Este artigo apresenta uma análise da pesquisa iniciada em 2005 no campo da dança que utiliza as redes avançadas de telecomunicações como o locus e a “matéria-prima” para o desenvolvimento do que aqui consideramos uma dança (e um corpo) expandido. Serão discutidos alguns resultados dos projetos realizados pelo Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas que apontam a dança telemática como um reflexo da cultura digital que tem o tempo como fator relevante para seu acontecimento. Essa nova configuração artística promove o surgimento do que denominamos dramaturgia telemática.
Desde o evento Nine Evenings for Theatre and Engeneering (Nova York, 1966) é possível dizer que a arte (re)conheceu novos e complexos ambientes de atuação. Esse evento idealizado pelo artista visual Robert Rauschenberg (1925-2008) e pelo engenheiro Billy Klüver (1927-2004) reuniu 30 engenheiros da Bell Telephone Laboratories e 10 artistas americanos. O projeto levou um ano para ser produzido e mostrou ao mundo performances e instalações que surpreenderam o público. Naquele momento, Nine Evenings fincou um novo marco na história da arte. Segundo Michael Rush, essa é uma reverberação do “confronto com a tela” (1999: 7) que já tinha sido iniciada pelos russos Kasimir Malevich (1878-1935) e Vladimir Y. Tatlin (1885-1953) e, um pouco depois, contou com Paul Jackson Pollock (1912-1956) nessa ruptura, para citar apenas alguns. Esse confronto encontrou eco, portanto, em movimentos como o Futurismo, o Abstracionismo, o Surrealismo, o Conceitualismo e outros. Ainda segundo Rush (1999), a tela representa o pictórico e sua dependência do espaço. A realidade era, até então, expressa pelo espaço (compreendido como um local específico, um ambiente) capturado e fixado nas imagens criadas pelo artista, aspecto que foi efetivamente alterado pela cultura digital. O mundo do código binário apontava para um outro alvo. O foco de interesse se movia do espaço para o tempo, um tempo redimensionado da contemporaneidade.
A exploração do tempo alcançou seu ápice quando o ciberespaço saiu das histórias de ficção científica para concretizar uma realidade (a nossa contemporânea). Muitos consideram o ciberespaço como um “não-espaço”, posição contrária a deste texto. A compreensão de “não-espaço” ocorre pela manutenção da visão pictórica em detrimento da cultura digital. Entretanto, na era da informação, espaço não significa mais lugar, local fixo à espera de ser representado pela obra do pintor, que buscava recriar a realidade tal e qual. O espaço, que agora é virtual, sintético, digital, torna-se múltiplo, é contextual e transitório. O espaço não está dado (pronto e definido), ele é um enunciado que depende de suas situações internas e externas para existir em contínua transformação e articulação. Nesse sentido, espaço é contexto. Tais aspectos estão ancorados no mundo contemporâneo que se interessa pelo processo e não mais (apenas) pelo produto. Estamos em um mundo rizomático e não serial e (exclusivamente) linear . Como contexto, vincula-se aos seus antecessores (situação externa) como os cubistas que desejavam, de certa forma, ter todos os tempos ao mesmo tempo ao “abrir” todas as faces e fases de um mesmo objeto em um único instante (situações internas aquele contexto).
Mas antes de discutir os tempos do ciberespaço, é necessário trazer o contexto, a situação externa que estimulou o surgimento da dança telemática para então poder analisar as obras que serão apresentadas neste artigo. Para os idealizadores de Hole-in-Space. A Satellite Comunication Sculpture (1980), Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz, esse “túnel do tempo” que colocou os transeuntes das ruas de Los Angeles em contato com aqueles que se encontravam em Nova York tinha como objetivo criar uma “performance sem nenhuma fronteira geográfica” (Chandler, 2005:154). Essa já era a segunda obra nesse sentido. A primeira, Satellite Arts (The Image as Place) (1977) foi realizada graças ao interesse da Nasa em aproximar e ganhar simpatia e confiança dos estadunidenses aos seus projetos. Para isso, abriu uma chamada para associações da sociedade civil com interesse em realizar experimentações com o satélite US-Canadian. Apesar de nada compreenderem dessa tecnologia, Galloway e Rabinowitz intuíram que essa poderia ser uma nova forma de fazer arte, uma arte sem fronteira, como afirmaram. Nesse trabalho, dançarinos preparados pelas orientações de improvisação da artista da dança pós-moderna Ann Halprin e autodenominados “Mobilus” foram convidados para realizar uma performance entre duas cidades dos Estados Unidos (Califórnia e Maryland), as quais estão distantes 3 mil milhas e em lados opostos daquele continente. No meu entendimento, o furo (hole) não estava (apenas) no espaço, mas nos tempos sobrepostos daquele contexto.
