Resumo: Este artigo realiza a leitura de algumas fotos de Claude Cahun, artista e escritora conhecida hoje principalmente por seus autorretratos. A sua obra é interessante não só por estar ligada de alguma maneira às questões do surrealismo, mas também pela forma em que utiliza o seu corpo para cruzar as linhas de gênero.
Palavras-chave: Claude Cahun; gênero; autorretrato; estudos Queer.
Abstract: This paper offers a reading of a few photographs by Claude Cahun, an artist and writer best known today for her self-portraits. Her work is interesting not only because it is somewhat tied to the themes of surrealism but also because she utilizes her body in interesting ways to cross the limits of gender.
Keywords: Claude Cahun; gender; self-portrait; Queer studies.
It’s good to be neuter
I want to have meaningless legs
Anne Carson
Claude Cahun (Lucy Schwob 1894-1954) publicou apenas uma foto enquanto fotografia em vida – muitas outras apareciam em suas colagens. O restante do seu vasto arquivo de fotos, quase todos autorretratos, só foi descoberto depois da morte de sua companheira Marcel Moore[1] em 1972, quando os objetos da casa em que haviam vivido juntas desde 1937, na Ilha de Jersey no Canal da Mancha, foram colocados à leilão. As fotos foram redescobertas na década de 1980, quando François Lepellier, pesquisando o surrealismo, encontrou menções esparsas a Claude Cahun – algumas bastantes elogiosas por parte de André Breton – e, levando a cabo sua investigação, deparou-se com um universo imagético profícuo, decidindo publicar um livro. O livro foi lançado em 1992, junto com a primeira exposição das fotos de Cahun em Nova Iorque. Se por descobrir entendemos o processo de conceder visibilidade àquilo que estava antes invisível, pelo menos desde a perspectiva de quem está olhando pela primeira vez, e que esse processo também acolhe o ímpeto inventivo-fundador, no sentido de inventar ali uma origem, é importante algum cuidado para não atribuir à obra de Claude Cahun a origem de uma teoria que a sucedeu, não tanto por temer o anacronismo (a fotografia nem existiria se o risco fosse o anacronismo), mas por considerar restritiva a associação direta, sem nuances e modulações, entre a obra de Cahun e a teoria queer (ou os estudos de gênero no geral). De fato, é irresistível ler sua obra desde essa perspectiva – e tenho certeza que eu também não resistirei –, mesmo que a sua obra preceda inclusive o conceito de gênero tal qual o utilizamos hoje, terminologia proposta por John Money em 1955, médico pediatra que deu início às cirurgias de mudança de sexo, com enfoque principalmente em bebês intersexuais, visando à sua normativização. Claude Cahun está em busca de uma palavra inexistente; em seu livro/diário Aveux non avenus (1930), ou Disavowals: or Cancelled Confessions na edição em inglês (2008), ela diz: “Shuffle the cards. Masculine? Feminine? It depends on the situation. Neuter is the only gender that always suits me. If it existed in our language no one would be able to see my thought’s vacillations.”[2] Gender, ela diz, futuristicamente, embora a palavra em francês, “genre” tivesse à época apenas o sentido de “tipo” ou de classe morfológica gramatical. Não ao acaso as fotografias de Cahun ganham visibilidade a partir do início da década de 1990, quando da publicação de livros como Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith Butler. Igualmente, por outro lado, é possível compreender que se tal palavra existisse, não haveria obra, não haveria a possibilidade de observar a sua oscilação: “I’d be a worker bee for good”.