Ano XIV 01
dossiê
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A ARTE E O ARTISTA NEGRO NA ACADEMIA NO SÉCULO XIX

Resumo: O negro adentrou o século XIX na escravidão, ou quando alforriado, estava presente invariavelmente em trabalhos subservientes e mal pagos. Nas artes desse século, sua presença não foi muito diferente, tanto na condição de artista como de uma figura representada. Este artigo procura evidenciar a presença negra na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, então centro de atividades artísticas do Império, analisando algumas das inúmeras dificuldades de afirmação do artista negro e a aceitação de sua presença em telas expostas por essa instituição. Uma concepção de nação, defesas científicas, preconceitos cristalizados entram em jogo para defender estéticas e formas de ensino que perduram, de certo modo, até os dias de hoje.

Palavras-chave: história da arte; cultura brasileira; escravidão.

Abstract: Black people began the nineteenth century in slavery, or when they were free, they were invariably in subservient and poorly paid work. In the art field of that century, their presence was not very different – as artists and as a figure represented. This article seeks to highlight the presence of black people at the Academy of Fine Arts of Rio de Janeiro, the centre of artistic activities of the Empire. It analyzes some of the innumerable difficulties of affirmation black artist faced and the acceptance of his representation on the canvas exposed by this institution. A conception of nation, scientific defenses, crystallized prejudices came into play to defend aesthetics and forms of teaching that endure, in a certain way, even nowadays.

Keywords: History of art; Brazilian culture; slavery.

1. Introdução

“O que se pode esperar de um povo feito do conluio de selvagens inferiores, indolentes e grosseiros, de colonizadores oriundos da gente mais vil da metrópole – calcetas, assassinos, barregões – e de negros boçais e degenerados?” (Veríssimo, J. apud Pontual, 1987, p. 7). Com essas palavras José Veríssimo, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, assina um artigo publicado em 1901 em um jornal da Capital Federal. O início da República marcou uma época no Brasil em que se tornou ordem do dia a discussão acerca do então atraso científico, tecnológico, econômico da nação frente aos outros países europeus e mesmo americanos. Era fundamental que se interpretasse o Brasil a partir de sua realidade nacional, e nesta estava presente a mestiçagem, o predomínio do meio rural, a população analfabeta; tudo isso acabava por se traduzir em um sentimento de alijamento do Brasil do concerto de nações ditas desenvolvidas.

A República, ainda que fosse inaugurada sem a presença da escravidão e que propugnasse a ideia de ordem e progresso calcada nos pressupostos positivistas que pretendiam abandonar os preconceitos e atrasos do desconhecimento das época anteriores, continha ainda em grande parte de seu discurso que permeava o meio político e intelectual, uma enorme desvalorização do negro e do mestiço.

De fato, a partir da década de 1870 a questão da miscigenação ganha enlevo no Brasil, pois como observa Schwarcz (1993), é nesse momento que há uma desmontagem da escravidão com a Lei do Ventre Livre (1871). Em 1894, Raimundo Nina Rodrigues, professor titular da cátedra de Medicina Pública em Salvador, expõe no seu livro entitulado “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” seu posicionamento acerca do papel da raça na patologia da população brasileira:

O desenvolvimento e a cultura mental permitem seguramente às raças superiores apreciarem e julgarem as fases por que vai passando a consciência do direito e do dever nas raças inferiores, e lhes permitem mesmo traçar a marcha que o desenvolvimento dessa consciência seguiu no seu aperfeiçoamento gradual (Rodrigues, 2011, p. 28).

E acrescenta que “(…) os atos tidos por criminosos nos povos civilizados confundem-se nos selvagens com os atos comuns, permitidos e até obrigatórios” (Rodrigues, 2011, p. 29).

Em 1911, o então diretor do Museu Nacional, João Batista Lacerda, apresenta no I Congresso Internacional de Raças, a sua conferência “Sobre os mestiços do Brasil” em que afirma que “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Schwarcz, 1993).

Obviamente, a discriminação e o racismo não começaram no Brasil nessa época, porém a questão da raça, da mestiçagem e da necessidade de branqueamento da população se transformou em parte fundamental de um discurso sobre a construção de uma identidade nacional que, com a queda do Império, se tornava ainda mais presente.

A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) também passava, por esses anos de 1870, por uma reformulação movida por um desejo de progresso que insuflasse ares de renovação e de modernidade a um ambiente academista, patrocinado por uma monarquia que já dava ares de decadência.

Por volta de 1870 um novo período vai se abrir na história do pensamento brasileiro. É então que novos matizes de ideias… o positivismo, o naturalismo, o evolucionismo, enfim, todas as modalidades do pensamento europeu do século XIX — vão se exprimir agora no pensamento nacional e determinar um notável progresso de espírito crítico (Costa, apud Pereira, 2016, p. 241).

É importante ressaltar que dentro desses “novos matizes e ideias” se insere também o conceito de superioridade e de eugenia racial, tudo isso embasado pela ciência — o darwinismo social, entendendo a mestiçagem como um sinônimo de degeneração racial e social.

