Ano XIV 01
dossiê
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A ORAÇÃO DO CARRASCO, O “PESSOAL MESMO” E O “OUTRO DA RAZÃO”

Resumo: A partir do que Gomes defende tratar-se “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510), proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às diversas expressões identitárias, através dos contos do livro A oração do carrasco (2017). Em seu universo ficcional, o autor baiano Itamar Vieira Junior – recém-laureado com o Prêmio LeYa de Portugal com o seu primeiro romance, Torto arado (2019) –, evoca uma complexa rede de questões humanitárias que afeta intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, neste momento, de contemporaneidade. Esta escrita, portanto, se configura como um aprendizado, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, com os quais fui, sou confrontada e afetada diariamente. E por que não dizer, agora mais que nunca.

Palavras-chave: A oração do carrasco; intelectuais negras e negros; expressões identitárias.

Abstract: Considering what Gomes advocates as being “a semantic struggle in the interior of science itself – “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510) –, my aim with this writing is to entail interlocutions based on issues raised by black female and male intelectuals in their writing output, towards the diversity of cultural identities expressed in the book A oração do carrasco (2017). In his short stories fictional environment, the baiano writer Itamar Vieira Junior, who won recently the literary award LeYa (Portugal) for his first novel Torto arado (2019), brings to the contemporary debate a complex networking of human rights issues, which has been affecting Human Sciences thinkers since remote times. Therefore, this writing should function in terms of an awakening, a learning expecience, an attempt of achieving a greater awareness of some other knowledges and epistemologies, which I have been confronted with and daily affected by in the today-world, more than ever.

Keywords: A oração do carrasco; black female and male intelectuals; diversity of cultural identities.

Sobre esta escrita. De outras e outros

Entre outros tantos trabalhos e os desafios inerentes a cada um pessoal – e academicamente falando –, esta escrita resulta como avaliação final do componente curricular “Expressões Identitárias”, ministrado pela professora Dra. Florentina Souza do programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período compreendido entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018. Segundo orientações da própria professora o ensaio deve debruçar-se sobre “textos/obras de um escritor/a negro/a que se reporte a questões identitárias”.

Ainda sobre o tema, a professora reforçou que a este deve ser acrescido de “uma introdução com uma discussão sobre intelectual negro/a que será seguida da análise crítica do texto/obra selecionado que acione os textos das referências do curso” e que “a parte introdutória do trabalho discuta as proposições a respeito de intelectualidades negras apresentadas nos textos de West, hooks e Gomes”.

Assim sendo, proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às expressões identitárias, a partir dos contos do livro “A oração do carrasco” (2017), do escritor negro baiano Itamar Vieira Junior.

Conforme Gomes (2010), a atuação acadêmica e política dos intelectuais negros, além de problematizar e tensionar questões pertinentes ao próprio campo científico, amplia o debate contemplando outras produções de saberes. Em outras palavras, ao problematizarem especificidades do debate étnico-racial, esses intelectuais comprometidos com sua luta, põem em pauta outras questões, a saber, de gênero, de sexualidade, de práticas religiosas, de idade, da relação campo/cidade, por exemplo (Gomes, 2010, p. 509-510).

É nesse sentido que busco aqui articular, sobretudo numa dimensão ética e estética, a relação da produção intelectual negra com as diversas alteridades que, violentamente invisibilizadas pelos mecanismos do poder hegemônico branco, reinam com dor e vigor nos contos de Itamar. Embora seja esse, digamos, o mote deste trabalho, gostaria de iniciar essa introdução, portanto, me valendo da conduta da própria professora que nos assinalou essa tarefa, por ser ela mesma um exemplo daquilo que nos propôs. Já me utilizando da discussão empreendida por bell hooks sobre o que seria uma intelectual negra em seu ensaio “Intelectuais negras” (1995), testemunho, como aluna do acima mencionado componente curricular, que Florentina Souza é, ela própria, uma professora negra e uma intelectual negra. Professora ou docente, pois este é o cargo que ocupa na academia, com a recente conquista do mais alto grau da carreira acadêmica, o título de professora titular, com atuações nos vários setores da Universidade Federal da Bahia, notadamente nos cursos da graduação e pós-graduação do Instituto de Letras (Ilufba). Intelectual orgânica (nos termos gramscianos, eu diria), pela forma engajada e academicamente sólida com que exerce seu ativismo lutando, dentro e para além dos muros da academia, em defesa das causas que afligem quotidianamente a população negra, sobretudo a brasileira, com destaque para a comunidade mais próxima ao seu local de fala, o Estado da Bahia, e em particular a cidade de Salvador.

