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Cinema / futuro / passado | de Sandra Kogut

Berlim, novembro de 2011.

Estou em Berlim, passando alguns meses graças a uma bolsa muito generosa, que me permite fazer o que quiser (no meu caso escrever um roteiro e experimentar com imagens, sons, ideias, tudo sem compromisso) numa cidade tão rica, complexa, fascinante. Um luxo. Recebo esse convite para escrever sobre o Futuro e o Cinema. Engraçado. De uns tempos pra cá só ouço falar de cinema como algo do passado, em vias de extinção, assim como os jornais impressos, os livros, os correios, o euro, e quem sabe até mesmo o mundo ocidental. Aqui, porém, se trata de cinema no futuro. Mas o que é mesmo cinema? Será que também virou um luxo? Hoje tantos mundos se encaixam dentro dessa palavra.

Há duas semanas fui ver um filme francês que tinha acabado de ser lançado aqui com relativo destaque, filme premiado em Cannes, um dos maiores festivais de cinema do mundo. Na sala – surpreendentemente pequena – só eu. Uma sessão privada, na primeira semana de lançamento! Será que eles vão manter a sessão mesmo assim? – pensei preocupada. E mais preocupada ainda com essa sensação recorrente de que o cinema está acabando (mesmo que secretamente desfrutando do luxo da sala vazia). Cresci numa época na qual a visão de um lugar vazio não dava automaticamente a sensação de que aquilo ia acabar. Mas aprendemos a pensar de modo maximizado. Se um avião está vazio o voo é cancelado. No cinema parece que ainda não é assim. Depois da luz apagada entrou mais alguém. No final da sessão, embalados pela situação tão estranha de sermos só nós, embarcamos numa conversa animada sobre o filme, o desconhecido e eu. Devia ser assim na época dos cineclubes, pensei.

Claro, existem os blockbusters, as salas lotadas, os sucessos de massa. Cada vez mais eles se parecem na linguagem (e muitas vezes são) com séries de televisão. Muitos closes, edição picotada, roteiro montado no liquidificador e um túnel, em linha reta, aonde a gente avança sentado num carrinho de montanha russa, e nem precisa de cinto, porque riscos não há. Nada que pareça pedir uma tela grande pela maneira como foi filmado, a não ser pela dimensão do marketing e pela amplitude que o termo “cinema” ainda parece trazer. Então hoje seria isso cinema?

Desde garota eu sonhava em fazer cinema. Adoro estórias, mas adoro também uma coisa que, acredito, só o cinema permite: uma percepção mais sensorial, intuitiva, pós (ou pré) verbal, feita dessa proximidade gigantesca com a imagem ampliada, como se estivéssemos entrando num mundo de muitos mundos, internos e externos. Misteriosos. Entrarmos no inconsciente dos personagens e no nosso próprio – aquele friozinho na barriga de empolgação na hora que as luzes se apagam e, pronto, vai começar.

Na época que eu comecei as escolas eram poucas, mal equipadas, tudo era difícil. Por acaso – sem saber bem o que isso queria dizer – fui fazer vídeo. Me via como alguém que se movia no mundo audiovisual, o que estava longe de ser uma linha reta e menos ainda um plano de carreira. Não tinha a menor ideia do que aconteceria depois de alguns anos. A mídia utilizada para cada trabalho dependia do projeto e podia ir de uma caneta a diferentes tipos de câmeras (de vídeo, película, super 8, 16, fotográfica). Um projeto pedia apenas sons, outro seria melhor sob a forma de instalação. E assim por diante. A escolha era uma questão artística, não de produção. O grande desafio era estar criando uma obra audiovisual que tivesse uma razão de existir, uma necessidade, pelo menos pra mim, e que eu reconhecesse nela um olhar que eu acreditasse ser o meu. O vídeo me encantou porque parecia um terreno onde tudo era possível, sem muita história pra trás, um pouco como o momento de vida que eu vivia. Um dia eu ainda faço cinema, pensava, sem pressa.

Eram os hoje históricos anos 1980. Gostávamos de enfatizar: eu faço vídeo, não é cinema, não é televisão. O que era então? Ninguém sabia muito bem, mas numa coisa todos concordavam – vídeo era uma espécie de terreno virgem, terra de ninguém, lugar de todas as experimentações. O vídeo ainda não tinha entrado no Mundo das Artes pela porta da frente. Era preciso afirmar para existir. Tudo era fruto de uma escolha, questionado: como mostrar, onde projetar, por que a tela é grande, pequena, por que precisamos de uma tela. Ainda lembro a primeira vez que fui a um Festival – da Fotóptica Vídeo Brasil, em São Paulo – o alívio que senti em ver que existiam outras pessoas, em outros lugares, interessadas nas mesmas coisas que eu. Era bem solitário.

