Resumo: O presente estudo tem o interesse de discutir a poesia dentro da semiosfera, pensando como a mesma se movimenta no universo da telemática. A poesia enquanto instrumento de linguagem se apresenta como um elemento significante no que tange à produção de sentidos. O processo de mediação entre os objetos da cultura na formação da imagem e os significados oriundos disso é o que interessa aqui, ou seja, a pesquisa, a partir de análises de poetas ibero-americanos, visou discutir a função da poesia em relação aos cenários culturais em seus momentos de processos tradutório-dialógicos. O artigo se concentrou em autores que discutem comunicação e poesia, tendo a semiótica da cultura como sustentação teórica maior. Foram desenvolvidos diálogos entre a semiótica da cultura e a poesia de poetas ibero-americanos. Foi possível perceber vestígios de informações que escapam à ideia de um olhar binário. Fatos esses visíveis nos poemas aqui analisados, pois os mesmos se apresentam como experiências agudas bricoladas de linguagens.
Palavras-chave: Poesia na semiosfera; poetas ibero-americanos; semiótica da cultura.
Abstract: This study has the interest to discuss poetry within the semiosphere, thinking how it moves in the telematics universe. Poetry as a language tool appears as a significant factor with regard to the production of meaning. The process of mediation between the objects of culture in shaping the image and the meanings arising that is what matters here, that is, research from analysis of Latin American poets, aimed to discuss the function of poetry in relation to scenarios cultural in their time of translational-dialogic processes. The article focused on authors who discuss communication and poetry, and the semiotics of culture as more theoretical support. Dialogues have been developed between the semiotics of culture and the poetry of Latin American poets. It was revealed traces of information that are beyond the idea of a look binary. These facts visible in the poems analyzed here, as they present themselves as acute experiences languages.
Keywords: Poetry in the semiosphere; latin american poets; cultural semiotics.
Semiosfera e processos tradutórios
Existe uma intensa relação/tensão cultural acontecendo o tempo todo dentro da semiosfera. Lótman (1979) define Semiosfera como sendo o espaço cultural onde habitam os signos. Dentro dela os processos de comunicação, bem como os códigos de linguagens se desenvolvem, e isso ocorre por conta dos constantes encontros de diferentes culturas. Tais encontros provocam explosões, as quais apresentam novos elementos culturais, esses por sua vez se confeccionam e se mostram possíveis por conta dos processos tradutórios. Do ponto de vista filosófico, essas explosões culturais lidam com as imprevisibilidades, estas fazem florescer novas configurações nos múltiplos cenários das representações socioculturais. Esses movimentos ocorrem dentro das dinâmicas dos encontros culturais, através de processos dialógicos. Nesses processos duas ou mais formas de cultura se encontram, travando diálogos e recriando experiências sensíveis/estéticas potentes, as quais reconfiguram os campos das forças culturais. Isso tudo, na teoria de Lótman, ocorre dentro da Semiosfera.
Os objetos da cultura e os sujeitos da cultura nesses diálogos constantes apresentam/provocam diversos processos metonímicos. Dentro de vários fenômenos produzidos pelos sujeitos, temos a poesia como um interessante ponto de partida em relação a melhores entendimentos sobre esses diálogos. A poesia segundo Pinheiro (2013) serve como um interessante instrumento em se tratando de se pensar os sintáxicos processos tradutórios. Partindo de que a poesia enquanto produção cultural é criada, recriada e transita de maneira contínua nas relações de linguagens dentro das mais variadas sociedades, pode-se supor que a mesma faça parte conexa das tramas socioculturais diversas.
Lótman (1979) defende que a cultura possui fluxos intensos e muitas vezes imprevisíveis, fato esse que atribui a ela um movimento não ortogonal. Esses movimentos apresentam ordens ou desordens muitas vezes distantes da ideia de olhares binários. O que interessa aqui é justamente o que acontece no meio, nos processos, nos choques culturais dentro das semiosferas, pois isso, segundo Lótman (1979), acaba produzindo terceiros elementos. O presente artigo enquanto natureza qualitativa se concentrou no método dedutivo, o qual foi alicerçado por referências bibliográficas que tratam diretamente e indiretamente sobre o tema. Foi dada ênfase em teorias atreladas à semiótica da cultura no que diz respeito às análises desenvolvidas. Em relação aos possíveis trâmites tradutórios/terceiros elementos, Pinheiro diz que:
Os inúmeros processos de tradução se dão a partir das colisões e trocas entre culturas dominantes de centro e variantes da periferia. As dicotomias centro e periferia, invariante e variantes, etc., não são mais suficientes, pois nos obrigam a pensar a superação da lógica binária depois desta, como condição de pensamentos instauradas. E este depois é terrível e risível. É preciso observar o território antes, sem, fora dessa lógica. O que surge é outro laboratório in vivo (Pinheiro, 2013, p. 16).
