Resumo: Este artigo reconstitui algumas das principais iniciativas empreendidas pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro com o objetivo de reconhecer e fomentar ações culturais realizadas nas periferias, favelas, subúrbios e territórios populares da cidade. O texto enfatiza a implementação da Rede Carioca de Pontos de Cultura e o edital de Ações Locais, pautados pela lógica da descentralização territorial e da democratização do acesso aos recursos públicos.
Palavras-chave: políticas públicas; cultura; Rio de Janeiro; territórios; descentralização.
Abstract: This article reconstitutes some of the main initiatives undertaken by the Municipal Secretariat of Culture of Rio de Janeiro in order to recognize and promote cultural activities carried out in the peripheries, slums, suburbs and popular territories of the city. The text emphasizes the implementation of the Rede Carioca de Pontos de Cultura and the Ações Locais programme, based on the logic of territorial decentralization and democratization of access to public resources.
Keywords: public policies; culture; Rio de Janeiro; territories; decentralization.
Antes, um preâmbulo: este texto refletirá o lugar híbrido a partir do qual escrevo, mantendo um pé na gestão pública de cultura e outro na pesquisa. Para ser mais exata, explorarei este espaço de reflexão a partir de minha experiência como gestora na Secretaria Municipal de Cultura (SMC) do município do Rio, onde trabalho desde 2013.
Não foi um ano qualquer. Do ponto de vista político, vivia-se um momento tão vigoroso quanto conturbado: nas ruas, sequenciadas manifestações deflagravam os limites dos discursos, ações e instrumentos políticos usuais, questionando os princípios e o modus operandi que conduzem a rotina da administração pública, em todas as suas esferas. O que estava em pauta era a insuficiência do repertório político contemporâneo (tanto o conceitual quanto o pragmático) para dar conta das questões complexas que se impõem nestes tempos. Não se vislumbrava, no entanto, um conjunto determinado e estruturado de diretrizes e práticas que pudessem vir a substituir aquilo que era posto em questão. Antes de constituir-se como um tempo vazio de perspectiva, tratava-se de um momento positivamente caótico, que trazia consigo promissoras aberturas e brechas.
No que diz respeito especificamente ao ambiente político-cultural do Rio, o que se podia constatar era um flagrante descompasso entre produção e gestão pública. De um lado, uma cena volumosa e diversificada exigia a reinvenção e a consolidação de canais de fomento e diálogo. De outro, um novo quadro gestor, capitaneado pelo então Secretário Sérgio Sá Leitão, assumia um órgão com razoável disponibilidade orçamentária[1], mas deficiente em infraestrutura, estratégia administrativa, planejamento e definição de prioridades.
Foi naquele atípico ano que algumas ações estruturantes foram postas em marcha pela SMC. A implementação de uma recém-modernizada Lei do ISS (que, redigida em colaboração entre legislativo municipal e alguns grupos da sociedade civil, garantiu a ampliação do investimento privado via incentivo fiscal) e o lançamento do Programa de Fomento à Cultura Carioca (que sistematizou o conjunto de editais, regularizou seu cronograma e ampliou a quantidade de linhas de apoio financeiro direto) marcaram o início de um ciclo de incremento e consolidação do investimento municipal em projetos culturais.
Apesar de tais ações responderem a um determinado setor da produção que aguardava iniciativas de apoio mais robustas e estratégicas, não se pode ignorar o fato de que elas se direcionavam, em grande medida, a uma camada de agentes culturais que já participava do “radar” da admninistração pública municipal, tanto no que diz respeito às relações de investimento quanto no que toca à participação em processos de governança. A maioria deles caracteriza-se por estar sediado no Centro ou na Zona Sul do município, por possuir formalização jurídica e por dispor de pessoal profissionalizado em gestão de projetos.