Florentina é incontestavelmente uma mulher negra, pelo que deixa ver como pele e como postura de vida, seja nas delícias e/ou nas dores da vida pessoal e intelectual. Em sala de aula discutiu e debateu com argúcia e sabedoria a complexidade da intelectualidade de negras e negros por meio de textos seminais, bem como do “outro da razão”, para empregar o termo de Castro-Gómez, utilizado por Gomes para se referir aos “diferentes”, quais sejam, o louco, o índio, o negro, o desadaptado, o preso, o homossexual, o indigente (2010, p. 502-503). Dentre as diversas expressões identitárias, a questão da mulher negra e o exercício de sua intelectualidade ganhou vulto durante as discussões, fosse através da militância da própria professora ou das falas engajadas do número expressivo – digo expressivo para aquele contexto específico de sala de aula – de alunas negras que participavam ativamente dos debates, numa interpolação de seus conhecimentos teóricos com aqueles de suas subjetividades, vivências dolorosas e/ou potentes, cravadas e carregadas na negritude de suas peles.

Diante desse último aspecto, ou seja, a condição de mulher negra intelectual, considero oportuno trazer novamente a voz de hooks, a qual critica a negligência de Cornel West em seu ensaio “O dilema do intelectual negro” (1999), em não dar visibilidade ao trabalho intelectual da mulher negra em um momento histórico de grande efervescência  das discussões de gênero à época. Quanto a isso, ela se manifesta:

Quando eruditos negros escrevem sobre a vida intelectual negra em geral, só focalizam as vidas e obras de homens. […] Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras críticas e teóricas na vida negra em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mestres quase sempre invoca imagens masculinas (hooks, 1995, p. 466-467).

No que tange aos modelos epistemológicos discutidos por West no ensaio acima citado – os modelos burguês, marxista, foucaultiano e o insurgente –, hooks exalta este último como alternativa futura para a prática intelectual no ativismo afro-americano. O modelo insurgente define como prioridade “a criação ou a reativação das redes institucionais que promovam hábitos críticos de alta qualidade para propósitos, primeiramente de insurgência negra” (West, 1999, p. 13). Entretanto, na ampliação do debate, hooks enfatiza que tal modelo deve, não só, mas sobretudo, abranger também intelectuais negras e negros que estejam à margem da academia (hooks, 1995, p. 475). Dando prosseguimento ao seu pensamento insurgente, West defende que os intelectuais negros (assim mesmo, relativo aos homens) pós-modernos têm como tarefa central promover o deslocamento do poder sobre o conhecimento através de práticas discursivas outras, que não as dominantes: “Isso pode ser feito somente por um trabalho intelectual intenso e por uma prática insurgente e engajada” conclui ele. (West, 1999, p. 13).

Voltando à nossa realidade acadêmica na UFBA, combativamente ao lado da professora Florentina, destaco também o ativismo, a militância e a liderança da professora doutora e intelectual negra Denise Carrascosa, na luta em dar visibilidade e disseminar o trabalho de possíveis intelectuais negros e, sobretudo, negras dentro e fora da academia. A convivência com ambas na condição de aluna este semestre e com minhas/meus colegas negras/os me fez entrar em contato com minhas pontuais ignorâncias e a me aproximar de um universo de escritas literárias e não literárias de intelectuais e/ou escritoras/es negras ou negros. Para situar algumas e alguns “vivos e bulindo” próximos, cito a escritora e doutoranda Cidinha Silva, a professora doutora Lívia Natália e a tradutora e doutoranda Luciana Reis, que se destacam, respectivamente, não apenas, mas sobretudo, no campo da crônica (do tipo denúncia, ouso dizer), da poesia e nos estudos de tradução afrodiaspóricas. Entre os negros intelectuais, tive o prazer de ouvir em diferentes ocasiões, Dr. Samuel Vida, jurista e professor da UFBA, Dr. Eduardo Oliveira, filósofo e professor da UFBA e Itamar Vieira Júnior, escritor e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, pela mesma instituição.

