular, conforme gira um mecanismo para controlar as imagens da instalação. Ela remete a formas de edição que propõem elos entre o passado e o futuro do cinema[28]: retoma a fisicalidade da moviola e incorpora a atomização da linguagem digital. Não por acaso, o mecanismo lembra as pickups dos DJs, que marcaram de forma definitiva a cultura baseada em loops que o computador multiplicou[29]. Ela sugere um vínculo entre o giro dos personagens na tela e o giro mental que sugere ao público, explorando a conexão entre o corpo e o espaço da obra por meio da interface tátil.

O cinema tem ingredientes que remetem a esse espaço de sonho compartilhado, conforme discutido por Deleuze em A imagem-tempo. Deleuze considera que o “ato cinematográfico consistente em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”. Esse mergulho no imaginário que o cinema proporciona acontece sempre num espaço de trânsito entre a contemplação e o arrebatamento. Em todo caso, é sempre um acontecimento mental, que opera enquanto o corpo repousa diante da tela. Nos formatos contemporâneos de audiovisual, esse ato de convocação do público é mais direto e físico. Isso não garante maior empatia ou capacidade de deslocamento do espectador de seu mundo, mas certamente modifica a experiência, tornando-a mais vigorosa.

Em Tempestade, de luisduVa, há um percurso inverso ao discutido até aqui: o público é convidado a entrar no palco, para assistir a apresentação de seu interior; a obra reconstrói a experiência do artista diante de tempestades, algo que lhe inspira profundo temor. É o oposto simétrico dos mecanismos de alargamento da tela como forma de aproximar o público dos sonhos ali narrados. Como se o pesadelo tivesse uma viscosidade que atrai pela ausência de luminosidade, ao invés de dispersá-la na direção da plateia. Quem já acordou de forma súbita à noite, entende a força centrífuga desmesurada que rege o pesadelo.

Mas a composição audiovisual de duVa não modula esse aspecto terrível. Pelo contrário, ela explora o elemento sublime que existe no desconhecido[30]. Tempestade é o relato de um percurso em que imagens interiores e acontecimentos exteriores se fundem, mostrando os momentos de uma busca cujo sentido é equalizar os dois mundos. Por isso, o efeito estroboscópico funciona como motor que alterna de forma estonteante entre o mais claro e o mais escuro, justamente a tensão expressa pelo personagem em sua peregrinação entre tempestade e floresta. O fluxo não acontece apenas no plano da luminosidade que oscila, mas também no “enxugamento” expresso pela passagem da água conturbada à terra firme, do sonho ao acordar. Ao contrário da maioria das experiências em live cinema, duVa conta uma história consistente, e apresenta um imaginário rico. É um dos projetos melhor resolvidos no gênero cinema ao vivo, combinando experimentação de linguagem, reordenamento de possibilidades da estrutura fílmica e improviso, que resultam em uma composição audiovisual madura.

Diante de tamanha diversidade de exemplos, é surpreendente que exista um elemento comum no trânsito direto entre tela e plateia. O tipo de imagens-sons gerados pela sincronia entre acontecimento e narrativa parece obliterar essa distância. De certa forma, este é o sentido do chamado tempo real: a ausência de limites. A tela do cinema, mesmo nas durações prolongadas das tomadas sem corte, remete sempre a algo que já passou, a algo que está ausente. Só pelo rompimento da distância entre acontecimento e narrativa é possível instalar um presente compartilhado. É esta busca pelo momento em que todos fazem rede em torno do mesmo imaginário que une as obras aqui analisadas. Elas permitem propor que o cinema do futuro, com seus desejos polifônicos e participativos, é tudo o que o cinema quis ser a partir da Nouvelle Vague e suas montagens desconexas. Mas, com suas tecnologias que não existiam quando a tela era uma superfície intocável e o diretor decidia o que ali seria exibido, o cinema do futuro não é nada que o cinema tivesse pensado antes. Paradoxo? Só se você achar que a arte se limita ao que sua época permite. Ou se você achar que a arte é capaz de escapar do que sua época permite.