“Virada territorial”
Enquanto isso, tronava-se cada vez mais flagrante um processo de complexificação do panorama de produção cultural carioca: agentes, projetos e ações que ainda não participavam do quadro de fomento público redesenhavam a carta cultural da cidade de fora para dentro, das margens para o centro. A partir de iniciativas engendradas desde as bordas da cidade, criavam-se novos circuitos, cenas e rotas. Eles estendiam-se uns sobre os outros, desdobravam-se, contaminavam-se, formavam redes e revezavam seus lugares, de modo que o antigo e estável mapa cultural do Rio via-se posto sob suspeita.
Tais margens e bordas não se referiam apenas aos limites geográficos do município, como também aos limiares do poder e da institucionalidade. Nestas cartas culturais novas e moventes, tudo aquilo que antes constituía periferia tendia agora a assumir outras posições, revelando como possíveis novas centralidades culturais. Bairros pobres, territórios populares, favelas, vielas, becos e esquinas, assim como realizadores (muitas vezes informais) que fazem cultura cotidianamente, porém sem suporte oficial ou infraestrutura pública, visibilizavam-se e reivindicavam reconhecimento.
Seria exagero (e até erro histórico) afirmar que se tratasse de um fenômeno recente ou exclusivo do Rio de Janeiro. A emergência daquilo a que se convencionou chamar de “cultura de periferia”[2] ganha força e projeção há pelo menos uma década, a ponto de vir tensionando, em todo o Brasil, o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas especificamente para este campo. O que então se revelava cada vez mais paradoxal e espantoso era a constatação de que, em uma metrópole com produção tão profícua nas suas regiões e circuitos periféricos, como o Rio, não houvesse um conjunto de iniciativas públicas que desse conta do fortalecimento e do apoio a ações que crescem fora das rotas onde o capital transita com mais fluidez e dos circuitos onde as instituições se fortalecem.
Seria preciso, então, que à emergência das ações culturais realizadas por agentes periféricos e nas periferias do Rio correspondesse um esforço de atualização da gestão, no sentido não apenas de reconhecer tal movimento, como de fomentá-lo. Lançando mão do termo proposto pelo professor e pesquisador Jorge Luiz Barbosa a respeito da consolidação da cena cultural de periferia, eu diria que era o momento (talvez já tardio) de a administração municipal passar a acompanhar a “virada territorial”[3] já deflagrada no panorama de produção da cidade.
As Zonas Norte e Oeste no mapa
O lançamento do edital da Rede Carioca de Pontos de Cultura foi a primeira medida empreendida pela SMC para que os territórios periféricos passassem a compor, com presença mais marcante, o seu mapa de fomento. Previsto desde fins de 2009, quando da assinatura de um convênio entre a Prefeitura do Rio e o Ministério da Cultura no âmbito do Programa Cultura Viva, o pleito era não somente aguardado como enfaticamente exigido em situações públicas, a exemplo da última Conferência Municipal de Cultura. Ele garantiu que 50 instituições da sociedade civil, sem fins lucrativos e ativadoras de projetos com dimensão comunitária, passassem a ser reconhecidas como Pontos de Cultura, com direito a receber o aporte de R$ 180 mil (divididos em três parcelas de R$ 60 mil, desembolsadas ao longo de três anos)[4].
Definidos como “um organizador da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura” (Turino, 2009. p. 64), os Pontos de Cultura se constituíram, na última década, como um conceito que impulsionou possibilidades — inicialmente em escala federal e mais tarde em âmbito estadual e municipal — de efetivação de políticas públicas voltadas para a cidadania e a diversidade cultural. Talvez ainda mais importante para a matéria aqui explorada, eles contribuíram para introduzir, no panorama das ações governamentais, o tema e a importância da sua “descentralização territorial” ou da sua “regionalização”. Isto se deu em função da dimensão “local” que o conceito de Ponto de Cultura carrega consigo e, sobretudo, porque seu aparecimento pôs ênfase em grupos e comunidades atuantes em territórios, áreas e regiões do Brasil antes relegados à situação de invisibilidade cultural e política.
