Resumo: Este texto se vincula, teoricamente e metodologicamente, à pesquisa intitulada “Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade”, que foi desenvolvida no plano da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo entre 2013 e 2015. Ao mesmo tempo, trata da análise de um corpus que não faz parte da referida pesquisa; aqui, utiliza-se a narrativa do videogame Silent Hill 2 (1999) como corpus para a análise do conceito de identidade cambiante em relação à alteridade (Hall, 2006). Conclui-se que, através da engenharia do jogo e da interação do jogador, enquanto condutor do protagonista da narrativa, constituem-se interações que cerceiam a construção de uma identidade para o personagem principal, James Sunderland.
Palavras-chave: Videogame; história cultural; identidade.
Abstract: This text is theoretically and methodologically linked to the research entitled “Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade” that was developed in the post-graduation Literature program of the Federal University of Espírito Santo between 2013 and 2015. It brings an analysis of a corpus that is not part of the main research; the focus of this paper is the narrative of the videogame Silent Hill 2 (1999) as a corpus for understanding the concept of changing identity in relation to the otherness (Hall, 2006). The conclusion is that, through the game engine and the player interaction – the player being the narrative protagonist – there is a constitution of interactions that restrict the construction of an identity for the main character, James Sunderland.
Keywords: Videogame; cultural history; identity.
Pesquisamos o objeto cultural videogame em interface com a literatura, num estudo multi/transdisciplinar, que trata da possibilidade de uma leitura do objeto videogame[1] enquanto materialidade de texto. A leitura desse texto se faz viável não pelo acesso a um livro, mas através do console do videogame, que emula um software pré-programado. Esses conceitos são suscitados e discutidos, na pesquisa em questão, através da leitura de referenciais teóricos do game studies como Aarseth (1997); Frasca (2002); Jenkins (2005); Juul (2005); Sicart (2011) e Tavinor (2009), no que diz respeito aos conceitos de videogame enquanto objeto de estudo. Nossa visão sobre o objeto aqui estudado também se dá através da leitura da história cultural, de acordo com a visão do estudioso Roger Chartier (1999, 2002, 2004a, 2004b, 2012), o que nos faz compreender o videogame tanto quanto um objeto que merece um olhar específico (no tocante à análise de seu texto) quanto como uma continuação, como evolução, que tem correspondência com os avanços tecnológicos pelos quais passam e passaram as mídias de transmissão de informação, de linguagem e de texto.
Na nossa leitura de Chartier, o objeto livro se dá a ler em todas as possibilidades que existem para sua apreensão através da sua materialidade, do seu papel, da maneira como foi editado, prensado, selecionado, pensado, qualificado: o livro envolve uma produção que passa por várias mãos e, na sua materialização, vemos um resultado que leva à leitura de toda uma história, de toda uma cultura. Esse material encerra leituras, engendra hábitos, transmite posturas. O leitor tem com esse material um relacionamento físico que é fruto de uma construção social, histórica e cultural. O livro não é um objeto natural, dado: ele é uma construção tanto subjetiva quanto física.
O videogame, como objeto que materializa um texto, uma mensagem, é configurado dentro de uma série de outros objetos culturais que transmitem mensagens e que foram tecnologicamente aprimorados, desde meios mais rudimentares de transmissão de dados e ideias até aqueles providos de camadas de sentido (sincréticos/policódices), como o filme e o videogame (Galey, et al, 2011, p. 39; Paiva, 2006; Bignotto, 1998). Essas aprimorações convergiram num único intuito: melhorar a transmissão de informações entre pessoas e essas novas formas, ou seja, essas novas materialidades encerram novas leituras. Ocorre que esses avanços tecnológicos não fazem com que esta ou aquela materialidade se supere, pelo contrário, livros, CDs de música, filmes em Blue-Ray e videogames de primeira e última geração convivem culturalmente na contemporaneidade.
A narrativa na qual uma tecnologia faz com que outra desapareça (pro bem ou mal dessa), não mais se sustenta nos estudos textuais contemporâneos; ao contrário, historiadores de livros como Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), e Adrian Johns (1998; e apud Grafton, Eisenstein, e Johns 2002), e historiadores de mídia como Lisa Gitelman (2006), tem nos levado a considerar como as tecnologias escritas se intercalam e se modificam, e como essas tecnologias estão implicadas em práticas de leitura que têm suas próprias histórias (Galey, et al., 2011, p. 39[2])[3].
