Ano XI 0201
dossiê
Tempo de leitura estimado: 26 minutos

DISSENSO, CONSENSO: ARTE E DIVERTIMENTO

Resumo: O artigo propõe pensar, a partir de narrativas do escritor italiano Italo Calvino e do brasileiro Rodrigo Lacerda, de que formas divertimento e riso atravessariam seus respectivos trabalhos. Na contramão de certa tendência de entender a seriedade como elemento estruturante, estes criadores buscam o divertimento como valor. Os rumos que apontam servem para que se possa sondar uma prática criativa alinhada a certo modo de compreender a própria literatura.

Palavras-chave: Humor; divertimento; literatura; Italo Calvino; Rodrigo Lacerda.

Abstract: The article proposes to think, from the narratives of Italian writer Italo Calvino and Brazilian Rodrigo Lacerda, in which forms fun and laughter would cross their respective works. In the opposite direction from the tendency to understand the seriousness as a structuring element, these creators seek fun as value. The paths pointed serve so that a creative practice aligned to a certain way of understanding literature itself can be canvassed.

Keywords: Humor; fun; literature; Italo Calvino; Rodrigo Lacerda.

 

Martin Page, em entrevista sobre as perdas e ganhos dos processos de adaptação de seus livros, afirma ao jornal O Globo: “O que mais tenho são ganhos, porque as adaptações geram dinheiro: e dinheiro é uma maneira de poder escrever livros que não vão fazer sucesso”[1]. Aqui temos, mais uma vez, a clássica oposição entre literatura como entretenimento e literatura séria, complexa. O sucesso (adaptação, fama) comparece na afirmativa do escritor francês como a antítese do livro “para poucos”, aquele de restrita circulação e diminuta repercussão. Ser consumido por muitos permite ao autor, paradoxalmente, o luxo de escrever o que der na telha, sem a preocupação de agradar.

Dentro ainda dessa seara, impossível escapar do caso Paulo Coelho, imagem nacional reunindo venda/sucesso. Não é preciso ir longe. Castelo, avião particular, adaptação para cinema, infinitas traduções. No entanto, toda a fama (prometo não discutir aqui valor ou estética, não seria este o propósito) encontra um contraponto no ideal perseguido pelo mago: o reconhecimento como escritor e não como fenômeno de vendas. O ingresso na Academia Brasileira de Letras – por mais que se questione o espaço, o perfil e as escolhas de seus integrantes – carrega ainda forte simbologia no tocante à legitimação dos autores dentro do campo literário brasileiro. Dito de outra forma, não basta estar traduzido para dezenas de línguas, ser campeão de vendas e citado por Barack Obama em discurso no Brasil[2]. É preciso entrar para a casa de Machado de Assis, o panteão dos escritores “de verdade”, ainda que muitos dos que lá estão não possam ser chamados por esse nome.

A afirmativa de Martin Page dissocia sucesso dos bons livros. Paulo Coelho bate recordes de vendas, mas busca o reconhecimento no seleto grupo dos iniciados. A esse respeito, sempre vale voltar à formulação modernista: “A massa ainda há de comer o biscoito fino que eu fabrico”, de Oswald de Andrade. Fama e sucesso de um lado, iguarias de outro. Ainda funcionamos dentro da lógica que alia alta qualidade a público rarefeito? Para quem busca compreender as muitas facetas da circulação do literário resulta um tanto frustrante se contentar com essa aritmética. Procurarei aqui entender formas de superar essa polarização ou ainda em que momentos seria possível identificar narrativas em que essa dicotomia dá lugar a ambiguidade mais complexa. Em que lugar podemos encontrar autores e obras em que esse trânsito ocorre de maneira efetiva?