Até 2013, existiam 119 Pontos de Cultura na cidade, somando-se aqueles que haviam sido reconhecidos pelo MinC e pelo Governo do Estado por meio de editais próprios. Um estudo cartográfico realizado pela SMC em parceria com o Instituto Pereira Passos constatou que eles estavam, sua grande maioria (diga-se, 83 Pontos daquele total), localizados no Centro e na Zona Sul cariocas, o que vinha a reproduzir o diagnóstico de concentração verificado no âmbito das políticas municipais de fomento direto e indireto.
Uma vez que o município tem, por vocação e estrutura, mais chances de compreender e atuar sobre a realidade específica de cada um de seus territórios — a escala de gestão municipal é por definição a escala local —, o edital da Rede Carioca apresentou-se como a chance de atenuar tal desequilíbrio. Sua composição foi desde o início orientada pela lógica da descentralização territorial: o documento exigia que ao menos 60% (isto é, 30 dos 50) Pontos de Cultura contemplados desenvolvessem atividades nas Zonas Norte e Oeste[5]. A estratégia foi desenvolvida de modo a priorizar as zonas mais “descobertas”, sem excluir do pleito as favelas e territórios populares situados no Centro e na Zona Sul.
Era a primeira vez que a SMC trabalhava com “cotas territoriais”. E, uma vez que tinham como intenção alcançar proponentes ainda não contemplados pelas políticas governamentais, elas exigiam o investimento em instrumentos de divulgação diferenciais. Além de um grande esforço de mobilização via meios digitais (utilizando-se sobretudo as redes sociais), uma equipe itinerou pela cidade realizando reuniões presenciais de esclarecimento e capacitação para as inscrições. Ao final do período de submissão de propostas, o ciclo chamado “Caravana Viva” havia feito 23 paradas em 20 bairros, envolvendo 250 agentes culturais.
Uma primeira análise do material de inscrições apontou para o êxito da estratégia: em torno de 60% dos projetos submetidos eram atuantes nas áreas prioritárias, o que, além de corresponder com precisão à cota territorial indicada no edital, comprovava a demanda por fomento oriunda dessas regiões. Ademais, o processo seletivo pode constatar a qualificação dos trabalhos realizados nas áreas ditas periféricas.
Como resultado, o conjunto de Pontos de Cultura conveniados com o município foi composto de maneira equilibrada territorialmente: 14 Pontos de Cultura selecionados atuam no Centro, 10 na Zona Sul, 12 na Zona Norte e 17 na Zona Oeste. O edital pode ser entendido como o início de uma relação de fomento entre a gestão municipal e a cena cultural de bairros como Bangu (onde está o Ponto de Cultura Caixa de Surpresa), Sepetiba (Na Era do Rádio), Campo Grande (Radar – Rede de Articulação e Dinamização da Arte) e Realengo (Música Sustentável Lata Doida), para mencionar alguns da Zona Oeste.
A implementação da Rede Carioca concluiu-se com a realização dos editais de Pontos de Leitura[6] e de Pontões de Cultura[7]. Apesar de nestes dois casos não ter sido estabelecida cota territorial fixa, a valorização de ações que mobilizam bairros e regiões periféricos do Rio pautou os critérios de avaliação previstos em ambos os processos seletivos. A partir de então, a lógica da priorização de territórios periféricos passaria a conduzir uma série de outras ações da gestão.
Além do impasse da formalização
O processo de estabelecimento da Rede Carioca de Pontos de Cultura tornou evidente a urgência de formulação de uma gama de ações governamentais específicas para a cultura feita nas áreas periféricas do Rio, iniciativas de apoio que se relacionassem com os diversos territórios da cidade de maneira mais profunda e complexa. Tal constatação pôs a SMC diante de um limite e de um desafio: o flagrante quadro de informalidade que rege as relações culturais em tais áreas, situação que termina por distanciá-los das perspectivas e possibilidades de relação com o Estado, dada sua lógica formal e acima de tudo burocratizante.
