As relações contemporâneas entre a atividade editorial e a difusão de textos
Resumo: O presente trabalho busca discutir a atividade editorial na contemporaneidade, problematizando suas especificidades. Para isso, inicialmente faremos um apanhado teórico, passando por Barthes, Sennet, Guerreiro Ramos, Guy Debord e Feenberg, além de alguns autores que analisam especificamente o mercado editorial. Com as novas tecnologias, criam-se novas possibilidades de divulgação de textos, não necessariamente intermediadas pelos editores, e essa nova realidade pode alterar substancialmente o modo como os textos são divulgados.
Palavras-chave: editor; atividade editorial; filosofia da tecnologia.
Abstract: This work tries to analyze the publishing activity in the contemporaneity, discussing its specificities. In order to do so, initially we’re going to present some theoretical considerations, using Barthes, Sennet, Guerreiro Ramos, Guy Debord and Feenberg, apart from some authors that analyze specifically the publishing market. With the new technologies, new text divulgation possibilities are created, not necessarily intermediated by editors, and this new reality can alter substantially the way texts are divulged.
Keywords: publisher; publishing activity; philosophy of technology.
A primeira biblioteca de Alexandria (em oposição àquela que hoje existe e que é comumente conhecida como “a contemporânea biblioteca de Alexandria”) se insere no imaginário cultural como um momento icônico da consolidação do saber. Em uma cidade grandiosa, fazendo o elo cultural entre a Grécia e o Egito, objetivo central dela era obter uma cópia de cada texto jamais escrito (Philips, 2010). A destruição da biblioteca durante o primeiro milênio da era cristã ganhou contornos míticos, havendo diversas narrativas disponíveis para esse evento histórico. Não obstante a narrativa eleita, a destruição é marca significativa da perda de textos antigos (Philips, 2010).
Essa imagem nos ilustra a questão de poder que envolve o campo do saber. Conhecer é perigoso. Pensando sobre o processo de difusão do conhecimento relacionado à atividade editorial, iremos primeiramente buscar entender teoricamente o seu fundamento, e para isso escolhemos Barthes como ponto de partida.
Segundo Barthes, não existe fruição em uma cultura de massa (1987, p. 51). Ele opõe o texto de prazer ao texto de fruição:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (p. 21-22).
Manter simultaneamente as rédeas do prazer e da fruição é fruir da consciência do ego (prazer) e procurar a sua perda (fruição): “é um sujeito duas vezes clivado, duas vezes perverso” (p. 22). O prazer é associal – só o lazer é social – o que reforça a necessidade de sua experiência individual. Além disso, enquanto o prazer é dizível, a fruição não o é, sendo “inter-dita”.
“Para escapar à alienação da sociedade presente, só existe este meio: fuga para frente” (p. 54). A linguagem fica comprometida no momento em que se repete. A fruição é justamente esse movimento de transgressão para frente. “Freud: no adulto, a novidade constitui sempre a condição da fruição” (p. 55). A fruição transgredindo a linguagem ou a repetição excessiva, a todo transe (como músicas encantatórias, litanias, ritos etc.) se direcionam a um esvaziamento do significado, a uma entrada na perda, tornando erótica a palavra. Em oposição, o texto-tagarelice recalca a fruição no estereótipo, caindo em uma repetição vergonhosa da linguagem, ápice da forma bastarda da cultura de massa. “O estereótipo é esta nauseabunda impossibilidade de morrer” (p. 58).
Essa possibilidade de romper com o ego aproxima o medo da fruição, em uma recusa da própria transgressão. Enquanto o texto do prazer é a busca de segurança – “inconsciente acolchoado” – o texto de fruição é perverso por estar “fora de qualquer finalidade imaginável, mesmo a do prazer”. Tal como uma mônada, ele se basta a si mesmo, ele é “absolutamente intransitivo” (p. 68).
