Tempo de leitura estimado: 33 minutos

Raça, o significante flutuante

Stuart Hall
Tradução de Liv Sovik, em colaboração com Katia Santos*

Mesmo que alguns considerem um tanto tarde, quero voltar à questão do que queremos dizer, quais são as implicações de dizer — como fiz no título bastante provocador desta palestra — que raça é uma construção discursiva, um significante deslizante. Afirmações desse tipo já têm certo prestígio nos círculos avançados da crítica hoje em dia, mas está claro que críticos e teóricos nem sempre querem dizer a mesma coisa nem tiram as mesmas conclusões dessa afirmação. Além disso, a ideia de que raça possa ser entendida como significante não é, na minha experiência, algo que tenha atingido com profundidade, e nem tenha sido eficaz em desarticular ou desalojar, o que eu chamaria de pressupostos do senso comum e formas cotidianas de falar de raça e de produzir sentido sobre raça na sociedade de hoje. E estou falando, em parte, do mundo grande, bagunçado e sujo no qual raça importa, fora da Academia, e não só da luz que podemos, a partir da Academia, lançar sobre ela.

O mais sério é que não foram adequadamente mapeados ou avaliados os efeitos deslocadores de se pensar raça como significante, sobre o mundo da mobilização política em torno de questões de raça e racismo, ou sobre as estratégias da política e da educação antirracistas.  Bem, talvez vocês não estejam persuadidos ainda, mas essa é minha desculpa por voltar neste momento tardio a esse tópico, mesmo sabendo que muita gente acha que, afinal, tudo de útil que poderia ser dito sobre raça já foi dito.

A rejeição “formal” do racismo biológico

O que quero dizer com “significante flutuante”?  Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam em sociedades humanas. E dizer que raça é uma categoria discursiva é reconhecer que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na ciência, localizando as diferenças entre as raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram insustentáveis. Precisamos, portanto —  diz-se —  substituir a definição biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural[1]. Como resumiu o filósofo Anthony Appiah em algum momento: “…É hora do conceito biológico de raça ser afundado sem deixar rastro”. W. E. B. Du Bois, o grande pensador e escritor afro-americano, não tão conhecido no Reino Unido quanto deveria, escreveu sobre essas questões um texto maravilhoso e tocante intitulado As almas da gente negra [2]. Em outro texto, um ensaio intitulado A conservação das raças, fala do que chama de “… as diferenças de cor, cabelo e osso”  que — ainda comentou —, “embora sejam claramente definidas para o olhar de historiadores e sociólogos” —, coisa boa, porque existem muitas coisas que sociólogos não enxergam, mas ele achava que a diferença racial fosse algo que eles mais ou menos conseguiam distinguir —  “… que tais coisas são de maneira geral de baixa correlação com a diferença genética e, por outro lado, impossíveis de serem correlacionadas significativamente com as características culturais, intelectuais ou cognitivas de um povo.” Além da extraordinária variação existente dentro de uma mesma família, principalmente qualquer unidade chamada “família de raças”.

A sobrevivência do pensamento biológico

Quero pontuar quatro coisas simultaneamente, sobre essa posição geral.  Primeiro, ela representa o que já é de senso comum entre cientistas proeminentes nesse campo.

Em segundo lugar, esse fato nunca impediu que estudiosos consagrassem uma atividade intensa, por uma minoria de acadêmicos comprometidos, à tentativa de provar a correlação entre características genéticas vinculadas a racialidades e desempenho cultural. Noutras palavras, não estamos lidando com um campo no qual, digamos, o fato reconhecido científica e racionalmente impede os cientistas de continuarem tentando provar o oposto.

Em terceiro lugar, noto que, embora as implicações racializadas deste trabalho científico permanente sobre o tema, por exemplo, sobre raça e inteligência, sejam clamorosamente condenadas por grande número de pessoas, certamente pela maioria de profissionais liberais e sobretudo por grupos negros de todos os tipos, de fato, grande parte do que é dito por esses mesmos grupos entre si é baseado em premissas desse mesmo tipo, por exemplo, de que um fenômeno social, político ou cultural — como a correção de uma linha política, ou os méritos de uma produção literária ou musical, ou a adequação de uma atitude ou crença — pode ser atribuído ou explicado e sobretudo fixado e garantido em sua verdade pela identidade racial da pessoa envolvida.

