Ano XI 0201
1º semestre de 2016
entrevista
Tempo de leitura estimado: 21 minutos

ESTRANGEIRIDADE E EXPERIMENTAÇÃO: UMA CONVERSA COM PALOMA VIDAL

Paloma Vidal
Paloma Vidal

Paloma Vidal nasceu em 1975 em Buenos Aires e, aos 2 anos de idade, mudou-se com os pais para o Rio de Janeiro, onde passou a infância e a juventude. Esse estar entre duas línguas e duas culturas marca profundamente sua produção literária. Desde a publicação, em 2003, do seu primeiro livro de contos, A duas mãos, suas temáticas literárias têm sido, em geral, as interferências entre culturas, lugares e gerações, o deslocamento e as vivências em trânsito, o necessário retorno ao passado e a recuperação da memória. Hoje, Paloma vive em São Paulo, é professora de Teoria Literária na Universidade Federal de São Paulo, crítica, tradutora, editora da revista Grumo e autora do blog Escritos Geográficos (www.escritosgeograficos.blogspot.com). Publicou ensaios acadêmicos, contos, poesia, teatro e dois romances: Algum lugar (2009) e Mar azul (2012). Conversei com a escritora em agosto de 2015, em sua acolhedora casa, rodeada de muitos livros e saboreando uma xícara de café.

Num dos textos que fazem parte de A duas mãos, você escreveu: “Serei a mulher que não dá nome aos seres para não sujeitá-los”. Gostaria que comentasse essa frase e falasse um pouco sobre o que a levou à escrita e o que pretende que a sua escrita seja.

Paloma: Esse livro trabalha muito com a questão feminina, tem uma perspectiva da mulher que tem a ver com essa ideia de como se tornar sujeito em vez de ser sujeitada. Esse é um livro que nasce desse impulso de querer ter uma voz, de encontrar uma voz. E talvez essa questão de nomear de algum modo sirva para tentar limitar o que poderia ser aberto. Nesse livro tem muito a ideia de uma certa indefinição em relação às características das pessoas e dos lugares. Ele hoje me parece até um pouco estranho, por exemplo no fato de que em vários contos os espaços não são claramente determinados. O conto “A ver navios” remete à minha avó e à cidade de Buenos Aires, mas tudo isso, a cidade e a geração, não é nomeado nunca. Houve uma mudança bem importante do primeiro livro [A duas mãos] para o segundo [Mais ao sul]. Foi como se essa busca precisasse ser mais específica, mais determinada por uma experiência singular, mais autobiográfica, mais ligada a certos acontecimentos, inclusive históricos, que determinaram justamente o fato de eu querer escrever, como se naquele momento esse impulso tivesse a ver com essa questão do feminino. Comecei escrevendo por uma sensação muito forte de que a voz da mulher tinha que ser conquistada de modo árduo. Depois fui entendendo que tinha de me apoderar daquilo de um modo mais particular, mais meu. Todos os contos desse primeiro livro têm essa questão, não só porque as personagens são mulheres, mas porque elas estão em situações frequentemente de assujeitamento.

Eu diria que, de certa maneira, essas personagens estão como que aprisionadas ora a um casamento de longa duração, ora a uma espera de alguém que não vem.

Paloma: Essa é uma questão curiosa. Esse livro [A duas mãos] foi apresentado por meio de uma bolsa da Biblioteca Nacional da qual a professora Beatriz Resende era jurada e, quando ela me conheceu, falou que achava que era um livro de uma mulher mais velha, e acredito que isso se relaciona com essa sensação de aprisionamento que pouco tinha a ver com uma menina mais nova e havia também umas personagens que eram mais velhas em situações meio sem saída. Ela se espantou muito. Nesse conto, onde está essa frase que você resgatou, ainda tem essa coisa do futuro. Não dá para entender essa frase senão nesse momento do meu processo. Na verdade, esse é um livro a que eu tenho voltado várias vezes, tenho uma relação de muito carinho por ele, por ter sido um momento de tentar, um momento de começar. Eu fiz análise por vinte anos com uma mesma analista para quem disse que tinham sido vinte anos para basicamente poder escrever. Esse livro e a minha análise estão muito relacionados. Não é muito fácil ter uma ideia do que você quer fazer e achar que pode mesmo fazer isso.

A sua escrita trata fundamentalmente de viagens, deslocamentos, exílio, viver em trânsito. A ideia de ser estrangeiro, de estar sozinha numa cidade desconhecida, de não pertencer a lugar nenhum surge, por exemplo, tanto em Mais ao sul como em Algum lugar. Gostaria que falasse um pouco sobre a importância desses temas no seu trabalho.