O limiar da informalidade pôde ser constatado, por exemplo, durante o processo de circulação para divulgação do edital de Pontos. Uma série de projetos com natureza e formato afins com o edital não puderam concorrer ao pleito por não estarem vinculados a um CNPJ (obrigatoriamente idôneo e, neste caso, constituído há pelo menos três anos). Muitos realizadores associaram-se a determinadas organizações tão somente para participarem da concorrência, lançando mão de uma estratégia de “gambiarra burocrática”, que se faz como prática comum no ambiente cultural, mas que se revela frágil como instrumento de vínculo com o Estado.
Cabe aqui esclarecer adicionalmente que, em sendo selecionada para se tornar um Ponto de Cultura, a instituição proponente deve assinar um termo de convênio com a administração pública. Tal instrumento implica rígidas regras jurídicas e administrativas, restritivas condições de desembolso do recurso financeiro recebido e não menos estreitas normas de prestação de contas. O convênio pressupõe, portanto, um alto nível de estruturação institucional e de gestão por parte do beneficiário, condição raramente vista entre os Pontos de Cultura. Trata-se de um paradoxo instalado na base do Programa Cultura Viva[8], que chegou a acarretar a inclusão de numerosas organizações em cadastros de inadimplência.
Diante do histórico exposto, no esforço de desdobramento de políticas orientadas aos territórios e circuitos periféricos cariocas, foi de início descartado o investimento em ações de incentivo ou encorajamento à passagem da informalidade à institucionalização. Tal movimento, que se poderia revelar a longo prazo como construtivo (já que a relação entre Estado e instituições é menos onerosa em termos fiscais e tributários), talvez se mostrasse insuficiente para um necessário primeiro contato da gestão municipal com os realizadores em questão. Aderindo-se à obrigatoriedade da institucionalização, permaneceriam restando fora de quadro aqueles agenciamentos cuja composição é por natureza fluida e maleável, não possuindo por “vocação” a formalização jurídica.
Seria necessária, ao menos em um momento inicial, uma estratégia que favorecesse e tornasse mais leve o reconhecimento mútuo entre gestão pública e realizadores de periferia, dois campos até então apartados. Em vez de investir em formalizar os informais, revelava-se mais produtivo distender as rotinas rígidas e burocráticas embutidas nos procedimentos de fomento do Estado (muitas delas não fundamentadas em leis, mas em determinadas “culturas administrativas” internalizadas pelos servidores), tornando a administração pública mais permeável à realidade da produção cultural em questão.
É como uma forma de superar esse impasse que surge, em 2014, o Edital de Ações Locais. Primeiro instrumento de fomento da SMC orientado a realizadores não formalizados, não necessariamente profissionalizados em gestão de projetos, mas capazes de ativar fluxos culturais em escala local nos diversos territórios do Rio, ele tem como linhas mestras a democratização do acesso ao fomento público (fazendo o recurso chegar até a ponta, sem intermediação) e a desburocratização da relação entre agentes culturais e a administração pública.
Vinculadas às áreas da cultura, da arte, da comunicação e do conhecimento, as ações locais podem ser realizadas por grupos ou indivíduos maiores de 15 anos. Ao serem selecionadas por meio do edital, seus proponentes recebem o aporte de R$ 40 mil, comprometendo-se a reaplicá-los em sua manutenção ao longo de um ano, seja por meio de investimento em infraestrutura (compra de equipamento ou material de consumo, aluguel de sede, dentre outros) ou pagamento de serviços (cachês, autorremuneração etc.).