*Professor da PUC-SP. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atua como artista, curador e pesquisador nas áreas de convergência entre arte, design, audiovisual e mídias digitais. Desenvolve a pesquisa Mundo em Rede: ecologias celulares num mundo em tempo real. É curador, com Lucas Bambozzi e Rodrigo Minelli, do Vivo arte.mov Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Foi editor do Webpaisagem0, único projeto brasileiro indicado para o ://international/media/art/award, do ZKM e diretor do vídeo interativo Interface Disforme (premiado na Fiat Mostra Brasil) e do curta-metragem Radicais Livre(o)s (financiado pelo Programa Petrobras Cultural).


[1] Mark Shepard discute o uso do fone-de-ouvido como um escudo que separa seu usuário do entorno, especialmente em grandes cidades em que aparelhos portáteis para ouvir música funcionam como uma forma de evitar o contato com desconhecidos. Shepard também propõe formas de reverter esse comportamento com ferramentas que estimulam a socialização pelo cultivo coletivo de sons, numa forma de reinventar com celulares e aplicativos gratuitos as práticas de jardinagem comunitária, que já foram bastante comuns, na cidade de Nova Iorque. Cf. Shepard, Mark. “Tactical Sound Garden [TSG Toolkit]”, in: Bambozzi, Lucas; Bastos, Marcus; e Minelli, Rodrigo. Mediações, tecnologia, espaço público — Panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad, 2010.

[2]Sobre a relação minuciosa de Steve Jobs com o design de seus produtos, conferir: Isaacson, Walter. Steve Jobs. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 e Kelley, David. The First Mouse, www.wired.com/magazine/2011/11/ff_stevejobs_sidebars/4/. Várias decisões de design da empresa que pareciam extravagantes mostraram-se, pelo contrário, formas atraentes de conciliar funcionalidade e estilo. Além dos fones-de-ouvido brancos que, quando foram usados no primeiro iPod, eram uma exceção depois transformada em rotina, vale lembrar o formato compacto e as cores cítricas do iMac.

[3]O conceito de acontecimento é importante para entender os tipos de audiovisual baseados em agenciamentos em tempo real aqui discutidos. No sentido usado neste artigo, o acontecimento é uma ação incomum, que desestabiliza a rotina. O conceito é discutido na edição da revista Communications dedicada ao tema, editada por Edgar Morin. O acontecimento, para Morin, tem um escopo amplo, relacionado com o funcionamento dos sistemas complexos, em que um acontecimento é um evento que reorganiza o sistema (seu estado inicial sendo sempre desestabilizador). Em certo sentido, há uma proximidade entre o conceito de acontecimento e a ideia foucaultiana de heterotopia, espaço de exceção que fulgura momentaneamente e rompe a tessitura dos fatos. A performance no espaço público com aparelhos de realidade aumentada explora essa instalação de lugares transitórios que surgem como camadas temporárias em um espaço dado, reconfigurando-o durante sua execução. Cf. Morin, Edgar. “Le retour de l’événement”, In:www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/comm_0588-8018_1972_num_18_1_1254 e Foucault, Michel. “Outros Espaços”, In: Ditos e Escritos 3. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