Essa visão sobre a intransitividade do texto de fruição dialoga profundamente com a revisão no papel autoral defendida por Barthes e Foucault, dois ícones no movimento de morte autoral que ocorreu no século XX. Este último chegou a afirmar que “o autor deve se apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso” (Foucault, 1969, p. 294). Segundo Compagnon (2012) contemporaneamente é aceito um retorno amigável do autor, problematizado, não autoridade exclusiva para construção de sentido, mas com ele colaborando. Não obstante, Barthes e Foucault marcam uma mudança no paradigma de interpretação literária, quando o leitor passa a ser um agente central para a construção de sentido no texto.
Com base nessa visão, Barthes nos coloca a questão: como ler a crítica? O crítico seria um leitor em segundo grau, tornando-se o seu voyeur, observando clandestinamente o prazer do outro, entrando na perversão. E o leitor da crítica seria um leitor em terceiro grau, em uma perversão que segue ad infinitum. A crítica versaria sempre sobre textos de prazer, jamais sobre textos de fruição, na medida em que textos de fruição só dialogariam entre si.
Pensando sobre a atividade editorial, nessa linha o que moveria o editor seria um fetiche, fetiche de obter prazer no prazer alheio, de orquestrá-lo, de escolher cada pequeno elemento da construção do livro-objeto, desde a sua própria possiblidade de existir até a gramatura do papel onde ele tomará forma. Esse fetiche se aplicaria tanto ao editor-publisher, responsável pelo catálogo de uma editora, quanto ao editor-gerente, responsável pela atividade de produção de um livro. Em ambas as situações o fetiche da orquestração se mostra presente como centro da atuação do editor.
É importante destacar que o fetiche é aqui entendido como um modo específico de obtenção de prazer, não necessariamente tendo uma carga ética negativa. Esse fetiche pode ter um fundamento não obsessivo, em uma estrutura de flexibilidade que tome consciência da sua função enquanto parte de um todo que visa o ser-mais do homem (ser-mais conforme problematizado em Paulo Freire). Isso teria uma maior tendência de ocorrer, por exemplo, em editoras com um fim filantrópico ou educativo (como as editoras universitárias), onde o objetivo central é a promoção do livro-divulgação, um texto de fruição que carrega consigo a reflexão crítica.
Por outro lado, o fetiche do editor pode ter um fundamento obsessivo que se materializaria na necessidade de controle do mundo, angústia pela fuga da desordem, do imprevisto, do caos. A necessidade de controle direcionada para o leitor transformaria o fetiche da edição em fetiche sádico, controlando o prazer alheio. Instaurado o sadismo, o editor se movimentaria em um desejo de glorificação narcísica.
Uma questão importante é que esse fundamento obsessivo no fetiche do editor é uma prática promovida pelo contexto econômico contemporâneo. O editor é antes de tudo um funcionário, membro de uma organização muitas vezes transnacional, com mecanismos difusos de controle de capital, que visa fundamentalmente ao lucro.
Para compreender o editor-funcionário, é preciso compreender o contexto onde ele está inserido. Sennet entende que a sociedade capitalista moderna literalmente corrói o caráter dos indivíduos. “O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. (…) Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (Sennet, 2007, p. 10). Entretanto, o primeiro paradoxo advém de como poderemos buscar metas de longo prazo em uma economia dedicada ao curto prazo? Sennet defende que “as qualidades do bom trabalho não são as mesmas do bom caráter” (p. 21). Entretanto, na sociedade moderna, tais comparações são feitas sem maiores preocupações. Os bons padrões para o trabalho, repletos de uma racionalidade instrumental, são transportados para a vida pessoal, transformando-a em uma extensão mecanomórfica da realidade empresarial.
Diversas dessas qualidades do bom trabalho capitalista que são prejudiciais ao caráter humano são citadas. Por exemplo, o mote moderno “‘não há longo prazo’ é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo” (p. 24). “A rotina industrial ameaça degradar o caráter humano em suas próprias profundezas” (p. 41). O mote moderno de flexibilidade implica desprender-se do próprio passado, ausência de apego, confiança para aceitar a fragmentação. O trabalho é cada vez menos legível, no sentido de permitir ao trabalhador o entendimento do que se está fazendo, e o trabalhador gradualmente se aliena. A fluidez, tão defendida no contexto empresarial, torna o indivíduo focado apenas em metas de curto prazo. Permanecer num estado contínuo de vulnerabilidade (arriscar-se constantemente) embota o espírito humano. E, assim, o caráter humano é degradado pelo próprio sistema econômico no qual estamos inseridos.