Na trilha das hipóteses, é sempre válido voltar àquele que conseguiu, há quase trinta anos, conjugar valor e circulação, dissenso e muitos leitores. O semiólogo que virou best seller. O medievalista, erudito nada apocalíptico. Autor de sucesso de vendas nos anos 1980, Umberto Eco escreve o Pós-escrito a O Nome da Rosa para analisar o processo criativo do célebre romance. Mas não só. O texto explora ainda uma vez a dinâmica com o leitor. E aí entra nova dimensão do tema, já que chama a atenção o número de vezes em que a palavra diversão aparece. O escritor italiano alerta sobre a importância desse elemento:

Eu queria que o leitor se divertisse. Pelo menos, tanto quanto eu estava me divertindo. Este é um ponto importante, que parece contrastar com as ideias mais ponderadas que acreditamos ter sobre o romance. Divertir não significa di-verter, desviar dos problemas (…) (Eco, 1985, p. 48).

Divertir não equivale a se perder, extraviar-se. Talvez a achar um outro rumo. O conceito de divertimento é histórico, adverte, e o romance moderno teria procurado enfraquecê-lo no âmbito do enredo. Choque e escândalo eram as medidas adequadas àquele momento. Mas a equação que propõe equivalência entre consenso e desvalor precisou ser revista, lembra Eco. A abolição das fronteiras entre alta e baixa cultura, a lacuna entre uma arte experimental e a fruição prazerosa da mesma passam a ser repensadas. É o próprio quem articula definitiva reflexão acerca da indústria cultural em Apocalípticos e integrados (1964).

Segundo Eco, romper a barreira que foi erguida entre a arte e o divertimento seria uma das validades dessa argumentação. Haveria então a possibilidade de divertir sem perder a complexidade? “A inaceitabilidade da mensagem já não era critério soberano para uma narrativa (ou para qualquer outra arte) experimental, uma vez que o inaceitável estava doravante codificado como agradável” (Eco, 1985, p. 52), afirma. A lição teria vindo do romance pós-moderno (Thomas Pynchon, John Barth), pois ele deveria superar “as diatribes entre realismo e irrealismo, formalismo e ‘conteudismo’, literatura pura e literatura engajada, narrativa de elite e narrativa de massa…” (p. 59). Haveria um terceiro caminho, e nele caberiam histórias que podem agradar sem necessariamente se configurar em narrativas consoladoras. Vera Follain de Figueiredo afirma:

Se a obra de arte moderna era, por definição, uma obra difícil de interpretar, despertando um sentimento de estranheza, causando choque no leitor, a obra pós-moderna quer fazer-se passar como algo familiar, cabendo ao público mais refinado desconfiar dessa familiaridade e recuperar sua dimensão complexa, encoberta por essa aparente simplicidade (Figueiredo, 2012, p. 62).

A autora destaca o caráter conciliatório dessa arte, que não mais desafia as exigências do mercado de bens culturais, ou rechaça heroicamente o sucesso comercial. Unem-se dois polos que no modernismo tendiam a se repelir e se impõe com força a estética híbrida da pós-modernidade. Esse movimento de retorno ao agradável proposto por alguns dos escritores pós-modernistas teria trazido a reboque outro elemento que me interessa discutir: o prazer. E ele virá muitas vezes – mas nem sempre – dentro de uma proposta de retomada irônica: “A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente” (Eco, 1985, p. 57).

A inocência pode estar definitivamente perdida, mas não o prazer da leitura. Todo leitor sabe bem disso. A partir dessa chave indagaria quais autores podem agradar aos profissionais das letras (professores, críticos, jornalistas, editores) e aos não especialistas. Se o romance de Eco soube contentar a crítica especializada e o chamado leitor médio, provocando um abalo na noção de consenso e dissenso, um outro escritor muito próximo tangenciava questões análogas. Italo Calvino foi também importante propagador do prazer da leitura. O escritor italiano – um dos mais significativos ficcionistas do século XX – não deixava de afirmar em depoimentos, ensaios e na própria ficção o desejo de que seus leitores se divertissem.

Creio que o divertir seja uma função social, que corresponde à minha moral; penso sempre no leitor que deve sorver todas estas páginas, é necessário que ele se divirta, que tenha uma gratificação; esta é a minha moral: a pessoa comprou o livro, pagou, investiu seu tempo, deve se divertir. (…) Penso que o divertimento seja uma coisa séria (apud Clerici e Falcetto, 1994, p. 1, minha tradução).