[3] Claude Cahun precede a cartografia identitária ligada à guerra das palavras, o que não quer dizer que desconsidero a importância de discutir a tensão interna a cada conceito; o que não quer dizer que não haja uma guerra e que essa guerra também se dê nas palavras, mas significa apontar apenas para a sua dissidência sexual em detrimento, por exemplo, da palavra queer, que por ser uma categoria negativa – a categoria daqueles que não têm categoria – parece poder se universalizar a despeito do fato de que já deveríamos saber melhor a essa altura[4]. Não posso afirmar que Cahun fosse lésbica, transgênero ou genderqueer, pois não há evidência de sua autoidentificação nesses termos. Talvez o mais importante seja evitar atribuir ineditismo excessivo à obra de Claude Cahun, que, ainda que seja desde certa perspectiva espantosa (e mesmo que ela se pareça, em algumas fotos, embora não as escolhidas para o texto presente, com David Bowie ou Tilda Swinton), está também bastante em sintonia com certo panorama cultural de sua época. Além do surrealismo, que impactou e foi impactado pela obra de Cahun (e, claro, aqui fica também a questão de seu esquecimento diante da consagração de seus amigos e colegas homens), o início do século XX, principalmente em Paris, se configurava como um território de intensa discussão e perfomatização de gêneros e sexualidades, como indicam, por exemplo, a circulação de Gertrude Stein e Alice B. Toklas, talvez o casal homoafetivo mais famoso da época, pelos altos círculos artísticos, que contavam com os incentivos de outro casal famoso, Sylvia Beach (dona da editora e livraria Shakespeare and Company) e Adrienne Monnier (dona da livraria La Maison des Amis des Livres); e mudanças decisivas na moda, como a crescente utilização de calças e cortes de cabelos curtos por mulheres. Em 1919, na Alemanha foi produzido um dos primeiros filmes a discutir a homossexualidade, Anders als die Andern (Diferente dos outros), coescrito e coestrelado pelo sexólogo Magnus Hirschfeld. Claude Cahun ajudou a traduzir alguns livros de outro sexólogo da época, Havelock Ellis, que não considerava aquilo que ele denominava de inversão sexual como crime, depravação ou doença – embora fosse, ao mesmo tempo, um defensor da eugenia –, e discutia narcisismo e autoerotismo, elementos que seriam muito importantes para a obra de Cahun. Em 1929, Joan Riviere publica Womanliness as Masquerade, uma obra que propõe que a feminilidade seria uma máscara utilizada por mulheres para sobreviver em um mundo masculino. Máscaras eram itens bastante utilizados por Cahun em suas composições, embora muitas vezes fosse o seu próprio rosto que servisse de máscara – sua máscara preferida, dizia, era a carne. Àquilo que chamamos hoje de gênero, Cahun já sabia há muito de que se tratava de pura performance e encenação. Em uma de suas colagens mais famosas (1929), vemos seu rosto multiplicado sobre um mesmo pescoço, com intervenções que dão a ele um caráter de máscara; é possível ler aí: “Embaixo de uma máscara uma outra máscara. Eu nunca vou terminar de tirar todos esses rostos”. No canto da colagem, Cahun, a parte de cima de sua roupa simulando um torso masculino, avisa: “Estou em treinamento; Não me beije”. Em uma foto encontrada em seu arquivo, de onde ela recortou sua figura, vemos que ela carregava halteres. Talvez treinasse contra a santa família. Talvez burlasse com a virilidade atribuída aos homens. Ao mesmo tempo fazia um comentário sobre a suposta delicadeza feminina. Na parte de cima da colagem, em traços construtivistas, bonecas russas – matryoshkas – grávidas e uma família ligada pelo ventre parecem indicar para a reprodução serial como norma da existência humana. Mais para baixo, um corpo estendido cede a região do seu ventre à produção de outras formas de existência.
No mesmo ano de 1929, Virginia Woolf publica A Room of One’s Own (em 1928 publicara Orlando) e parece importante dizer que Claude Cahun, sobrinha do escritor Marcel Schwob, tinha um quarto todo seu, não só para escrever, mas também para explorar a sua dissidência sexual. Diz Virginia Woolf: “Then I may tell you that the very next words I read were these —’Chloe liked Olivia…’ Do not start. Do not blush. Let us admit in the privacy of our own society that these things sometimes happen. Sometimes women do like women. ‘Chloe liked Olivia,’ I read. And then it struck me how immense a change was there. Chloe liked Olivia perhaps for the first time in literature”[5]. Em seu diário/livro, Claude Cahun, cujo senso erótico era muito menos delicado e contido do que o de Woolf, descreve assim o seu encontro amoroso, como se duas medusas tivessem se conhecido: “Our hair became so entangled that night, that in the morning – to end it – we had to have our heads shaved”[6].