Ramos corrobora com essas afirmações ao mencionar que “através de estratégias integracionistas, isto é, mediante estratégias que visam à integração de metas individuais e organizacionais, esforçam-se eles [os teóricos e praticantes de nossos dias] para transformar as organizações econômicas em sistemas sociais de tipo doméstico” (1981, p. 96). Apesar disso, “não questionam eles [os intervencionistas humanistas], explicitamente, o caráter geral desumanizador e enganoso da estrutura de emprego da sociedade centrada no mercado, que em si mesma não permite uma coerente prática do verdadeiro humanismo” (p. 97).
Sendo um editor-funcionário, seu trabalho colaboraria então com o que Guy Debord chama de sociedade do espetáculo. Em sua visão, “le spectacle n’est pas un ensemble d’images, mais un rapport social entre des personnes, médiatisé par des images” (Debord, 1992, p. 10). O conceito de espetáculo unificaria uma grande diversidade de fenômenos e deve ser entendido como a reconstrução material da ilusão religiosa e resultado do modo de produção vigente. “Considéré selon ses propres termes, le spectacle est l’affirmation de l’apparence et l’affirmation de toute vie humaine, c’est-à-dire sociale, comme simple apparence. Mais la critique qui atteint la vérité du spectacle le découvre comme la négation visible de la vie ; comme une négation de la vie qui est devenue visible” (p. 12).
Assim como Sennet, Debord se questiona sobre a influência desse processo de espetacularização na vida humana: “Le spectacle est la réalisation technique de l’exil des pouvoirs humains dans un au-delà; la scission achevée à l’intérieur de l’homme” (p. 16). Além dessa cisão interior, a sociedade espetacular está diretamente relacionada ao processo de alienação: “L’aliénation du spectateur au profit de l’objet contemplé (qui est le résultat de sa propre activité inconsciente) s’exprime ainsi: plus il contemple, moins il vit; plus il accepte de se reconnaître dans les images dominantes du besoin, moins il comprend sa propre existence et son propre désir” (p. 20).
O espetáculo na sociedade corresponderia a uma fabricação concreta de alienação, a uma acumulação de capital a tal ordem que ela se transforma em imagem. Fundado no fetiche da mercadoria, o espetáculo transforma o consumidor real em consumidor de ilusões. A mercadoria teria o potencial de alterar o próprio mundo: “C’est dans cette lutte aveugle que chaque marchandise, en suivant sa passion, réalise en fait dans l’inconscience quelque chose de plus élevé : le devenir-monde de la marchandise, qui est aussi bien le devenir-marchandise du monde” (p. 38).
Nesse contexto, o editor-funcionário está em uma posição que mantém a troca como fundamento da sua atividade, colaborando com o “devir-mercadoria do mundo”, o que reforça a clivagem social, perpetuando o foco de sua atividade na venda de textos de prazer, textos-tagarelice que se fecham em si mesmos, aqueles relacionados a uma “prática confortável da leitura”.
Essa visão da atividade editorial como negócio, apoiada no livro-mercadoria, é discutida, por exemplo, por Schiffrin (2006). Nesse trabalho o autor problematiza a transformação que vem ocorrendo no mercado do livro com a entrada das grandes corporações. Elas incorporam conceitos alheios às editoras tradicionais, tais como a necessidade de lucro em cada obra e o incentivo a processos de fusão não criteriosos, em uma lógica corporativa que impacta substancialmente a circulação dos livros e das ideias que eles contêm. Para opor-se a ela, Shiffrin narra a demissão coletiva que ocorreu na Pantheon Books na década de 1990 e a sua tentativa de opor-se a esse modelo com a criação da New Press, uma editora sem fins lucrativos e ainda em atividade.
Epstein (2002) tem uma postura semelhante. Ele relata as transformações pelas quais passou a indústria do livro e mostra de forma crítica como ela cada vez mais se direciona para o sucesso com base na venda de best sellers muitas vezes de qualidade duvidosa.