Nas célebres propostas para o próximo milênio[3], Calvino fazia sua profissão de fé no futuro da literatura e propunha princípios a orientar o texto literário: leveza, consistência, multiplicidade, visibilidade e exatidão. A elas, talvez fosse possível agregar este elemento que surge como posicionamento existencial. Não à toa, o escritor por duas vezes no trecho citado faz uso da palavra moral, algo que remete a um valor a ser perseguido em sua produção ficcional, conjunto de regras a serem seguidas.

Sobre a vinculação da identidade de Calvino à comicidade, Stefano Beccastrini lembra a importância e a utilidade daquilo que nos faz rir, destacando o fato de que achar graça de si mesmo e do mundo significa ser livre, e não necessariamente ser feliz: “É por isso exatamente que tantas pessoas não sabem rir: porque não costumam se confrontar com o universo ou porque, quando se confrontam, acreditam ser mais importantes” (Becastrinni, 1994, p. XI). Recado aos sisudos: divertimento é coisa séria. O humor é forma de expressão legítima, e problematiza o próprio papel normativo e conservador da escrita, ao não se alinhar com a ideologia da sisudez – que prefigura o bom senso e o bom gosto.

 

<em>Ítalo Calvino</em>
Ítalo Calvino

 

Segundo Luca Clerici e Bruno Falcetto, a ironia e o divertimento estão entre as entonações prediletas de Calvino para dialogar com quem lê. De forma moderada, mas sempre presente, divertimento e riso atravessariam de diferentes maneiras todo o seu trabalho (1994, p. 1). E como identificar esse aspecto na prosa do escritor italiano? Já no final dos anos 1950 – em pleno clima do pós-guerra europeu e da poética neorrealista pautando a literatura italiana – Calvino dá uma guinada e publica Os nossos antepassados, trilogia da qual fazem parte O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959). O escritor foge da literatura propriamente engajada, mas mostra ali ser possível nomear o mundo contemporâneo e ainda assim oferecer ao leitor aventuras, histórias de amor, de naufrágios e guerras[4]. As histórias em tom de fábula se passam em tempos remotos e lugares distantes, e viscondes, cavaleiros, barões, cortesãs, princesas e plebeus partilham o espaço textual. No entanto, não se trata de apresentar ao leitor romances históricos. Calvino propõe sofisticada indagação acerca da contemporaneidade e atualiza procedimentos das narrativas medievais. Recicla a figura de Carlos Magno, a literatura de Ludovico Ariosto e certa tradição irônica italiana. Um pé no passado, outro no presente. A retomada de que nos fala Eco.

Vinte anos depois, em Se um viajante numa noite de inverno (1979), ele radicaliza o gesto e promove o leitor de romances a protagonista. Naquele que talvez seja um dos melhores capítulos iniciais de que se tem notícia, o escritor se dirige a nós, leitores, propondo delicioso protocolo de leitura:

Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!’ Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’
(…)
Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se. (…) Procure providenciar tudo aquilo que possa vir a interromper a leitura. Se você fuma, deixe os cigarros e os cinzeiros ao alcance da mão. O que falta ainda? Fazer xixi? Bom, isso é com você (Calvino, 1999, p. 11).

Diversão e leveza nunca equivalem, no entanto, à ausência de reflexão. A narrativa evita o caminho da metalinguagem por demais cerebral, assim como a frugalidade do best seller. Sequências de dez histórias interrompidas se sucedem, de estilos totalmente diversos. Nenhuma será concluída; todas seduzem o Leitor[5]. Como afirma Ligia Cademartori (2009, p. 93), o romance comunica, também, o sentido de multiplicidade que foi tão caro ao autor italiano. Serão ali também configurados vários tipos de leitores. Alguns ocasionais, ecléticos, estilo franco atirador. Outros, por vocação, para quem a leitura é um modo de estar no mundo. E ainda um terceiro tipo, o Não-Leitor, alguém que aprendeu a não ler, e procura nos livros matéria para debate ou para engordar uma tese acadêmica. Sinaliza a leitura burocratizada e pouco afeita à navegação que busca o ancoradouro a acolher com segurança: a grande biblioteca, no dizer do narrador.