Posso afirmar que suas contribuições, sejam de natureza epistemológica e/ou artística, rasuram[1] o conhecimento monolítico naturalizado, dito neutro e objetivo, e o desloca para o campo das subjetividades, da diversidade epistêmica, na luta pela construção de novos saberes e práticas mais justas e dignas de coexistência entre as diversas expressões identitárias.

Nesse processo de estabelecer diálogos possíveis entre as diferenças, Gomes (2010) apoia-se no pensamento de Santos e propõe sua “ecologia de saberes” como um caminho a ser trilhado. A ecologia dos saberes, nos termos de Santos, é um conjunto de epistemologias contra-hegemônicas, cujos pressupostos baseiam-se na diversidade e na busca por legitimação dessa diversidade epistemológica no campo científico. Gomes destaca seu caráter incompleto, contextual, portanto, investido (não-neutro) politicamente, socialmente e culturalmente falando (2010, p. 493).

Diante do exposto, concluo esta introdução oportunamente, ressaltando a ênfase dada sobretudo por parte de minhas professoras intelectuais negras em suas práticas, no sentido da não hierarquização de epistemes e a atenção para com sua potencial hegemonia. Segundo Gomes, o engajamento do intelectual negro brasileiro, dentro e fora do campo científico, deve “ampliar ao máximo a inconsistência das análises sobre a identidade negra, inclusive aquelas que são produzidas pelos próprios intelectuais negros” (2010, p. 514). Pelo que ela conclui, em seguida, esse deve ser o maior desafio encarado pelas intelectuais negras e negros, na busca por compreender a complexa rede que emaranha identidades e diferenças nos diversos grupos étnico-raciais.

Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Fonte: foto da autora

Sobre alguns desafios. De mim

E eu, quem sou? A qual desafio me refiro em relação a este trabalho? Sou paraibana de Campina Grande, crescida em João Pessoa, nordestina portanto, a terceira filha de um total de seis, sendo uma irmã e quatro irmãos, a primeira menina depois de dois meninos, de um casal modesto. Ela, a mãe, cultivada para ser dona de casa, oriunda de mais uma família campinense, estudou até o ginásio. Ele, o pai, desterritorializado da área rural do município de Sapé, formado como técnico em Contabilidade na capital. De ambos herdei, entre outros traços, a pele ostensivamente não negra.

Traduzindo o desafio, a partir do que aqui coloco e como me coloco, ressalto dois movimentos:

– Reside nesse privilégio histórico e social, de ter nascido branca temperada em uma sociedade patriarcal e racista, o desafio de tratar de questões étnico-raciais que me dizem respeito, que nos dizem respeito, porém que não me atravessaram a pele via fenótipo negro;

– Reside na desvantagem histórica e social de ser mulher e nordestina, a vantagem de poder me aproximar um pouco de alguns lugares de exclusão, ainda que ciente esteja de que ser uma mulher de pele branca e que teve acesso à educação formal, já se trata de um grande privilégio nesse país – o que não deveria.

No entanto, reside também, em algum espaço entre esses dois movimentos, a convicção de que, apesar de ocupar este lugar no mundo, podemos tratar da tarefa à qual nos foi designada com este trabalho, qual seja, debruçar-se sobre questões identitárias através do pensamento intelectual negro. Não que isso tenha sido inviabilizado ou desencorajado nos nossos encontros em sala de aula. Pelo contrário. No entanto, havia uma tônica sobre o lugar de fala que nos punha em um lugar de constante reflexão e vigilância, que vinha das falas teóricas e dos testemunhos vivenciais de nossos colegas e professoras e que, às vezes, por que não dizer, nos punham sob suspeita, uma vez que a experiência de estar no mundo de parte de nós não era atravessada pela cor da pele negra ou por outras questões identitárias, outras subjetividades e sociabilidades, que afetavam mais diretamente uns que outros.

É exatamente por ocupar esse espaço de privilégio e pela oportunidade que tive junto às minhas/meus colegas e professoras de tensionar conflitos que cercam as questões identitárias, que senti a necessidade de expor com honestidade a minha condição. Pensando nisso, me reporto agora aos instrumentais metodológicos e nas categorias de análise de tradição ocidental, enfrentadas pelos negros e, sobretudo pelas negras, no exercício de sua intelectualidade.

Gomes afirma tratar-se, portanto, “de uma luta semântica no interior da própria ciência”, pois o desafio é fomentar uma produção de conhecimento protagonizada pela/o negra/o, e não sobre ela/ele (p. 510). Trata-se, portanto, da mudança de paradigma que é deixar de ser objeto e passar a ser o sujeito de sua própria produção intelectual.