Partindo do ponto de vista de sua atuação na Random House, Epstein mostra como a ligação entre os funcionários das editoras se transformou logo após os processos de fusões e aquisições que geraram os grandes conglomerados editoriais. O mercado editorial passa a ser, nada mais, nada menos, que um grande negócio. Nesse mercado de massa, o marketing é mais importante do que a função editorial, que se transforma em mínima (Epstein, 2002), o que nos remete à visão espetacular da sociedade a partir da preponderância da mercadoria (Debord, 1992).
Essa realidade levantada por Epstein e Schifrin é a mesma que ocorre no Brasil. Segundo Marcos Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores Livreiros (SNEL), há uma grande concentração no mercado nacional: “Atualmente, 16% do total de pontos de vendas de livros no país respondem por 70% das vendas. Além disso, 15 editoras representam 60% do mercado” (SNEL, 2015).
Um estudo recente também aponta para essa concentração, tanto no âmbito empresarial quanto geográfico. “Em 2014, por exemplo, no ranking mundial das 50 maiores editoras, o faturamento das 10 empresas líderes superava, em quase 60%, o faturamento das demais 40”. Esse processo de concentração “não só fortaleceu as grandes editoras como corporações de alcance mundial, mas também suas posições em importantes mercados nacionais” (Nyko et al., no prelo). No Brasil, um indicativo da relevância do mercado nacional (estimado em R$ 5,4 bilhões em 2014) é a “atração de grandes players internacionais, que investem no mercado brasileiro por meio da aquisição de editoras nacionais” (Nyko et al., no prelo).
Epstein mostra como um possível caminho de ‘salvação’ desse mercado de massa do livro as novas tecnologias, envolvendo principalmente e-books, máquinas com impressão sob demanda e a própria internet. Dados mais recentes colocam em questão essa aposta de Epstein: estima-se que apenas a empesa Amazon detenha de 70% a 75% do comércio mundial de e-books, avaliado em US$ 15 bilhões (Nyko et al., no prelo).
Não considerando as novas tecnologias necessariamente como ‘salvação’ de um modelo com base no lucro, mas sim como brecha que permita a emergência de outras lógicas, Feenberg é um teórico relevante para a presente discussão em função de seus estudos em filosofia da tecnologia. Esse campo do conhecimento ganha destaque na contemporaneidade, uma vez que “tecnologias têm o poder de afetar nossas vidas, o modo como nos relacionamos, produzimos e disseminamos informação” (Rozados, 2015, p. 55).
Segundo Rozados (2015), a interpretação de Feenberg sobre a internet possui três pressupostos principais: “1. Ela é uma tecnologia em fluxo, e que ainda não se estabilizou; 2. entender seu significado social requer uma compreensão de seu caráter técnico; 3. e a internet pode ser definida atualmente apenas em termos da disputa de interesses opostos que está sendo travada” (p. 55). Essa luta é considerada por Feenberg a partir de dois paradigmas dicotômicos: o modelo do consumo e o modelo da comunidade, sendo o futuro da internet dependente de qual modelo vai “prevalecer e se estabilizar, e, portanto, qual vai ter o poder de influenciar seu código técnico” (Rozados, 2015, p. 55).
O modelo do consumo segue a lógica apresentada acima, ao qual as editoras-corporações estão se submetendo. Por outro lado, o modelo de comunidade, que se baseia na organização dos usuários em comunidades online a partir de interesses comuns, é entendido quase como um negativo dessa lógica, favorecendo “formas de sociabilidade e engajamento pelas quais os indivíduos têm a possibilidade de se re-apropriarem de aspectos alienados de suas vidas” (Rozados, 2015, p. 59).
O paradigma em jogo é a oposição consumo x comunidade, competição x colaboração, mercadoria x dádiva. Para contrapor-se à lógica da mercadoria, Rozados (2015) entende que no modelo de comunidade a dádiva é um elemento regulador, entendida como uma “representação para algo que é feito sem evocar o valor monetário nas trocas entre os membros de uma dada comunidade” (p. 19). Esse tipo de troca alheia aos mecanismos de mercado é bastante interessante para pensarmos a superação do ‘devir-mercadoria do mundo’ levantado por Debord.