A eles se agrega Ludmilla, a leitora por prazer desinteressado, aquela que faz parte do grupo dos que “se satisfazem em lê-los e amá-los” (Calvino, 1999, p. 97). O escritor defende com vigor essa figura do leitor médio encarnada pela leitora. Conforme anunciado anteriormente, afirma nunca esquecer que esse sujeito é o comprador do livro, objeto à venda no mercado: “Quem pensa que pode prescindir do aspecto econômico da existência e de tudo o que ele comporta não teve jamais o meu respeito” (p. 269).

Os inícios de romances se interrompem, mas Se um viajante avança para desenlace reconfortante. No último capítulo, Leitor e Leitora se encontram na cama, abrigo de leituras paralelas. Lá finalmente os títulos das histórias se complementam e formam uma (breve) narrativa. Calvino afirma a respeito: “(…) calculei tudo para que o ‘final feliz’ mais tradicional, o casamento do herói com a heroína, selasse a moldura que encerra a desordem geral” (p. 268). Variados momentos no romance remetem ao paralelismo entre a leitura das páginas e aquela que os amantes fazem de seus corpos. Alongar o prazer é mecanismo presente tanto no ato de leitura quanto na relação entre dois amantes, na imagem afortunada de um casal.

Mas será o clímax o verdadeiro alvo? Ou a corrida para esse fim não será antes contrariada por outro impulso que se esforça contra a corrente para retardar os instantes, para recuperar o tempo? (…) É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis (p. 160).

Protegidos no interior desse abraço, os amantes parecem configurar o que Alberto Manguel chama de leitura ideal. À diferença de Paolo e Francesca, imagem de leitores presente na Divina comédia – que abandonam a atividade após o primeiro beijo de amor – a dupla em Se um viajante continua lendo, o que suscita o comentário do crítico argentino: “Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro” (Manguel, 2019, p. 35). É desse e de outros prazeres que nos fala Calvino. O próprio começar e abandonar as narrativas inconclusas remete a um jogo[6] quase infantil, modo de operar em que a criança lida com interesses variados: começo, abandono, desinteresse, busca de outro objeto de gratificação. Brincadeiras de montar e desmontar. Um prazer sempre adiado, sempre renovado.

Revigorar o prazer da leitura parece ser a proposta de um autor brasileiro, quando nos apresenta versão de uma peça de Shakespeare. Penso no guia de leitura Hamlet ou Amleto?: Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos, de Rodrigo Lacerda. No livro, o narrador se dirige a um jovem ator prestes a estrear no papel do príncipe da Dinamarca, conduzindo pela mão esse novato sem se encastelar autoritariamente no conhecimento – que tem de sobra. Brinca com ele, desdobra temas e questões, estabelece conexões com o leitor contemporâneo sem deixar de apresentar o texto shakespeareano. A literatura está lá, mas o cinema, a televisão e os quadrinhos surgem como suplemento.

Não se pode negar a alegria do encontro com esse tipo de narrativa. Há muito esta leitora não se divertia tanto com um texto literário. Deficiência daquela que lê ou excesso de seriedade por parte de quem escreve? Fato é que Lacerda põe em prática certo debate sobre a polarização aqui discutida. E nos diz ser possível acessar a força da poesia dramática de Shakespeare sem ser hermético. Vale lembrar que estamos falando de tragédia, sangue familiar rolando, pátrias traídas e heranças malditas.

