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O povo negro do samba: invisibilidade e protagonismo

Katia Santos*

…de noite, vai ter cantoria
e está chegando o povo do samba
é a Vila, chão da poesia, celeiro de bamba
Vila, chão da poesia, celeiro de bamba…

Unidos de Vila Isabel, Carnaval 2013.

Sambódromo, Rio de Janeiro, primeiras horas da manhã do dia 12 de fevereiro. O dia começa a clarear. Há menos de uma hora terminou o desfile da última escola de samba da noite, no segundo dia de desfiles, a Unidos de Vila Isabel. A escola fez um desfile primoroso, beneficiada pelo samba enredo eleito pelos experts no assunto como o melhor da safra de 2013, composição de Martilho da Vila, Arlindo Cruz, Leonel, André Diniz e Tunico da Vila.

Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.
Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.

Começávamos a nos retirar da avenida, depois de passarmos exatas 12 horas instalados no duro concreto do setor 10, de onde podíamos acompanhar o recuo de cada bateria das escolas de samba da noite – R$ 200, redondos, foi o que pagamos pelo espetáculo. Prudentes, deixamos que a maioria afoita, formada por turistas nacionais e internacionais, se retirasse no primeiro segundo do fim do desfile da Vila Isabel e nos demoramos um pouco mais na arquibancada. Cantávamos ainda o contagiante samba. Acompanhávamos o carro de som que serviu à Vila, e que retornava à avenida tendo ainda três integrantes da escola no alto, sendo Arlindo Cruz uma delas. De longe, tínhamos a impressão de que eles foram esquecidos ali no alto. Mas tudo indicava que o carro com o equipamento que os traria ao chão não acompanhou a escola e, assim, o carro de som teve que voltar, vindo ao encontro do carro auxiliar. Gritamos “Arlindo”, berramos “é campeã!” e, enfim, decidimos nos retirar, de verdade dessa vez.

Quando descíamos a avenida em direção à Presidente Vargas, parecia que éramos os últimos. Mas logo, não lembro bem em que momento, estávamos andando ao lado de um pequeno grupo de integrantes da Vila Isabel. Apenas as duas mulheres do grupo não estavam com as cores e identificação da escola. Quando percebemos que eles conversavam sobre o fiasco da Mangueira, nem pedimos licença, juntamo-nos ao grupo nos comentários, enquanto todos andávamos na mesma direção. Além das mulheres, havia dois homens e seis rapazes, todos adolescentes e com jeito de profissionais do samba, da arte de cantar samba na avenida, talvez. Cheguei a interagir com um deles que me disse ali, com muita segurança, depois de saber que falava com uma das mangueirenses do grupo, quantos pontos/décimos a Mangueira perderia por ter utilizando seis minutos além do máximo permitido em seu desfile.

Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.
Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.

Não pareciam ter pressa, estavam mais interessados no debate, no qual nos metemos e do qual participamos ativamente. Enquanto isso, alguém gritou de longe: “Tinga! Hei, Tinga! Parabéns, cara! Vai dar Vila, tem que ser, foi 10!” E assim nos demos conta de que estávamos proseando com aquele que viria a ser o grande intérprete do Carnaval de 2013 – o grande porque vencedor do ano: Tinga (Anderson Antonio dos Santos), o intérprete da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel.

O grupo de Tinga parou por alguns minutos para falar com o outro grupo e nós seguimos, alguns de nós afirmando saber de antemão que conversávamos com o puxador Tinga, e outros assumíamos que não sabíamos se tratar de Tinga. E assim seguimos em frente e eles vieram depois, ficaram a uma pequena distância de nós. Nosso grupo se dispersou na altura da Central do Brasil, mas enquanto pudemos tentamos acompanhar à distância a caminhada do principal intérprete da Vila Isabel. Eles seguiam andando e conversando entre eles. Creio que foram além do ponto em que nos dispersamos, em direção talvez a algum estacionamento.

Comentávamos o fato de termos uma pessoa tão importante para a escola, provável campeã daquela noite, ali entre nós, naquela longa caminhada depois de uma noite tão glamourosa e exaustiva para ele. Evidentemente, logo passamos a teorizar sobre o lugar do “povo do samba” no espetáculo que virou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. No curto percurso – para tão complexa discussão – que nos restava até nossos destinos finais falamos da invisibilidade e fundamental presença e participação dos integrantes das comunidades de origem das escolas no corpo das escolas de samba, principalmente em dia de desfile. Falamos ainda da não coincidência de serem os negros, como Tinga e seu grupo, os “invisíveis e fundamentais” da questão.