Todas as acadêmicas e acadêmicos aqui citados perseguem o mesmo objetivo de problematizar o espaço de produção acadêmica, deslocando-o do seu eixo hegemônico de conhecimento e saberes da branquitude, a fim de viabilizar a ressemantização de discursos que promovam lugares para as diferentes identidades e a circulação de seus saberes, culturas, conhecimentos, estéticas. Sobre isso, Gomes reúne os seguintes questionamentos:

[…] quais são as possibilidades e perspectivas reais da universidade, enquanto espaço acadêmico, vir a desempenhar o papel de instituição capaz de articular os saberes oriundos e outras tradições e universos sociorraciais, sem hierarquias e discriminações (Abib, 2005)? A universidade e sua estrutura organizacional, curricular e de poder nos permite isso? Ela é capaz de se redefinir por dentro? (2010, p. 511).

É em meio a essas considerações até aqui feitas que esta escrita se configura como um aprendizado, um exercício, que tem como ponto de partida o reconhecimento de minhas limitações, de minhas ignorâncias, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, os quais não me atravessam diretamente, porém, com os quais fui e sou confrontada e afetada diariamente.  E, por que não dizer, agora mais do que nunca.

Isso posto, é a partir desses movimentos, ora como quem se encontra meio dentro estando fora e/ou ora meio fora estando dentro, que busco articular as reflexões feitas por intelectuais negras e negros aqui mencionados a partir dos contos que compõem o livro A oração do carrasco (2017), do escritor baiano Itamar Vieira Junior.

A oração do carrasco e as expressões identitárias

O escritor Itamar Vieira Júnior, nascido em 1979 na cidade de Salvador, Bahia, é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Seu livro A oração do carrasco foi selecionado pelo edital de Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) 2016, além de ter recebido menção honrosa no edital de Criação Literária em São Bernardo do Campo, São Paulo. O livro é composto por sete contos, obedecendo à seguinte ordem: “Alma”, “A floresta do adeus”, “A oração do carrasco”, “O espírito aboni das coisas”, “Meu mar (Fé)”, “Doramar ou A Odisseia” e o “Manto da Apresentação”. Como se pode notar, os títulos de seus contos já deixam entrever ou sugerir marcas de sua formação acadêmica, bem como de elementos que sugerem vivências pessoais em seu lugar de origem.

Por meio de suas narrativas potentes e poéticas, personagens e contextos vão ganhando contornos e camadas que permitem estabelecer relações com as diversas expressões identitárias, foco desta escrita. As/os personagens de seus contos – mulheres negras escravas/escravizadas, homens negros, empregadas domésticas, indígenas, loucos, prisioneiros, clandestinos, ilegais – protagonizam, em sua maioria, a condição do não-lugar, da marginalização. As narrativas se situam em espaços urbanos (cidade, apartamento da patroa), urbanos periféricos (favela, cais, maré da baía), rurais (casa grande, roça, mato, mata, uma floresta), ou ainda no que se cabe chamar de um não(entre)lugar (uma instituição psiquiátrica, uma embarcação no meio do mar, uma fuga).

Suas/seus personagens com suas dores, sofrimentos e angústias são o “outro da razão”. Com integridade e força insubmissa, legitimam suas existências ante as condições mais adversas e indignas dentro de uma sociedade racista, sexista, opressora e excludente. Em seu universo ficcional, Itamar evoca uma complexa rede de questões humanitárias, que afetam intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, nesse momento, de contemporaneidade.

Insurgência

Em “Alma”, o primeiro conto do livro, a protagonista é uma mulher negra escrava/escravizada que se liberta do poder de seus algozes, senhores e senhoras brancos da casa grande, empreendendo, sozinha, uma fuga fenomenal. Sobrevivente, após caminhar por muitas luas cheias em busca de sua liberdade, enfim ela chega a um lugar sem cercas onde faz sua morada. Numa sucessão de acontecimentos, Alma, outra vez fortalecida, arranja um companheiro, pare seus filhos e vive da terra com dignidade. Aos poucos, outros irmãos insurgentes como ela vêm de longe e fundam uma comunidade. O final da narrativa revela sua força e segredos de sua ancestralidade como a base de sua insurgência.