Shakespeariólatras, shakespearianistas, shakespeariófilos (palavras do narrador), atenção: o culto ao bardo inglês não precisa prescindir do humor. E essa narrativa brinca o tempo todo com o protocolo de leitura dos especialistas, aqueles que dominam um jargão e integram seleto grupo de iniciados. As ironias com a adoração pelo autor de Hamlet são piscadela para o leitor do século XXI. Sim, a crítica está aí e é bom que exista. As interpretações ganham em sutileza e profundidade. No entanto, ela andou por vezes colocando a própria literatura em perigo, como nos alertou o ex-estruturalista Tzvetan Todorov. Excesso de formalismo e abuso de formulações conduziram a uma experiência pouco fecunda no âmbito da leitura, ao “escarafunchar cada mínima hipótese interpretativa para uma única linha do texto” (Lacerda, 2015, p. 187). A perspectiva de ganho em uma abordagem menos engessada recebe reforço nas palavras de Todorov:

Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um melhor conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicaram a essa tarefa há milênios? (Todorov, 2009, p. 92-93).

Na defesa do literário, o ensaísta búlgaro lembra a necessidade de encorajar a leitura por todos os meios, inclusive a daqueles volumes que a crítica despreza ou vê com certa reserva, e cita Os três mosqueteiros e Harry Potter, romances que conquistaram milhões de adolescentes, mas, sobretudo, “lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas” (p. 82). Está liberado o divertimento?

Sobre a obsessão em julgar a ficção unicamente em termos de estética literária, e advogando a importância de analisá-la pelo prisma da sociologia do gosto e do consumo, José Paulo Paes alerta sobre a miopia de nossa crítica “para questões que fujam ao quadro da literatura erudita” (1990, p. 35). Levanta a hipótese de que tal defeito de visão tenha acarretado escassa avaliação de nossa quase inexistente literatura de entretenimento. O cenário nacional, em sua precária cultura letrada e intensa presença do audiovisual, pouco estimulou o surgimento dessa vertente entre nós. Um mercado editorial deficiente aliado à lenta profissionalização do escritor tampouco contribuiu à expansão dessa possibilidade. Passados vinte anos dessa reflexão, a situação apresenta alterações, mas as dicotomias persistem, conforme visto na afirmativa de Martin Page de se sentir livre para escrever bons livros já que publica alguns que dão dinheiro – lembrando que o escritor francês fala de mercado editorial mais robusto que o brasileiro.

Pensando no trânsito fecundo com a cultura de massa, hoje Paes perceberia a forte presença dos escritores/roteiristas atuando no mercado audiovisual, escrevendo roteiros, adaptações, minisséries (estão aí Marçal Aquino e Fernando Bonassi, entre outros, para provar isso). Retomam, portanto, a ligação com meios de comunicação de massa, à semelhança dos autores do século XIX na criação de folhetins para os jornais, conforme lembra Ricardo Piglia ao assinalar que o roteirista seria uma versão moderna do escritor de folhetins (2000, p. 30).

Onde entra Lacerda? Captando espertamente esse movimento entre linguagens, desfrutando da liberdade de visitar texto canônico sem fazê-lo por meio de uma dicção erudita, que afasta o leitor. Não era esse o grande medo de José de Alencar ao publicar seus romances? O escritor cearense incluía prefácios, posfácios, uma abundância de paratextos e recadinhos ao leitor (sobretudo à leitora), a quem procurava adular para que não abandonasse o texto. Naquele momento, preocupava a inexperiência de um público novato, pouco afeito a embarcar na ficção. Hoje, importa seduzir para que, em meio à enxurrada de narrativas da cultura audiovisual, o leitor ainda escolha essa experiência solitária e exclusivista, mas ainda “insubstituível como instrumento de saber e cultura” (p. 36), nas palavras de José Paulo Paes.

Não à toa Lacerda se dirige a um ator inexperiente, necessitando ser “guiado”. Muitos recados a ele – e a nós – concretizarão esse desejo de se comunicar, de dar a ver outra relação com o texto de base: “É hora de seu primeiro monólogo. Você precisa caprichar. Ande pela passarela até a parte mais iluminada do palco, bem junto do público. Você deve olhar no olho dos espectadores e falar: (…)” (Lacerda, 2015, p. 33). Há que se admitir que oxigenar o texto literário não faz mal a ninguém. Um certo à vontade com a escrita sem prestar tributo estéril ao autor consagrado comparece aqui. E Shakespeare não precisaria ainda de homenagens, ou de analistas “shakespeareopatas”, mas de leitores, alguns experientes, outros menos, alguns preguiçosos, outros não.