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Em 1930, Claude Cahun publica um autorretrato seu, intitulado Frontière humaine, na revista Bifur, edição de número 5. A foto, com o crânio alongado por anamorfose, o peito aplainado e coberto com um pano preto, exacerbando a tridimensionalidade da cabeça, exagerada ainda mais pela ausência de cabelo e a imperceptibilidade das sobrancelhas, centraliza o objeto fotográfico em torno do busto – uma figura sem braços – sua pele extremamente branca em contraste com o fundo escuro, dando um caráter escultórico à figura de Cahun. Diferentemente da maioria de seus autorretratos, o olhar de Cahun evita a câmera; a angulação da cabeça anamórfica, que parece pender devido ao seu tamanho e peso excessivos, pronuncia também o tamanho da orelha. A foto e a sua estranheza – as suas desproporções –, portanto, compõem o índice visível e táctil daquilo que existe entre a fronteira do que podemos chamar aqui de animado e inanimado, humano ou inumano, saudável e doente, feminino ou masculino. Cahun se desveste para se travestir, e a sua pele exposta não nos aproxima do humano, daquilo que seria o mais humano do humano, mas, ao contrário, a sua cabeça se expande, tensionando essa fronteira. É importante lembrar que a palavra “gênero” também designa aquilo que está mais-além da espécie. As dimensões de sua cabeça tornam a experiência de olhar a fotografia estranhamente tátil, mas não podemos saber o que estamos tocando.
Toda foto tem algo de espectral no sentido de que aquilo que se capta é reflexo, matéria retroprojetada em luz que interage com o nitrato de prata do filme, e revela a dimensão não-corpórea do corpo, o corpo que existe fora do corpo, o corpo deslocado de seu próprio lugar, isto que tramita entre o vivo e o não-vivo. Segundo Susan Sontag, “uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. (…) são tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade”. Na foto de 1928, Que me veux-tu? (O que você quer de mim?), a dupla exposição evidencia essa espectralidade, que cinde Cahun para multiplicá-la em dois. Barthes dizia que a fotografia continha em si algo da morte; sendo Claude Cahun judia, a foto – a cabeça também aqui raspada – parece evocar os horrores futuros dos campos de concentração, aos quais escapou ao mudar-se com Marcel Moore de Paris para a Ilha Jersey em 1938, só para serem presas pelos nazistas em 1944 e condenadas à morte, embora tenham sobrevivido à pena com o fim da guerra[7].
Na foto, uma Cahun está de frente para nós, seus ombros nus translúcidos, mas desvia o seu olhar, enquanto outra Cahun, de regata preta, de costas, gira em direção à câmera. O olho, cuja direção é difícil de discernir devido à maquiagem preta, nos olha de soslaio, mas olha também para a outra Cahun, que afasta o seu rosto. Quem quer o quê de quem? A ausência de recursos anamórficos não impede a estranheza da foto: algo da desproporcionalidade de Frontière humaine se mantém pela posição das cabeças carecas em contraste com o fundo escuro. A tela que serve de pano de fundo dá uma dimensão porosa à escuridão. A linha do maxilar da cabeça de perfil se alinha ao ombro da outra cabeça e parece atá-las a uma mesma base, sugerindo um ser bicéfalo composto por uma fantasmagoria. Não o corpo acéfalo de Bataille, mas um corpo com duas cabeças, em que as cabeças não parecem ser aliadas entre si, isto é, não potencializam a identidade, e sim fazem um aceno à síntese impossível: uma cabeça se impõe à outra, que retrocede, a feição vulnerável. Neste autorretrato de 1939, a estrutura de madeira que sustenta uma cabeça de gesso com um cabelo de flores e nos encara diretamente parece ter uma dimensão mais real e viva que a própria Cahun, cuja figura, ao fundo, extremamente pálida, oculta o corpo de baixo de uma capa preta, seus olhos cerrados. A sua cabeça (a cabeça de carne e osso) parece levitar, como se pudesse ser apenas uma prótese a ser inserida no outro corpo, que se faz presente como aquilo mais facilmente indentificável como corpo, com seus ombros largos e seu pescoço alongado.
Em Paris, 1909, em uma sessão mediúnica realizada por Julien Ochorowicz, co-diretor do Institut Général Psychologique de Paris, e mediada pelo polonês Stanislava Tomczyk, um espírito, chamada de Little Stasia, demandou: “Eu desejo fotografar a mim mesma; preparem os instrumentos!”. Little Stasia teria dado instruções precisas com relação à distância e ao foco da lente, pedindo em seguida privacidade e algo para se cobrir. Ochorowicz abriu o obturador e retornou à sala somente quando Little Stasia avisou que havia terminado. Quando revelado, o autorretrato (que em muito se assemelhava às fotografias pictorialistas) mostrava uma mulher, aparentemente dentro dos parâmetros daquilo que convencionalmente se designa como um ser humano vivo, se desconsiderado o fato de estar aparentemente emergindo de uma matéria de textura indefinida. O espiritismo devolveu à fotografia sua relação com as ciências ocultas porque foram primeiro os alquimistas no século XV que descobriram como combinar prata com sais marinhos para transformar aquilo que era branco em preto quando exposto à luz. No final do século XX, com a descoberta dos raios-x e a sua difusão no mundo da fotografia, até mais do que na física, os usos da imagem se voltam para aquilo que não era necessariamente visível a olhos nus.