[…] eu, uma mulher, uma alma, que lutava todas as horas e da primeira vez quando levaram um filho urrei de tristeza, como uma cadela, meus filhos arrancados como uma ninhada de cães, um a um, foram retirando de mim, um a um foi sendo retirado, eu que agora caminho para a frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas de meus pés e do couro do meu cabelo, eu, essa mulher que anda pela mata como se bicho fosse, e que um dia disseram que eu tinha alma, e por isso me chamaram de Alma, “e toda alma reside em um corpo”, rezava minha senhora, e eu, se era uma alma, era  posse daqueles senhores, minha morada era o fundo de sua casa branca, era meu corpo [….] (Vieira Junior, 2017, p. 19).

Fronteiras

A “floresta do adeus” é uma narrativa que mais se assemelha a uma distopia. A floresta submetida a um regime totalitário é um espaço rigorosamente controlado por uma organização militar, cujos limites não podem ser ultrapassados sob pena de soldados armados abrirem fogo. Separados por uma cerca de arame farpado, Luís e Rosa se encontram em lados opostos e revelam o sofrimento causado pela separação forçada e de terem seus desejos amorosos reprimidos. A situação dramática cresce aos olhos do leitor através de seus relatos e de seus familiares: irmãs e irmãos, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos, primas e primos, entre outros.

Eu me posto na margem da estrada onde está estabelecido o limite e aguardo, mirando a floresta, com o coração incerto de que eles conseguiriam vir conforme combinamos no último encontro. O barulho do vento, incansável, abafa os sons que espero das pegadas quebrando gravetos secos compactando as folhas caídas de tanto adeus. Uma sombra ao longe surge e logo se divide em duas, três, quatro, cinco, com suas roupas coloridas, as tias idosas com lenços na cabeça, a prima com um lenço florido em volta dos cabelos soltos, o tio com bigode  grisalho e a boina velha que usa desde que eu era criança (p. 48).

Recrudescimento

No conto “A oração do carrasco”, que intitula o livro, o personagem central é um pai de família – num semiárido esquecido qualquer –, cujo ganha-pão é a profissão de carrasco. Seu ofício deve ser passado adiante ao filho mais velho, obedecendo à linhagem dos homens da família. A reviravolta se dá quando esse primogênito desaparece aos dezessete anos, como “inimigo do Estado”, supostamente por ter entrado em contato com ideias subversivas em reuniões clandestinas com camponeses a favor da reforma agrária. Em nota, o autor explica que, embora o conto seja ficcional, traços biográficos de personagens icônicos de nossa história foram utilizados sem, no entanto, fazer referências a nomes.

Seu bisavô e avô foram carrascos. Seu pai também. Ele, que lhe deu o machado na última manhã de uma estiagem de quatro anos, para depois vir a chuva, e paradoxalmente a fome, empenhou-se para que o filho, o primogênito, honrasse a linhagem de carrascos à qual pertencia. Seu avô foi a figura mais importante da família, e certamente um herói anônimo de seu país: foi o executor da sentença de morte do ditador que governou por 30 anos, quando o filho carrasco ainda não havia nascido. Não se livraram dos ditadores, que se alternavam nos governos, muito menos de seus interesses, mas o tempo e os conflitos os ensinaram a serem parcimoniosos com a vida (p. 75).

“pessoal mesmo”[2]

No conto “O espírito aboni das coisas”, o indígena Tokowisa deixa a aldeia seguindo instruções de um velho xamã em busca de uma palmeira de abatosi para curar a sua mulher doente. O conto, na sua forma e ritmo narrativos, se assemelha a uma lenda indígena, como se contada por alguém do próprio grupo étnico. Segundo nota do próprio autor, foram utilizadas palavras da língua jarawara, uma das muitas etnias indígenas do Brasil, explicitando desse modo, a pesquisa empreendida e criteriosa ao se aproximar esteticamente de outros falares, pertencimentos e ancestralidades. A fonte para o vocabulário utilizado no conto foi o Dicionário Jarawara – Português, do linguista Alan Vogel.

Tokowisa é um homem que sobe o rio faha com sua canoa. Os guerreiros de seu povo não estão ao seu lado, mas Tokowisa tem o mundo: a terra wami, a água faha e o céu neme. Tokowisa pode falar com a pedra yati quando desce da canoa. Pode falar com o boto e ouvir sua resposta. Pode falar com os espíritos aboni do céu neme. Com o espírito aboni das árvores. Tokowisa carrega o mundo em seu coração ati boti. Yanici está em seu ati boti. Os seus filhos também. Tokowisa ouve estrondos que parecem com o som da madeira que cospe fogo dos homens brancos. Estão matando o espírito aboni das coisas, pensa. Tokowisa pode sentir clarões de luz vindo do interior da floresta. Tokowisa disse para o xamã que as árvores tremem de medo dos homens brancos que devoram a floresta (p. 101).