Rozados (2015) entende que a internet possui um elevado “potencial democratizante”, se materializando, por exemplo, na divulgação de periódicos online, elemento que alterou drasticamente questões relacionadas ao acesso, compartilhamento e participação na construção do conhecimento científico.
Trazendo essas reflexões para o campo do mercado editorial, cabe-nos pensar como as novas tecnologias colaboram com o acesso ao livro, com a difusão de ideias e conhecimentos, e com a construção de uma sociedade mais democrática. As novas tecnologias trouxeram mudanças abrangentes no processo editorial, das quais podemos destacar: 1) O barateamento do processo de edição, produção, distribuição e venda de livros físicos – novos softwares, impressão sob demanda, plataformas online de venda etc.; 2) o fim do império do livro-objeto – e-books, e-readers e novas formas de acesso a livros impensáveis há algumas décadas, e 3) o surgimento de repositórios online gratuitos, verdadeiras bibliotecas de Alexandria que simplesmente ignoram quaisquer considerações sobre direitos autorais. Sobre os dois primeiros há abrangente literatura disponível, e por isso os apresentaremos de forma resumida. Por outro lado, justamente o terceiro parece ser o que penetra mais profundamente na brecha aberta pela indústria do livro e portanto parece guardar o maior potencial democratizante dentre todos.
O barateamento do processo de edição, produção, distribuição e venda de livros físicos
Desde a imprensa de Gutenberg, uma grande gama de avanços técnicos ocorreu no âmbito das diversas etapas que envolvem a criação do livro-objeto. Os escritores, antes limitados a pergaminhos e penas, passaram pela máquina de escrever e hoje em dia podem literalmente alugar a preços extremamente baratos (por exemplo, em lan houses) o artefato técnico que viabiliza a difusão dos seus textos para o mundo inteiro. Os processadores de texto permitem que praticamente qualquer usuário com um pouco de domínio técnico do artefato – intuitivo para as novas gerações, mas ainda apresentando certos obstáculos para quem não nasceu no âmbito dessa revolução tecnológica – possa escrever, revisar e compartilhar seus textos.
Considerando a ‘linha de produção’ do livro-objeto, o mesmo ocorreu com as etapas subsequentes: a revisão pode ser feita em um computador sem recursos avançados; para a editoração existem softwares cada vez mais acessíveis; impressoras pessoais permitem a preparação e revisão final dos originais a custos impensáveis algumas décadas atrás.
A jusante da cadeia, o mesmo ocorre. As grandes máquinas industriais que imprimiam os livros seguem o caminho da miniaturização e da personalização em massa (considerada por alguns como o centro da terceira revolução industrial), permitindo a impressão de pequenas quantidades. Em determinados casos já é realidade a impressão sob demanda, materializando o livro-objeto apenas quando da existência de uma demanda concreta, o que claramente é uma extensão do conceito de just-in-time – marca da indústria japonesa do século XX – para a cadeia produtiva do livro. Os estoques são considerados como ativos em rápida depreciação: o objetivo é diminuí-los ao máximo.
Por fim, no âmbito da distribuição, grandes plataformas na web se constituem como um espaço de aproximação entre os consumidores e a indústria do livro, diminuindo substancialmente os custos de transação associados a essa troca econômica.
Com todos esses recursos, a autoedição é um fenômeno em franco crescimento, e se introduz em uma brecha criada pela indústria do livro: o editor deixa de ser intermediário entre escritor e público. O escritor passa a ser aquele que busca entender diretamente as necessidades do seu público e se dirige a ele sem necessidade de qualquer crivo. Sem colocar em questão a sua qualidade literária, a trilogia Cinquenta tons (James, 2012) obteve grande sucesso de vendas e foi produzido por autoedição.
Por mais que a autoedição não seja estritamente uma novidade na indústria do livro – existem evidências de que fizeram isso Proust, Sterne, Luther, Whitman, Pound, Dickinson, Hawthorne e Austen, apenas para citarmos alguns (Patterson, 2012) –, o acesso a tecnologias substancialmente mais baratas permite que qualquer escritor com um capital inicial bastante pequeno o faça. Nos casos citados, eram necessários grandes empréstimos, empenhos de bens e acordos para que isso ocorresse, o que não é mais necessário.