Local, território, comunidade
São consideradas “ações locais” práticas, atividades e projetos continuados, que promovam impacto positivo nos territórios e comunidades em que são realizados. A definição é intencionalmente ampla, para que dê conta de uma gama de iniciativas de naturezas diversas, ampliando tanto quanto possível o escopo da iniciativa pública. Preferiu-se utilizar o termo “ação” pela sua força de ressaltar a presença de um gesto que já se efetiva (mais do que a projeção de um ideal a ser alcançado) e, ainda, por invocar uma tendência à hibridez e à intersetorialidade verificada contemporanemente nas artes e na cultura, como ressalta George Yudice (2014, s/p.) em suas considerações a respeito das “ações culturais”:
A ação cultural explora repertórios muito diversos de códigos que nos permitem articular as competências cognitivas humanas: visuais, dramatúrgicas, lógicas, emocionais, gastronômicas etc. A abordagem é mais integral, abrange todas as maneiras de ser e fazer (…). A ação cultural tem uma vantagem que a diferencia das iniciativas da modernidade: não se movimenta segundo compartimentos autônomos (arte, emprego, lazer, educação, mercado, direito, segurança etc). Seus gestores operam em complexas cadeias de articulação, possibilitando a intersetorialidade e a abertura da arte e da cultura a novas linguagens e narrativas.
Seguindo ainda o princípio da abrangência, o edital emprega os termos “local”, “territórios” e “comunidades” de forma praticamente indistinta e sem defini-los conceitualmente. A ideia é, justamente, explorar a amplitude semântica de tais expressões, de forma a incorporar aquilo que elas invocam de relação com um pedaço de chão definível em termos materiais; das forças políticas e de controle que ali se efetivam; e das dimensões simbólicas, imaginárias, representativas ou subjetivas que carregam. “Local”, “território” e “comunidade” são assumidos na sua indecidibilidade material e o abstrato, ou melhor, sua utilização indiscriminada procura “jogar” com esses dois extremos, considerando ambos. Assim, se os realizadores de uma ação que acontece em um hospital psiquiátrico têm dificuldade de apontar qual o seu “território”, poderão com mais conforto justificar que ela tem lugar em uma “comunidade clínica”, por exemplo.
O que importa apontar é que a alusão aos termos “local”, “território” e “comunidade”, apesar da maneira propositalmente indistinta como é feita, tem a intenção de criar um ambiente de proximidade com realizadores atuantes em espacialidades que se encontram historicamente fora do escopo ou do campo de intencionalidade das políticas municipais de cultura, queira-se conferir a tais espacialidades o nome favelas, subúrbios, territórios populares, periferias ou similares. Da mesma maneira, pretende-se conferir atenção especial àqueles redutos em que se criam relações de cidadania e reconhecimento de direitos por meio de ações culturais, como praças, instituições clínicas ou penitenciárias, centros comunitários etc. É com a intenção de incorporar as experiências vividas em tais configurações espaciais ao seu repertório de reconhecimento e fomento que a SMC utiliza o termo “ações locais”.
Da forma como disposta no edital, a definição de “ação local” torna-se mais restritiva apenas quando exige que as iniciativas inscritas apresentem continuidade (diferenciando-se da produção de eventos pontuais, que não desdobram ou são desdobrados por vínculos fortes com o entorno) e comprovem promover transformações positivas nas comunidades e territórios cariocas. O que se procura identificar, no processo de avaliação, é a forma como tais ações são capazes de impactar, redefinir ou, principalmente, criar campos existenciais compartilhados, por meio da mobilização de impulsos culturais, artísticos, cognoscentes comunicacionais.
Cabe aqui uma observação: com o termo “transformação”, não se supõe encontrar na ação local uma intenção deliberada de libertação, resgate ou redenção com relação a um determinado contexto ou espacialidade degradada, danificada ou decomposta — seja ela material, social ou simbólica. Não há, por assim dizer, um intuito “moralizante” embutido na qualificação da “transformação positiva”, tampouco uma tentativa de enxergar, no realizador cultural, um agente com potencial messiânico de salvação. Procura-se, nas iniciativas em questão, aquilo que há de invenção de novas vidas coletivas, de abertura de campos de experiência compartilhados. Quando a ação é efetuada — e muitas vezes a despeito de condições absolutamente adversas que a rondam —, ela recria, reelabora ou mesmo inaugura um espaço de vida em comum. Este espaço é o “local” da ação.