E neste mesmo período de Carnaval carioca de 2013 houve um outro evento que despertou minha atenção. Aconteceu três dias depois do encontro com Tinga, na sexta-feira, quando já sabíamos que a Vila Isabel era a grande campeã.

Peguei o ônibus 348, Praça XV, no último ponto de Jacarepaguá antes que este siga pela Linha Amarela. É o ponto de ônibus na Estrada do Gabinal, em frente ao conjunto de apartamentos da Cidade de Deus. Quando entrei, uma senhora estava se posicionando em um assento próximo à porta, provavelmente por ter pego o ônibus um ponto antes de mim – no último ponto do conjunto de casas da Cidade de Deus, também. Reparei logo nesta senhora porque ela trazia no pescoço um pesado colar de contas azuis que davam um contraste interessante com o seu tom de pele tão negro. Fiquei tentando adivinhar qual seria o orixá representado por aquele colar. Minutos depois sentei-me próxima a esta senhora só que do lado oposto ao dela. E quando o ônibus ficou mais vazio ela começou a resmungar olhando ao redor: “Sempre que a gente está atrasado tudo acontece! Olha esse engarrafamento! E ainda com um motorista ruim desse…”

Sorri para ela solidária com sua queixa e me predispondo a uma interação qualquer. Ela então prosseguiu reclamando do trânsito, do motorista, do calor, da empresa de ônibus… E não sei bem em que momento, começou também a reclamar da colocação de sua escola de samba na apuração do carnaval, a Mocidade Unida de Jacarepaguá. Disse-me – parecia pensar em voz alta – que sua escola, do grupo de acesso D, ficara em quarto lugar, e que a culpa era de alguém que não entendi bem quem seria. De qualquer forma, tudo era culpa dessa pessoa. Eu estava sentada à sua direita, do outro lado do corredor, na mesma direção, mas ela falava olhando para a frente e gesticulando muito, olhando-me apenas de vez em quando. Mas o melhor de sua fala aconteceu quando ela parecia ainda mais irada, e falava alto, olhando para as mãos, para a frente, para fora do ônibus e quase nunca para mim: “E ela ainda vem me dizer, ‘tem que escolher, ou a nossa escola ou a Mangueira’. Quem é ela?! Quem é ela pra querer me fazer escolher. Ela fica lá, ocupando a quadra com funk. Nunca vi isso. E ainda quer ser campeã e me dizer o que fazer. Quem é ela?! Enquanto eu já desfilei em mais de vinte escolas, já fui Estandarte de Ouro pela escola tal, já fiquei em segundo com a escola tal, já dei campeonato a três escolas, já…” E aí tive que interrompe-la para saber em que setor dessas escolas ela desfilava: ala das baianas. E tentando dar sequência à conversa comentei que o Bloco Coroado de Jacarepaguá, bloco vizinho a sua escola, tinha ficado em segundo lugar, e ela foi rápida: “Não interessa! O Coroado é bloco, não é escola. Nós somos escola!” Resolvi, então, apenas ouvi-la.

Disse-me depois que estava indo para um evento pós-Carnaval na Cidade do Samba, “fazer apresentação pros gringos e ganhar um dim-dim”. E que, inclusive, ia também para assinar um certo documento que confirmaria sua ida à Argentina este ano para apresentações de Carnaval. Mostrei-me impressionada e ela logo adiantou que sempre vai nessas apresentações na Argentina – falou bem orgulhosa e ainda mais alto.

De repente seu celular começou a tocar, eram as amigas. Orientou-as: “Se vocês chegarem antes de mim, pedem ao pessoal da Império da Tijuca [escola primeira colocada do grupo de acesso] pra colocar vocês pra dentro, diz que vocês são baianas novas”. Quando acabou a ligação, olhou para mim, deu uma piscadela e emendou, “Chamei umas amigas. Não vou comer sozinha, né. Quem come sozinho só come uma vez.” Concordei, e o telefone dela tocou outra vez. Como já estava perto de seu destino, despediu-se de mim enquanto estava ainda atendendo a ligação, e foi-se. Fiquei para trás pensando: qual seria a ligação entre a baiana viajada e o intérprete Tinga e seus meninos – descobri depois – puxadores mirins? Isto porque o encontro com esta senhora, no mesmo instante, trouxe-me à lembrança o encontro e diálogo, na madrugada do desfile do grupo especial das escolas de samba, com o intérprete Tinga. E este interesse e link têm um contexto, evidentemente.