Quem já vivenciou reuniões por sistemas de videoconferência ou mesmo por aplicativos somo o Skype entre países diferentes deve ter percebido que o enunciado para marcar a reunião é outro, não mais pela medida de hora convencional. Agendar para as 3 horas da tarde ou 15 horas não significa nada, a não ser que se indique o horário de cada um dos locais envolvidos. Talvez não tardará muito para que a unidade de referência do (até então) confortável relógio, que uniformiza nossa agenda cotidiana, seja trocado pelas novas medidas de tempo, agora atômicas e universais. O mundo é constituído de outras unidades de referência, que agora passam a fazer sentido não apenas para especialistas ou cientistas, mas para um cidadão comum e seu cotidiano globalizado. O sistema de referência não pode mais ser local e o Tempo Universal Coordenado (UTC) torna-se o mapa indicativo dos vários tempos de um mundo sincronizado .
Hole in Space não estava furando os espaços, pois o que se tinha deles era apenas uma pequena parede, um muro, um ponto de uma rua da cidade. Nem Los Angeles e tampouco Nova York, como qualquer outra cidade (espaço), podem ser reduzidas a essa parte insignificante do seu contexto. Mas o tempo, esse sim é atravessado e sobreposto em projetos telemáticos, convergindo dois instantes de tempo em um mesmo. Hole in Space ocorre em Nova York que encontra-se no UTC -3, enquanto Los Angeles está na UTC -5, o que corresponde a uma diferença de 3 horas de fuso. Os tempos dessas duas cidades convergiam para um mesmo instante de acontecimento. Pode-se dizer que aquelas pessoas de Nova York estavam em um futuro em relação a Los Angeles, e vice-versa. Um portal do tempo se abria para colocar passado e futuro juntos num mesmo instante. Essa diferença aumenta quando, por exemplo, desenvolvemos o projeto entre três continentes, como em nossa criação entre América do Sul, Europa e Ásia com os seguintes fusos horários: Salvador/Brasil (UTC -3), Barcelona/Espanha (UTC +1) e Chian Mai/Tailândia (UTC +7) . A diferença real entre Brasil e Tailândia é de 10 horas, mas desce para 9 horas por conta do horário brasileiro de verão. Dançamos aqui logo cedo pela manhã, enquanto em Chian Mai o sol já teria se posto.
A dança telemática potencializa a visualização dessa convergência do tempo quando é construída através de camadas de imagens, como será mostrado adiante. O tempo é uma variante muito maior do que usualmente se imagina no cotidiano, pois não visualizamos essas pequenas diferenças no nosso dia a dia; o tempo civil fez com que a vida fosse baseada no fuso horário mais próximo. Se um indivíduo verificasse o tempo solar a cada instante, provavelmente obteria uma medida diferente do que o relógio marca. A vida é experienciada em um tempo convencionado que a cultura digital pode desconstruir para dar visualidade aos instantes até então invisíveis.
Para contextualizar a dança telemática de hoje, além de Rabinowitz e Galloway, vale ressaltar a importância de Nam June Paik (1932-2006) com suas obras provocativas que transgrediam as possibilidades (e interesses) dos meios de comunicação em massa, tais como o inaugural Global Groove (1973) realizado em parceria com John Godfrey e, na década seguinte, Goog Morning Mr. Orwell (1984), com vários participantes ilustres como o músico John Cage (1912-1992) e o coreógrafo e dançarino Merce Cunningham (1919-2009). Desde Paik, os meios de comunicação passaram a ser transgredidos pelos artistas expandindo o corpo humano e a arte como expressão.
Vários acontecimentos continuaram a provocar e a desafiar essa fricção entre arte-ciência-tecnologia. Os reflexos e ecos daqueles experimentos já pincelados em Nine Evenings for Theatre and Engeneering (1966), em Hole-in-Space, a Satellite Comunication Sculpture (1980) e nas transgressões de Paik estão hoje na apropriação que fazemos com as redes avançadas de telecomunicação. Músicos reúnem-se diante de máquinas digitais e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para tocar a partir de locais geograficamente, ou melhor afirmando, temporalmente distintos. O mesmo ocorre com dançarinos e atores realizando espetáculos por meio do uso das TICs.