Deduzo da intensa atividade de pesquisa a lição incômoda de que posições políticas opostas muitas vezes derivam do mesmo argumento filosófico. E embora a explicação genética do comportamento social e cultural seja frequentemente denunciada como racista, as definições genéticas, biológicas e fisiológicas de raça passam bem, obrigado, nos discursos de senso comum de todos nós. O fato é que a definição biológica, fisiológica e genética de raça, convidada a se retirar pela porta da frente, tende a dar a volta e retornar pela janela.

Esse é o paradoxo que quero explorar e discutir a seguir. Por que é assim?

O distintivo de raça

Em um artigo na revista Crisis de agosto de 1911, Du Bois muda decisivamente seu discurso para escrever sobre “civilizações onde hoje podemos falar de raças”, acrescentando que “mesmo as características físicas, incluindo a cor da pele, são resultado direto, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”, ele afirma, “para servirem como base para qualquer origem, classificação ou divisão de grupos humanos”. Agora, baseado nesse reconhecimento em Dusk of Dawn, sua autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum porque — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.”

Um distintivo, uma insígnia, um signo? Aqui está a ideia, preconizada no título de minha conferência, de que raça é um significante, e que o comportamento e a diferença racializados devem ser entendidos como fato discursivo e não necessariamente genético ou biológico.

Raça como linguagem, um “significante flutuante”

Não quero desviar de meu caminho e entediá-los com um longo tratado teórico sobre os termos que estou usando, mas simplesmente lembrá-los que o modelo que está sendo proposto aqui está mais próximo do funcionamento de uma linguagem do que do funcionamento de nossa biologia ou de nossas fisiologias. E que raça se assemelha mais a uma linguagem do que à nossa forma de constituição biológica. Talvez pensem que é uma coisa absurda e ridícula, talvez até estejam olhando em volta para terem certeza de que suas aparências estejam funcionando bem. Garanto que estão. As pessoas são meio esquisitas, algumas marrons, outras bastante pretas, algumas até, com esta luz, repugnantemente rosadas. Mas não há nada de errado com suas aparências. Mesmo assim, quero defender que raça funciona como uma linguagem. E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classificação de uma cultura, a suas práticas de produção de sentido. E essas coisas ganham sentido não por causa do que contêm em suas essências, mas por causa das relações mutáveis de diferença que estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de significação. Esse sentido, por ser relacional e não essencial, nunca pode ser fixado definitivamente, mas está sujeito a um processo constante de redefinição e apropriação. Está sujeito a um processo de perda de velhos sentidos, apropriação, acúmulo e contração de novos sentidos; a um processo infindável de constante resignificação, no propósito de sinalizar coisas diferentes em diferentes culturas, formações históricas e momentos.

Não é possível fixar o sentido de um significante para sempre ou trans-historicamente.  Ou seja, há sempre um certo deslizamento do sentido, há sempre uma margem ainda não encapsulada na linguagem e no sentido, sempre algo relacionado com raça que permanece não dito, alguém é sempre o lado externo constitutivo, de cuja existência a identidade de raça depende, e que tem como destino certo voltar de sua posição de expelido e abjeto, externo ao campo da significação, para perturbar os sonhos de quem está à vontade do lado de dentro.

Como dar conta da realidade da discriminação e da violência raciais?

Dirijo-me a essa questão diretamente porque acredito que é aqui que os mais céticos entre vocês estão começando a pensar: “Tudo bem, dá para dizer talvez que raça não seja, afinal, uma questão de fatores genéticos, biologia, características fisiológicas, morfologia do corpo, não é uma questão de cor, cabelo e osso”, esse trio pavoroso que Du Bois elenca tantas vezes. Entretanto, talvez digam: “Você está mesmo afirmando que raça é um simples significante, um signo vazio, que não está fixado em sua natureza interna, que seu sentido não pode ser assegurado, que flutua em um mar de diferenças relacionais? É esse o seu argumento? E não seria esta não só errada, mas também uma abordagem leviana[3] e” — ouço a palavra sendo murmurada no público — “idealista de fatos crus da história humana, que afinal de contas deformaram as vidas e aleijaram e constrangeram o potencial de literalmente milhões de despossuídos do mundo? E depois, por que não usar a evidência diante de nossos olhos? Se raça fosse um negócio tão complicado, por que ela estaria evidente de forma tão manifesta aonde quer que olhemos?”