Clandestinidade

Em “Meu mar (Fé)” a narrativa é contada em primeira pessoa por uma mulher, que nos lança ao mar de um lado a outro do Atlântico, numa remissão a movimentos semelhantes aos afro-diaspóricos. São personagens “à deriva” entre Baraka (uma favela superpopulosa na capital senegalesa de Dakar), o porto da Bahia, a América, São Paulo, o Brasil e o Haiti, por exemplo. Essas referências nos remetem irremediavelmente ao período da escravização dos cidadãos negros arrancados violentamente de suas terras e famílias e embarcados em navios para a América, ou ainda, na contemporaneidade, aos fluxos migratórios de cidadãos negros e não-negros tornados clandestinos confinados em contêineres dentro de navios de carga ou em botes de borracha, em busca de uma vida digna ao redor do globo.

Vendemos a casa que habitávamos, a outra casa que herdamos de seu pai e rendia o parco para nos saciar a fome, para pagar a travessia até o porto da Bahia. Desembarcaríamos depois de muitos dias sem ver a terra e com a memória dos muito poucos fios de luz que nos chegavam ao longo da viagem.  No contêiner, éramos seis pessoas, jovens, cinco homens e somente eu, mulher, que conhecemos o inferno da travessia. O alimento terminou antes de nossa chegada, o calor sufocante nos enchia de cansaço e mal-estar. Havia um medo de que fôssemos descobertos, havia o balanço da pesada embarcação no mar aberto, quebrando ondas, havia o perfume nauseante da maresia. Você segurou minha mão diversas vezes com muita força. Era uma travessia dolorosa, carregada de angústias E temores. Deixávamos nosso país para trás, sem a esperança de voltar em breve (p. 108).

“Como se fosse da família”

Doramar protagoniza o conto através de sua voz e memórias que se confundem entre o tempo da infância, em que era menina livre, moradora da favela da maré da baía; a mocidade marcada pelos sorrisos, brincadeiras e a volta clandestina no Puma amarelo (roubado) de Pito e a passagem do tempo, cujo anúncio vem na forma de cabelos brancos, lapsos de memória e pés cansados. Mecanizada pelo trabalho doméstico dedicado à mesma família há 20 anos, o despertar de Doramar é provocado por um incômodo encontro ao final da tarde de mais um exaustivo dia de trabalho: um cão moribundo, fétido, apodrecendo nas dependências do prédio dos  patrões, sacode-a para sua própria vida (conforme nota do próprio autor, o conto “Doramar ou A odisseia”, faz uma breve referência à crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector).

Minha cabeça coça, o mar cheio invade minha cabeça, é o som da maré, a dona pediu para comprar o peixe, vou para o fundo de casa, nas palafitas, para buscar o peixe na maré que não vai embora, olho para o céu que é o teto branco da casa de meus patrões: “Deus, onde está a sacola?” A sacola está bem acima de meus olhos, pendurada no varal, coçando minha cabeça. Volto para a porta e o cão me olha, eu olho para a fome do cão, então abro a geladeira e tem sobras do jantar, agacho próxima ao seu prato e despejo, o que tem dentro com as minhas mãos, o cão lambe meus dedos, lambe meu nariz, eu limpo os dedos na minha roupa, mas não sei se esse gesto salvará a sua vida. Fecho a porta, minha mãe não me pediria que fechasse a porta, porque lá quando era menina éramos livres e agora eu sirvo meus patrões que não me dão descanso. Olham para mim e dizem para os convidados que sou “como se fosse da família” e nada posso dizer (p. 146-147).

Tecelão do Mundo

O “Manto da Apresentação”, o último conto do livro, é narrado por uma voz feminina negra, a mãe de um Jesus filho negro a quem é dado a chance e o poder de refundar o mundo em sete anos de trabalho. A voz maternal que fala com Jesus filho sobre sua tarefa de reconstrução do mundo diz-lhe que ele deverá estar apropriadamente vestido para a ocasião. Em sua missão, ela o orienta a não usar as roupas rotas da colônia, uma menção à instituição psiquiátrica, na qual foi interditado como esquizofrênico. Segundo a voz, ele deveria portar um manto divino, nobre e delicado, tecido e bordado por ele mesmo, com a sensibilidade de sua arte. Quem estiver minimamente familiarizado com a história de Arthur Bispo do Rosário, logo é capaz de estabelecer conexões entre ele e o personagem Jesus filho.