Observemos o pensamento de Chartier ao falar, entre outros assuntos, dos textos eletrônicos:
Tratando-se de ordem do discurso, o mundo eletrônico cria uma tripla ruptura: ele provê uma nova técnica pra inscrever e disseminar a palavra escrita, ele inspira um novo relacionamento com os textos, e ele impõe uma nova forma de organização para esses textos (Chartier, 2004b, p. 142)[4].
Para Chartier, a leitura digital, pela primeira vez na história,
[…] combina a revolução do meio tecnológico de reprodução da palavra escrita (como a invenção da prensa móvel), a revolução na mídia da palavra escrita (como a revolução do codex), e uma revolução no uso e na percepção do texto (como em várias revoluções na leitura) (Chartier, 2004b, p. 142-143)[5].
Como já havíamos afirmado, novas leituras se originam de novos formatos, de novas configurações e de novas materialidades. Por isso,
As telas do presente não são apenas reprodução de imagens que precisam ser contrastadas com a cultura da palavra escrita. Elas, de fato, são reproduções da palavra escrita. Por isso, elas significam imagens, em ambas fixas ou móveis, sons, palavras ditas, e música, mas, acima de tudo, elas transmitem, multiplamente, talvez em um incontrolável excesso, a cultura escrita (Chartier, 2004b, p. 151)[6].
Com as exposições acima, posicionamo-nos diante do paradigma da apreciação dos jogos de videogame dentro do campo de estudos literários e, no caso do recorte deste texto em questão, os jogos de console. Sobre os estudos das narrativas, especialmente, houve dissenso entre pesquisadores entre as décadas de 1980 e 2000, já que nem todos os jogos podem ser considerados apenas ficções ou jogos. O jogo, como estrutura ergódica, permite experiências que se associam, encadeadamente, por desafios a serem superados: encontra-se uma chave para abrir um baú, abre-se o baú, encontra-se a porta, etc. Esses processos ergódicos são inseridos no código do jogo e, a partir deles, o jogo se desencadeia: se o jogador atingir as metas, ele consegue progredir; caso isso não ocorra, ele fracassa (Aarseth, 1997; Sicart, 2011). Certamente, esse é um processo vital na constituição do jogo e no seu estudo mas, ao mesmo tempo, Tavinor (2009) conclui que não há, possivelmente, ergodicidade sem ficção, já que a construção da sequência de ações que o jogador terá que resolver para obter o sucesso se sustenta dentro de uma ficção. Ou seja, mesmo que em escala bem simples, sempre há ficção e um fio narrativo através do qual o jogo se desenvolve. Portanto, apesar da dificuldade em se estabelecer limites e padrões para análises de jogos (em que se abarquem todos igualitariamente), Tavinor (2009) afirma que não é algo muito absurdo dizer que videogames são “entretenimentos digitais e visuais que empregam jogos num ambiente fictício” (Tavinor, 2009, p. 30)[7], ou, simplesmente, que os videogames são “jogos através da ficção” (Tavinor, 2009, p. 30)[8].
Dizendo isso, retomamos o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado em 2012, na Universidade Federal do Espírito Santo. No trabalho inicial, o corpus foi o jogo da Konami, Silent Hill 2, e a intenção foi perceber se era possível compreendê-lo como um objeto cultural para o estudo de leitura literária de um videogame. A pesquisa de então não se estruturou com base em referenciais teóricos com os quais contamos hoje e, por isso, tornou-se – de certa maneira – menor e até mesmo ultrapassada quando comparada à leitura que podemos fazer agora. No entanto, não descartamos a possibilidade do retorno ao objeto, utilizando como corpus as falas transcritas do jogo Silent Hill 2, além da narrativa apreendida pelo jogador e do manual do jogo para Playstation 2, que funciona como paratexto. É preciso que fique claro de antemão que, para uma análise mais apropriada e aprofundada, é imprescindível que se tome como parte do corpus todos os elementos que possam ampliar os critérios de leitura, como, por exemplo: os paratextos do jogo (manuais, capa), os indícios visuais, a trilha e os efeitos sonoros, assim como elementos físicos do manejo do controle e do impacto causado pela vibração do mesmo. Neste trabalho, opta-se pela análise da narrativa e das falas dos personagens pelo recorte em questão, que focaliza as interações entre os personagens como forma de estabelecimento de uma identidade para o personagem principal.
