Cinema x Futuro tiveram sempre uma relação recorrente. Seja pela sua ligação mais concreta com a tecnologia (que propõe novas formas de fazer, estar, ligar etc.), seja pelo apelo de projetar o que ainda não sabemos (na nossa mente e também na tela), porque não entramos ainda na sala escura e desvendamos afinal o que está por acontecer. É sabido que Lumière, um dos inventores do cinematógrafo e também criador de algumas das primeiras imagens do que chamamos cinema (1895), não via futuro para sua invenção senão como curiosidade científica. A criação de uma linguagem sedutora e instigante, construída no tempo, desmentiu seu inventor. A imagem do futuro talvez esteja ligada mais à capacidade de invenção continuada, a um vir a ser, do que a um momento de parada, onde coisas e nomes adquirem por um tempo solidez. A imagem do futuro é movimento, bem como a do cinema.
É certo que o cinema vem sendo reconhecido, por mais de cem anos, de forma coletiva, como aquela experiência de entrar na sala escura e passar um par de horas em frente a uma grande tela onde imagens e sons vão aos poucos nos contando uma história. Esse sólido dispositivo do cinema está mais uma vez se transformando, pela relação com as novas tecnologias computadorizadas de produção da imagem. E mais ainda pela manipulação desse dispositivo através de softwares que vêm tornando possível deslocar imagens e sons para fora do ambiente tradicional de recepção, reconfigurando as estratégias de linguagem na produção de sentido, criando assim novos cenários para a experiência do cinema.
Essa relação entre tecnologia x estética tem sido central para fomentar padrões de mudança na forma como o cinema é experimentado, ou ao menos para entender historicamente como essa experiência é reconfigurada pelos cinéfilos, pela crítica e mesmo pela indústria do entretenimento ou do mundo da arte. A relação de visibilidade/ invisibilidade entre técnica e estética tem sido central para criar movimentos poderosos e, quase sempre em conflito, como aqueles entre o chamado cinema narrativo ilusionista e as vanguardas estéticas. A produção do novo sempre se alimenta dessa disjunção. Uma disjunção que produz movimento, um movimento no tempo que faz valer formas que duram, que se desfazem, que se misturam, e vão construindo uma tapeçaria de possibilidades que exigem, por sua vez, uma subjetividade cada vez mais complexa para dar sentido às escolhas em um cenário com tantas camadas de informações.
Talvez possamos pensar que essas estratégias entre tecnologia x estética se repetem de forma mais ou menos dissimulada, e a experiência do novo se revele não tão nova assim. Mesmo que a repetição revele padrões recorrentes na relação entre tecnologia e estética, a experiência do cinema nos leva a responder aqui e agora a questões referentes às formas atuais de imersão, à linguagem, às definições e experimentações, ao ambiente etc. São esses cenários da experiência do cinema hoje que queremos discutir aqui, sem a pretensão de abranger um campo total, ou mesmo um panorama completo.
Muitas experimentações e investigações vão ficar de fora, mas algumas delas vêm reafirmar esse cenário múltiplo, experimental e que dialoga de forma mais ou menos evidente com a própria história do cinema e das artes. E dessa forma nos posicionamos aqui nessa onda de investigação que quer saber: para aonde vai o cinema?
Começamos esse número com algumas reflexões de Sandra Kogut, algumas notas, sobre como ela entende essa projeção do cinema no futuro. Achei interessante vincular a essa discussão temática sobre cinema e futuro o ponto de vista de uma artista que tem trânsito nacional e internacional em diferentes campos da produção audiovisual (cinema, TV, videoarte, instalações etc.) e que escreve em primeira pessoa as suas impressões.
Seguindo o texto de Kogut temos o de Arlindo Machado, que nos coloca no contexto da discussão sobre o dispositivo do cinema e questiona as escolhas estéticas da relação entre arte e cinema na criação desses mesmos dispositivos. O centro da discussão de Machado está na relação atual entre arte e cinema e mostra como essa discussão passa pela compreensão e criação de novos dispositivos de experimentação estética, bem como pelo cruzamento de definições e conceitos entre esses campos.
Roberto Moreira registra as experiências pioneiras do chamado “cinema expandido” nos situando nas experimentações de projeções múltiplas, desde a década de 1960 até a atualidade. Moreira apresenta um panorama das questões estéticas e tecnológicas mais recorrentes do momento histórico em que o cinema começou a expandir seus formatos, relação com a audiência, com os lugares de recepção e também com o mundo da arte, acompanhando esse movimento até os atuais cinema de museu, de artista etc. A discussão sobre projeções e formatos de exibição é significativa para estabelecer novas formas de visibilidade e padrões de interação com as imagens projetadas.