Para a artista e pesquisadora da cultura digital Gisele Beiguelman, os usos da rede se dão porque o espaço de ação da cultura das redes é um espaço informacional, mediado por redes de comunicação que vêm implodindo sistematicamente não só as noções de distância e de localidade, mas também os limites entre os lugares da arte, da propaganda e da informação por um lado, e as relações entre lugar e não-lugar, por outro (2008: 190).
O aspecto informacional se deve à potência e à natureza das máquinas digitais. Essas tecnologias são as primeiras capazes de “roubar” do mundo informações que podem ser manipuladas e transmutadas em algo outro, diferente de sua configuração primeira. Assim é a tecnologia digital: ela atua como mediadora dos sistemas de signos do mundo através do trânsito de informações. Esse é o ciberespaço: as TICs como parte da sua história, ou seja, uma situação externa; e a informação como “matéria-prima”, a situação interna desse contexto. O espaço da contemporaneidade, portanto, é constituído por esse contexto com as situações das TICs e da informação, que são responsáveis por fazer do tempo um dos grandes marcos da atualidade.
A dança telemática surge então desse contexto de um espaço informacional que se apresenta não mais fixo, mas múltiplo na convergência de vários tempos que se sobrepõem pelas redes avançadas de telecomunicação. Essa configuração estrutura uma dança que é realizada entre corpos remotos, ou seja, entre dançarinos situados em diferentes pontos temporais: corpos e dança expandidos pela cultura digital.
A afirmação “corpos localizados em pontos geográficos distintos” é a forma convencional com que normalmente a dança telemática é definida, o que procede, e era como até há pouco tempo eu também a considerava. Todavia, conforme tenho concluído após seis anos de pesquisa nesse campo, o local da apresentação não interfere concretamente na configuração telemática, a não ser pelo seu posicionamento em um determinado fuso horário. Em um processo de criação, o maior empenho dos engenheiros é minimizar ao máximo a latência e o atraso no fluxo de transmissão. Numa situação hipotética, se as estruturas de todas as redes do mundo fossem completamente idênticas, contando com a alta velocidade de transmissão, com os dispositivos para alta definição etc., e os dançarinos fossem todos vinculados à dança contemporânea, não haveria nenhuma diferença dançar em Chian Mai, Barcelona, Fortaleza, Buenos Aires, ou qualquer outra cidade, a não ser que houvesse algum interesse artístico, estético e/ou conceitual em abordar as questões culturais de cada local. Do ponto de vista da engenharia de rede o que está sempre em destaque é o tempo de conexão. Diferentemente de compreender que essa é uma questão apenas tecnológica, é importante assegurar que uma criação sempre está implicada com seus dispositivos e é justamente por isso que a considero como uma mediação tecnológica: uma está implicada na outra. Portanto, não apenas pode existir uma diferença de fusos horários que se sobrepõem como, por exemplo, uma performance entre Salvador (UTC -3) e Barcelona (UTC +1), ou ainda, Proyecto Paso (2006, Estados Unidos/ UTC -7, Brasil/ UCT -3 e Espanha/ UTC +1), mas contamos também com um retardo no tempo de transmissão da informação. As redes de telecomunicação, mesmo as mais avançadas, contam com uma latência na transmissão da informação que gera um atraso (delay no jargão do meio informacional) de segundos. Dependendo da quantidade e da qualidade da informação, maior poderá ser esse atraso.
Portanto, a conclusão é que se trata de uma dança de tempos e não de espaços por mais que estes, de certa forma, agreguem alguma importância cultural e semântica. A convergência desses tempos nas obras de dança telemática é o foco de discussão deste artigo, cujas análises demonstram que esse corpo e essa dança estão agora expandidos.
O corpo, a dança e o código digital
Minha experiência de praticamente 20 anos trabalhando com a mediação tecnológica na dança e na performance permitiram investigar diversas formas de transmutar o corpo do dançarino, ou seja, digitalizando-o é possível transformá-lo em imagem, em som, em texto etc., pois ele estará em forma digital, traduzido em código binário, em informação. Donald Kuspit argumenta que
com a arte digital pós-moderna, a imagem passa a ser uma manifestação secundária – um epifenômeno material, por assim dizer – do código abstrato que, desse modo, se converte em um veículo principal da criatividade. […] Agora, a criação do código (ou, em termos gerais, o conceito) tem se convertido na atividade essencial. A imagem já não existe por seu direito próprio, sua função é sacar a luz do código invisível sem dar importância ao meio material empregado (2005:11-12).