[4] O conceito de narrativa também é bastante importante neste texto. Narrativa, conforme diferentes definições propostas por semioticistas que se dedicaram ao tema, é uma série de acontecimentos que se desdobra em um certo intervalo de tempo. Neste sentido, é possível dizer que há narrativa em um filme abstrato, por exemplo, na medida em que diferentes configurações visuais constroem uma trama visível, que comunica sua materialidade, sugere ritmos e vibra pulsões. Este entendimento da narrativa permite olhar de outra maneira para a história do cinema, recuperando procedimentos muitas vezes deixados em segundo plano nos estudos mais tradicionais sobre o tema, que colocam o surgimento da chamada narrativa clássica, de matriz grifftiana, como marco zero da linguagem cinematográfica. Claro que autores sofisticados como André Bazin e Ismail Xavier colocam o problema com as devidas nuances, mas o pensamento predominante do cinema parece construído como um pensamento sobre a ação no filme. Esta aproximação entre narrativa e ação privilegia certo tipo de cinema, que opta por contar histórias ao invés de, por exemplo, pesquisar durações ou texturas audiovisuais. Em Cinema II – A Imagem-Tempo, o filósofo francês Gilles Deleuze propõe formas de entender o cinema para além do problema da ação fílmica. A proposta deleuziana, baseada em imagens cuja latência revela tempos, cores, texturas, sonoridades, como alternativa à análise fílmica focada em como os filmes constroem suas histórias, é mais amplo que o próprio espectro de exemplos incluídos no livro faz supor. Deleuze concentrou seus estudos em um tipo de cinema bastante marcado pela trama, em momentos que seus conceitos parecem melhor aderentes a experiências menos convencionais como a visual music e o cinema não-narrativo. Sobre o conceito de narrativa, verNoth, Winfried.Handbook of Semiotics. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1995. Sobre os diferentes tipos de imagem possíveis além do que Deleuze chama de “imagem-ação”, ver  Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

[5]Cf. Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 55.

[6]O conceito de subtlemob foi forjado pelo grupo inglês homônimo, para descrever performances baseadas em acontecimentos temporários no espaço urbano, em que grupos de participantes, inscritos previamente, encontram-se num horário determinado para encenar uma narrativa que transforma a cidade em cenário, numa espécie de cinema em tempo real no espaço público. É uma variação do flashmob, intervenção relâmpago geralmente articulada através de dispositivos em rede (listas de discussão, mensagens virais de SMS, etc.). Ao contrário do flashmob, que é factual e breve, a subtlemob é narrativa e tem duração suficiente para instalar espaços ficcionais sobrepostos à realidade. A despeito das diferenças de procedimento, ambos propõem irrupções que descontinuam a ordem dos acontecimentos cotidianos, instalando espaços de heterotopia que redesenham o campo do possível. No artigo “CrowdControl”, publicado na revista Wired de janeiro de 2012, Bill Wasik (que, além de colaborador da revista foi o criador do primeiro flashmob) discute a relação entre esse tipo de manifestação relâmpago e a onda de protestos políticos, e também alguns tumultos involuntários, que assolaram o ano de 2011. Wasik mostra o papel das novas tecnologias em rede nessas articulações coletivas que surgem com rapidez estonteante e modificam-se em ato, por meio de troca de torpedos que aumentam sua difusão articulada e dificultam as tentativas de reprimi-la. Mas, no texto, ele evita uma posição determinista, ao discutir diferentes aspectos diversos da psicologia das multidões que revelam padrões de comportamento coletivo típicos de grandes grupos independente de sua articulação através de tecnologias de rede.

[7]O problema da mediação nesses formatos em que há sincronia entre acontecimento e narrativa é um tema bastante complexo, que poderia ser objeto de um segundo artigo sobre o universo das imagens-som em tempo real. Por um lado, obras como Como se fosse a última vez… ou Tempestade, de LuisDuva (duas obras analisadas neste artigo) acontecem no momento de sua fruição. Nesse sentido, elas invocam um sentido de imediatismo, ao se construírem em ato. Há algo de teatral nessa configuração em que o improviso, a presença do corpo e a partilha de um ambiente são inerentes à obra. Por outro lado, são trabalhos que dependem de tecnologias de síntese e transmissão que perfuram esse ambiente compartilhado, multiplicando seus espaços e tempos. São obras que exploram as formas mais intricadas de mediação, produzindo lugares crivados de potências latentes. Sobrepõe-se assim, à configuração primeira, com base em certa teatralidade do acontecimento em tempo real, algo que remete ao elemento mágico discutido por alguns autores que procuram entender o cinema num registro menos apegado ao formato da narrativa. O aleatório, o desmanche da corporeidade e o compartilhamento de tramas simultâneas são características marcantes. Mas a sobreposição entre imediato e inflação de mídia é aparente, apenas. O próprio processo de mediação é mais complexo e incorpóreo do que certos entendimentos correntes fazem supor. Basta pensar na trama complexa que permite ao ser humano falar. Ele articula um aparelho fonador visceral, que combina balbucios estruturados, por paradoxal que possa parecer. Quem fala, opera sempre a sinergia entre ar pressionado corpo afora e articulação gravada na mente. Entender esse mecanismo em que é impossível separar natureza e cultura, é um ponto-de-partida para entender o problema da mediação. As formas contemporâneas de comunicação são sempre desdobramentos do modo de funcionamento do corpo. Não há, portanto, tanta distância quanto parece entre o imediato e o super mediatizado. Impossível, no espaço desta nota (apesar da extensão barthesiana) dar conta de todos os aspectos da questão.