Não sei se Cahun acreditava em espíritos e fantasmas, os surrealistas em geral não se interessavam por espiritismo, e não há nada em seus escritos que indique isso – apesar de que falava bastante em anjos – mas buscava, ao contrário dos pictorialistas, o insólito por meio de um olhar quase documental, um encontro com a dimensão tátil da luz e sua retradução em composições sobre si mesma. Nas suas fotos, porém, não está claro o que viria a constituir este “si mesma”, porque a instabilidade é a norma – “I’m obsessed with the exception”[8]. Apesar da pouca manipulação do negativo e a utilização daquilo que se chama – bastante ironicamente, neste caso – de straight photography, Cahun evoca os fantasmas daquilo que são e ao mesmo tempo não são a sua pessoa. As suas fotos em geral não precisavam ser manipuladas para tensionar a fronteira em relação ao irreal ou ao sobrenatural porque era o seu próprio corpo o local desse tensionamento – o seu corpo (muitas vezes só a cabeça) em relação aos seus objetos de cena e também em relação às normas e convenções da época. Este autorretrato de 1925 faz parte de uma série de quatro fotografias em que Cahun nos oferece expressões e ângulos distintos. Diferente das fotos acima, sua cabeça está solta, não descansa sobre ombros, mas sobre a própria base da redoma de vidro (e lembremos aqui de The Bell Jar, de Sylvia Plath), seus olhos nos miram diretamente. Diferentemente de Little Stasia, Cahun interpela quem está detrás do vidro e, por meio do vidro, converte quem olha em fotógrafo – isto é, o vidro se converte em uma espécie de lente cuja mediação torna mais evidente que ela está nos olhando olhar para ela. O reflexo na redoma não revela quem está do outro lado – e por isso mesmo pode ser qualquer um –, mas cria mais uma moldura para o seu rosto, uma redoma de luz.
Man Ray, amigo de Cahun, tiraria uma foto bastante similar cinco anos depois chamada Hommage à D.A.F de Sade, onde a cabeça da modelo se tornaria uma imagem perfeita de natureza morta, apoiada sobre um livro, sob uma redoma de vidro. A mulher está vendada; sua vulnerabilidade, como é comum nas fotos de Ray, é explorada por um olhar que a sensualiza, esse lugar-comum que a mulher ocupou no imaginário dos homens surrealistas. Se a redoma serve para preservar, ou seja, adiar a decomposição daquilo que se encontra lá dentro, o rosto de Cahun surge como uma espécie de morta-viva peculiar, um ser estranho que habita um terrarium. É que Cahun já parece estar em outra parte, não necessariamente morta, uma astronauta ou escafandrista, uma espécie de protótipo de um dispositivo de inteligência artificial. Na foto abaixo, de 1947, Cahun, seu rosto coberto, se converte em lápide, e as lápides ao fundo também ganham uma perturbadora expressividade humana. À frente de todos, ela parece comandar o exército de túmulos com a sua única luva preta no braço esquerdo, o outro braço simulando uma luva com a sua própria pele, pelo uso de um bracelete fino. É possível também que ela seja apenas a sentinela, uma espécie de guardiã que, entre os dois mundos, vive em meio à folhagem e oculta o seu rosto porque não é com os olhos que vê.
Já na foto que segue, de 1931, chamada Le combat de pierres (A luta de pedras), uma dupla exposição, Cahun se converte em dois monolitos rochosos, um par de braços estendido ao outro par, mas sem se encontrar porque se transpassam e encenam o toque impossível (e penso aqui na escultura de Maria Martins, O impossível). As figuras totêmicas em que Cahun se converte, como se esculpindo o monolito desde dentro, animam a rocha – assim como as intempéries às quais foi exposta e o líquen que encontrou ali um substrato – transformando-a em uma espécie de divindade telúrica ou ctônica com suas pulseiras cerimoniais, um modo de existência absolutamente sem gênero: o cálcio de nossos ossos – a nossa dimensão lítica – foi feito a partir de estrelas em colapso. Escreve Jeffrey Jerome Cohen, “Queerly productive, rock does not offer the easy fecundity of soil, Gaia as mother”[9] e se houvesse algo como uma ideia rochosa do amor, isto é, a história da mutualidade não-óbvia que é possível desenvolver com a rocha, seria uma fadada ao desencontro porque a pedra, como a fotografia, muitas vezes – quase sempre – perdura em relação a quem ela afeta ou a quem é afetada por ela.