Preciso dizê-lo novamente porque percebo o sentimento de alívio — depois de darmos umas voltas por essas diversas estruturas discursivas — ao chegarmos ao que todos nós sabemos sobre raça: sua realidade. Dá para ver seus efeitos, dá para vê-la nos rostos das pessoas à sua volta, dá para ver as pessoas se remexendo quando pessoas de um outro grupo racial entram na sala. Dá para ver a discriminação racial funcionando nas instituições, e assim por diante. Para que toda essa algazarra acadêmica sobre raça, quando você pode apenas voltar-se para a sua realidade?

Que caminho através da história é mais literalmente marcado pelo sangue e a violência, pelo genocídio da Middle Passage, os horrores da servidão nos engenhos e a forca improvisada?  Um significante, um discurso?  Sim, esse é o meu argumento.

Duas posições: a realista e a textual

Já que não estamos preocupados aqui com a crítica teórica abstrata e sim com uma tentativa de abrir os segredos do funcionamento de sistemas raciais de classificação na história moderna, permitam-me voltar à questão de como observamos esse funcionamento em torno da preocupante questão acerca das diferenças grosseiras de cor, osso e cabelo, que constituem o substrato material, o denominador comum absoluto e final dos sistemas raciais de classificação. Quando todos os demais refinamentos foram apagados, parece haver um resíduo de diferenças que são palpáveis nas pessoas, as quais chamamos de raça. De onde será que vieram, se são simplesmente, o que estou tentando afirmar, discursivas?

Em termos gerais, entendo que há três opções aqui. Primeiro, podemos alegar que as diferenças de tipo fisiológico ou de natureza realmente fornecem base para que classifiquemos as raças humanas em famílias. Quando se comprova que conseguem fazê-lo, podem ser representadas de forma adequada em nossos sistemas de pensamento e linguagem. Essa é uma posição realista: está aí, e só falta refletir de forma adequada sobre o que está lá fora no mundo, nos sistemas de linguagem e conhecimento que utilizamos para conduzir investigações sobre seus efeitos.

Uma segunda possibilidade é a posição chamada muitas vezes de puramente textual ou linguística. Raça é, aqui, um sistema autônomo de referência. Este não pode ser testado contra o mundo efetivo da diversidade humana, só dentro do jogo do texto e do jogo de diferenças que construímos na nossa própria linguagem.

Uma terceira posição: o discursivo

Existe uma terceira posição, à qual me filio. Essa terceira posição é a de que existem diferenças de todo tipo no mundo, e que a diferença é um tipo de existência anômala por aí, uma série randômica de todo tipo de coisa que a gente chama de mundo e não há motivo para negarmos essa realidade ou essa diversidade. Acho que é o que Foucault às vezes, mas nem sempre, chama de extra-discursivo. Mas estou em Goldsmiths e não quero provocar os foucaultianos… Apenas quando essas diferenças foram organizadas dentro da linguagem, dentro do discurso, dentro dos sistemas de sentido, é que podemos dizer que as diferenças adquiriram sentido e se tornaram fatores da cultura humana e da regulação de condutas — essa é a natureza do que estou chamando de conceito discursivo de raça. Não é que as diferenças não existam, mas sim que o que importa são os sistemas que utilizamos para dar sentido a elas, para tornar as sociedades humanas inteligíveis; os sistemas que cotejamos com as diferenças, a forma como organizamos essas diferenças em sistemas de sentido com os quais, de alguma maneira, fazemos com que o mundo nos seja inteligível. E isso nada tem a ver com negar que — como digo, o teste do público — se você olhar ao redor vai descobrir que, realmente, temos aparências diferentes uns dos outros.