O autor conclui seu texto afirmando que o “computador não é um novo instrumento para fazer a antiga arquitetura, pintura ou escultura”, e afirma que as artes que se utilizam dos “algoritmos ‘encrustrados’ do computador são novas formas artísticas com um potencial estético, criativo e visionário inesperado e, em parte, ainda não explorado” (ibidem: 37). É dessa forma que compreendo a emergência da dança telemática.
Quando o corpo do dançarino é convertido em códigos binários e esses são transmitidos para seu parceiro em um ponto temporalmente distinto, o que está em jogo não é o espaço (no sentido pictórico anteriormente mencionado), mas o tempo que, fragmentado em vários tempos, converge para um mesmo acontecimento formado de camadas temporais.
Na dança telemática, os corpos tornam-se códigos que podem migrar pelos fluxos informacionais sendo capturados em um ponto remoto e redistribuídos pela rede. De forma simplificada, pode-se dizer que para compor um espetáculo de dança telemática é necessário um dispositivo de captura, denominado encoders (por exemplo, as câmeras de vídeo), ligado em um computador com conexão de rede de alta velocidade que transfere a informação para um ou vários pontos, além da própria internet, conforme o objetivo da performance. Para a recepção, é necessário um outro computador ligado na mesma rede e a um decoder (por exemplo, o projetor de vídeo) (Figura 1). Um programa específico para a transmissão de áudio e vídeo também é necessário para essa operação. Existem trabalhos que utilizam a rede apenas para envio da imagem de um local para outro, sem o interesse de que as mesmas sejam disponibilizadas na internet, como é o interesse das nossas pesquisas.
A dança telemática do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas: experimentos e conclusões
Meu primeiro contato em dança telemática ocorreu nos Estados Unidos, em 2001, quando participei do Environments Lab (Ohio State University) como convidada do professor Johannes Birringer para uma residência artística durante meu período de doutoramento. De volta ao Brasil em 2002, minhas tentativas para realizar uma sessão com o ADaPT foram frustradas já que o sistema de rede que possuíamos não suportava conexões dessa natureza. Entretanto, em 2005 fui convidada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para criar um espetáculo de dança telemática para o lançamento da nova rede avançada (Rede Ipê), que seria uma homenagem ao 10º aniversário do Ministério de Ciência e Tecnologia. A Rede Ipê foi lançada com 10 gigabits por segundo, ou seja, uma velocidade superior em cerca de 40.000 vezes à conexão doméstica de 256 Kbps. Naquele momento, nossa rede acadêmica estava equiparada às principais redes avançadas do mundo, como Géant2 (Europa), CaNet*3 (Canadá) e internet2 (EUA).
Foi assim que surgiu Versus (2005) (Figura 2), um espetáculo performado simultaneamente e em tempo presente por artistas distribuídos em três cidades brasileiras: Salvador, Brasília e João Pessoa. Os dançarinos do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas (GP Poética) estavam nas duas primeiras cidades e, na Paraíba, a música eletroacústica foi tocada em tempo real e enviada para os dois outros pontos. O espetáculo podia ser assistido no Distrito Federal e pela internet.
Além da minha experiência nos Estados Unidos no ADaPT, formato que não pretendia seguir, eu não possuía nenhuma referência nesse campo e, como não era uma linha de pesquisa de interesse naquela época, não tinha uma investigação prévia para auxiliar no processo criativo. Assim, iniciei do zero, sabendo apenas o que eu não queria e carregando a experiência de trabalhar com imagem em tempo presente nos espetáculos cênicos e alguns estudos em videodança. Percebi que investigar as possibilidades de um dançarino efetivamente interagir com seu parceiro virtual (aquele que estava no outro ponto remoto) seria a melhor forma de utilizar aquele contexto para criar realmente uma relação de mediação explorando as características que considero relevantes nas redes de telecomunicação. A estratégia encontrada para atingir o objetivo pretendido centrava-se na criação de camadas de imagens (e tempos). Cada ponto remoto constituía-se como uma das camadas, sendo a última a compor o resultado final da obra (Figura 3). Em virtude do delay, um dançarino vê sua própria imagem na tela-guia atuando com seu parceiro remoto durante a performance, mas em um tempo passado, já transmitido pela rede. Dessa forma, o dançarino se percebe no palco em dois instantes sobrepostos: o tempo presente do “corpo de carne e osso” que dança no palco, e um tempo passado inscrito nas imagens que constroem a relação entre os parceiros dos diferentes pontos remotos.
