Ano X 0201
2° semestre de 2015
editorial
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Arquivos, coleções, ficções

A presente edição da Revista Z Cultural constitui uma amostragem da disseminação do conceito do arquivo entre diversos saberes e fazeres na contemporaneidade, evidenciando suas potencialidades criativas, analíticas e interpretativas. Essa disseminação decorre de uma nova compreensão dos arquivos, relidos da perspectiva dos estudos filosóficos, antropológicos e culturais, que culminou numa archival turn efetuada nas duas últimas décadas do século passado. Com as abordagens de Michel Foucault e Jacques Derrida, no campo filosófico, o arquivo alcança novo estatuto teórico, tornando-se metáfora esclarecedora das relações entre memória, saber e poder e um operador relevante para se pensarem nossas relações com o tempo. Desvelam-se suas implicações políticas, culturais e epistemológicas: em vez de simples repositório de fatos e “provas” do passado, o arquivo é um dispositivo de poder e lugar de produção do conhecimento. Daí a relevância de se repensarem a materialidade e o imaginário dos arquivos com suas coleções, de se atentar para as complexas operações do mise an archive, construtoras da memória e agregadoras de valores.

No âmbito das artes contemporâneas, especialmente na América Latina, um olhar atento certamente detectará um disseminado gesto arquivístico, que incrementa as ficções do arquivo. Esse gesto é visível em obras de literatura e de artes visuais que tematizam figuras do arquivo — bibliotecas, museus, coleções, catálogos, listas etc. — ou apresentam o escritor na cena ficcional, exibindo suas coleções e anotações de pesquisa, suas hesitações e escolhas na fatura da obra, dialogando com personagens e leitores, na busca de uma cumplicidade colaborativa. Ou ainda em relatos que colocam em cena o artista em seu ateliê/estúdio, inventariando seus materiais — sons, cores, volumes, palavras. Um tal gesto configura, simultaneamente, o ato que concretiza a obra e a memória do seu fazer, historicizando-a; assinala a potência do fazer/dizer artístico, que não se esgota na atualização desse fazer/dizer; articula uma relação com a tradição, com um passado que se institui em uníssono com o presente. Um problema que subjaz a essa encenação e desejo de arquivo diz respeito a um excesso de memória, a seus usos e abusos. Importa refletir se tal excesso de arquivo implica uma paralisia da ação criativa, reduzindo-a a mera citação de um passado já consumado, estando a serviço de regimes discursivos da verdade ou se, pelo contrário, ao mimetizarem práticas do arquivo, a construção de provas documentais, essas ficções contemporâneas do arquivo constroem imaginações desestabilizadoras da evidência histórica, de discursos dicotômicos e dogmáticos, rasurando as fronteiras entre o imaginado e o vivido, a ficção e a realidade, a obra e a vida.

Uma análise mais adequada do papel do arquivo nas artes e na cultura da atualidade demanda obviamente um trabalho efetivo com os arquivos de artistas e escritores, que ganham relevância na medida em que se deslocam da esfera privada para o espaço público em instituições de guarda, sendo disponibilizados para a pesquisa, especialmente com o suporte das novas tecnologias da memória – a informática, o digital, a internet. Os artigos deste novo número da Revista Z Cultural refletem, como se poderá comprovar, uma acurada atenção aos arquivos artísticos, literários e culturais, quer em termos de uma reflexão mais teórica, quer no confronto corpo a corpo com seus materiais e documentos, quer ainda no que tange a suas possibilidades criativas e ficcionais.

Os artigos de Ana Cláudia Viegas, Cléber Araújo Cabral e Marília Rothier Cardoso lidam diretamente com os arquivos dos escritores Luiz Ruffato, Murilo Rubião e Jorge de Lima, respectivamente, evidenciando como em ambos, a partir dos documentos examinados – retratos, pinturas, anotações, entrevistas etc. –, se constroem imagens dos escritores que tramam uma figura autoral e incitam ficcionalizações. Elena Romiti, por sua vez, explicita a própria literatura como um gesto arquivístico ao ler La Sobreviviente, de Clara Silva, como uma novela-arquivo e estratégia de inserção no sistema literário sul-americano por parte de mulheres escritoras. Na mesma direção se move Eneida Maria de Souza ao pensar relatos autoficcionais enquanto gesto de sobrevivência da vida por meio do processo de escrita e leitura.

Com seus ensaios, Leonor Arfuch e Reinaldo Marques abordam trabalhos de mulheres artistas que se constituem nas margens do arquivo. Ao assinalar as imbricações entre arte e memória nas obras de Nury González e Marga Steinwasser, Arfuch se depara com poéticas do objeto reveladoras de uma originalidade auto/biográfica. De sua parte, ao reelaborar uma experiência de pesquisa, Marques se detém no exame do arquivo de uma artista popular – Zefa, artesã do Vale do Jequitinhonha – considerando questões relativas ao colecionar, à memória e à cultura popular. De um ponto de vista mais antropológico, José Rogério Lopes articula processos de singularização de imagens e objetos relacionados às biografias de colecionadores, configurando frames colecionistas em arranjos situacionais. Como exemplificação, recorre a duas obras cinematográficas – Un cuento chino e A coleção invisível – e uma literária, A coleção particular de Georges Perec.

Por fim, recorrendo a Giorgio Agamben e Jean-Luc Nancy, a Oliverio Girondo e Macedonio Fernández, Raul Antelo assinala a potência do arquivo ao conectá-lo com questões relevantes que passam por interações entre linguagem e discurso, ética e política, a natureza do humano e do inumano, o significado do testemunho. Movido pelas possibilidades ficcionalizantes do arquivo, Jacques Fux inventaria e reinventa a vida do colecionador e ficcionista Henry Darger, um sujeito tomado pelo “mal do arquivo”.

Cabe agora ao leitor da Revista Z Cultural conferir essas tramas possíveis dos arquivos nos artigos aqui coletados. E boa leitura!