Questão de método
“O trabalho do pobre é fenomenológico: primeiro você faz, depois você corre atrás do sentido”, assim definiu recentemente o professor Veríssimo Junior, idealizador e coordenador do projeto Teatro da Laje, a dinâmica de realização das ações culturais oriundas de periferia. O que o edital de Ações Locais procura fazer é, justamente, se aproximar dessa “fenomenologia da ação”, dessa prevalência da atuação concreta no mundo, antes de tentar inquirir um sentido organizado que seja pressuposto ou anterior à prática cultural. É a prática, em suma, o que aqui interessa.
Por isso (além de exigir um esforço de negociação “intrainstitucional” necessário para garantir a aceitabilidade jurídica e administrativa de seus termos), o edital impeliu a gestão a empreender uma série de estratégias de execução distintas dos padrões usualmente adotados em editais de fomento. Em meio a este campo de experimentação metodológica, podem-se destacar alguns pontos diferenciais:
- Durante o período de inscrições, é ativada uma equipe de articuladores locais, profissionais com experiência na área cultural, escolhidos por apresentarem conhecimento acerca das dinâmicas culturais das comunidades e territórios do Rio, além de grande capital de rede. Seu “trabalho de campo” consiste em mapear possíveis proponentes, mobilizá-los para a submissão no edital e oferecer suporte durante todo o processo. Divididos em cinco equipes, eles cobrem todas as Áreas de Planejamento da cidade (ver nota 6), com autonomia para desenvolverem métodos originais de mobilização. Alguns de eficácia comprovada são “mutirões de inscrição” (grandes encontros, em espaços públicos ou institucionais, em que se reúnem agentes culturais segundo afinidade territorial ou de linguagem artístico-cultural), as “visitas domésticas” (atendimentos individuais nas casas dos proponentes para preenchimento dos formulários) e os “ataques” (ações de divulgação sem agendamento prévio nos locais e horários em que as ações potencialmente candidatas estão transcorrendo).
- A inscrição no Edital de Ações Locais realiza-se por meio do preenchimento de um formulário facilitado, orientado por perguntas simples. Respondendo-as, o proponente narra o histórico da ação e discorre sobre seu impacto no território. Não é exigido, assim, que o agente inscrito formate sua submissão no usual modelo projetual, segundo as categorias de “apresentação”, “objetivo” e “justificativa”, por demais abstratas para um mecanismo que se pretende comunicativo e democrático. Junto ao formulário, o proponente anexa o portfólio da ação e três depoimentos (em vídeo ou escritos) de pessoas residentes no local em que ela acontece. Os depoimentos são um recurso de referenciamento, fundamental para assegurar o reconhecimento da atividade pela comunidade local.
- Avaliadas por uma primeira comissão técnica, as inscrições com pontuação acima da determinada em edital recebem uma chancela de Ação Local. É um certificado de reconhecimento emitido pela Prefeitura que permite participação em outros editais municipais (como em uma linha de fomento da RioFilme desenhada especificamente para projetos audiovisuais de Pontos de Cultura e Ações Locais chanceladas) e propicia ainda a bonificação de pontuação em determinados pleitos (como nos editais de Ações Locais lançados em 2015, em que os chancelados foram valorizados). Na prática, a chancela também pode facilitar a negociação de parcerias em nível local, demandas de apoios culturais, pedidos de cessão de espaço etc.
- As ações locais mais bem pontuadas na avaliação do formulário são encaminhadas à fase de escuta, uma rodada de encontros presenciais realizados entre a banca final e os proponentes das ações. Afastando-se de uma ambiência de arguição ou defesa, o momento de explanação oral significa a abertura do processo seletivo para campos expressivos alternativos, acolhendo maneiras outras de narrar e discursar sobre o fazer cultural, para além da competência escrita. Momento decisivo do edital, após a escuta é divulgada a lista dos selecionados.