Segundo a escritora e pesquisadora Luciana Hidalgo, no artigo “As artes de Arthur Bispo do Rosário” (2009) sobre o artista plástico sergipano, em sua ficha no manicômio podia-se ler “negro, sem documentos, indigente”. O manto da apresentação que seria usado no dia do Juízo Final, era uma espécie de vestimenta semelhante a uma mortalha, confeccionada por ele mesmo com objetos de naturezas e formatos diversos.

Conforme nota do autor Itamar Vieira Junior, o conto traz elementos biográficos do artista plástico, baseados sobretudo na dissertação Manto da Apresentação: Arthur Bispo do Rosário em diálogo com Deus, de Alda Moura Macedo.

[…] são tuas mãos generosas e hábeis que tecem este novo mundo para maravilhar o homem, as mãos que fazem o pão, deves também bordar o globo terrestre, para que saibam por onde caminhamos,  o seu interior deverá carregar algo muito precioso porque nele estarão os nomes dos eleitos, que sejam louvadas as mulheres que subirão para sua morada, jesus filho, as mulheres que serão arrebatadas, porque em suas dores se fizeram maiores que os homens, com seu senso de humanidade interromperam guerras, sofreram dores, atravessaram desertos, viveram  odisseias, transpuseram muros e cercas, forjaram a liberdade das entranhas do seu ventre,  nadaram por oceanos, elas que terão seus nomes escritos no interior do manto que vestirás para o dia da  fúria ida glória […] (p. 161).

Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique - Suíça, 2018.
Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique – Suíça, 2018. / Fonte: foto da autora

Arrematando as pontas de tudo até aqui dito, pode-se perceber que a A oração do carrasco, como o título mesmo já anuncia, não é um livro para melindres. É um livro que tem como fio condutor os cataclismos humanos causados pelo poder hegemônico branco e seus mecanismos de opressão que se abatem sobre uma sociedade de classes, em que o racismo se traduz como uma de suas formas mais perversas e violentas. Todos os sete contos dão visibilidade a figuras humanas subalternizadas ao longo da História, dentro da lógica de um sistema hierarquizante e racista, sem que tampouco sejam resignadas ou vencidas. São identidades em estado de vulnerabilidade, – mulheres negras, homens negros, crianças negras, indígenas, pobres, favelados, mães, empregadas domésticas e até animais doentes abandonados – contudo, numa luta aguerrida pela sobrevivência e garantia de seus direitos na construção de suas identidades.

Considerando a potência dos contos de Itamar Vieira Junior no contexto acadêmico, é como se eles traduzissem do ponto de vista ético e estético, o conjunto de epistemes defendidos pelas diversas/os intelectuais negras e negros mencionados nessa escrita. O fazer literário de Itamar, enquanto escritor e intelectual negro, se revela comprometido e engajado, através de uma riqueza de outros saberes e sabedorias “da memória, da oralidade, da ancestralidade, da ritualidade, da temporalidade, da corporeidade”, conforme Gomes (2010, p. 510)

Por essas e outras, creio não ser nenhum exagero afirmar que o escritor Itamar é um autor contemporâneo, tal como postulado por Agamben (2013). Ele é intempestivo na forma como projeta as temporalidades em seus contos ficcionais: adere ao seu tempo histórico e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. É essa condição que o habilita, de forma extra-ordinária, a perceber e apreender o seu tempo. Na célebre imagem de Walter Benjamin, seus contos “escovam a história a contrapelo” (Löwy, 2002).