Após a exposição do referencial teórico que nos possibilita as aproximações dadas no estudo – de ordem multi/transdisciplinar: entre a literatura e o videogame –, desejamos ler, em diálogo com outros textos, a relação da alteridade enquanto auxiliar na construção da identidade do personagem James, em Silent Hill 2, que se configura num sujeito pós-moderno, segundo uma leitura de A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall (2006).
Silent Hill 2
A história de Silent Hill 2 é centrada em James Sunderland, que, depois de receber uma carta de sua esposa (Mary) morta, passa a procurá-la numa cidade. Na carta, Mary diz que está esperando-o no “lugar especial”, em Silent Hill. Tentando encontrá-la, percorre a cidade de Silent Hill enquanto cruza com monstros e pessoas que estão isoladas ali. É um jogo de Survival Horror produzido pela Konami e lançado em 2001. Horror de sobrevivência é um gênero que consiste, normalmente, num cenário de horror. O jogador precisa controlar um personagem para que este sobreviva, coletando itens, matando monstros etc.
Em artigo online publicado em 2014, na Eurogamer, Dan Whitehead explica por que esse jogo é ainda, depois de 13 anos, o jogo mais assustador já feito[9]. O artigo de 2015, de Andy Hartup, na Gamesradar, atesta os motivos pelos quais Silent Hill 2 é um dos 100 melhores jogos já feitos em todos os tempos. O sucesso de críticas em sítios da internet especializados como IGN[10] (90% de críticas positivas) se dá pela atmosfera do jogo e pela narrativa. Whitehead (2014) afirma em seu artigo que a manipulação provocada pelos designers do jogo funciona intimamente com o jogador, que mergulha na história de James, desejando saber mais sobre quem é aquele homem e se ele merece ou não um recomeço. Para Hartup (2015), o jogo se constitui como um mecanismo perfeito de narrativa e gameplay[11], já que o videogame parece ser a mídia que se ajustaria melhor, já que transmite ao jogador a história de maneira mais apropriada. É sobre esse aspecto que discorreremos na próxima sessão.
Uma identidade em construção
A narrativa começa com James se olhando num espelho de um banheiro sujo. No artigo “Shadowplay: simulated illumination in game worlds”, Simon Niedenthal (2005) pensa que a cena do espelho sinaliza e se relaciona com o recebimento da carta. Para o autor, o fato do personagem se olhar no espelho, logo no início, já denota que James é um protagonista de personalidade ambígua. Conforme o jogo se desenrola, a audiência é chamada a especular sobre as reais motivações do personagem e de sua participação na morte da mulher, já que a trama se complica e James parece não saber de todas as respostas – o que deixa o jogador apreensivo sobre se deve acreditar ou não no personagem que está controlando.
Do ponto de vista do gameplay, o objetivo do jogo (ou a sequência de vários elementos ergódicos que foram inseridos no código e que são postos em funcionamento conforme o jogo é rodado no console) vai mudando conforme a audiência prossegue na história. Primeiro, tenta-se reencontrar a esposa e saber de sua morte – se é real ou não; posteriormente, o protagonista se torna duvidoso e deseja entender quem ele realmente é e o que aconteceu com Mary. O jogador fica confuso com o personagem principal e com seus objetivos, e, na incerteza de se conseguirá atingir os fins propostos inicialmente (encontrar Mary), deseja apenas entender a verdade.
Ainda do ponto de vista do gameplay, ou seja, tendo a experiência de jogo como ponto de partida, entendemos a importância da verificação e da manutenção da identidade do personagem, partindo dos pressupostos já levantados por Henry Jenkins (2005) e Miguel Sicart (2011). Tomando o pensamento de Jenkins (2005) como norteador, observamos que ao narrar a sua experiência em jogo, o jogador assume a personagem e, por isso, pensa-se que o personagem do jogo é a chave de entrada do jogador nesse mundo ficcional (o personagem do jogo é um avatar para a entrada do jogador no mundo ficcional do jogo). Essa resposta emocional vem não da identificação[12] (por parte do jogador) com o personagem e com a qualidade gráfica do mesmo, em semelhança com o real, mas da relação com a facilidade que o jogador tem pra controlar o comportamento desse personagem no mundo ficcional.