[8]Em “Cinema x VRML”, Lev Manovich demonstra como a maior diferença entre o cinema e os formatos audiovisuais digitais refere-se ao lugar do espectador diante da imagem. No cinema, o enquadramento é estabelecido pelo diretor do filme, que decide o que será visto e o que ficará extracampo. Em formatos como o VRML, o enquadramento é escolhido pelo interator, que navega por um ambiente que ele acessa conforme escolhe a direção que a câmera percorre. É possível argumentar que experiências como o já citado Como se fosse a última vez… ou CanYouSee Me Know?, do grupo inglês BlastTheory, desdobram a passagem de um mundo ficcional forjado em um enquadramento que o público só pode fruir, para um mundo ficcional que modela enquadramentos possíveis conforme a escolha do interator. São experiências que exploram o próprio mundo como cenário, onde injetam narrativas ao inserir elementos virtuais em um espaço físico determinado. Há, assim, um engajamento direto do interator, que não é mais transferido em forma de avatar para um corpo que ele controla à distância, mas sim participa de uma experiência em que seu próprio corpo ativa acontecimentos. Em sentido contrário, o entorno afeta a narrativa, emprestando-lhe elementos causais e oferecendo circunstâncias imprevistas. O resultado é um espaço fluído entre rede e mundo, entre ficção e realidade, onde ambos se entrelaçam e se modificam.

[9]O surgimento de novas tecnologias de difusão audiovisual (em serviços como o Netflix e vários semelhantes que transmitem filmes via Internet) resulta em uma diversificação dupla: tanto as salas de cinema ampliam seu escopo, exibindo jogos de futebol e shows de rock como forma de impedir uma evasão do público, quanto o fã de filmes passa a dispor de mais opções (cinema, tevê, computador, tablets e celulares são os mais populares). Essa diversidade permite ampliar o escopo de produção audiovisual. Um exemplo é a quantidade de vídeos domésticos que atingem altos índices de exibição em plataformas como o YouTube. Outro, os circuitos voltados ao chamado Microcinema, em que produtores independentes exploram o potencial das câmeras portáteis e da ilha de edição digital para renovar com agilidade inédita o repertório audiovisual. Certamente, o volume da produção implica numa aparente inconsistência, mas uma análise mais cuidadosa do acervo de festivais voltados para esse tipo de produção confirma o alto nível dos trabalhos, assim como a possibilidade de concretizar modelos alternativos de distribuição, mais versáteis e baratos que a película.

[10]O texto vai adotar realidade mixta como tradução de “mixed reality”, para ressaltar o aspecto de mixagem entre mundo e rede implícito no termo, que se perde na tradução literal.