Acho que esses sistemas são discursivos porque o jogo entre a representação da diferença racial, a escrita do poder e a produção do conhecimento é crucial para a maneira em que foram gerados e funcionam. E uso a palavra “discursivo” aqui para marcar teoricamente a transição de uma compreensão mais formal da diferença para uma compreensão de como as ideias e conhecimentos da diferença organizam as práticas humanas entre os indivíduos.

Religião: uma primeira tentativa de classificação radical

Os sistemas de classificação racial têm uma história. Sua história moderna emerge onde povos de tipos muito diferentes têm que fazer sentido como povos de uma outra cultura, significativamente diferente. Podemos datar o momento desse encontro histórico. Quando o Velho Mundo encontrou os povos do Novo Mundo, ele colocou uma questão, a famosa questão que Sepúlveda fez a Las Casas no debate no interior da igreja católica, a questão da “natureza dos povos que encontramos no Novo Mundo.” Não disseram, como os mais religiosos entre vocês gostariam de pensar, “São ou não são homens como nós e nossos irmãos? Não são elas mulheres como nós e nossas irmãs?” Não, não disseram isso, demorou muito para isso acontecer — dois ou três séculos antes do movimento abolicionista colocar essa questão. Não, o que disseram foi: “São homens verdadeiros?” Isto é, pertencem à mesma espécie que nós ou nasceram de outra criação? E aqui durante séculos não era a ciência, mas a religião o significante do conhecimento e da verdade, no lugar onde as ciências humanas, e depois a ciência como tal, estava destinada a ficar mais tarde, para fundamentar a verdade da diferença humana e da diversidade em um fato controlável, que definia que o lado deles era lá, e o nosso aqui; eles nos navios e nós no topo da civilização que conquistamos e etc.

Dormir melhor: a função cultural do conhecimento

Organizar pessoas em diversos grupos sociais, de acordo com suas diferenças, é para isso que serve o ato da classificação humana. É isso o que se procura — primeiro através de um discurso religioso, depois antropológico e, finalmente, em um discurso científico. Aqui, cada um desses conhecimentos está funcionando não como provimento da verdade, mas como aquilo que tranquiliza os homens e as mulheres e os deixa dormir melhor. São chupetas, chupetas de conhecimento que se coloca na boca; primeiro coloca-se a chupeta religiosa e espera-se que, no final das contas, Deus tenha criado dois tipos de homens, tenha feito duas tentativas — num fim de semana, depois noutro, e eles estavam lá e nós estávamos cá, e só muito tempo depois a gente acabou topando uns com os outros. Mas não há qualquer ideia de que viemos do mesmo lugar. E essa chupeta não funciona, você a tira e coloca outra: e em termos antropológicos, eles dizem: “Bem, são parecidos conosco, porque todo mundo vem dos macacos mas alguns são mais próximos dos macacos do que a gente” e embora não haja uma diferença absoluta, você sabe que isso é suficiente para encontrar diferenças, nos departamentos universitários, na publicação de artigos etc. E, finalmente, quando a própria antropologia por fim desiste, logo aparece James Clifford, que desiste desse tipo de conhecimento sobre o que a antropologia consegue fazer, separar as ovelhas das cabras. E aí vem a ciência e diz: “Eu consigo, eu sei fazer. Tente a genética.” Você não enxerga a genética, é um sistema maravilhoso, interno, não fazemos ideia do que seja, podemos vê-lo no laboratório — mas os seres humanos não o veem, o que veem são os efeitos da operação do código genético. Assim, é um código maravilhosamente secreto que apenas um número pequeno de pessoas têm ao seu dispor, que faz o que a religião[4] não conseguiu e a antropologia afinal acabou fracassando em fazer. Ele consegue dizer por que essas pessoas não são do mesmo campo, por que são diferentes umas das outras, e por que são realmente de outra espécie. E não seria bom saber que em vez de tentar descobrir se os que são seus amigos são mais próximos de você do que aqueles que não o são, todo aquele mapa complexo de alianças e etc. que constituem as relações humanas — não seria legal se você pudesse dizer algo simples como: “Vou dar um pulo no laboratório e depois lhe digo se eles são próximos ou não.” É isso que a genética consegue fazer.