Entendemos que a produção desse mundo fictício se dá numa pré-programação e que, por meio dela, assim como dito por Miguel Sicart (2011), o programador, através do código[13], transmite questões morais – o programador, nesse caso, é visto na perspectiva histórico-cultural de Roger Chartier[14] e não seria o único responsável pelo produto software do videogame Silent Hill 2, mas sim toda uma série de processos e de profissionais que o permeiam, configuram e se ensejam no jogo.
Questões morais não estão inseridas apenas em jogos de videogame, mas, para Sicart (2011), embora a ficção sempre tenha possibilitado reflexões sobre a moralidade, é com a interatividade promovida pelo videogame e pelo jogador, ao tomar parte na narrativa como um personagem, que essas questões se tornam mais intensas. É por meio das restrições implicadas pelo jogo que a audiência se insere no universo ficcional e, dessa forma, interage com ele no papel do personagem protagonista.
Quando está inserida nesse processo, a audiência constrói, com o decorrer do jogo e com as informações por ele transmitidas, uma identidade para o protagonista e para si, diante dele. E, como vemos a identidade sob a ótica de Stuart Hall (2006) – algo cambiante e móvel que se constrói a partir de experiências com os outros e com os acontecimentos –, percebemos que a identidade do personagem James Sunderland é construída num processo de descobrimento, no qual a audiência toma parte e em diálogo com todos os personagens que interagem com ele na narrativa.
James Sunderland se configura nesse processo e emerge como identidade, fragmentado e contraditório, assim problemático e em deslocamento. E essa visão de Hall (2006) do sujeito pós-moderno nos auxilia justamente na compreensão de um sujeito que narra uma história que é a própria narrativa, ou seja, a narrativa do eu. A princípio, James tenta se imbricar numa história de si mesmo que seja razoável e crível. Com o tempo, sua empreitada, inicialmente apenas ambígua, assume ares contraditórios. Ao final, depois de ser confrontado, o protagonista não tem mais certezas sobre sua credibilidade. Isto ocorre na narrativa já que James inicia o jogo como o protagonista viúvo que deseja reencontrar sua esposa Mary, mas ela já está morta. Confuso (assim como a audiência), James percorre a cidade em busca do que seria o “lugar especial” da esposa – o lago? O parque? O hotel? Enquanto tenta encontrar a esposa nos lugares pelos quais passa, ele é confrontado por suas meias-verdades: “Por que você está procurando por ela já que ela está morta?” James não parece se lembrar ao certo quanto tempo faz que Mary morreu, apenas se lembra de que ela já estava doente há muito tempo. Com o confronto de outras pessoas – e apenas graças a isso – James consegue perceber que foi o causador da morte da esposa, fato que ele procurava negar e esquecer depois do ato.
Esse jogo que se dá na tentativa de criar uma história que permeie uma personalidade plena nos faz lembrar de novo Stuart Hall, quando diz que, na tentativa de estabelecermos uma identidade una, tentamos inventar uma narrativa confortável do nosso eu (Hall, 2006, p. 13). Essa ideia de uma identidade plena, coerente e una é, na realidade, segundo Hall, uma fantasia. Essa fantasia da identidade unificada se parte diante do espelho, no reconhecimento da identidade entre o eu e o outro, porque essa identidade também se constrói com o olhar do outro (p. 37). “Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’” (p. 38).