- Por se tratar de um mecanismo de premiação, o Ações Locais dispensa a apresentação, por parte dos realizadores premiados, das notas fiscais referentes à execução do valor recebido. Pede-se, entretanto, que o proponente apresente relatórios e materiais de registro que comprovem que o dinheiro foi investido na ação, de modo a ampliá-la e fortalecê-la, sob pena de ter de devolvê-lo. Abre-se mão, assim, do controle severo sobre a execução estritamente financeira da verba pública — um modelo de inspeção que, apesar de usual no Brasil, pouco diz ao Estado sobre o sucesso e o impacto da ação investida — em prol do foco na demonstração de resultados. Trata-se de uma mudança de ênfase no método de prestação de contas, cada vez mais necessária no panorama das políticas públicas que pretendem estabelecer uma relação saudável, desburocratizada e não punitiva entre Estado e realizadores culturais.
Ao final de sua primeira edição, o edital de Ações Locais chegou ao número de 850 proponentes inscritos e 612 chancelados, dos quais 85 foram premiados. Informações levantadas ao longo do processo seletivo permitiram ao jornal O Globo produzir um “mapa da cultura carioca feita na raça”. Nele, se pode visualizar um quadro geográfico que distoa bastante daqueles gerados a partir dos demais editais de fomento lançados em âmbito municipal.
Maior região da cidade em termos de extensão territorial e área mais povoada do município (isto é, a que possui maior número de habitantes em termos absolutos), a Zona Oeste[9] é a região com maior número de iniciativas chanceladas, somando 27% do total. Já a Zona Norte, área mais populosa (com maior número de habitantes por metro quadrado), representa 25% do panorama de ações locais. Em terceiro lugar vem a Zona Sul, com 18%, seguida do Centro, com 15%. Outros 15% são relativos a ações que declaram atuar em mais de uma região da cidade.
A criação de um território institucional
No início de 2015, como desdobramento do trabalho focado nas relações territoriais e comunitárias que impulsionam as dinâmicas culturais cariocas, a Coordenadoria de Cultura e Cidadania — instância até então responsável por formular e executar as iniciativas governamentais aqui narradas — passou ao estatuto de Subsecretaria de Cidadania e Diversidade Cultural. Estruturada em duas gerências (uma voltada à Rede Carioca de Pontos de Cultura e outra ao Ações Locais), a criação da SubCDC foi uma das primeiras ações do atual Secretário Marcelo Calero à frente do órgão. Tal processo conferiu robustez formal a um espaço em que novas lógicas e estratégias de trabalho vêm sendo formuladas, experimentadas, postas à prova e tem começado a sinalizar consolidação.
Neste último ano, a experiência do Ações Locais prolongou-se em três outras iniciativas de fomento, que reproduzem integralmente sua metodologia. O edital Territórios de Cultura experimentou aplicar o método em escalas menores, como que sobrepondo uma lupa à realidade de determinados contextos, a saber, os territórios de Senador Camará e Vila Kennedy, Compelxo do Alemão e Penha e Complexo da Maré[10]. Mais uma vez, o edital do prêmio de Ações Locais foi realizado, nos mesmos termos da edição anterior[11]. E o edital Ações Locais — Festival Cidade Olímpica, por sua vez, elencou 140 artistas locais para se apresentarem em palcos da cidade durante o período olímpico e paralímpico. Com objetivo similar a este último, apesar de aderir a um modelo de seleção mais tradicional, o edital Pontos de Cultura — Cidade Olímpica escolheu ainda cinco instituições sediadas no Rio para dinamizarem suas atividades ao longo do mesmo período. Somando todos os editais postos em curso pela SubCDC neste ciclo, 230 projetos e organizações são contemplados.