Portanto, trata-se de um jogo de camadas de imagem e de tempo que compõem um todo e, ainda, esse processo criativo demanda a construção simultânea de duas estruturas semânticas, ou seja, uma dramaturgia era criada para aqueles que se encontravam na plateia de Brasília, outra era percebida pelos usuários da rede. Nesses seis anos de pesquisa em dança telemática, temos utilizados essas premissas para aprofundar a investigação nesse campo e desenvolver uma dramaturgia telemática.
A enorme complexidade para realizar o espetáculo Versus tornou-se um estímulo para a formação do Grupo de Trabalho de Mídias Digitais e Artes (GTMDA) em 2009 com o objetivo de criar uma ferramenta que facilitasse a construção de obras dessa natureza. Através do GTMDA desenvolvemos a ferramenta Arthron, para a transmissão e o gerenciamento de imagem em alta resolução via redes avançadas, e o espetáculo e_Pormundos Afeto, que contou também com a parceria do grupo catalão Konic Thtr. Contemplado pela RNP por dois anos, esse foi o projeto com maior tempo para criação e desenvolvimento, contando com financiamento nos anos de 2009 e 2010 e, em 2011, foi convidado para participar do evento The Third European Network Performing Arts Production , realizado no Gran Teatre del Liceu em Barcelona. O Laboratório de Vídeo Digital (UFPB), coordenado pelo Dr. Guido Lemos, foi responsável pela tecnologia desenvolvida e tem sido um dos grandes parceiros dos meus projetos desde 2005, quando criamos Versus.
Um dos objetivos do espetáculo e_Pormundos Afeto foi possibilitar a interação do público da internet permitindo que qualquer pessoa conectada à rede tivesse condições de assistir e participar do espetáculo. Para isso, o público, usuário da rede, entrava em um sistema no qual podia interagir com um ambiente virtual através de um avatar que escolhia. Essas imagens eram projetadas no palco compondo uma imagem final com o ambiente virtual, os avateres e os dançarinos remotos. Assim, na obra e_Pormundos Afeto todos os tempos do mundo poderiam estar sobrepostos, uma vez que qualquer pessoa do planeta que estivesse conectado à internet poderia entrar no sistema.
A questão do tempo nesse trabalho também foi explorada de outra forma. Meu interesse era continuar a pesquisa estética na utilização do delay, já iniciada em Versus. Construímos então uma cena que apresentava os vários tempos de ação dos dançarinos através de um efeito conseguido por colocar a projeção dentro do próprio enquadramento da câmera, criando uma multiplicação da imagem. Na Figura 4, a dançarina Aline Rosas aparece no palco e na imagem repetidas vezes. Cada imagem da Aline é a captura de um instante de tempo atrasado no fluxo de informação da rede e revelado pela multiplicação das imagens. Quanto mais ao fundo, há mais tempo foi capturada aquela camada de imagem.
Portanto, a dança telemática propicia outras formas de configuração que alteram a maneira de compreender e criar sua narrativa, que é distendida no tempo e na relação entre corpos remotos. Consequentemente, outras possibilidades de dramaturgia surgem nesse novo contexto.
Para tratar dessa questão, analiso nosso último trabalho realizado em 2011, o espetáculo Frágil, resultado do projeto Laboratorium Mapa D2 (2011) que articulou diferentes linguagens artísticas em espaços distribuídos. Participaram desse projeto: o grupo de Fortaleza, Laboratório de Poéticas Cênicas e Audiovisuais (LPCA-UFC) , voltado para o trabalho cênico com ênfase na exploração vocal; o Núcleo de Artes e Novos Organismos (Nano-UFRJ) , do Rio de Janeiro, responsável pela criação de uma escultura eletrônica-digital que recebia inputs das ações dos dançarinos e atores de forma a interagir com os mesmos; e o GP Poética (UFBA), de Salvador, responsável pela composição sonora, que se valia das vozes dos atores em sua construção e da condução da performance através do desenvolvimento cênico dos dançarinos. A obra como um todo, ou seja, em todos os seus núcleos de atuação, contou com nove câmeras de captura que foram disponibilizadas na internet através do Arthron, de forma que o usuário-web podia construir em tempo real sua narrativa.