Paloma: Embora eu ache que exista esse tema dobrando os diferentes livros, cada um deles tem o seu problema. No Mais ao sul tinha uma pergunta, os contos vão meio que circundando uma mesma questão sobre o que é pertencer a algum lugar, sobre o fato de um sujeito nascer num lugar e ter uma relação de naturalização com esse lugar. Essa relação não é nem um pouco óbvia. Cada livro tem uma busca que em geral é muito própria, muito subjetiva, pessoal. No meu caso, não tenho uma vontade de problematizar de uma maneira muito abstrata, mas sim de uma maneira particular, que diz respeito a mim, à minha experiência. Acho que todos eles acabam tocando nessa questão, que é a da naturalização, de uma ideia de identidade. As identidades são sempre problemáticas. Na situação de uma pessoa que mudou de país, isso fica muito evidente. A verdade é que todos nós temos aquela ideia de que fala Julia Kristeva: ela mostra, por meio da psicanálise, como subjetivamente somos estrangeiros a nós mesmos. Na verdade, se a gente conseguisse entender isso talvez pudesse ser mais aberta em relação a essas identidades. Tem uma condição que é de todos os sujeitos e que é também de todas as nações, é uma questão que se expande e vai além do indivíduo. Os meus livros acabam tratando de como a gente poderia enxergar essa estrangeiridade no mundo contemporâneo.

A epígrafe de Algum lugar [Se llega a un lugar sin haber partido de otro, sin llegar. Silvina Ocampo] apresenta o tema do deslocamento, mas também o da importância das raízes que transportamos conosco. Como se pode, no mundo contemporâneo, conciliar estas duas realidades: o deslocar-se (forçada ou voluntariamente) e a necessidade de procurar as raízes?

Paloma: Essa é talvez a questão de como construir um espaço. No caso de Algum lugar, era realmente isso de estar numa cidade que é tão pouco amigável e ao mesmo tempo de ter de construir o meu espaço aí. A pergunta nesse livro foi: “Como é que esse espaço pode se tornar meu?”, porque na verdade a gente precisa de referências e familiaridade.

Mas nesse romance parece haver um constante questionamento da viagem e até um certo distanciamento emocional da protagonista-narradora face, por exemplo, ao namorado que vai com ela nessa viagem, mas também face à mãe que parece estar mais entusiasmada com a viagem do que a própria filha. Parece haver a tentativa de buscar familiaridade e adaptação ao espaço e, ao mesmo tempo, uma certa resistência a pertencer de fato, como se a protagonista-narradora não se deixasse tocar na sua interioridade.

Paloma: Talvez haja mesmo uma resistência dela a pertencer de fato. Essa é uma questão relevante. Quando se é muito marcada pela falta de pertencimento, tem uma barreira que é muito difícil de romper, essa barreira da adaptação, é como se de algum modo se adaptar fosse renderse ao lugar. Tem um pouco disso na minha literatura. Como pertencer sem perder o que te define? Essa é uma questão muito difícil, porque no final das contas a única coisa que você realmente tem é a sua estrangeiridade, que também pode ser uma identidade e isso é um aspecto sobre o qual eu penso muito.

Pode definir estrangeiridade?

Paloma: Estrangeiridade é esse não ter, não conseguir aderir, é essa falta de adesão, esse distanciamento, esse olhar de fora o tempo todo, é o nunca conseguir estar dentro da situação, como se de algum modo você sempre estivesse olhando a situação de fora, como se você fosse uma espécie de espectador.

Como nos contos “Espectadora” ou “Cena no jardim”?

Paloma: Sim. Essa questão é uma espécie de dilema para mim. E talvez seja até para a própria literatura. A posição de espectadora é uma posição muito literária, propensa à literatura, porque justamente isso possibilita a escrita, tanto que os escritores têm um pouco essa dissociação entre a escrita e a vida. Porque se você está dentro da situação, em geral não quer escrever sobre ela, você está dentro, está vivendo; o escritor por outro lado está olhando de fora. Pelo menos é o que acontece comigo. Tenho o dilema de como continuar escrevendo abandonando essa posição de espectador, de estrangeiro, como se de algum modo a escrita tivesse nascido para mim da percepção de que era desse lugar de estrangeiro que eu podia escrever. E que ao mesmo tempo eu poderia dar sentido a uma experiência que sempre foi de muita falta. Ao mesmo tempo que a literatura parece dar um sentido a essa experiência, e tem uma busca que é por um pertencimento, parece que essa busca está meio fadada ao fracasso. Talvez abandonar esse lugar seja abandonar a própria literatura. Esse é um desafio para qualquer escritor porque tem um momento em que talvez ele precise se deslocar. No meu caso é até mais radical, pois é como se eu tivesse de me deslocar do deslocamento.