Essa construção, no jogo Silent Hill 2, porém, não nos parece algo que acontece de maneira direta. De acordo com Yong-Hee Seong e Jung Hwan Kim, em “A psychoanalysis of the horror game ‘Silent Hill 2’” (2006), Silent Hill 2 não é um jogo que oferece desafios simples, ao contrário, submete a audiência a um estado mental complexo – o uso da câmera sempre sem um plano mais longo faz com que o jogador não tenha uma visão ampla e clara dos acontecimentos, o que faz com que se tenha uma sensação de paranoia constante. Além disso, os save points, lugares onde o jogador pode parar o jogo salvando seu progresso, são espaçados e causam sensação de angústia constante. Para Daniel do Amaral Denardi, em sua dissertação de mestrado “Considerações sobre alucinação no jogo eletrônico ‘Silent Hill 2’: da plataforma Pc num viés semiótico-psicanalítico” (2010), James vive num estado onírico, mas que lhe parece real. Para o autor, o jogador preenche um espaço que lhe é devido, assim como o faz o leitor e a audiência de um filme, para que possa decodificar tudo aquilo que é deixado como simbólico na narrativa e na persona do protagonista, por exemplo, do jogo Silent Hill 2 (Denardi, 2010, p. 58). Assim, posteriormente e após discorrer sobre o jogo e o referencial teórico, Denardi afirma que “o game, assim como o filme, representaria, assim, uma expressão cultural de uma realização de desejo consciente, ou seja, um tipo de pulsão que já foi elaborada de forma que pôde ser concebida conscientemente” (2010, p. 83).
O problema do jogo Silent Hill 2, assim pontuado por Ewan Kirkland em “Masculinity in video games: the gendered gameplay of Silent Hill” (2009), é constituído no próprio processo narrativo, porque ele se dá através da fala do protagonista. James tenta constituir sua identidade por meio do discurso, da narrativa de sua história. Porém, através da interação com outras vozes, James perde a autoridade sobre a verdade da narrativa. No começo, James é um devotado viúvo que, ao receber a carta da esposa falecida, empenha-se em buscá-la para um reencontro. Veja como o personagem se configura, a respeito do trecho abaixo – a primeira fala de James pós ler a carta de Mary, a primeira cena do jogo. A sequência se inicia com James olhando através do espelho, sua própria imagem, posteriormente saindo do banheiro público. Ouvimos os pensamentos de James em voz alta:
James: Eu recebi uma carta.
O nome no envelope diz: Maria.
O nome da minha esposa…
É ridículo, não poderia ser verdade…
Isso é o que eu continuo dizendo a mim mesmo…
Uma pessoa morta não pode escrever uma carta.
Mary morreu dessa maldita doença há três anos.
Então por que eu estou procurando por ela?
O nosso “lugar especial”…
O que ela quer dizer?
Toda essa cidade era o nosso lugar especial.
Será que ela quis dizer o parque no lago?
Passamos o dia inteiro lá.
Apenas nós dois, olhando para a água.
Mary poderia realmente estar lá?
Ela está realmente viva… Esperando por mim?
Aqui, parece-nos que o protagonista tem certa esperança em rever a esposa, expressa carinho ao relembrar o passado. Essa fala, porém, já indica um receio ou dúvida, expressado pela pergunta na última linha. Ele está viúvo há três anos e Mary morreu vítima de uma doença. Nota-se pelo uso da palavra “maldita”, relacionada à doença, que James lamenta essa morte.
Com a progressão da história, James se transmuta em um narrador não confiável. Assim, como posto por Kirkland (2009), por repetidas vezes James é interpelado por pistas de sua ligação com a morte de Mary, supostamente causada por uma doença terminal. Não nos atendo aqui à discussão sobre a moralidade dos atos de James – pertinente à Kirkland e à discussão, também feita por ele, sobre questões raciais ou de gênero (Kirkland, 2010) –, pensamos na construção dessa identidade que, inicialmente, era a de um homem que estava “definhando em dias vazios e sem vida de luto” (Konami, 2001, p. 11), antes de receber a carta da esposa, de acordo com o manual do jogo. Posteriormente, torna-se culpado por um assassinato que nem lembrava ou julgava existir.
Essas questões sobre a verdade de James vão sendo construídas e problematizadas à medida que o jogador vivencia a narrativa. Durante o jogo, o protagonista é levado a refletir sobre suas próprias falas e ações, com questionamentos levantados pelos personagens Angela Orosco, Maria, Laura e Eddie Dombrowski.