Terreirão do samba no raiar do dia
Terreirão do samba no raiar do dia

Em 2004, quando comecei a conversar com a sambista Dona Ivone Lara[1] sobre o samba em sua vida, foi quando descobri que existe no Rio de Janeiro uma cidade paralela à cidade oficial. Um tipo de Cidade do Samba que só existe na memória e na narrativa das pessoas. E essa cidade do povo do samba é pulsante, forte, movimentada, festeira e negra, sim. Desde então, passei a olhar o Carnaval carioca e as comunidades de samba com outros olhos. Aprendi a enxergar as várias camadas que formam a população que todo ano invade a Marquês de Sapucaí, tanto na avenida quanto nas arquibancadas, camarotes, frisas, cadeiras etc. Logo, não haveria melhor lugar para conduzir, como desejava, uma pesquisa sobre as dinâmicas culturais dos negros no Rio de Janeiro desde o período pós-abolição[2]. Apesar de o desfile das escolas do Rio ser, sim, tudo o que sabemos dele (covardemente excludente, caro, um tanto repetitivo, plástico demais etc.) há ainda um povo negro do samba que acredita de coração na sua escola, na escola de sua comunidade, nas cores que defende. Acreditam que “samba é coisa de preto”, que “se não tiver crioulo não tem samba”, que “quem faz aquilo lá é a gente!” – todas declarações feitas nas entrevistas que venho conduzindo. O compositor Altay Veloso vai mais longe. Na canção “Rio Nilo”, sobre a comunidade de samba da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, ele permite que a cantora Leny Andrade nos informe:

Quem ajuda esse povo a cruzar o deserto é o samba
Quem faz esse povo virar bailarino é o samba
Nas margens do Nilo quem
tira os meninos da rua é o samba…
Pois esse é o primeiro dos dez
mandamentos do samba…
Abre o mar que eu vou passar
Com uma procissão de passistas da Beija-Flor

Assim, a partir de entrevistas com pessoas que vivem e/ou viveram o samba, fui levada a uma outra esfera cultural da cidade, um lugar idílico, onde sambistas, sambas, passistas, compositores, canções, mães de santo, terreiros, malandros, cantoras, cantores, puxadores de samba, carnavalescos, governantes, patronos e artistas de outra linha possuem sólidas histórias de vida. Estas podem variar um pouco na sua gênese – dependendo do narrador – mas a memória que as abriga é sólida, fiel e reverenciadora, na grande maioria das vezes. A cada nova conversa, sou apresentada a um personagem, um evento, uma canção, que habitam quase que tão somente as memórias (afetivas, muitas vezes) comum a essas pessoas. Nesse lugar preservado e de preservação, de cuidado, há dinastias familiares, versadores imaculados, compositores reverenciados, patronos temidos, mulheres e homens de belezas incontestes, passistas, dançarinas e dançarinos de grande prestígio, cozinheiras “de mão cheia”, e músicos e letristas que, uma vez ali, jamais morrerão. E na fala das pessoas toda essa dinâmica apresenta-se indubitavelmente como um relato de um mundo negro, de ontem e de hoje, sem apologéticas – o que não acontece na avenida.

São questões negras que temos que ver de perto. O que assistimos na TV e vemos na superfície da avenida em dia de desfile – ou até mesmo nas quadras de algumas escolas – não é o único retrato fidedigno do Carnaval da avenida. Aproximando-nos, vemos as outras camadas, aquelas que na grande maioria das vezes não atraem as câmeras de televisão ou qualquer outra mídia. Mas que nem por isso deixam de estar por lá, com legitimidade e pertencimento e bastante protagonismo, ainda que emboladas pelas pernas congeladas do gringo de ocasião.

Devemos evocar todos os saberes e memórias que habitam esta Cidade Negra do Samba para que venham nos ensinar como retirar a negritude local, brasileira, das sombras do olimpo da cultura oficial e estabelecê-la aqui, em terra firme, em todas as avenidas do país. Seria um ato quase reparador do último país do planeta a abolir a escravidão. E este mesmo Brasil seria, assim, o modelo de preservação, multiplicação e expertise do legado cultural dos indivíduos que formam a produtiva e inventiva Diáspora Negra.

E em caso dúvidas acerca deste legado, Brasil, “pergunte ao criador / quem pintou essa aquarela”.

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/] Samba enredo da Vila Isabel 2013.

* Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Nossas conversas resultaram no livro Ivone Lara, a dona da melodia, publicado em 2010.

[2] Pesquisa em andamento.