Com a facilidade de produção e distribuição do livro-objeto, a questão que surge é como chamar a atenção do público leitor. A profusão de livros acaba fortalecendo o trabalho do crítico literário, voyeur barthiano, na medida em que o leitor médio se sente perdido em meio a um mar de informação. Além disso, nesse mar de livros tanto o marketing quanto a mídia em geral crescem de importância, em um retorno ao ‘devir-mercadoria do mundo’. Dessa forma, por mais que as novas tecnologias permitam uma democratização na produção e distribuição do livro-objeto, a sua inserção em mecanismos de mercado (o livro-mercadoria) ainda apresenta desafios para uma verdadeira democratização da cultura.
O fim do império do livro-objeto
Ainda mais recente que a internet e a revolução dos processadores de texto, o surgimento de artefatos técnicos que permitem uma leitura confortável e dispensam a necessidade do livro-objeto são a marca de uma nova revolução no setor.
Com a revolução tecnológica, o compartilhamento de textos pela internet teve um franco crescimento. O formato PDF (Portable Document File, formato proprietário da Adobe) foi uma importante padronização do código técnico de forma a divulgar textos em um padrão lido por qualquer plataforma digital. Não obstante, um obstáculo relevante era a falta de conforto ao ler um longo texto eletrônico durante horas em um computador.
Esse obstáculo vem sendo ultrapassado no século XXI com a proliferação dos e-readers, artefatos tecnológicos portáteis que facilitam grandemente a leitura de documentos eletrônicos. Algumas das principais empresas do setor são a Amazon (com seu Kindle) e a Apple (com seu iPad). Os principais padrões que surgiram são o ePub (electronic publishing), formato livre e aberto criado pelo International Digital Publishing Forum (CICOM) e o MOBI, formato proprietário detido pela Amazon.
Com os e-readers, o livro-objeto não é mais o elemento central de transmissão de conhecimento em nossa sociedade. Livros de medicina com animações e filmes misturam o que era texto impresso com a multimídia e nos criam uma questão teórica sobre como conceituá-los. A própria característica distintiva da forma romance para Auerbach (1994) – texto centrado no objeto livro – passa a ser questionável nesse contexto.
O custo de impressão e distribuição passa a não ser tão relevante em um mundo conectado à internet. O mundo virtual quebra barreiras de distância. Aparentemente trivial em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro ou São Paulo, essa questão é de suma importância em países de dimensões continentais como o nosso, com locais a dias de distância de uma livraria ou biblioteca mais próxima.
A ausência da necessidade de uma impressão e distribuição física facilita ainda mais o processo de autoedição. Os custos envolvidos no processo de produção de um livro são reduzidos drasticamente, bastando o acesso a alguns softwares, muitos dos quais de código aberto.
Além de facilitar a autoedição e a distribuição de livros, outro elemento que marca o potencial democratizante do fim do império do livro-objeto é o acesso gratuito a obras que estão em domínio público.
Uma iniciativa nessa linha que merece destaque no contexto brasileiro é a plataforma Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/), criada pelo Ministério da Educação em 2004 que permite o acesso gratuito a esse tipo de material, especialmente em formato PDF. Os governos possuem diversas iniciativas de digitalização de obras raras que permitem a disseminação do conhecimento de formas impensáveis há algumas décadas. Por exemplo, a própria bíblia de Gutenberg, icônica para a indústria do livro, está disponível gratuitamente na British Library (http://www.bl.uk/treasures/gutenberg/homepage.html).
Outro exemplo interessante em relação à digitalização de obras raras, já no caso brasileiro, é a atuação do BNDES, que no período 2004-2015 destinou mais de R$ 42 milhões a 125 projetos de preservação de acervos, em iniciativas oriundas de museus históricos, museus de arte sacra, bibliotecas, arquivos municipais, arquivos científicos, centros universitários, entre outros, o que o torna um dos maiores apoiadores nacionais da preservação de acervos (BNDES, 2015).