Nos seus textos, as personagens parecem estar envolvidas em uma melancolia e solidão, às vezes até profunda e traumática. Estou pensando, por exemplo, na protagonista do conto “Espectadora”, mas também na protagonista de Algum lugar. Este último livro é, aliás, percorrido por uma profunda sensação de perda e de desamparo que se vai materializando nos diversos sonhos narrados, e numa certa incapacidade de relacionamento emocional da protagonista com os outros. Reconhece a presença desta melancolia, ou estarei treslendo o seu texto? Se sim, pode comentar os efeitos dessa melancolia?

Paloma: Isso está relacionado justamente com o que eu estava falando. É como se a literatura mergulhasse nesse sentimento de estrangeiridade. É desse lugar que o texto se escreve e nesse sentido este é um lugar muito melancólico, de alguém que está num lugar, como diria Freud, de luto melancolia. É um livro de alguém que está mergulhado nessas perdas.

Mas a melancolia é da escritora ou das personagens?

Paloma: É certamente das personagens. Se eu, escritora, estivesse mergulhada na melancolia,  não poderia escrever. O livro é movimento e isso é já sair da melancolia, e mesmo dentro dele há movimentos que têm a ver com as rupturas que acontecem ali, com o filho, com essa outra viagem que acontece no final. Tem uma melancolia porque é um livro que fica ali remoendo a impossibilidade de pertencer. Todos os livros, e talvez Mar azul mais do que todos, são profundamente melancólicos. Neste último há até um aprofundamento dessa melancolia, houve um movimento para ver até onde eu posso ir, porque comparando as protagonistas de Mar azul e Algum lugar, a primeira é mais isolada, mas vive numa cidade com espaços públicos convidativos, em que se pode andar a pé, uma cidade em que no geral os estrangeiros se sentem bem, pelo menos dentro de um certo imaginário, principalmente os argentinos. Mas, mesmo nessa cidade, essa protagonista consegue ter um isolamento radical.

Ainda sobre Algum lugar: o livro tem dois momentos em termos de ritmo e tempo cronológico, um mais lento que compreende a chegada a Los Angeles e as vivências nessa cidade até a volta ao Rio, onde a protagonista descobre estar grávida e onde acaba por ficar. Depois do regresso ao Rio, a narrativa tem saltos temporais, terminando C. (o filho) já com dois anos. Pode comentar os efeitos dessa estrutura?

Paloma: Isso corresponde um pouco ao processo de construção do livro. Ele foi escrito muito colado a uma vivência em Los Angeles, inclusive com uma escrita concomitante à experiência, porque eu mantinha um blog. Foi uma escrita feita ao longo da viagem, ela tem mais a característica do diário, que vai acompanhando os dias sem tantos saltos temporais. E, de algum modo, eu quis depois sair disso, acho que fiquei com esse dilema de como organizar essa experiência lá em Los Angeles, que foi tão forte e ao mesmo tempo tão distante da minha realidade no Brasil. Sempre tive a sensação de que esse livro deu um sentido a algo que realmente parecia não ter sentido nenhum. Porque eu de fato passei um ano naquela cidade sem entender o que estava fazendo ali.

E daí as perguntas retóricas que percorrem toda a narrativa, servindo para problematizar o porquê da viagem?

Paloma: Isso mesmo. As perguntas evidenciam a falta de sentido do que eu estava fazendo ali. Eu que já tenho dificuldade de adaptação, por que fui parar nessa cidade que claramente não ia me acolher? Há uma certa perplexidade de me ter colocado numa situação de estrangeiridade extrema. Acho que a estrutura do livro é um pouco forçada, porque é como se eu precisasse colocar essa experiência ao lado de uma outra vida, inscrevê-la em Los Angeles na vida dessa personagem através do que ela tem de mais próprio, que é a relação dela com a cidade da infância e do imaginário da mãe. Ela acaba se encontrando com a mãe através do filho. São realmente dois momentos que eu tentei juntar. Se esse livro fosse passar pelo crivo de uma oficina de escrita, por exemplo, não seria aceito certamente. Ele tem uma estrutura defeituosa. Na verdade, realmente os meus livros são defeituosos e talvez existam para mostrar o processo da minha própria escrita. O livro é um processo de separação em vários sentidos. Também trata de como as cidades contribuem para que sejamos pessoas diferentes. Uma coisa que me perturbava quando pequena era perceber que as pessoas eram diferentes dependendo dos contextos. Parecia até uma coisa falsa, não tinha uma verdade que se mantinha, mas depois descobri que na verdade a gente é múltipla. A relação com as cidades apresenta o mesmo tipo de angústia, somos vários com cidades diferentes.