Partindo dessa ideia, podemos pensar que a poesia pode estar localizada nesses espaços não binários, ou seja, no meio, nos cantos, nas dobras, no fora, na fusão entre centro e periferia, periferia e centro. Pensando na velha máxima de que a informação se movimenta na relação simétrica entre emissor/mídia/canal/receptor, o argumento de Pinheiro desconstrói essa regra, uma vez que desloca não só o movimento, mas o resultado dos novos elementos oriundos dos assimétricos choques/conflitos culturais. É nessa direção que as possibilidades de outras narrativas podem emergir como elementos significantes em relação aos sistemas de linguagens. Nessa linha de raciocínio, Pinheiro aponta que:
Aqui dado o caráter súbito e excessivo das combinações entre códigos, séries de linguagens, em meio ao magma primitivo, os processos dinâmicos de produção de textos só dependem do respeito às fronteiras que separam centro e periferia, alto e baixo, antigo e novo, nas situações em que a narrativa da intelligentsia (da mídia ou classe média) se impõe. Tal posição não é pequena: provém de uma lenta invasão combinada de discursos clássicos, eclesiásticos e tecnocapitalistas trazidos dos países de centro para a América Latina. Porém, a marca diferencialmente, o devir relacional, a absorção e tradução do outro como variação inclusiva, já estavam a caminho: o encaixe de elementos e materiais díspares, provenientes de inúmeras civilizações, favorece, concomitantemente, a inserção da natureza na cultura (Pinheiro, 2013, p. 17).
Os processos tradutórios exercidos pelos poetas em se tratando da poesia latino-americana deixa isso transparecer aos montes. A poesia serve nesse passo para preencher certas lacunas em relação às dinâmicas de linguagens, pois acelera as imbricações entre os códigos, os textos, as séries e as paisagens. Tal acontecimento acaba ocasionando, a partir dessas fusões/junções, sintaxes combinatórias multiculturais. O que deve ser encontrado, fruto de olhares mais atentos, são os elementos constituintes das e nas culturas. Elementos esses que passam despercebidos ou são ignorados no que fere olhares mais tradicionais ou unilaterais. Existe um claro movimento, segundo Canclini (2010), de instabilidade e fragmentações do trato com os objetos da cultura, isso gera novas formas de relações entre as pessoas e as coisas e as coisas com as pessoas. Os textos, transitando nos mais variados ambientes, se conectam de maneira sintomática com as paisagens múltiplas e solares típicas da América Latina.
O importante é não perder de vista que tudo isso acontece em plenos espaços semiosféricos. Nesses espaços, as contínuas e aceleradas interações entre os mais variados códigos e signos se dão de maneira intensa e performática, uma vez que todo o processo de produção/condução das mensagens acontece cheio de sentidos, frutos de diálogos constantes entre sujeitos/paisagens/objetos da cultura. Machado (2007) defende a cultura como sendo um dispositivo pensante que não se encerra nunca. A cultura é algo vivo, em profunda e dialógica pulsão, onde tudo possui ritmos em tempos diferentes, o tempo todo, todo tempo. Em relação à semiosfera, Machado mostra que:
Conceber a cultura como relacionamento inteligente entre sistemas de signos implica situar campos de interação entre diferentes forças. Os estudos sobre semiosfera partem de dois eixos principais: o processamento de informação e a constituição da semiose no contínuo das relações espaço-temporais. Esses dois eixos articulam informação e texto cultural de modo a explicitar o funcionamento do universo da mente e, por conseguinte, o próprio modo pelo qual se propõe pensar a informação na cultura (Machado, 2007, p. 59).