Fixando a diferença: a função cultural da ciência

A ciência tem uma função, uma função cultural, em nossa sociedade. Vou parar antes que eu vá longe demais. Não estou sugerindo que a ciência não tem substância. Estou falando da função da ciência dentro dos sistemas culturais humanos. Estou falando da função cultural da ciência e que essa função, nas linguagens e discursos do racismo, tem sido precisamente a de dar garantia e certeza da diferença absoluta que nenhum outro sistema de conhecimento até então tinha conseguido prover. É por isso que o traço científico permanece um instrumento tão poderoso no pensamento humano, não só na Academia, mas em toda parte do discurso do senso comum das pessoas.  Durante séculos, se lutou para estabelecer uma diferença binária, entre dois tipos de pessoa. Mas quando chegamos ao Iluminismo, que diz ou reconhece que somos todos de uma mesma espécie, foi preciso encontrar uma maneira de marcar a diferença dentro dessa espécie e não entre duas espécies — porque uma parte da espécie é diferente: mais bárbara, atrasada ou civilizada do que a outra parte. E você se depara com uma marcação diferente da diferença, a diferença que é marcada dentro do sistema. Vejam como Edmund Burke escreveu para o historiador William Robertson em 1777: “Não precisamos mais recorrer à história”, afirmou, “para traçar o conhecimento da natureza humana em todas as suas fases e períodos. Por quê? Porque agora o grande mapa da humanidade está todo na estrada e não há estado ou gradação de barbárie ou modo de refinamento que não esteja simultaneamente sob nossa vista.” Este é o olhar panóptico do Iluminismo: tudo, toda a criação humana está, por assim dizer, sob o olho da ciência. E, neste âmbito, é possível marcar as diferenças que realmente importam. E quais são? “As civilidades muito diferentes da Europa e da China; a barbárie de Tartary e da Arábia; e o estado selvagem da América do Norte e da Nova Zelândia.” Meu argumento não diz respeito à ciência em si, mas ao que estiver no discurso de uma cultura que fundamenta a verdade sobre a diversidade humana, que abre o segredo das relações entre natureza e cultura, que desata o nó enigmático da diferença humana que importa. O que importa não é que contenham a verdade científica sobre a diferença, mas que funcionem como fundamento do discurso sobre a diferença racial. Fixam e estabilizam o que de outra maneira não haveria como ser fixado ou estabilizado. Asseguram e garantem a verdade das diferenças discursivamente construídas.

Natureza = cultura

Então, a relação aqui é que a cultura é feita para ser um ato contínuo da natureza, ela se apoia na natureza para se justificar. A natureza e a cultura operam como metáforas uma para a outra. Operam metonimicamente. É a função do discurso, e de raça como significante, fazer com que ambos os sistemas — natureza e cultura — correspondam um ao outro, de maneira que uma possa ser lida através da outra. Assim, uma vez que se saiba onde uma pessoa cabe na classificação das raças humanas naturais, é possível inferir daí o que provavelmente pensam, o que sentem ou produzem, a qualidade estética de suas produções, e assim por diante. A função de raça como significante é constituir um sistema de equivalências entre natureza e cultura.

Exige-se o traço biológico como sistema discursivo na medida em que os sistemas raciais tenham a função de essencializar, de naturalizar, essa maneira de tirar a diferença racial da história, da cultura, e localizá-la para fora do alcance da mudança.

Ver é crer

No entanto, esse não é, a meu ver, o único motivo pelo qual o raciocínio biológico, enquanto funciona como se fosse largamente falso, ainda permanece na conversa quando falamos de raça. Esse não é o único motivo. O ponto de partida de Du Bois era precisamente as diferenças mais grosseiras de cor, cabelo e osso.

Apesar do fato de que permanecem anômalos às populações, transcendem a definição científica, são os que, afinal, provêm o fundamento das linguagens que usamos no cotidiano para falar sobre raça: os fatos físicos grosseiros, que teimam em existir, de cor, cabelo e osso. Ora, a questão central sobre essas diferenças físicas grosseiras é que elas não estão baseadas na diferenciação genética, mas são claramente visíveis a olho nu. São absolutamente, evidentemente, indisputavelmente presentes. São a diferença visível. São, para o olho não científico, o que faz com que raça seja um assunto que continuamos discutindo. São os fatos brutos, físicos e biológicos que aparecem no campo de visão humano, onde ver é crer.