Antes de sair de um dos apartamentos do condomínio Blue Creek, James encontra uma menina de oito anos. Ela o atrapalha enquanto ele tenta pegar uma chave que está do outro lado de uma grade. Quando voltam a se reencontrar, eles conversam:
James: Foi você, não foi? Você é a menina que pisou na minha mão.
Menina: Eu não sei… Talvez eu seja…
James: O que uma menina como você está fazendo aqui?
Menina: Huh? Você é cego ou algo assim?
James: O que é essa carta?
Menina: Não é da sua conta.
Menina: Você não amava Mary mesmo!
James: Espere! Como você sabe o nome da Mary?
Novamente, e através da leitura do jogador, percebe-se que James é questionado sobre seus reais sentimentos em relação à sua esposa falecida. Se o jogo é motivado por um desejo do personagem principal de reencontrar sua esposa falecida (e há sofrimento pela perda), informações como essas trazidas pela menina (“Você não amava Mary mesmo!”) fazem com que haja um conflito entre o que era dito como verdade pelo protagonista e o que está sendo informado por outros personagens. De início, pode ser que as dúvidas não persistam e que os personagens, assim como a menina (que tenta atrapalhá-lo e que, por isso, pode ser mal vista pelo jogador) sejam desacreditados – mas o que ocorre é a persistência desses indícios. Por exemplo, adiante, quando James reencontra a menina que se chama Laura, eles têm uma nova discussão. Nesse momento, eles já estão no hospital, no quarto C2. Novamente, a identidade de James é colocada em questão, porque a menina diz que conheceu Mary há um ano, ao passo que James acredita que sua esposa está morta há três:
James: Laura?
Laura: Huh? Você sabe o meu nome?
James: Eddie me disse.
Laura: Que grande gordo fofoqueiro.
James: Como é que você sabe sobre Mary?
Laura: E daí?
James: Por que você não pode me dizer?
Laura: Você vai gritar comigo se eu não disser?
James: Não… Eu não vou.
Laura: Eu era amiga de Mary… Nós nos conhecemos no hospital. Foi no ano passado…
James: Sua mentirosa! Laura, eu…
Laura: Tudo bem! Não acredite em mim!
James: Mas no ano passado, Mary já estava… Sinto muito Laura. De qualquer forma, vamos embora.
James não consegue argumentar com Laura e se exaspera. Percebe-se que a verdade do personagem é confrontada e que, na impossibilidade da manutenção de uma narrativa que consiga assegurar esse eu uno, o personagem se descontrola.
Pouco antes de chegar ao hotel onde James acredita que possa encontrar Mary, ele encontra Angela sendo atacada por um monstro. Depois de matar o monstro, ele é interpelado por Angela, que o acusa:
James: Angela! Relaxa!
Angela: Não me dê ordens!
James: Eu não estou tentando te dar ordens.
Angela: Então o que você quer? Oh, eu entendi, você está tentando ser bom para mim, certo? Eu sei o que você está fazendo. É sempre a mesma coisa. Você só está atrás de uma coisa.
James: Não, isso não é verdade.
Angela: Você não tem que mentir. Vá em frente e diga. Ou você poderia apenas me forçar. Bata-me como sempre fez. Você só pensa em si mesmo de qualquer maneira. Seu porco nojento.
James: Angela…
Angela: Não me toque! Você me dá nojo! Você disse que sua esposa Mary estava morta, certo?
James: Sim, ela estava doente…
Angela: Mentiroso! Eu sei sobre você… Você não queria mais que ela estivesse por ali. Você provavelmente encontrou outra pessoa.
James: Isso é ridículo… Eu nunca…
Novamente, James não consegue responder a Angela de maneira segura, fazendo com que seu discurso mude. Essas falas estão interpelando-o e trazendo rupturas na personalidade e na narrativa que era plausível a James.
Finalmente, James chega ao quarto 312 do Lakeview Hotel, o “lugar especial” onde o casal ficou durante as férias. Ele havia encontrado uma fita cassete enquanto procurava por Laura e, no quarto, quando a coloca no aparelho de vídeo cassete e assiste à gravação, o personagem se vê sufocando Mary com um travesseiro. Quando Laura aparece no quarto, James ainda está sentado na poltrona, em frente à televisão. Este é o momento em que se descobre toda a verdade, quando a personalidade de James vem à tona:
Laura: Então você está aí, James. Você recebeu a carta? Achou Mary? Se não, vamos começar a procurar já. Ok?