Donna Haraway escreveu que o pensamento em torno de como significados, sentidos e corpos são feitos tem como força não a possibilidade de negar o sentido e os corpos, mas sim a potência de criar sentidos e corpos que contenham a chance de um futuro, sentidos e corpos em que seja possível habitar. Sem também buscar uma força transcendente, a questão seriam corporificações alternativas, alianças prostéticas – maquínicas mas também anímicas, e como vimos, tectônicas, de modo a enfatizar a natureza plástica do corpo. Com o seu corpo, a cada vez outro, Cahun revela que este mundo em que vivemos não é o melhor dos mundos possíveis. O corpo normativo também não é o melhor dos corpos possíveis. Neste autorretrato de 1930, também uma dupla exposição, dois corpos convivem. Um é feito dos detritos da praia, elementos que ao mesmo tempo são o futuro da praia – gravetos, pedras, conchas –, um corpo provisório à espera da maré, um corpo mais próximo da decomposição, da sua degradação em areia. Um graveto no meio do ventre propõe algo fálico, algo masculino – e de fato a figura humanoide já havia aparecido em outra fotografia, ligeiramente modificada, entitulada Le Père (O pai) –, mas não só. O outro corpo emoldura com as mãos a mesma região, mas ali se encontra desgenitalizada, convertido em tentáculos. Cahun está metamorfoseada em um polvo, sua cabeça ausente, e seus pés lhe seguem sendo úteis fora da água. A classe dos cefalópodes, diz Vilém Flusser em um livro dedicado a criticar a nossa existência vertebrada desde a perspectiva de um molusco, é aquela em que o rabo engoliu a cabeça, conformando um corpo que é uma boca circundada por pés. Deleuze dizia que a saúde, como a literatura, consistia em inventar o povo que falta, um povo cuja missão não seria a dominação; Cahun, sua pele brilhando ao sol, a viscosidade de seus novos membros, aqui incorpora o polvo que falta, isto é, um corpo que a cada vez dá corpo a si mesmo, expandido as possibilidades para a sua forma. Paul B. Preciado escreveu sobre a dificuldade em se acostumar com as modificações em sua voz resultantes da administração de testosterona: ela não se reconhece, e os outros muito menos; sua mãe não a reconhece ao telefone. A ruptura do reconhecimento explicita a distância que sempre existiu, a dificuldade de interpretação que sempre colocou ao outro: “en otra episteme, mi nueva voz sería la voz de la ballena o el sonido del trueno, aquí es simplemente una voz masculina”.
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[A ideia inicial para este texto era converter as fotos de Cahun em cartões postais; eu pensava principalmente na primeira parte de O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além, de Derrida, em que a teoria encontra outra forma de expressão, veiculada de maneira epistolar. Pensando que para responder a uma chamada de publicação acerca do tema de gênero seria interessante repensar também o gênero de um texto acadêmico; e pensando que muito do que se conhece da história das dissidências sexuais e relações homoafetivas, especialmente entre mulheres, se dá por cartas (por exemplo, entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West; Margaret Mead e Ruth Benedict; Eleanor Roosevelt e Lorena Hickok), a ideia inicial era explorar o gênero do cartão-postal, isto é, da carta que não vem em um envelope e, portanto, multiplica o número de leitores para além da destinatária. Ainda que cartas possam sempre desviar-se de seu caminho, cair em mãos erradas, este parece ser a condição incontornável de um cartão-postal. Sendo o cartão-postal uma espécie de carta aberta e grande parte dessas relações de natureza secreta ou parcialmente secreta, existindo somente em uma espécie de clandestinidade, seria possível imaginar que poucos cartões-postais eram enviados por essas mulheres, ou, se enviados, seguramente contavam com algum tipo de recurso que não os tornassem completamente legíveis, como pseudônimos, signatárias anônimas, palavras cifradas, ou algo da ilegibilidade que todo diálogo íntimo carrega, e talvez até mesmo a possibilidade de disfarçá-lo em um artigo acadêmico. No entanto, pensei também que sem uma interlocutora, isto é, alguém que respondesse aos meus cartões, a empreitada toda se tornaria rapidamente insustentável ou, talvez, passasse de vez ao lado da literatura].