Frantz Fanon foi arrebatado por essa inscrição da diferença racial na superfície do corpo negro: o que ele chamou de evidência escura e inquestionável de sua própria negritude. Em Pele negra, máscaras brancas (2008[1952]) ele disse: “Sou um escravo não da ideia que outros têm de mim mas de minha própria aparência, sou fixado por ela.” Pois o que pode transfixar as pessoas mais do que aquilo que é poderoso, evidente e concretamente presente? Uma diferença racial que se inscreve indelevelmente na escritura de um corpo? Mesmo assim, quero argumentar que acontece aí um jogo de significantes.

Genética: produzindo sentido com a diferença

De onde surgem esses signos evidentes e visíveis de diferença racial? Cabelo crespo, nariz largo, lábios grossos, traseiros grandes. E, conforme o escritor francês Michel Cournot o expressou com delicadeza, “pênis do tamanho de catedrais”. O que dá origem a tudo isso, claro, é o código genético. Porque essas coisas não estão simplesmente presentes. Já tentaram fazer uma triagem de um conjunto de pessoas que apresentem algumas dessas diferenças, separando-as em dois grupos discretos e opostos? Isso é impossível de ser feito. É impossível. Algumas pessoas ficam em um polo, outras noutro, e depois há um grupo no meio que fica deslizando para dentro e para fora. Não é possível fixá-lo. Assim, embora raça seja claramente o que você vê, o que a fixa é o que todos sabemos, nós da área científica. O que lhe dá respaldo é o código genético, o qual lamentavelmente não se consegue enxergar. Mas é possível inferir sua existência a partir do fato de que algumas pessoas têm traseiros grandes e outras cabelos crespos, e alguns têm narizes largos e alguns, como dizem, têm o pênis do tamanho de uma catedral. Mas não dá para organizar a população — sabe, dizer “abaixe as calças” e lhe digo se você é isto ou aquilo — porque a coisa é anômala demais. Mas se pode ter certeza de que, geneticamente, um pedaço de código deu origem a essas diferenças no nível da superfície das aparências[5]. E nós, pobres mortais, temos que trabalhar com essa superfície das aparências porque não temos acesso ao código genético.

Ler o corpo

“Tudo bem”, vocês devem estar dizendo, “isso pode ser verdade, mas o que você está dizendo, de fato, é que essas coisas que são visíveis também são significantes! Você as está lendo como signos em um código que não dá para ser visto,  presumindo que é o código genético que produz essas diferenças grosseiras de cor, cabelo e osso. E que só por causa disso é que podemos usá-las como uma forma de fazer distinção entre um e outro grupo de pessoas.” Se eu disser, “aconteceu por acaso”, não é a resposta que procuramos. Procuramos entender o fato de que você consegue ler o corpo como se fosse um texto. Ele é um texto. Agora, meus amigos, sei que vocês vão dizer, “Se você me bater, me cortar, eu vou sangrar. Se me atropelar na rua, como acontece frequentemente aqui em New Cross, vou me machucar. Então, não me diga que sou um texto.” Talvez seja verdade, mas na medida em que estamos falando do sistema de classificação de diferenças, o corpo é um texto e somos todos leitores dele. E circulamos, olhando esse texto, inspecionando-o como críticos literários cada vez mais de perto para ver as diferenças mais refinadas, as tão sutis diferenças de metáfora. E quando isso não funciona começamos, como verdadeiros estruturalistas, a fazer uso das combinações. “Bem, com um permanente, sabe, um nariz não tão largo, com cabelos um pouco crespos, e se tenho um traseiro grandinho e sabe Deus mais o quê, talvez eu chegue a uma aproximação.” Somos leitores de raça, isso é o que está rolando. Somos leitores da diferença social. E o cabelo é citado como se fosse definitivo, como se pusesse fim à discussão. “Você diz que raça é um significante, mas não é, não. O pessoal lá é diferente, dá para perceber que são diferentes!” Bem, essa obviedade, a própria obviedade da visibilidade de raça, é o que me convence de que isso funciona, porque isso está significando algo: é um texto que conseguimos ler.