James: Mary se foi. Ela está morta.
Laura: Mentiroso! Isso é uma mentira!
James: Não, isso não é verdade…
Laura: Ela… ela morreu porque ela estava doente?
James: Não. Eu a matei.
Laura: Você é um assassino! Por que você fez isso?! Eu te odeio! Eu a quero de volta! Me devolva-a! Eu sabia! Você não se importava com ela! Eu odeio você, James! Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio! Ela estava sempre esperando por você… por que?… Por que?…
James: Eu sinto muito…
O que James sente por Mary muda durante a história, ou pelo menos o que se lê através da sua narrativa. No começo, ele deseja saber se ela está viva ou não, e se está esperando-o. James sabe que é absurdo tentar encontrar uma pessoa morta e tenta se organizar em torno de afirmações sobre si mesmo, dizendo às pessoas que não está louco. Além disso, ele parece uma pessoa de bem quando tenta ajudar os outros personagens que cruzam com ele durante a narrativa, como Laura, Angela e Eddie. A única forma, porém, de chegar à verdade sobre a morte de Mary e sobre a identidade de James é pelo confronto com outras vozes. James só consegue se colocar em dúvida quando confrontado, não com fatos, mas com outras narrativas.
Através desse processo de construção de identidade, ou seja, da passagem da identidade “viúvo em luto” para a de “perpetrador da própria esposa” é que o jogo chega ao desenlace. Dessa maneira, o papel da audiência é levar o protagonista através do percurso que alterará sua identidade, que só será problematizada em contato com o outro, com outras vozes, com outras narrativas. Percebe-se, com a narrativa do jogo, que a consciência de si e dos atos se dá num processo dialógico, de construção com o outro, e em relação à alteridade, sendo, nesse caso, o jogador o responsável pela condução dos fatos.
Algumas considerações
Percebemos que o estudo da narrativa de um videogame como o Silent Hill 2 do ponto de vista do gameplay, ou seja, do jogador como aquele que revela a história, nos ajuda a compreender as relações que o designer do jogo projetou para que os jogadores interagissem, bem como o olhar do jogador em relação ao que está lendo no videogame. Transitar do papel de vítima para o de algoz pode, possivelmente, acontecer numa dinâmica dialógica na vida real, quando nossos próprios discursos são confrontados com os dos outros. A mecânica (o código, os elementos ergódicos, a narrativa imbricada no processo) do jogo Silent Hill 2 é projetada para que sua narrativa, contada aos pedaços e dúbia, possa ser interpretada e que o papel principal possa ser atuado pelo jogador. A história já está definida antes mesmo de o jogador ligar o console e rodar o DVD, assim como estão definidos os quatro finais possíveis, mas o sentido do texto narrado será atualizado todas as vezes que o jogador jogar o game.
Ainda vale ressaltar a importância da participação do jogador como aquele que, no papel de James Sunderland, vai desvendar a verdade e condenar, ou não, o protagonista. No jogo, os assassinos são postos frente a frente com a audiência, então cabe a esta pensar sobre as identidades ficcionais às quais ouviu: terão elas razão? No momento em que desliga o videogame, o jogador assume finalmente o outro lado do diálogo estabelecido com o protagonista, a fim de refletir as suas ações assim como as ações tomadas por James Sunderland, o personagem ficcional que conduz o jogador durante a narrativa. O que fazer com essas vozes assassinas culpadas é o que concerne à audiência: o que James merece, ao final do jogo? A brecha para o “final feliz” (ou para a interpretação dos atos de James) pode acontecer em possíveis finais: caso deseje, pode-se assumir a culpa de James e suicidar-se, entrando no lago com o carro (isso é possível caso o jogador olhe constantemente a faca de Angela, que James pega para tentar impedi-la de cometer um suicídio); é possível que James também assuma que fez o melhor que pôde para Mary e que, por isso, deve prosseguir com sua vida e ficar com uma outra mulher – muito parecida com ela, chamada Maria, e que parece ter desenvolvido uma tosse persistente. Por outro lado, Mary também pode perdoar James e deixar que ele vá viver a vida sendo um pai para Laura. Caso James sobreviva, ele aparece – com Laura ou Maria – caminhando num cemitério sombrio e cheio de névoa. É como se fosse um indício do delírio, apontado por Denardi (2010), de que James faz parte: não há saídas ou redenção.