O histórico aqui narrado procura remontar uma sequência de iniciativas de fomento empreendidas com o objetivo de possibilitar uma inflexão mais popular, descentralizada e democrática no âmbito da gestão pública municipal de cultura. Para que se tornem de fato uma política, com conteúdo e perfil programáticos, seria necessário garantir continuidade a tais iniciativas — o que se pode fazer por decisão deliberada de governo, por pressão da sociedade civil ou pela proposição de legislação específica. Restam ainda, como próximos passos, os desafios de se implementarem ações específicas de fortalecimento de processos estéticos e desenvolvimento institucional aos agentes e circuitos que passaram a ser contemplados, de forma que oportunidades novas e promissoras para eles se abram. Apenas a continuidade e o aprofundamento de experiências de aproximação com a cidade e com realizadores culturais podem fazer com que o Estado, por sua natureza tão apartado da vida de quem habita o território, passe a ser capaz de operar um reconhecimento mais complexo e mais real das dinâmicas e demandas culturais da cidade, permitindo fortalecer seu âmbito de atuação.
REFERÊNCIAS
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DANTAS, Aline; MELLO, Marisa S. & PASSOS, Pamela (Org.) Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ, 2013.
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SAVAZONI, Rodrigo. A onda rosa-choque: reflexões sobre redes, cultura e política contemporânea. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
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YÚDICE, George. “Ação cultural, mudança social”. Jornal O Globo, 15/03/2014: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/acao-cultural-mudanca-social-artigo-de-george-yudice-527641.html
[1] No ano de 2013, o orçamento da SMC somou R$ 219 milhões, que correspondem a 0,93% do orçamento total da Prefeitura naquele exercício (um percentual alto com relação ao panorama histórico de investimentos públicos em cultura em todo o Brasil, que raramente se aproxima de 1%).
[2] Apesar de, no contexto carioca, o uso do termo “periferia” não ser tão forte e recorrente quanto em outras metrólopoles (como em São Paulo, por exemplo), utilizarei aqui a expressão para me referir às espacialidades que se viram historicamente apartadas dos processos de reconhecimento e financiamento cultural públicos, tais como favelas, subúrbios, territórios populares etc.
[3] A expressão foi utilizada pelo professor em sua fala durante a abertura do seminário “Territórios Culturais RJ”, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura, no dia 21 de janeiro de 2016.
[4] São investidos ao todo R$ 9 milhões por meio do edital de Pontos da Rede Carioca.
[5] Na linguagem administrativa da Prefeitura, a Área de Planejamento 1 corresponde ao Centro; a AP2 à Zona Sul e Tijuca; a AP3 à Zona Norte, as APs 4 e 5 à Zona Oeste.
[6] Previsto em convênio apartado do da Rede Carioca, o edital de Pontos de Leitura premiou 16 instituições que desenvolvem projetos comunitários voltados para livro e leitura. Cada selecionado recebeu R$ 20 mil reais. O montante de investimento somou R$ 320 mil.
[7] O convênio que viabiliza a Rede Carioca de Pontos de Cultura permitiu o reconhecimento de seis Pontões de Cultura. Foi selecionada uma instituição para cada uma das seguintes diretrizes transversais: Formação para Gestão Cultural, Comunicação e Cultura Digital, Infância & Juventude, Cultura & Educação, Economia Viva e Observatório & Memória (a última linha não foi preenchida por ausência de projetos classificados). Cada projeto selecionado recebe o valor de R$ 1,2 milhões. O montante de investimento do edital somou R$ 7,2 milhões.
[8] É preciso contemporizar que tal paradoxo foi amenizado com a sanção da Lei Cultura Viva (Lei Nº 13.018, de 22 de julho de 2014) e sua consequente regulamentação (Instrução Normativa 01, de 07 de abril de 2015), redigidas com o objetivo de desburocratizar a relação do Estado com os Pontos.
[9] Considera-se aqui a soma das Aps 4 e 5 — ver nota 6.
[10] São selecionados 15 realizadores culturais em cada território; cada um dos 45 premiados recebe o valor de R$ 25 mil, perfazendo o investimento de R$ 1, 1 milhão.
[11] Dessa vez foram contempladas 40 ações locais com o prêmio de R$ 40 mil cada, o que soma R$ 1,6 milhão investidos.