Entretanto, por mais que o advento da internet já viesse permitindo a divulgação sistemática de obras que não estão sujeitas a copyright, a necessidade de lê-los em uma tela de computador ou imprimi-los acabava fazendo com que muitos leitores continuassem comprando os livros-objeto. Um fato novo que surgiu é que, em questão de poucos anos, todos os livros e traduções que estão em domínio público tiveram sua leitura verdadeiramente viabilizada a qualquer leitor que possa pagar algumas centenas de reais em um e-reader de sua preferência.
Uma incrível quantidade de livros clássicos estão na ‘nuvem’, gratuitamente. Muitas traduções também estão. Com um artefato tecnológico incrivelmente barato para o seu potencial, a democratização de acesso ao livro-cultura é cada vez mais uma realidade.
Os repositórios online gratuitos
Ao discutirmos o fim do livro-objeto, já levantamos alguns pontos sobre repositórios online gratuitos, que permitem a franca disseminação de textos, mas enfrentam a barreira de leis de propriedade intelectual, dificultando o acesso a um importante elemento da cultura contemporânea.
Entretanto, justamente nesse contexto, Feenberg e seu conceito de dádiva passam a ser relevantes para a presente discussão. Por mais que não estejam em domínio público, facilmente são encontrados livros de grande sucesso ou de grande relevância teórica na internet. A título de exemplo, a obra completa de Clarice Lispector está disponível em uma grande quantidade de websites, blogs e comunidades online.
É uma espécie de troca alheia aos mecanismos de mercado, sem evocar o valor monetário. Livros de Clarice Lispector são muitas vezes compartilhados por um ideal político-anárquico, por entender que o livro-cultura deve ser divulgado e não deve estar sujeito às rígidas regras de propriedade intelectual que priorizam o direito econômico dos herdeiros em detrimento do direito social de acesso à cultura.
A visão nesse contexto é que a cópia é um elemento central para a criação de emprego e prosperidade. “São aqueles que não querem competir que tentam legislar um direito de repousar sobre suas conquistas e tornar a cópia ilegal” (Falkvinge, 2015). A cópia chega a ser vista como um “imperativo moral”.
Novamente não se atendo a questões de valor literário, o escritor Paulo Coelho, por exemplo, é um grande defensor do pirateamento e divulgação online de livros, inclusive os seus próprios. Ele entende que o compartilhamento de obras fortalece a venda na medida em que permite a divulgação mais abrangente do trabalho do escritor (Folha de São Paulo, 2009, e O Globo, 2015).
O surgimento de repositórios online gratuitos, verdadeiras bibliotecas de Alexandria que simplesmente ignoram quaisquer considerações sobre direitos autorais, apresenta-se como a possibilidade mais pungente de democratização do acesso ao livro-cultura. Basta uma conexão com a internet e todo o conhecimento humano está ao alcance das mãos.
A atividade editorial nesse contexto
Como exposto, o elevado potencial democratizante das novas tecnologias em relação ao acesso aos livros é calcado em fundamentalmente três aspectos: 1) O barateamento de todas as etapas de produção e distribuição, permitindo a emergência de novos modelos, tais como a autoedição; 2) novos artefatos técnicos que prescindem da necessidade do livro-objeto, o que habilita o acesso a uma gama enorme de livros que não estão protegidos por direitos autorais, e ainda permite que o conhecimento alcance lugares cuja logística de distribuição não seria favorável; e 3) iniciativas de cunho político-anárquico, fundadas na dádiva, que entendem que o acesso ao conhecimento é prioritário em face de direitos de propriedade.
Com o surgimento da internet e posteriormente dos e-readers, recorrentemente questionava-se se seria o fim do livro-objeto. Após algumas décadas de internet e vários anos de e-readers, essa não parece ser a realidade. Por mais que o mercado tenha se tornado altamente concentrado, livrarias e editoras continuam existindo e publicando.
A questão que emerge é como a atividade editorial pode se adequar aos novos tempos. Como exposto, as novas tecnologias possuem um alto potencial democratizante, atuando em brechas da lógica de mercado que permitem uma divulgação significativa dos livros e, por conseguinte, do próprio conhecimento humano.