O olhar semiótico atrelado à ideia de semiose implica uma relação de se compreender que para se pensar em linguagem é preciso existir linguagem, ou seja, um signo sempre está amarrado a outro, em um processo interminável de causas e efeitos. Lótman (1981), nesse prisma, argumenta que a semiose possui a capacidade de movimentar códigos e linguagens diversas e que esse processo não pode ser pensando de maneira bipolar. O que importa na realidade é o entendimento/identificação dos rastros deixados nas ações da produção de sentidos em relação às informações a serem produzidas. Devem ser levadas em conta não as transmissões, mas sim as transmutações dos gestos criadores. O ponto de atenção em relação às transmutações está ligado às mediações, e estas, por sua vez, darão forma e fluidez aos cenários culturais. Barbero (2013) chama isso de “comunicação em processo”: uma vez que os elementos culturais estão em movimento, os dispositivos mediadores entram em ação, produzindo significados a partir dos inúmeros sentidos possíveis atrelados às intenções ou conteúdos textuais.
Pensando nos processos tradutórios, principalmente os que dizem respeito à poesia feita na América Latina, os textos apresentados por Pinheiro deixam clara tais transmutações. Como no poema Cancion de Nicollás Guillén:
¡De qué callada manera/se me adentra usted sonriendo,/ como si fuera/la primavera!/(Yo, muriendo.)/Y de qué modo sutil me derramó en la camisa/todas las flores de abril./¿Quién le dijo que yo era/risa siempre, nunca llanto,/como si fuera/la primavera?/(No soy tanto.)/En cambio, ¡qué espiritual/que usted me brinde una rosa/de su rosal principal!/¡De qué callada manera/se me adentra/usted sonriendo,/como si fuera/la primavera!/(Yo, muriendo.)
Pinheiro (2013) defende que Guillén sempre em seus poemas desenvolvia uma relação sonora direta entre as paisagens, as pessoas e sua poesia. Essa semiose marca o traço forte da poesia de Guillén, onde construções sintáticas apresentam uma forma visivelmente mestiça, migrante e solar, transmutada. O poema apresenta em sua narrativa possibilidades de pensar os objetos contidos nele transitando pelos “entres”, nas dobras, onde muitas vezes olhares apressados nem percebem a marchetaria que construiu/moldou as sensibilidades e os sentidos do que está sendo dito/escrito. O poeta nos leva por caminhos curvilíneos, não ortogonais, intuindo mostrar os nexos possíveis entre os sujeitos da cultura, a paisagem e os objetos da cultura. A tradução feita por ele de todos esses elementos de maneira sintética se expressa nos versos do poema de forma sutil e aguda ao mesmo tempo, pois todos os signos e significados que trazem o poema se mostram em um fluxo ritmado e em trânsito dentro da semiosfera.
Paisagens, nexos e a letra
Uma das características marcantes da poesia latino-americana consiste no fato de que os poemas sempre trazem em si uma estética narrativa clara de mistura entre natureza/sujeito-corpo/ cultura. Uma das possíveis razões pode ser o fato das aglomerações diversas que aqui se deram em se tratando dos processos de colonização, uma vez que a mistura de tradições culturais foi inevitável (pois os conflitos culturais dentro das inúmeras práticas sociais aconteciam em abundância). A mestiçagem se dava em todas as produções dos diversos objetos da cultura. A poesia deixava isso bem evidente, como por exemplo, o poema “Desnudo em barro” de Cesar Vallejo:
Como horribles batracios a la atmósfera, /suben visajes lúgubres al labio. /Por el Sahara azul de la Sustancia /camina un verso gris, un dromedario. Fosforece un mohín de sueños crueles. /Y el ciego que murió lleno de voces de nieve. Y madrugar, poeta, nómada, al crudísimo día de ser hombre. /Las Horas van febriles, y en los ángulos /abortan rubios siglos de ventura. /¡Quién tira tanto el hilo: quién descuelga /sin piedad nuestros nervios, /cordeles ya gastados, a la tumba! /¡Amor! Y tú también. Pedradas negras /se engendran en tu máscara y la rompen. /¡La tumba es todavía /un sexo de mujer que atrae al hombre!
Nesse poema fica visível a condensação entre paisagem, objetos e sujeitos em seus intermináveis dilemas existenciais. Olhar e mão do poeta seguem na direção de evidenciar um movimento metonímico que escapa dos corpos e se funde nas paisagens, voltando em seguida, de novo, como elemento traduzido para os corpos. O que cabe aqui é pensar que as questões normativas, tradicionais, que quase sempre trilham em óticas binárias perdem força. Isso ocorre por conta das múltiplas possibilidades culturais oriundas das misturas, característica típica da América Latina. Pinheiro nessa linha mostra que:
Assim como num poema é desejável que se teçam nexos recíprocos da letra ao verso e às estrofes, do mesmo modo, guardadas as diferenças e proporções, podem-se verificar os encaixes e adaptações sintáticas das séries da natureza (todo o reino mineral, vegetal e humano-animal, e das séries da cultura (arquitetura, festas, vestuário, culinária) com os processos criativos dos meios de comunicação, do jornal impresso à telemática (Pinheiro, 2013, p. 20).