Brigitta Zics faz uma reflexão sobre formas de cognição e leitura do olhar a partir de experimentações com um novo dispositivo, chamado Cúpula, idealizado e projetado por ela e uma equipe multidisciplinar de engenheiros, filósofos e técnicos em computação da Universidade de Newcastle, na Inglaterra. Na Cúpula os usuários podem interagir com as imagens fazendo escolhas a partir da forma como seu olhar e sistema de respostas são afetados, apostando em possibilidades de interação menos automatizadas e que dialogam com nosso sistema mental de forma mais espontânea, afetiva e inteligente. Esses experimentos sugerem possibilidades de imersão bem mais expandidas, apontando para a ampliação dos ambientes e formas de recepção de imagens e sons, no mesmo caminho das pesquisas de Hugo Munstenberg com cinema e psicologia no início do século passado, quando publica o livro The Photoplay (1916), que dá conta da forma como o cinema acessa nosso psiquismo a partir do envolvimento de aspectos da sensação, da imaginação e da memória para a leitura e elaboração dos significados das narrativas fílmicas. A pesquisa de Zics se insere nessa linhagem investigativa, trabalhando agora com novos elementos que causam impacto na experiência com as formas expandidas do cinema.
Marcus Bastos introduz de forma diferente da tradicional a questão da narratividade a partir de um dispositivo estético e tecnológico envolvendo espaço público, interação com o público passante e o uso de celulares e internet. O artigo de Bastos constrói uma lógica de interrogação entre os conceitos de acontecimento, agenciamento e narrativa, fazendo um elogio à arte da performance do subtlemob como uma nova forma audiovisual que rompe o limiar entre ficção e realidade.
Ainda no terreno da performance e do audiovisual, Ivani Santana introduz a dança nesse campo expandido do cinema e do espetáculo. Fazendo um histórico dos registros da dança na sua relação com o audiovisual, com a tecnologia e com as novas estratégias estéticas computadorizadas, Santana apresenta sua pesquisa do corpo expandido na dança telemática. E dessa forma propõe uma dramaturgia telemática, interligando espaços e corpos em propostas estéticas que transcendem o tempo e o espaço linear. A dança telemática está fortemente apoiada em softwares que redistribuem imagens e sons, e reconectam bancos de dados atualizados em tempo real para a criação de uma proposta estética que, do mesmo modo que o cinema, trabalha com montagem de imagens e sons em movimento na produção de sentido.
Patrícia Moran discute os deslocamentos de estratégias discursivas envolvendo diversos gêneros do audiovisual contemporâneo, como documentário, games e animação, a partir do trabalho realizado por Gabriel Mascaro sobre Paulo Bruscky. Esses deslocamentos passam também pelos pontos de vista do diretor e do protagonista, ampliando os conceitos de sujeito e objeto nas narrativas fílmicas. Na primeira parte do artigo Moran faz ainda uma revisão crítica de alguns aspectos das teorias do cinema, apontando a necessidade de repensarmos nossa classificação conceitual dos pertencimentos e oposições das formas do cinema nesse novo cenário interdisciplinar das poéticas tecnológicas.
Fernando Rabello encerra nosso número com uma discussão sobre formas de composição e montagem, envolvendo a produção do curta-metragem Bloqueio, realizado por ele. As passagens entre imagens de vídeo, cinema e animação envolvem uma discussão sobre montagem fílmica, que acompanha as mais recentes discussões sobre estética fílmica e de banco de dados na composição narrativa.
Como já sinalizei antes, esse número temático sobre cinema e futuro não tem a pretensão de abarcar todas as discussões e experimentações nesse campo, nem mesmo produzir um panorama do campo como um todo. Nossa proposta aqui foi reunir alguns pontos de vista que levantassem questões sobre o tema e nos ajudassem a prosseguir na investigação sobre as novas formas de cinema. Feito isso, agradeço a todos os autores que nos brindaram com seus textos e reflexões e também, muito especialmente, a Heloísa Buarque, que aceitou e incentivou a sugestão desse tema sob minha curadoria e a Beatriz Rezende, que acolheu a proposta para publicação na Z Cultural.
Rita Lima é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no Curso de Cinema e Audiovisual, com o Projeto de Pesquisa Cinema Expandido, experimentação e novas formas de cinema: um diálogo com o Recôncavo Baiano. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde desenvolveu trabalho sobre a autoria na produção independente de vídeo no Brasil na década de 1980, e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com trabalho sobre a artista multimídia Sandra Kogut e reflexão sobre o lugar do artista no mundo atual. Tem experiência acadêmica nas áreas de Artes e Tecnologia, com ênfase em Cinema, novas tecnologias digitais. É também pesquisadora do PACC/UFRJ no grupo de pesquisa Polo Digital.