Sobre a obra do escritor carioca, Sérgio de Sá destaca uma postura atrelada à generosidade, ao desejo de “mais comunicação e menos experimento, porque interessada em falar ao leitor” (Sá, 2009, p. 142). Lacerda faria parte de uma linhagem de autores em que entretenimento e rigor caminham juntos: Balzac, Dickens, Eça de Queirós. Ainda uma vez, como na entrevista de Calvino, a questão do valor: generosidade como princípio literário, vontade de estabelecer com o leitor uma cumplicidade amorosa sem apelar para concessões.

Seria esse desejo de estabelecer uma aproximação vislumbrada no endereçamento dos narradores? Tanto aquele de Se um viajante quanto o narrador de Hamlet ou Amleto? se dirigem a um você, causando sensação de contiguidade: “Você piscou e, quando abre os olhos, percebe que o teatro à sua volta é o típico teatro elisabetano” (Lacerda, 2015, p. 10). E Calvino: “Você está sentado à mesa de um café, esperando Ludmilla e lendo o romance de Silas Flannery que lhe foi emprestado pelo senhor Cavedagna” (1999, p. 144).

E ainda outra forma de aproximação. Rir com Shakespeare, rir de Shakespeare. Sobre a falta de realismo nos deslocamentos físicos das personagens e nas passagens de tempo dos dramaturgos ingleses de quatrocentos anos atrás, o narrador de Lacerda afirma: “Eles não estavam nem aí, e teriam sido reprovados em qualquer oficina de roteiro” (p. 194). Ou “Shakespeare estava se lixando para detalhes realistas” (p. 194). Uma proximidade tão grande permite o tom informal, afinal, estamos em família; trata-se de uma filiação literária.

A literatura alimenta de forma definitiva a criação em forma de retomada de linhagens, seja Calvino homenageando antepassados, ou Lacerda demonstrando a forte presença de Shakespeare em sua formação de leitor. Graça Ramos destaca a intimidade do escritor com os textos shakespereanos, afirmando que o autor inglês funciona como um “amuleto” para Lacerda, por acompanhá-lo em sua vida leitora (Ramos, 2015). Obras como a novela O mistério do leão rampante (1995) e o romance juvenil O fazedor de velhos (2008) presentificam essa relação, sob forma de personagem ou de tema. Curiosa também a visão que Lacerda tem de seu ofício, chamando a atenção para o fato de que estaria do lado oposto de certa tendência literária dos anos 1990 de tematizar o urbano e a violência a partir de uma matriz realista fonsequiana. À semelhança de Calvino em sua recusa de alinhamento à poética neorrealista nos anos 1950, Lacerda transita na contramão e escolhe caminho que incide no mergulho da matéria histórica, mas onde se faz presente um “tratamento humorístico da linguagem erudita”[7].

Trata-se, portanto, de autores (distantes no espaço e em momentos históricos diversos) que em dado momento rejeitam o pacto direto com uma dicção dotada de maior referencialidade. Como Shakespeare, parecem estar se lixando para detalhes realistas. A imagem da guinada em Calvino e da contramão em Lacerda diz muito dessa relação. Mas não se limitam a isso: buscam o divertimento como valor; procuram outro rumo, como sinaliza Eco. Tais antagonismos sinalizam a possibilidade de derivar um tanto essa discussão e contrapor divertimento a outra postura. Convido o velho bardo a dar a deixa: “Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. Seria essa taça de rancor o contrário do riso? Na formulação de Maria Rita Kehl, a partir de diálogo com Nietzsche, o ressentido sustentaria a visão de culpabilizar o outro pelo que lhe falta, tendo como resultado uma mágoa insuperável (Kehl, 2009, p. 15).