Na telemática, as linguagens se fundem para a construção da obra criando uma forma de dramaturgia específica desse meio. A criação a partir do jogo de camadas, da convergência de diferentes tempos e a relação de interação virtual propiciam uma narrativa que denominamos dramaturgia telemática, a qual emerge da confluência entre (os códigos d)as estruturas da narrativa audiovisual, das tensões de uma estrutura teatral e dos elementos composicionais da dança e da música. Os músicos especializados em telemática, Pedro Rebelo e Franzisca Schroeder (2009) advertem que muitos autores buscam “repensar o modelo de comunicação e argumentam em favor de um quadro que, contrário à frequente abordagem holística de performance na rede, favoreça uma visão por golpe de vista, fragmentos e desejos”. Compartilho essa posição justamente por considerar que na dança telemática trabalhamos com “pedaços” do tempo que convergem para um mesmo instante e com corpos transformados em códigos, conforme discutido neste artigo.
O projeto Laboratorium de Arte Telemática Mapa D2 é um reflexo de todas as pesquisas anteriores que realizei, promovendo não apenas a construção de uma mesma obra vista por diferentes pontos de vista (muitos deles remotos), mas também outras formas de articulação entre os pontos e entre a obra e o usuário da rede. A utilização do tempo na telemática foi investigada nesse espetáculo também por um outro prisma. Diferente das demais obras, as quais envolviam apenas o universo da dança, no espetáculo Frágil, além da interação entre linguagens artísticas diferentes, cada grupo concebeu uma configuração estética específica. Fortaleza criou um espaço de “corpos instalados”, ou seja, os atores permaneciam numa mesma ação durante toda a obra que era pautada nas cenas construídas pelo grupo de Salvador. Nosso grupo estava interessado em construir uma performance cênica desenvolvida por um encadeamento de cenas com começo, meio e fim, mas estruturado por uma semântica não-figurativa e não-linear. O organismo híbrido, até mesmo por sua configuração escultórica, permanecia instalado no espaço compartilhado com Salvador no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Como diretora artística, meu objetivo foi orientar para que conseguíssemos criar pontos de articulação com a obra do outro, respeitando assim, as características internas, os interesses estéticos de cada grupo. Considero essa postura uma continuidade da investigação do jogo de camadas, que também puderam ser contempladas na internet. Diferentemente da pesquisa anterior, que colocava o público dentro da obra, nesse projeto, o objetivo foi enfatizar a individualidade do espectador, bem como a individualidade de criação dos grupos, expandindo ainda mais a ideia de fragmentação, camadas e convergências. Construímos uma interface (Figura 5) na internet na qual o usuário-web podia construir a narrativa da obra em tempo presente, ou seja, a obra era contemplada de acordo com as escolhas desse público específico da internet.
Tanto os vários aspectos das obras citadas neste artigo, como o potencial que temos propiciado na rede para a participação do usuário-web, demonstram que essa é uma dança expandida que promove a criação de uma outra narrativa e uma outra forma de configuração de arte, específica da cultura digital. O corpo e a dança são expandidos em camadas de imagem-tempo no campo da dança telemática através de códigos que se entrelaçam em diferentes tempos para a criação de novos/ outros significados para uma dramaturgia telemática.
* Ivani é mestre (2000) e doutora (2003) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fez pós-doutorado no Sonic Arts Research Centre, Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, pesquisando a relação da sonoridade do corpo em ambientes telemáticos. Desde o início da década de 1990 pesquisa a relação da dança com as novas tecnologias. Tem atuado intensamente nesse campo, contando com expressiva produção artística e científica. Em 2006, pela apresentação de sua pesquisa no Monaco Dance Forum (MDF), recebeu o Prêmio Unesco para promoção das artes: novas tecnologias e a Residência Artística no renomado Centre Choregraphique National, com direção artística do coreógrafo Angelin Preljocaj, em Aix-en-Provance, França.
[1] Os vídeos das obras citadas neste artigo encontram-se no site do grupo. www.poeticatecnologica.ufba.br.
Referências:
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