[11]Esse embaralhamento entre narrativa e contexto obriga repensar um par de conceitos que estrutura a linguagem do cinema: diegese/extra-diegese, e a articulação entre campo e contracampo como forma de modificar o ponto-de-vista na narrativa audiovisual. Imagens e sons embutidas em espaços redefinem de forma radical a ideia de que há um locus onde a narrativa é visível e um espaço externo relacionado, logicamente inserido na história, mas inacessível através do olhar. Esse embaralhamento entre diegese e extra-diegese, associado à rearticulação da relação entre campo e contracampo, acontece em ambientes virtuais, em instalações interativas e nas performances com realidade aumentada, conforme será mostrado nos estudos de caso incluídos no final deste artigo. O tema merece ser melhor explorado, na medida em que não surge apenas como decorrência da tridimensionalidade presente em experiências audiovisuais fora da tela, como já foi sugerido na bibliografia especializada. Também na esfera das artes tridimensionais, como a escultura, é possível pensar um espaço narrativo extracampo. Por exemplo, quando o personagem da escultura olha adiante, é possível supor que ele olha na direção de alguém ou de alguma coisa não incluídas entre as formas recortadas pelo escultor. Nos espaços de realidade aumentada e nas instalações, os limites entre os elementos são mais dissolutos, o que dificulta o estabelecimento de distinções claras entre seus campos, entre seu espaço de fruição e um exterior logicamente associado, mesmo que ausente do campo visual. Uma obra como Invisíveis, de Bruno Viana, explora justamente esse embaralhamento, ao propor uma narrativa em que personagens virtuais surgem na tela do celular conforme o público caminha pelo Parque Municipal de Belo Horizonte, onde o trabalho foi implementado. Como Viana afirma, em entrevista sobre a obra, no documentário Telemig Celular Arte.Mov 2007, os personagens de sua narrativa não são apenas fictícios, mas também virtuais. Essa percepção precisa do artista sugere uma gama de relacionamentos existentes no âmbito da realidade aumentada: fictício / virtual, “real” / virtual, fictício / atual, “real” / atual. É a articulação entre esses elementos, que nunca se dá de forma estável, que produz oembaralhamento entre narrativa (ou acontecimento) e contexto.

[12]Traduzidopeloautor, a partir do original: “there is some evidence that the Cinematographe did not emerge from an obsession with realism and movement the way that materialist histories demand, but that a convergence of an obsession with other dimensions and a radical shift in the relationship between ordinary people and technology converged on a number of machines and reinterpreted them to satisfactorily stabilize irreconcilable ideas. Not to acknowledge this has contributed to a flawed history of cinema that becomes an impediment to our understanding of the cinema now and in the future”. Cf. Punt, Michael. “The jelly baby on my knee”, In: Eves, Frans; van der Velden, Lucas; e van der Wenden, Jan Peter (Eds). The Art of Programming – Sonic Acts 2001 conference on digital art, music and education. Amsterdan: Paradiso / SonicActs Press, 2002.

[13]O cinema empresta materialidade a um tipo de fenômeno que desafia os limites da percepção, criando aquilo que Walter Benjamin chama de inconsciente ótico. Seu efeito mágico está relacionado à capacidade de corporificar elementos do imaginário humano, num formato que permite a sensação de transferência para lugares fantásticos, aterrorizantes, surpreendentesetc. Este efeito imersivo está intimamente ligado à experiência de preenchimento do campo visual (seja aproximando os olhos de um dispositivo de visão ou sentando-se diante de uma tela grande o suficiente para arrebatar o olhar). É um aspecto da linguagem audiovisual que não acontece com igual potência em experiências mais espacializadas, como as discutidas neste artigo. Por esse motivo, nesse tipo de experiência, há uma ênfase maior no som (nas obras que acontecem em espaço público), uma busca por tipos de imagens ou configurações arquitetônicas diferenciadas (nos ambientes virtuais e instalações) e um esforço para redesenhar o formato de palco italiano de forma a incluir o público (nas performances de cinema ao vivo).

[14]As imagens de inscrição, conforme a terminologia cunhada por Philippe Dubois para descrever a fotografia e o cinema, podem ser lidas como formas contemporâneas de magia, algo reconhecido tanto por baluartes da indústria como George Lucas (que batiza sua empresa de Industrial Light & Magic) quanto por pesquisadores como ZiegfriedZielinski (que estrutura sua arqueologia das mídias a partir do resgate de formatos audiovisuais como a fantasmagoria e a câmera obscura). Um estudo consistente sobre essa capacidade que as tecnologias audiovisuais têm de dar materialidade a acontecimentos invisíveis, inclusive na forma limite de servir como testemunho de fenômenos paranormais, é a tese de doutorado de Mario Ramiro, O gabinê fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil: a representação do invisível no território da arte em diálogo com a figuração de fantasmas, aparições luminosas e fenômenos paranormais. São Paulo: USP, 2008.