* Adriana Falqueto Lemos é graduada em Letras-Inglês (2012), mestre (2015) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora da Secretaria de Estado da Educação (ES) e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). Integrante do Grupo do Núcleo de Estudos Literários e Musicológicos da UFES.
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Notas
[1] Podendo este termo (que pode ser cunhado em separado, video game, ou eletronic game, jogo eletrônico, jogo de computador) ser aplicado a qualquer jogo para console, computador ou celular – assim, qualquer plataforma.
[2] Todas as traduções contidas neste artigo são de nossa responsabilidade, salvo indicação explícita.
[3] The narrative in which one technology drives out another (for better or worse) no longer holds much force in contemporary textual studies; rather, book historians like Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), and Adrian Johns (1998; and in Grafton, Eisenstein, and Johns 2002), and media historians like Lisa Gitelman (2006), have prompted us to consider how writing technologies overlap and change each other, and how those technologies are implicated in reading practices that have their own histories.
[4] Regarding the order of discourse, the electronic world thus creates a triple rupture: it provides a new technique for inscribing and disseminating the written word, it inspires a new relationship with texts, and it imposes a new form of organization on texts.
[5] […] combines a revolution in the technical means for reproducing the written word (as did the invention of the printing press), a revolution in the medium of the written word (like the revolution of the codex), and a revolution in the use of and the perception of texts (as in the various revolutions in reading).
[6] The screens of the present are not screens of images that are to be contrasted to the culture of the written word. They are in fact screens of the written word. Granted, they convey images, both fixed and moving, sounds, spoken words, and music, but above all they transmit, multiply, perhaps in an uncontrollable excess, the written culture.
[7] Digital visual entertainments that employ games in a fictive setting (grifos do autor).
[8] Games through fiction (grifos do autor).
[9] WHITEHEAD, Dan. Why Silent Hill 2 is still the most disturbing game ever made. Eurogamer, 17/08/2014. Disponível em <http://www.eurogamer.net/articles/2014-08-17-why-silent-hill-2-is-still-the-most-disturbing-game-ever-made> . Acesso em: 20 de dez. de 2015.
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[10] Silent Hill 2 Review, IGN, Disponível em: <http://www.ign.com/games/silent-hill-2/ps2-14904>. Acesso em: 20 de dez. de 2015.
[11] Gameplay se refere ao jogar o jogo, ou seja, é o jogo em movimento, tendo o jogador como participante ativo para que os acontecimentos se desenrolem.
[12] Identificação esta que não é simplesmente objetiva, do ponto de vista de reconhecer-se como aquele que controla a ação; mas identificação pessoal subjetiva, no sentido de relacionar-se com o protagonista, entendê-lo, desejar “ajudá-lo”, desejar conhecer sua história e resolver seus problemas etc.
[13] A questão de código relaciona-se com a questão ergódica, neste caso. Não há narrativa sem elementos ergódicos para que esta desenrole em desafios e sucessos. Também não há elemento ergódico sem narrativa, já que os elementos se encadeiam em sequência. O código apresenta o conjunto de dados que farão o jogo ser “materializado” quando este é rodado no console; as imagens, cenas, sons e efeitos vibratórios estão todos inseridos no código programado que será posto em funcionamento com a interação do jogador. Há participação de vários agentes na produção do jogo, mas, em última instância, é o código que é ativado no processo de participação e interação do jogador, sendo, portanto, o elemento que une elementos distintos (ergodicidade, narrativa, design etc.) e gera o gameplay, ou seja, a experiência em interface com o jogador.
[14] Roger Chartier (2002) utiliza-se, por exemplo, de materialidades como os livros para tecer conceitos sobre a autoria de objetos culturais (normalmente vistos como tendo autoria única, mas que são produções de muitas mãos, como editores, tipógrafos, ilustradores etc.), mas ele atualiza seus conceitos em pesquisas mais recentes que abordam textos em formatos digitais (2004b).
Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.