Hoje, mais de 20 anos depois, a minha maneira de estar no mundo basicamente não mudou. Mas o mundo sim, mudou completamente. Só de pensar nas diferentes tecnologias que já fizeram parte da minha vida e do meu trabalho, fico exausta. E o meu dia de fazer cinema acabou chegando também. Mas é engraçado que hoje, quando as pessoas falam dos meus vídeos antigos, os chamam de filmes. Tudo o que eu fiz no início – os vídeos experimentais, as experiências digitais e eletrônicas – tudo agora se chama filme. Tudo se chama cinema. Cinema de artista, de museu, de arte. É uma questão de mercado, não mais uma questão artística.

Nos anos 1990 uma palavra mágica começou a circular – o digital. O que era isso exatamente? Ninguém sabia dizer muito bem, mas quando se usava essa palavra, portas se abriam, mundos se cruzavam. O pessoal do cinema se misturava com o do vídeo (casamento até então improvável) e ambos penetravam no terreno proibido da televisão. Antigas hierarquias caíam da noite pro dia. O digital foi uma palavra coringa, e permitiu cruzamentos até então impensáveis. Mas num mundo onde tudo está apenas um mero click adiante, como avançar?

Semana passada fui de novo ao cinema, dessa vez para a abertura de um festival. O filme parecia um programa de televisão, um telefilme. Por que estava no cinema então, abrindo um festival? Será que a palavra cinema também virou uma palavra dessas, como “político”, “orgânico”, “autêntico”, uma dessas palavras que a gente quase não pode usar mais? Hoje em dia, colocar a palavra cinema em alguma coisa implica dar a ela algum tipo de legitimidade, tal uma etiqueta de marca, um selo, que talvez não queira dizer mais nada. Pode ser que não seja o cinema que esteja acabando, mas que tudo passou a se chamar cinema. Cinema faz referência a uma roupagem chique, uma respeitabilidade. Cinema virou uma palavra relíquia, um golpe de marketing. Mas e a profundidade de foco, o tempo narrativo, tudo aquilo que só funcionava na tela grande? Será que não deveríamos estar falando das mudanças na linguagem?

No início do cinema ele tinha muitas formas, muitas possiblidades. Filmetes passavam em praça pública em maquininhas movidas a moedas, ou então eram projetados em cabines, em feiras. As experiências eram muitas. A sala escura, a tela grande, o filme narrativo, as sessões de aproximadamente duas horas de duração – tudo isso era apenas mais uma possibilidade daquela mídia. Não a única e, por um momento, talvez nem claramente a mais importante. Mas logo essa forma passou a dominar, e o cinema virou o grande acontecimento cultural do século 20. A outra via, mais incerta, fragmentada, múltipla, se transformou no cinema experimental, nas instalações, nas formas mais mutantes. Existia lugar para tudo – lugares diferentes, com certeza, mas igualmente possíveis, cada um a sua maneira. Isso permanece, de alguma forma. Talvez estejamos inclusive retornando a isso.

Mas o que parece ter mudado é a discussão sobre a linguagem. Para onde ela foi? Quem sabe o mais fascinante seria resgatar essa conversa que foi sequestrada pelo marketing. Esquecer por um minuto a palavra cinema e tentar pensar no desconhecido, no porquê do tamanho da tela, que podem ser muitos, nas condições de projeção, que podem ser únicas para cada trabalho, no desafio artístico que é circular num mundo no qual todos são produtores potenciais de imagens e sons. Essa discussão, sim, está engatinhando. Vai ser uma festa quando ela se espalhar, porque não temos a menor ideia de aonde ela vai nos levar. Isso é no mínimo tão empolgante quanto sentar numa sala de cinema esperando que as luzes se apaguem.


* Fez seus primeiros trabalhos em 1984 e desde então vem utilizando diferentes mídias e formatos: ficções, documentários, filmes experimentais, instalações. Seus trabalhos receberam vários prêmios internacionais (em Festivais como Rio, Berlin, Oberhausen, Kiev, Leipzig, Locarno, Havana, Rotterdam e muitos outros) e foram exibidos no MoMA (NY), Guggenheim Museum, Forum des Images (Paris), Harvard Film Archives (EUA) entre outros. “Mutum” seu primeiro longa-metragem de ficção – baseado no livro Campo geral de João Guimarães Rosa – teve sua estreia mundial no Festival de Cannes 2007, na Quinzena dos Realizadores, recebendo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Em 2011/2012 passou um ano em Berlim como convidada da DAAD Berliner Künstlerprogramm. Foi também professora na Escola Superior de Belas Artes em Strasbourg (França) e nas universidades americanas de Princeton, Columbia (film program) e University of California San Diego / UCSD. É atualmente Visiting Scholar na New York University.