[15]Cf. Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 71-2.

[16]Traduzidopeloautor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between man and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin &CompanyLimited, 1970, p. 49.

[17]“A coincidência entre pensamento lógico e “realidade” é incrível. Não pode ser acreditada”. Cf. Flusser, Vilem. “Coincidência Incrível”, in: Da Religiosidade — A literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escritura, 2002. p. 32.

[18]É esse o sentido da mítica fuga de espectadores diante do trem que se agigantava na tela, naquela que é tida como a primeira exibição de cinema.

[19]O caráter mítico dos astronautas é evidente e, em certo sentido, a história da televisão pode ser contada como um esforço constante para repetir o efeito de deslumbre hiperbólico. Curiosamente, há uma simetria entre as histórias do cinema e da tevê, neste âmbito da busca por efeitos capazes de manter o espectador em um estado mágico (em que pese o contexto muito mais dispersivo de fruição televisual). Em linhas gerais, é possível defender a existência de uma segunda fase na história do cinema, em que é bastante comum a reversão do caráter mítico da tela. São diversas estratégias, como filmar fora de estúdio, em situações precárias, tratando de temas mais típicos do jornalismo ou do romance naturalista. Em geral, esses novos cinemas também passam a desfazer, por meio da metalinguagem e dos raccords falsos, certa transparência típica da linguagem cinematográfica instituída na época. Eles exploram as quebras de continuidade como forma de manter o espectador alerta, ao contrário do cinema clássico que usava a continuidade como forma de manter o espectador enfeitiçado. No caso da história da tevê, se é possível considerar que o momento atual corresponde a esse ponto de reinvenção da tevê em função do surgimento de novas tecnologias audiovisuais que deslocam seu lugar na ecologia dos signos. É significativo o surgimento de formatos como o Big Brother, em que o cotidiano, um estranho tipo de não-acontecimento que se torna acontecimento pelo simples fato de estar em quadro, e a duração que explora a sincronia entre acontecimento e narrativa, parecem inverter a tentativa inicial da tevê de mostrar momentos fantásticos e especiais. É preciso considerar, também, que a grade de programação de tevê tem uma diversidade que dificulta tratá-la de forma homogênea. Mas, se é possível considerar a transmissão ao vivo de fatos que assumem súbita importância coletiva (um acidente, a visita do Papa) como ápice do mecanismo televisual, o surgimento de programas que exploram o cotidiano ao invés do extraordinário certamente reconfiguram o regime de exibição.

[20]Traduzidopeloautor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between man and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin & Company Limited, 1970. p. 122.

[21]Traduzido a partir de: “The resulting instantaneous circulation of information without regard to geographical limitations has overthrown our traditional perceptions of the world”. Cf. “Communication Art”, in: Popper, Frank. Art of the Electronic Age.London: Thamesand Hudson, 1993. p. 122.

[22]The Engineeringof Vision, de Lev Manovich, e  “História da Perspectiva”, de Erwin Panofisky, podem ser entendidos como estudos que mostram a formação do tipo de representação em que a tela funciona como uma janela para o mundo. Por ser mais recente, o texto de Manovich trata as imagens térmicas e os dispositivos de visão por infravermelhocomo indícios de estratégias de visualização não mais com base na constituição de duplos do campo visual. Os exemplos apontados por Manovich são casos limites. Os ambientes virtuais e as instalações interativas também podem ser incluídas neste vetor de visualidades que rompem com a representação em perspectiva.

[23]Virtual Reality ModelingLanguage, uma linguagem que permite construir mundos tridimensionais por meio de imagens vetoriais navegáveis.