Acontece que nos poemas é possível encontrar certo fluxo contínuo em relação a encadeamentos elásticos no que tange as marchetarias socioculturais próprias dos espaços solares latinos. Pegando a ideia de Canclini (2013) em se tratando das relações variáveis múltiplas no campo da cultura, surge o conceito de hibridismo (desenvolvido por ele), onde as conexões dos múltiplos agentes culturais aparecem em boa parte da poesia latino americana. Em Vallejo isso fica evidente, é fácil encontrar diversos elementos conversando. Tais conversas resultam nas imagens poéticas descritas por ele em seus poemas. Barbero (2013) quando se refere a desenvolvimentos de entendimentos dessas mediações (conversas) culturais diz ser necessário elaborar perguntas a partir de outros lugares deslocados. Deve ser mudado tanto o lugar das perguntas como as próprias perguntas a serem feitas. Tal fato envolve diretamente o universo das telemáticas, uma vez que as mídias permitem tais possibilidades. O interessante é perceber que as perguntas a serem feitas por quem busca entendimentos mais sensíveis, deve se concentrar em rupturas e descontinuidades com o pensamento centro-europeu tradicional. Barbero diz:
Não creio que seja possível mudar de lugar, sem mudar o lugar a partir do qual as perguntas são formuladas. É o que tem mostrado, nos últimos anos, a tendência a colocar questões que rebaixam a “lógica diurna” e a desterritorialização que implica assumir as margens não como tema, e sim como enzima (Barbero, 2013, p. 290).
É justamente essa desterritorialização marginal que deixa a poesia latino-americana se tornar espetacular no quesito de misturas possíveis em termos de linguagem. Culturalmente falando, as estruturas de linguagens presentes na poesia apresenta ritmos flutuantes, os quais são refletidos nos sistemas modelizantes mestiços. Pinheiro (2013, p. 21) escreve que “aqui se desdobra o campo das relações assimétricas, que necessita de um material de liga adligante (que prende, agarra) nas junturas sintáticas do texto”, essa liga adligante é facilmente tecida nos versos pulsantes da poesia latino-americana. As junturas ficam visíveis nas transições sensoriais pertencentes nas narrativas poéticas, como fora mostrado nos poemas de Guillén e Vallejo apresentados acima.
Variadas linguagens, telemática e os escapes
Em épocas onde o digital/virtual predomina é interessante despertar algumas reflexões. Existe todo um movimento cultural que de certa forma afasta as pessoas do presencial/corporal e as coloca em rede, no chamado campo virtual/interconectado. Na ótica binária de pensamento, aparece a ideia apressada de que hoje, por conta dos inúmeros recursos/ferramentas comunicacionais/tecnológicos a vida se apresenta mais “dinâmica”, “conectada”, mais “sofisticada”, isso em certo ângulo, é uma ideia equivocada. O próprio conceito do que é moderno ou o que é tradicional normalmente, segundo Canclini (2010), parte de um olhar de mão única, um olhar que Barbero (2013) delega como resultado da influência dos processos de colonização.
O interessante é pensar que mesmo em tempos de certa pressa nas dinâmicas cotidianas, a poesia ainda resiste. Glissant (2005) inclusive propõe uma “poetização da prosa acadêmica”, uma espécie de metodologia libertária que se concentra na narrativa poética enquanto instrumento válido de análises e produção científica. Inúmeros sites são dedicados à poesia. Ela segue em fluxos, mesmo em tempos digitais. Tais fluxos derivam em nexos atemporais. Tais nexos dão liga dentro das semiosferas entre a poesia, paisagens e os sujeitos da cultura. Isso resulta em uma relação corpo/cultura/natureza dialógica, onde os vastos estímulos externos/internos ganham forma através das letras, transformadas em palavras, resultadas em poemas.