A atividade editorial não pode ignorar essa nova lógica ou tentar combatê-la com leis protecionistas mais rígidas. A própria lógica da diferenciação da mercadoria, central para a terceira revolução industrial, deve ser utilizada na indústria editorial. Os livros devem passar a ser mais interessantes, contando com estudos teóricos, referências, notas de rodapé, imagens e outros materiais que façam o leitor se interessar pela aquisição daquela edição específica de um livro. Livros com revisões ruins, tipografias ilegíveis e impressão de má qualidade, por exemplo, não são mais aceitos pelo mercado (a Bibliothèque de la Pléiade já antecipava esse movimento em quase um século).
No âmbito jurídico, por exemplo, a possibilidade de atualizações gratuitas e automáticas por determinado período de tempo, faz com que o Vade Mecum e outros compêndios de códigos e leis sejam especialmente interessantes para quem atua na área. Claramente, por mais que todos os códigos e leis por definição sejam livres, a possibilidade de um serviço diferenciado faz com que o leitor-consumidor veja valor naquela mercadoria específica.
O fetiche do objeto único pode ser utilizado pela indústria do livro por meio de noites de autógrafo, nas quais os escritores transformam aquele objeto seriado em um objeto único para o leitor. Rodas de debates gratuitos com escritores e teóricos podem atrair um grande público interessado e se transformarem em um espaço particularmente rico para as editoras divulgarem suas obras. A mudança da mentalidade que deve ser operada é a passagem de uma lógica centrada no livro-objeto para uma lógica centrada na experiência do leitor. O setor da música já possui muitos avanços nessa direção, com diversas bandas divulgando gratuitamente seu trabalho de forma a trazer maior público para seus shows.
Trechos de livros ou ainda livros inteiros devem ser disponibilizados online pelas editoras (a Amazon, gigante do setor, já os disponibiliza). O livro continua sendo um presente de grande valor e é nisso que deve recair o foco. Medidas protecionistas no contexto contemporâneo, com as tecnologias de compartilhamento disponíveis, só inflamarão a vontade de ultrapassá-las.
O mercado livreiro deve dialogar com os novos tempos, ou então ele sucumbirá à indústria cinematográfica, da música, e outros ramos do entretenimento que ganham cada vez maior espaço na mídia. As editoras não devem simplesmente manter uma atuação focada na lógica de mercado e no aumento de lucro ou então elas serão engolidas por corporações cada vez maiores. Uma questão relevante é que os acionistas dessas mega-corporações veem o mercado apenas em termos financeiros, deixando de lado a função de troca intrínseca a ele. Restará ao editor, aquele com experiência no setor e que pode antecipar os seus movimentos, de redirecionar as editoras para conviver de modo mais saudável no contexto das novas tecnologias. Por exemplo, a identificação de nichos não atendidos (traduções raras de um conjunto de pensadores, edições críticas de determinados autores etc.), de especificidades locais/regionais, passa a ser de grande importância, na medida em que permitem a manutenção da atividade editorial em áreas com poucos substitutivos.
Um elemento central para a manutenção de uma indústria competitiva em nossa era do conhecimento é a agregação de valor e a diferenciação de seus produtos. As novas tecnologias devem ser utilizadas em favor de uma maior difusão de novos textos de fruição, ultrapassando as barreiras geográficas e de custos historicamente associadas ao processo de difusão do livro. Ou a indústria livreira reconhece isso ou nos próximos anos assistiremos a uma pasteurização da própria atividade editorial, sempre em busca do novo best seller.
*Roy David Frankel é engenheiro de produção pela UFRJ, trabalhando atualmente no BNDES. Além disso, possui graduação e mestrado em Letras pela UERJ e cursa o doutorado em Ciência da Literatura na UFRJ. Nessa área escreve sobre aspectos teóricos da literatura. O autor gostaria de agradecer a Daniela Rozados, aos colegas do BNDES e ao Prof. Ítalo Moriconi por colaborarem com as reflexões propostas. Este artigo é de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, a opinião do BNDES.
REFERÊNCIAS
AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na cultura ocidental. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1994.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
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Recebido em: 30/01/2016
Aprovado em: 22/03/2016