Por que precisamos ir além da “realidade”

E agora, então, essa noção de que até o código genético é impresso em nós através do corpo, e não sobre o corpo, e de que não se pode parar na superfície do próprio corpo negro como se isso desse um fim à discussão. Mas é exatamente por isso que o corpo é invocado no discurso dessa maneira: na esperança de que ele encerre o assunto, de que se você invocar a própria realidade, se você disser, “a pessoa mais preta nesta sala, venha comigo”, como se a possibilidade de apontar essa pessoa destruísse meu argumento. É só olhar: “Olhe, ali!” É exatamente essa a função de invocar o corpo como o último significante transcendental, como se ele fosse o marcador além do qual todos os argumentos são suspensos, toda linguagem cessa; como se todo discurso fosse derrubado diante dessa realidade. Acho que não podemos nos desviar da realidade de raça porque a própria realidade de raça é o obstáculo que nos separa de uma compreensão mais profunda do sentido de dizer que raça é um sistema cultural.

Analisar as histórias do corpo

Já disse que Fanon, no ensaio Pele negra, máscaras brancas, é arrebatado e obcecado pelo trauma de sua própria aparência e do que isso significa. Fica enlouquecido por estar preso e trancado em um corpo que o outro, o outro branco, conhece só de olhar para ele, que esse outro vê através dele ao ler o texto do corpo negro. Está obcecado com esse fato. E, no entanto, como vocês sabem, a potência e importância de Pele negra, máscaras brancas é que Fanon entendeu que por debaixo do que ele chamou de esquemas corpóreos está outro esquema. Um esquema composto de histórias e anedotas e metáforas e imagens que é o que na realidade constrói a relação entre o corpo e seu espaço social e cultural. São essas histórias e não o fato em si. O fato em si é precisamente a cilada da superfície, que nos permite descansar no que é óbvio, no que está presente de forma manifesta, o que nos é oferecido como sintoma da aparência. Aquilo que assume o lugar do que de fato é, um dos sistemas culturais mais profundos e complexos que nos permitem distinguir entre dentro e fora, entre nós e eles, entre quem pertence e quem não pertence.

Esse fato aparentemente simples, óbvio e banal requer a invocação de territórios de saber para que este seja produzido como fato simples, óbvio e banal. Nesse sentido, a diferença racial é mais parecida com a diferença sexual do que outros sistemas de diferença, precisamente porque a anatomia, a fisiologia, parece resolver a questão. O que sabemos e aprendemos, aos poucos, sobre a diferença sexual, isto é, a profundidade das questões por trás da produção dessa distinção, é o que precisamos começar a aprender sobre as  linguagens que usamos para falar de raça.

Por que importa? combatendo o racismo

Embora o conceito de raça não possa desempenhar a função que lhe é solicitada — prover a verdade fixando-a sem sombra da dúvidas — é difícil livrar-se dele porque é muito difícil para as linguagens sobre raça funcionarem sem qualquer tipo de garantia fundacional. O que estou dizendo aqui, sobre essa necessidade, não é um argumento teórico, ou não apenas. É um argumento político, porque tanto a política de raça quanto a de anti-raça estão fundadas na noção de que de alguma maneira, em algum lugar, seja através da biologia, ou da genética, ou da fisiologia, da cor, ou algo que não seja a história e cultura humanas, há uma garantia da verdade e autenticidade das coisas nas quais acreditamos e que queremos fazer. É a busca da garantia, tanto na política antirracista quanto na política racista, que nos vicia na preservação do traço biológico. É difícil abrir mão dele porque, no final das contas, não sabemos como seria tentar conduzir uma política, sobretudo uma política antirracista, sem garantias. Não sabemos como conduzir a política sem garantia.  Queremos de alguma maneira que algo nos diga que as opções políticas contingentes em aberto e usualmente erradas que fazemos podem, no final, ser lidas a partir de uma template mais científico-teórica que, se a tivéssemos conhecido de antemão, nos teria dito o que estava certo ou não. Precisamos de garantia, precisamos, no sono da razão, de algo que nos diga “Sim, façam-no”. Não só por nos dar a sensação de ser, e nos parecer ser, a coisa certa, até onde nossos cálculos alcançam, mas também porque ao final será a coisa certa, existirá algo que a tornará certa. Isso porque as pessoas que defendem as mesmas coisas, afinal, são as pessoas que você conhece, são boas pessoas. Como é que pessoas que se juntaram em torno dessa forma comum de identificação podem estar erradas? Mas a verdade é que podem, como todos os seres humanos comuns. Todos podemos estar errados, e muitas vezes estamos. De fato, normalmente estamos, e dá para afirmar que nossa política quase sempre o é. A única coisa que não somos é detentores de garantias da verdade do que fazemos.