Podemos encontrar isso, por exemplo, no poema “O apanhador de desperdícios” de Manoel de Barros:
Uso a palavra para compor meus silêncios./Não gosto das palavras/fatigadas de informar./Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão /tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes/e aos seres desimportantes./Prezo insetos mais que aviões./Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis./Tenho em mim um atraso de nascença./Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos./Tenho abundância de ser feliz por isso./Meu quintal é maior do que o mundo./Sou um apanhador de desperdícios:/Amo os restos como as boas moscas./Queria que a minha voz tivesse um formato de canto./Porque eu não sou da informática:/eu sou da invencionática./Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O poema de Manoel de Barros apresenta diversos ingredientes importantes. É notória a intenção/ideia de construir a narrativa a partir da mistura de elementos plurais, mixes entre corpo/natureza/cultura. A conexão entre sujeito e paisagem se emaranha durante todo o ritmo do poema. Manoel de Barros utiliza experiências sensíveis saídas direto do seu grande laboratório aberto de sensações. E tudo isso não se apaga ou se distancia da pulsante e aguda rotina dos sujeitos contemporâneos. Pinheiro (2013) nessa direção argumenta que:
As tecnologias, desse modo, sejam da sociedade industrial ou da telemática, passam pelo crivo de uma outra velocidade inscrita nas séries da cultura, que acelera suas partículas de acordo com as leis da proximidade barroco-antropofágica e sintático-metonímica (via o molejo sanfonado) onde o que interessa não é o que se armazena apenas em quantidade para frente, mas sim essa estranheza alheia lateral que se pode deglutir (Pinheiro, 2013, p. 28).
Essa citação de Pinheiro aponta para o possível diálogo entre o universo da telemática com as pulsões poéticas, mesmo que isso esteja ocorrendo em outro tempo. Pensando aqui no que o mundo chamado de “plugado” apresenta em termos de deslocamentos das estruturas cognitivas dos sujeitos da cultura dentro das sociedades, é importante perceber que nos tempos atuais, mesmo que as relações estejam dentro dos universos digitais, o não digital ainda resiste, permanece. A antropofagia barroca ainda se apresenta viva, é possível ver isso nas mais diversas tramas que acontecem nas cidades, que circulam nas ruas, que se mostram nas relações entre os objetos e sujeitos da cultura. Isso é identificado nos bares, nas praças, nos espaços públicos em geral. Ou seja, discurso e prática mesmo que em alguns momentos aparentemente rumam para direções opostas, acabam se encontrando nas relações sintático-metonímicas. Tais relações acontecem nos espaços habitados, principalmente nos abertos, solares, públicos. Nesses espaços as sensações acontecem, resultado dos fenômenos vividos pelos sujeitos. E isso, independentemente da época ou das tecnologias do momento, sempre esteve latente, como mostra o poema “Con la primavera”, de José Martí:
Con la primavera/Viene la canción, /La tristeza dulce /Y el galante amor./Con la primavera /Viene una ansiedad /De pájaro preso /Que quiere volar./No hay cetro más noble /Que el de padecer: /Sólo un rey existe/El muerto es el rey.
Na poesia latino americana ocorrem visíveis bricolagens entre os considerados distantes, dicotômicos, separados. A poesia tem o poder de juntar tudo dentro de processos sensoriais assimétricos. Acabam ocorrendo combinações claras entre corpo/natureza/cultura. Não de maneira separada ou polarizada, mas sim de maneira aglutinante, complexa, confluente. Os ritmos e rimas da poesia latina rumam para encontros e desencontros vocálicos sensoriais que se espelham quase que em métricas musicais do próprio cotidiano. Pinheiro (2013) em relação a isso diz que:
A aceleração dos contágios entre séries culturais (poéticas, arquitetônicas, mobiliarias, culinárias etc.) e aquelas midiáticas (radio, jornal, televisão, cinema, vídeo) redesenhou e redistribuiu em vaivém formas porosas e não ortogonais (um cromatismo em fligrana de gestos e traços), aquém e além da razão dual, muito apropriadas para as traduções interfronteiriças. (Pinheiro, 2013, p. 33).
As traduções referidas na citação acima se espalham, escapam dentro do universo da telemática justamente pelas brechas ainda possíveis dos contágios, conflitos culturais. Lótman (1978) defende a arte como um dos meios de comunicação, onde a mesma se apresenta como linguagem. Tal linguagem se expressa em textos, textos artísticos os quais se encarregam de narrar os intermináveis choques culturais que acontecem nos espaços semióticos. Existe uma grande e robusta complexidade no discurso poético. Isso acaba gerando a necessidade do desenvolvimento de outras percepções em se tratando da compreensão da intenção do texto.