A propósito de cidades e de espaço. Acha que os seus textos podem integrar-se naquilo que se poderia ler como literatura urbana?

Paloma: Nunca pensei nesses termos. Poderia escrever sobre qualquer tipo de espaço. A questão é que a minha vida sempre se passou em cidades e as coisas sobre as quais quis escrever têm a ver com o espaço urbano. Mas, por exemplo, o meu próximo romance vai se passar numa cidade pequena. O que aconteceu é que, até o momento, os meus livros se passam em cidades grandes, como Los Angeles, Rio e Buenos Aires, justamente porque eu precisei falar de experiências de estrangeiridade ligadas a vivências em cidades grandes e diferentes. Realmente não tenho nenhum tipo de fidelidade a categorias.

Mas qual é o impacto da cidade nas suas personagens, isto é, como é que elas são afetadas pelo espaço? Em alguns textos, a cidade parece ter um efeito de alienação sobre as mulheres.

Paloma: Um das coisas que eu consegui ganhar com o livro Algum lugar e a minha experiência em Los Angeles foi a relação com um espaço específico. Acho que isso também acontece em alguns contos de Mais ao sul, mas não em todos. Nas primeiras coisas que escrevi eu tinha muito medo dessa especificidade, um pouco como se não soubesse lidar com essa singularidade dos lugares e como falar desses espaços. Na verdade, agora estou pensando, do que eu tinha medo era do realismo, de uma certa ingenuidade na representação dos lugares, no sentido dessa falta de questionamento de como a literatura se relaciona com a realidade. A opção então foi a do distanciamento. Mas a questão da alienação está presente, sim, num embate dessas mulheres todas em relação ao espaço da cidade, a como sobreviver neles.

Ligada com esta questão da reconstrução do passado, gostaria que falasse um pouco sobre a importância dos sonhos na sua escrita. Há passagens em Algum lugar que têm um forte pendor performativo, e em que a narradora se dirige diretamente ao leitor.

Paloma: É verdade, os sonhos têm um lugar fundamental na minha escrita. Nesse livro, tinha uma vontade de dar uma outra dimensão dessa experiência da protagonista, uma dimensão que tem a ver com mais uma camada que ela não entende direito e que se pode relacionar com o passado dela. Os sonhos têm essa capacidade de trazer aspectos inesperados. E como eu fiz análise durante muitos anos, os sonhos são algo muito presente no meu trabalho, são como que uma outra capa da experiência e, no livro, eles cumprem essa função de interpelação, que não é só a ideia da interpelação ao leitor, mas também a ideia de que os sonhos surgem como uma interpelação externa, ao próprio sujeito. No fundo, estou falando da ideia de Lacan de “extimidade”, uma coisa que é própria mas que ao mesmo tempo está vindo de fora. O uso da segunda pessoa nessas passagens do livro tem precisamente a função de falar desses aspetos que se encaixam na experiência mas não totalmente. É uma forma que encontrei para juntar espaços e tempos diferentes.

O tópico dos pássaros, das aves, surge em vários dos seus textos que compõem Mar azul, o subcapítulo com que o livro termina intitula-se precisamente “Pássaros” e parece ser até uma espécie de arte poética. Gostaria que falasse um pouco sobre a presença e o simbolismo das aves na sua criação literária.

Paloma: Poderia falar de simbolismo, mas do que eu gosto mesmo neste tema é o fato de o pássaro ser algo bastante concreto, é um dado do real que entra nos meus livros como um tipo de companhia. Vejo os pássaros como uma espécie de coleção, como algo que eu vou colecionando em cada livro, uma marcação que me acompanha em diferentes momentos, de marcação do tempo, como as crianças que colam figurinhas na porta dos seus armários e aquilo fica como marca de vários momentos passados. Brinco com essa imagem como uma temática clássica, mas também com o meu próprio nome. Esse último texto de Mais ao sul é na verdade um conjunto de fragmentos, de microficções, nos quais eu brinco com a questão autoral.

Outra questão que é visível na sua literatura é a interferência entre culturas, visível tanto no uso do espanhol e do inglês quanto nas inúmeras referências literárias e cinematográficas. E há também uma dimensão de transnacionalidade na sua escrita que parece ir mais além do que essas questões. Estou pensando especificamente no tema da imigração. Acha que a sua escrita pretende alargar as fronteiras do Brasil e refletir sobre a experiência imigrante?