* Mariana Ruggieri é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CAHUN, Claude. Disavowals: or Cancelled Confessions. Trad. Susan de Muth. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008.
CONLEY, Katharine. Surrealist Ghostliness. Lincoln: University of Nebraska Press, 2013.
COHEN, Jeffrey Jerome. Stone: an ecology of the inhuman. Minneapolis, The University of Minnesota Press, 2015.
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. Trad. Peter Pál Pelbart. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
DERRIDA, J. O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. São Paulo: Civilização Brasileira, 2007.
FLUSSER, Vilém. Vampyroteuthis Infernalis. São Paulo: Annablume, 2011.
FREITAS, Angélica. a sônia. In: ZUM Revista de Fotografia. Disponível em: http://revistazum.com.br/claudiaandujar/sonia/
HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. In: Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, 1991.
PRECIADO, Paul B. Otra voz. In: El Estado Mental. Disponível em: https://elestadomental.com/especiales/cambiar-de-voz/otra-voz
SONTAG, Susan. Na caverna do Platão. In: Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
STOLOW, Jeremy. Mediumnic Lights, Xx Rays, and the Spirit who Photographed Herself. In: Critical Inquiry 42 (Summer 2016).
WOOLF, Virginia. A Room of One’s Own. Boston: Mariner Books, 1989.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
Notas
[1] Marcel Moore (Suzanne Malherbe, 1892-1972) era artista, desenhista de moda e escritora. É provavelmente responsável por colocar o dedo no disparador da câmera em grande parte das fotos de Cahun; em algumas fotos é possível ver a sua sombra. Apesar disso, o nome autorretrato não é necessariamente equivocado, já que era Cahun quem, em larga medida, compunha e dirigia a própria foto. Em 1917, a mãe de Moore se casa com o pai de Cahun.
[2] “Embaralhe as cartas. Masculino? Feminino? Depende da situação. Neutro é o único gênero que sempre me cai bem. Se existisse na nossa língua ninguém poderia ver a oscilação do meu pensamento”. Minha tradução.
[3] “Eu certamente seria uma abelha atarefada”. Minha tradução.
[4] E talvez também seja necessário considerar que fossem outras as palavras em jogo, a maioria emprestada das terminologias patologizantes. Em 1914 Claude Cahun escreve um texto chamado “Les Jeux uraniens”. “Uranien” era uma espécie de terceiro sexo segundo os escritos do alemão Karl Urichs, já para Richard von Krafft-Ebing, em Psychopathia Sexualis, o uranismo era uma das quatro categorias dadas às lésbicas, caracterizadas pela rejeição de papeis femininos sociais, e por vestimentas e aparências masculinas.
[5] “Bem, então posso dizer-lhes que as palavras que li imediatamente a seguir foram: ‘Chloe gostava de Olivia…’ Não se espantem. Não enrubesçam. Vamos admitir, na privacidade de nossa própria sociedade, que essas coisas às vezes acontecem. Às vezes, as mulheres realmente gostam de mulheres. ‘Chloe gostava de Olivia’, li. E então ocorreu-me que imensa mudança havia ali. Chloe talvez gostasse de Olivia pela primeira vez na literatura”. Tradução de Vera Ribeiro.
[6] “O nosso cabelo ficou tão enovelado aquela noite que, naquela manhã – para acabar – as nossas cabeças tiveram que ser raspadas”. Minha tradução.
[7] As Ilhas do Canal foram o único território britânico ocupado pelos nazistas. Claude Cahun e Marcel Moore organizaram a sua resistência particular na pequena Ilha de Jersey: produziam panfletos, fazendo-se passar por um soldado alemão que assinava “O soldado sem nome”, convocando os militares à dissidência ou a insurgirem contra a empreitada nazista. Foram eventualmente pegas e presas em uma prisão em Jersey, estiveram presas por 10 meses, onde Cahun escreveu um diário.
[8] “Eu sou obcecada com a exceção”. Tradução minha.
[9] “Produtiva de maneira queer, a rocha não oferece a fecundidade fácil da terra, Gaia como mãe”. Minha tradução.