[24]Apesar de bastante conhecido no contexto da cultura digital, vale lembrar que o conceito de avatar remete à personas virtuais que um usuário assume ao participar de mundos virtuais (seja em jogos de RPG, em narrativas multiusuário ou em experiências de realidade virtual). No caso de Desertesejo, o usuário pode escolher entre três avatares que definem características do pontodepartida em que acontecerá a navegação pelo ambiente 3-D (rastejar, andar ou voar).

[25]A figura, sugerida por Deleuze, de uma subjetividade automática produzida pela sobreposição entre imagem, pensamento e câmera interior, também foi analisada por PhilipeDubois sob a nomenclatura de sujeton, um sujeito em certo sentido externo à subjetividade que o produz, na medida em que é resultante da articulação entre sujeito e máquina agenciadora (por exemplo, na relação entre homem e câmera, em que a câmera inclui elementos na imagem impossíveis de o olhar capturar).

[26]VII Encontro arte e meios tecnológicos — Leituras críticas / Núcleo contemporâneo — Parte 4. 8 de dezembro de 2011.

[27]A cultura contemporânea tem sido definida por procedimento reiterativos, em diversos níveis. Na música eletrônica, por exemplo, o loop é usado como motivo estruturante. Depois de um esfacelamento da harmonia tradicional, com notas, escalas e acordes, a música se volta para a materialidade do som e constrói suas unidades mínimas de significação usando estruturas circulares que serão moduladas e repetidas. Na música eletrônica de pista-de-dança, que se tornou mais popular que as vertentes experimentais, o loop é usado de forma quase abusiva, o que serve para ilustrar o argumento aqui resumido de que a repetição é uma meme dos dias atuais. Há exemplos equivalentes no cinema, sendo Quentin Tarantino e David Lynch, talvez, os diretores que melhor representam a prática de construir roteiros por meio de estruturas circulares que retornam de forma modulada durante o filme. Num nível menos visível, é possível lembrar que o loop (assim como as estruturas bifurcadas baseadas em decisão) é um dos mecanismo fundamentais das linguagens de programação. Um programa de computador é, em certo sentido, resultado de um pulso regular que coloca em funcionamento um conjunto de regras baseadas na repetição de processos e na decisão a respeito de seu uso.

[28]Há outros exemplos de mecanismo do tipo na produção contemporânea, como é o caso de 5x4x3x, de Lea Van Steen e Raquel Kogan. Em artigo escrito para o catálogo da obra, há uma breve apresentação desse universo, que merece ser retomada aqui: “Arlindo Machado sempre defendeu o primeiro cinema como um repositório de possibilidades coerentes com os rumos do que ele denominou pós-cinema.  Machado, assim como SiegfriedZielinski e Oliver Grau, discutiram diversos aspectos deste elo entre passado e futuro do cinema, que permite entender a história das imagens em movimento em um registro em que a invenção é mais importante que a narrativa, em que a forma de contar é tão importante quanto o que é dito. São autores que definem um campo de experimentação onde o relato por meio de imagens e sons acontece em sua forma plena, muitas vezes relacionado às diferentes possibilidades de diálogo com os aparelhos e espaços em seu entorno (no avesso da narrativa clássica, que confia na transparência da exibição). Meliés, EijaLiisa-Ahtila ou Milton Marques são bons exemplos desta prática de inventar formas de narrar que são tão importantes quanto a própria narrativa (para citar exemplos que abrangem um amplo intervalo de tempo, abrigando artistas/inventores que estabeleceram as bases para o tipo de pesquisa feito por Kogan e Van Steen e outros que propõem desdobramentos recentes para as mesmas premissas)”. Cf. Bastos, Marcus. “multiplicações: rever(so d)a ilha”, in: Kogan, Raquel e Van Steen, Lea. 5X 4x 3x. São Paulo: Funarte, 2012.

[29]Cf. Bastos, Marcus. A cultura da reciclagem. São Paulo: Galeria Noema, 2007.

[30]Para uma discussão sobre o conceito de sublime como um temor diante do desconhecido e com as forças desmesuradas da natureza, ver Burke, Edmund. A philosophical enquire into the origin of our ideas of the Sublime and the Beautiful. Oxford: Oxford University Press, 1990.