Paloma: Esse talvez seja um tema que faça parte de uma espécie de projeto. Todas as literaturas têm questões e temáticas fortes relacionadas com a identidade nacional. O Brasil não é exceção e, talvez por ser um país tão grande, a literatura brasileira acaba sendo muito autocentrada, como se ela se bastasse justamente por causa da diversidade e da multiplicidade cultural que existem aqui. No meu caso, existe uma ideia de fazer uma literatura que se coloque em diálogo com coisas que estão fora, que mostre um pouco meu jeito capenga de ser brasileira. Me questiono o que é ser brasileira ou argentina. Um amigo me disse uma vez que ser brasileiro ou argentino é não se perguntar isso, e estou sempre me perguntando. O meu novo livro de contos é passado praticamente todo fora e tem esse desafio de falar sobre outros lugares que não os lugares comuns para mim: o Brasil e a Argentina. Será que eu consigo falar sem ser desse lugar? Não quero fazer uma literatura que pretenda igualar todos os lugares, trata-se mais de uma mudança de foco, preciso falar de como se pode ser estrangeiro em qualquer lugar. O novo livro resulta de uma tentativa de desestabilizar os meus próprios espaços confortáveis.

A ideia da transnacionalidade aparece em textos de vários escritores brasileiros contemporâneos. Acha que esse é um traço da literatura contemporânea?

Paloma: Acho que sim, que é um traço da literatura contemporânea, da minha geração, para fugir de certos estereótipos sobre a literatura brasileira, isto é, da ideia de que ela deveria tratar de determinadas questões e temas. E aí acho que o risco é uma relação com o mercado, ao querer responder ao que um determinado mercado internacional espera da literatura brasileira. Acho que há muitos escritores que estão fazendo coisas interessantes nesse sentido. De um modo amplo, dá até para identificar um movimento de muitos escritores pelo caminho do cosmopolitismo, mas há modos de cosmopolitismo muito diferentes, o que realmente importa é o que cada escritor faz com isso. É, por exemplo, muito diferente um livro feito no âmbito de um projeto como o Amores Expressos de um livro de João Gilberto Noll ou de Paisagem com dromedário de Carola Saavedra, livro que trabalha com o espaço de forma muito indefinida.

Sei que esta é uma pergunta bastante ingrata, mas não vou resistir: como professora de Teoria Literária e também crítica de literatura, como vê a sua proposta literária no panorama da literatura brasileira contemporânea?

Paloma: É curioso isso. Tenho consciência, claro, não só porque sou professora e crítica, mas também porque na verdade todos os escritores e artistas contemporâneos são atravessados pela crítica, pelo discurso sobre as obras, sobre suas obras. A gente produz obras e discurso sobre as obras, então, claro que eu tenho uma certa consciência que se refere a todas essas questões de que já falamos: da estrangeiridade, da identidade, das fronteiras nacionais, de fazer interferências que não sejam tão óbvias numa literatura que talvez seja bastante autocentrada e bastante realista. O que pretendo fazer tem tudo a ver com essas ideias, mas, por outro lado, os livros acabam sendo experimentos que têm a ver com uma experiência e a necessidade visceral de tratar de certos temas. Uma questão que me persegue é pensar no que a literatura ainda pode fazer. A minha escrita tem um lado de experimento muito forte, não pretendo simplesmente contar uma história. O diálogo inicial de Mar azul, entre duas meninas que não são nomeadas, tem muito a ver com uma vontade minha de experimentar com essa linguagem. O desafio da literatura é saber o que mais se pode fazer com a linguagem. Há uma capacidade muito poderosa de renovação na escrita que é muito fascinante.

Você escreve poesia e também mantém um blog, mas a maior parte dos textos que escreveu até hoje são em prosa. Em que gênero se sente mais à vontade?

Paloma: Não me sinto realmente uma romancista. Não penso em histórias longas. Não é disso que eu gosto. Sou mais uma escritora do fragmento. Acho que João Cabral de Melo Neto disse alguma vez que havia escritores gordos e escritores magros. Gostei dessa ideia, e talvez eu seja uma escritora bem magra, como um cisco mesmo, um pequeno cisco, na medida em que eu realmente gostaria de fazer literatura com o mínimo.


* Patricia Martinho Ferreira é licenciada em Estudos Portugueses (2005), mestre em Teoria e Análise da Narrativa (2009) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal) e mestre em Ensino do Português como Língua Estrangeira (2012) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal). Atualmente, frequenta o doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade de Brown (EUA). Tem apresentado trabalhos nas áreas das literaturas portuguesa, brasileira e africana de língua portuguesa.