Em certo sentido, a presença da comicidade e do divertimento permite alinhar-nos não aos ressentidos – aqueles que acham que o mundo lhes deve algo. Mas sugere aproximação ao lado dos fortes. A aposta equivaleria à postura de rir de si, de zombar e demolir certezas. Afirmação na potência de vida, para pensar com Nietzsche. Uma crença na força dos textos. Se a literatura realiza por vezes esse movimento, apontando para um lado vital, compete à crítica identificar esse desejo por parte de alguns criadores. Umberto Eco e Italo Calvino expressam a busca desse valor de forma direta. Rodrigo Lacerda igualmente põe em prática essa convicção. Caberia a nós, leitores queixosos, eternos lamuriosos pelas ausências – da qualidade dos leitores, da falta de leitura, da ausência de bons livros – um reconhecimento do aspecto afirmativo dessa atitude. Certamente não seremos menos criteriosos ou complexos em função disso. Um brinde ao divertimento. Mais riso, menos siso.

 


* Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou os ensaios O cavaleiro inexistente de Italo Calvino –  uma alegoria contemporânea (1999) e Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (2007). Coorganizou duas coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea e o volume Falando com estranhoso estrangeiro e a literatura brasileira (2016).

 

Referências

BECCASTRINI, Stefano. “Quanto’è comico confrontarsi con l’universo!” In: Calvino & il comico. Milano: Marcos y Marcos, 1994, p. IX-XI.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CALVINO, Italo. Os nossos antepassados. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CLERICI, Luca e FALCETTO, Bruno (org.). Calvino & il comico. Milano: Marcos y Marcos, 1994.

ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FOLLAIN, Vera Lúcia de Figueiredo. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/ 7letras, 2010.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

LACERDA, Rodrigo. “Paiol Literário: entrevista”. Rascunho, edição n. 150. Curitiba, outubro de 2012. Disponível em http://rascunho.com.br/rodrigo-lacerda. Acesso em 21 jun 2016.

LACERDA, Rodrigo. Hamlet ou Amleto?: Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015.

MANGUEL, Alberto. À mesa com o Chapeleiro Maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas. Trad. Josely Vianna Batista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Planeta Argentina/Seix Barral, 2000.

RAMOS, Graça. “Releituras generosas”. Disponível em http://blogs.oglobo.globo.com/graca-ramos/post/releituras-generosas-569567.html. Acesso em 2 jun 2016.

SÁ, Sérgio de. “Rodrigo Lacerda e a arquitetura da generosidade”. In: CHIARELLI, Stefania, DEALTRY, Giovanna, VIDAL, Paloma (org.) O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 137-148.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

 

Notas

[1] “Angústia e humor com Martin Page”, Segundo Caderno, O Globo, 29/02/2016, p. 3.

[2] Em 2011, o presidente norte-americano encerra sua participação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro referindo um único escritor brasileiro, e cita trecho motivacional de Paulo Coelho: “Com a força de nosso amor e nossa vontade podemos mudar nosso destino. E também o destino de muitos outros”.

[3] Conferências Norton, proferidas na Universidade de Harvard entre 1985 e 1986.

[4] Curioso notar, em uma simples busca na internet, a quantidade de vezes em que a trilogia de Calvino é chamada de “divertida”. Isca para o leitor mais jovem?

[5] José Paulo Paes lembra, no âmbito da literatura de entretenimento, a vigência da categoria de gênero. O romance policial, o sentimental, o de aventuras, a ficção científica etc. Nos dez incipit (princípios) de histórias inacabadas, Calvino passeia por eles, jogando com a expectativa do leitor, mas não adere inteiramente a nenhum gênero.

[6] Vale lembrar a esse respeito o envolvimento do autor com o Oulipo – Ouvroir de littérature potentielle (Ateliê de literatura potencial), grupo literário fundado na França em 1960, que pretendia explorar a potencialidade da literatura por meio da elaboração e utilização de regras formais rígidas, as ditas contraintes (restrições). Menos como formas coercitivas, elas funcionariam como ferramentas criativas. A visão do literário em Calvino se associa notadamente à ideia de jogo combinatório, o que nos leva ainda uma vez à proximidade com a diversão.

[7] Cf. entrevista ao jornal Rascunho. Na ocasião, o escritor se referia ao processo criativo de O mistério do leão rampante, mas a perspectiva vale também para Hamlet ou Amleto.