Comparativamente, se considerarmos o pensamento de Édouard Glissant, a literatura de Itamar, neste caso, nos oferece a possibilidade de uma abordagem “crioulizada”, no sentido de que seu imaginário destrona a ideia de identidade como “raiz única, fixa e intolerante” (2005, p. 80) para se espraiar rizomaticamente exuberante em busca de outras raízes. É a literatura do imaginário do sendo e não de ser, para a qual Glissant apela: “(…) o imaginário do sendo, de todos os sendos possíveis do mundo, de todos os existentes possíveis do mundo” (p. 81)

Podemos dizer ainda dessa relação que os contos de Itamar atendem à noção de rastro/resíduo, o que supõe em si a incompletude, a divagação, a impermanência. A seguinte citação traduz com propriedade esse fenômeno:

Não seguimos o rastro/resíduo para desembocar em confortáveis caminhos; ele devota-se à sua verdade que é a de explodir, de desagregar em tudo a sedutora norma. Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo para além da Imensidão das Águas o rastro/ resíduo os seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens (Glissant, 2005, p. 83-84).

Itamar transporta de si para sua escrita o rastro/resíduo de seu povo, o “pessoal mesmo”.

A citação acima pode, com efeito, desembocar na reflexão de Stuart Hall (2000) sobre a identificação, como sendo um processo de articulação, que traz em si intervalos, faltas, mas nunca uma completude. Sujeita ao “jogo” da différance (o “mesmo”/ o “outro”), a identificação, como em geral ocorre nos processos de significação, se constitui enquanto trabalho discursivo, abrindo brechas para a produção do que ele vai designar de “efeitos de fronteiras” (Hall, 2000, p. 106). Na minha leitura, essas seriam demarcações de fronteiras simbólicas, cujas aberturas e fechamentos se encontrariam a serviço do poder vigente.

Hall conclui que, na consolidação desse processo, a identificação vai requerer justamente aquilo que é deixado de fora e que lhe é parte constitutiva: o exterior. Justo aí, nesse deixar de fora o que lhe é de dentro, se instala seu caráter desagregador, desconfortável, no qual a literatura de Itamar se inscreve por meio da relação – e não da exclusão – com outras culturas, sejam estas aquelas que nos cercam mais imediatamente no nosso convívio diário, ou as tantas outras além-mares, além-ancestralidades. Seu livro bem pode representar um clamor por atitudes literárias corajosas e criativas, no tratamento dado à construção e visibilidade de novos sujeitos, novas subjetividades e possibilidades de relações sociais, como forma de contribuir para o combate ao epistemicídio (evocando Santos, segundo Gomes).

É nesse sentido que compreendo o debate aqui engendrado através do pensamento das/os diversas/os teóricas/os negras/os aqui citados, quer no campo acadêmico – e por que não dizer?  – como também no ficcional-estético. É nesse sentido que compreendo a potência e beleza da contribuição artístico-literária de Itamar Vieira Junior para essa contemporaneidade.


* Rosilma Diniz Araújo Bühler é professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DLEM) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa. Atualmente, encontra-se doutoranda na área de Estudos da Tradução, do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult), Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador.

Referências

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GLISSANT. Édouard. Cultura e identidade. In: GLISSANT. Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Eunice do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p. 71- 95

GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. In:. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, [1996] 2000. p. 103-133.

HIDALGO, Luciana. As artes de Arthur Bispo do Rosário. In: Mente Cérebro. 2009. Disponível em:<www2.uol.com.br> Acesso em: 11 abr. 2018.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas. Trad. Marcos Santaritta. Florianópolis, v. 3, n.2, p. 464-478, 2º semestre 1995.

JUNIOR, Itamar Vieira. A oração do carrasco. Itabuna, BA: Mondrongo, 2017.

LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. São Paulo, 2002. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142002000200013> Acesso em: 10 abr. 2018.

WEST, Cornel. The dilema of the Black Intelectual. In: The Cornel West: reader. Basic Civitas Books. Trad. Braulino Pereira de Santana, Guacira Cavalcante e Marcos Aurélio Souza. 1999. p. 302-315.

Notas

[1] O conceito vem usualmente na forma de “sob rasura” e é corrente a esse processo. É atribuído ao intelectual afrodiaspórico Stuart Hall em seus estudos sobre identidades, e aqui me reporto mais especificamente ao artigo “Quem precisa de identidade?” (2000).

[2] pessoal mesmo: “e yokana” é a forma como os povos indígenas Jarawara, Jarauara, Yarawara ou ainda Jaruará se autodenominam. Segundo o linguista Alan Vogel (2006), “e yokana“ significa literalmente “pessoas de verdade”. Contudo, esses povos indígenas traduzem o termo por “pessoal mesmo“. Jarawara, nome e localização. Disponível em:< https://pib.socioambiental.org/pt/povo/jarawara/615> Acesso em: 09 abr. 2018.