De fato, acredito que sem esse tipo de garantia teríamos que recomeçar[6]. Recomeçar em um outro espaço, com um conjunto diferente de pressupostos para tentar nos perguntar o que é na identificação humana, na prática humana, na construção de alianças humanas que — sem as garantias e certezas da religião, ou da ciência, antropologia, genética, biologia, ou da aparência diante de nossos olhos —, sem qualquer garantia, poderia nos possibilitar a condução de um discurso e de uma prática humanos eticamente responsáveis sobre raça em nossa sociedade. Como seria conduzi-lo, sem ter às nossas costas um toque de certeza, mesmo que parecêssemos estar errados, se tivéssemos acesso ao código, algo que tivesse nos dito o que fazer, desde o início?

E esta é uma verdade incômoda. É incômodo, claro, para os que gostariam de poder invocar os traços biológicos ou genéticos como forma de suspender o debate. Mas também é uma verdade muito difícil de ser encarada pelas pessoas que sentem que a “realidade de raça” dá uma espécie de garantia ou sustentação a seus argumentos políticos, juízos estéticos e crenças sociais e culturais. Quando adentramos a política do fim da definição biológica de raça, mergulhamos de cabeça no único mundo que temos: o abismo do debate e da prática políticos permanentemente contingentes e sem garantias. Uma política crítica contra o racismo, que é sempre uma política da crítica.


* Este texto é uma conferência proferida por Stuart Hall em 1995 em Goldsmiths College — University of London e reproduzida em documentário por Sut Jhally © Media Education Foundation, 1996. Está disponível na íntegra, em inglês, ilustrada por fotos e diagramas, no YouTube. Começa no minuto 6’40” da parte 2 do documentário Race, the Floating Signifier, disponível em: www.youtube.com/watch?v=SIC8RrSLzOs&list=PL9DB8464B43CFAC14

* Stuart Hall, nascido na então colônia da Jamaica em 1932, migrou para a Inglaterra em 1951.  Preocupou-se desde cedo com questões pós-coloniais e questões ligadas ao racismo. Dirigiu o Centre for Contemporary Cultural Studies, da University of Birmingham, e o Departamento de Sociologia, da Open University, até se aposentar em 1997. Presidiu por muitos anos os conselhos do Institute of International Visual Art (www.iniva.org) e Autograph-ABP (anteriormente a Association of Black Photographers) www.autograph-abp.co.uk.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e organizadora da coletânea de Stuart Hall, Da diáspora (Editora UFMG, 2003).

Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Início da parte 3: www.youtube.com/watch?v=BI-CwR8pCcY&list=PL9DB8464B43CFAC14

[2] Du Bois, W.E.B.  As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

[3] Início da parte 4: www.youtube.com/watch?v=rYGeqryELXk&list=PL9DB8464B43CFAC14

[4] Início da parte 5: www.youtube.com/watch?v=OVjmbDbnJKo&list=PL9DB8464B43CFAC14

[5] Início da parte 6: www.youtube.com/watch?v=GeD6awgSHGU&list=PL9DB8464B43CFAC14

[6] Início da parte 7: www.youtube.com/watch?v=vRRQ2KSBeyA&list=PL9DB8464B43CFAC14