A poesia se apresenta como um fenômeno cheio de significações que tratam de mostrar imagens que circulam no mundo da abstração. No entanto, é uma melhor codificação da informação passada que resultara na emoção ideal ou perto do ideal intuída no processo criativo. O fato é que a poesia possibilita imersões em águas subjetivas profundas e agitadas no bom sentido. Isso pode ser observado no “Poema da cachoeira” de Oswald de Andrade:
É a mesma estação rente do trem/Toda de pedra furadinha/Meu pai morou alguns anos aqui/Trabalhando/Um dia liquidou/Ativo passivo/Cinco galinhas/E deram-lhe uma passagem de presente/Para que eu nascesse em São Paulo/Como não houvesse estrada de rodagem/Ele foi na de ferro/Comprando frutas pelo caminho.
Como pode ser observado no poema, existe uma relação direta, imbricada, bricolada entre os objetos e os sujeitos da cultura, num ritmo fluido, onde paisagem e sujeitos/objetos não só dialogam como se fundem em novos elementos em movimento. Tomando uma ideia de Bachelard (1988) na qual o sujeito se maravilha com as imagens poéticas, é possível pensar o próprio sujeito como sendo as próprias imagens poéticas, tamanha a semiose que acaba ocorrendo nesses processos dialógicos. Fato esse visível no poema de Oswald de Andrade.
Considerações finais
O brevemente discutido neste artigo foi justamente a ideia de perceber que mesmo em tempos de tecnologias móveis a poesia ainda está aí, circulando de um jeito ou de outro nesse mundo telemático e acelerado dos tempos atuais. Lótman (1979) defende que na constituição de sistemas de signos os mesmos são marcados pela diversidade. Semioticamente falando ocorre inter-relações num mesmo espaço cultural, isso gera diálogos diversos, logo, convivências culturais aparecem, o que acaba gerando novos signos. Isso pensando em sistemas de artes é algo potente, uma vez que, daí nascem novas/velhas formas de expressão. A cultura da diversidade enquanto manifestação humana se apresenta radicalmente contra uma ideia de regularidade e normatização, uma vez que, dentro da semiosfera, as pulsões rompem barreiras e mudam paradigmas. As construções significantes são permitidas e identificadas enquanto elementos dos espaços sociais em fluxo, esses se mostram recheados de diversidades vivas, fluidas e intensas, as quais geram nexos porosos, curvilíneos. Pensando nessa fluidez, Bachelard (1988) mostra que o êxtase da imagem provoca sempre um ato de novidade. Essa novidade da imagem só pode ser possível se os espaços sociais estiverem sendo vividos de maneira plena, entrópica, sinestésica, poética. Bachelard (1988) defende que a consciência imaginante vive a imagem poética. Pensando assim, é possível supor que a poesia causa um efeito de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que expressa se faz expressar, criando assim, uma liga entre o poeta, o meio e o leitor (não necessariamente nessa ordem), e essa liga se dá justamente através da imagem criada a partir do poema comunicado. Essa imagem não só forma a intenção como dá suporte para a imaginação transitar por todos os lados possíveis, lados que são resultados dos processos tradutórios.
O importante é perceber que tais fenômenos na América Latina acontecem no externo, nas ruas, no solar. É interessante identificar que nesses espaços abertos, repletos de universos colidindo-se, unindo-se, confluindo-se todos ao mesmo tempo, habita a poesia. Os registros desses fenômenos cotidianos mapeiam a própria rotina de vida, o ritmo das relações, as intempéries desarmônicas do que acontece nas cidades são traços marcantes dos espaços diversos que aqui se apresentam. É sabido compreender que tudo isso acontece impresso na cultura, pois é nas relações semióticas entre sujeitos/objetos/paisagem que a própria dinâmica da vida pode ser pensada, independentemente de quais suportes tecnológicos de comunicação estejam disponíveis ou mais utilizados. O fato é que as pessoas ainda se encontram transitando de maneira pulsante nas semiosferas, como brevemente foi possível se observar através de uma forma de leitura textual dos poemas apresentados neste estudo.
*Therence Santiago Alves Feitosa é doutorando em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor na UNIP e na Estácio – SP. Autor do livro de crônicas e poemas Sobre biologia, cotidiano e o lado de dentro.
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Recebido em 10/07/2015
Aprovado em 04/10/2015