Nesse contexto, o fim da escravidão, a queda do império, o início da industrialização, a abertura para novas ideias republicanas, não trazem qualquer tipo de avanço, ao menos em princípio, para a atenuação do racismo e da discriminação racial no Brasil nesse final de século XIX. Ao contrário, passa a haver todo um cabedal teórico que dá ênfase à necessidade de constituir uma nação segundo ideais burgueses calcados na eficiência, na produtividade, no liberalismo econômico e na limpeza étnica, só assim o Brasil poderia pretender ascender um dia ao rol das nações desenvolvidas.

2. O negro nas artes brasileiras

Como ficaria então o papel do negro nesse final de século nas artes brasileiras? Como a Academia, ou melhor, a Escola Nacional de Belas Artes absorveria, ou não, artistas negros e uma arte negra?

Uma rápida abordagem acerca do papel dos negros e de sua representações nas artes brasileiras no período colonial poderia ser resumida pela afirmativa do historiador Antônio da Cunha Barbosa afirmando, no final do século XIX, que “em geral foram escravos todos aqueles que naquela época [colonia] se dedicavam às artes” (apud Teixeira Leite, 1988, p. 13). De fato, a grande parte dos artistas presentes no Brasil colonial eram negros ou mulatos. Alguns, como o caso do pintor negro Manuel da Cunha, poderiam ter uma formação mais aprimorada indo estudar em Portugal, mas isso constituía uma exceção, o aprendizado, em geral, acontecia nas corporações de ofício que atuavam na colônia. Márcia Bonnet (2009, p. 97) explica que

Muitos senhores ensinavam ou proviam para que se ensinasse ofícios mecânicos aos seus escravos com o objetivo de colocá-los para trabalhar ao ganho, alugando seus serviços a terceiros, ou mesmo com o intuito de vendê-los. Desta forma, uma vez em liberdade, estes escravos já tinham um ofício por meio do qual poderiam sobreviver, ao invés de perambular pelas ruas da cidade desorientados e sem meio de sustento.

As corporações de ofício tiveram sua extinção através de um alvará do Príncipe D. João que privava os seus associados do monopólio do exercício de qualquer que fosse a arte. A atitude do regente se deveu a uma intenção política que tinha como pressuposto o desenvolvimento do liberalismo econômico; quebrava-se o monopólio das corporações e abria-se espaço para a livre concorrência.

Ao mesmo tempo, D. João inaugurava, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios que institucionalizava o ensino das Artes[1]. Assim, não só uma estética neoclássica de estirpe francesa passou a ser incorporada no programa da arte no Brasil, mas foi profundamente abalada toda a tradição da pintura colonial e sua estrutura de corporações de ofício, onde negros e mulatos obtinham o seu aprendizado. A Escola, mais tarde Academia, representava a um só tempo a formação intelectual do artista e sua desvinculação de qualquer formação e atuação vinculada a práticas corporativas.

Essas formas coletivas entraram em conflito violento, ou até mortal, com as academias, que, no começo, desejavam ser um elemento libertador. Mas também estas iriam formar um quadro de restrições, em cuja sombra podiam ser encontradas e reproduzidas as posições dominantes. Sendo assim, o sistema acadêmico não continha estruturas tão coletivas quanto o sistema corporativismo e, sob seu abrigo, o modo de trabalhar dos artistas tendeu a individuação (Greffe, 2013, p 128).

A Academia Imperial de Belas Artes, quando inaugurou as suas atividades em 1826, passou a ser o centro gravitacional das artes, onde exposições, encomendas, prêmios, faziam parte do seu controle, ou seja, ao contrário do período colonial, nesse momento a produção artística estava intrinsecamente ligada ao direcionamento oficial, cujo objetivo “era formar uma elite de artistas treinados segundo valores considerados os melhores para uma produção oficial” (Pereira, 2016, p. 45).

Aceder a esta instituição era, por um lado, relativamente fácil, pois bastava ser alfabetizado e saber fazer contas. Contudo, se grande parte da população branca era analfabeta, o que dizer então de negros e mulatos[2]? Mas é preciso perceber também, como observa Sônia Pereira, que as classes abastadas não se interessavam pela Academia, já que eram “pressionados pelo bacharelismo, num país em que o trabalho manual sofria todo o tipo de descrédito social” (2016, p. 44). De fato, segundo o censo de 1872, das profissões liberais, a de artista é a que tinha maior número de integrantes, tanto entre a população livre quanto a de escravos.[3]

Era possível que negros e mulatos acedessem ao ensino acadêmico nas artes nesse século XIX, embora isso não constituía algo corriqueiro.

Nessas condições, é de se prever que, dada sua congênita vocação áulica, a Academia funcionasse como uma barreira tendendo a dificultar consideravelmente ao negro e ao mulato acesso à condição de artista, que ela, estava habilitada a conferir (Marques, 1988, p. 136).

Por outro lado, os poucos alunos de origem africana que conseguiam ingressar em seus quadros de discentes, passavam a ter um prestígio intelectual que jamais conseguiriam obter no período colonial. Nesse sentido, acabava por existir uma espécie de acordo: a Academia promovia uma ascensão social do negro enquanto este reforçava o ideário acadêmico e elitista da Escola.

Um caso conhecido e bom exemplo disto é o de Estevão Roberto da Silva (1845?-1891). Filho de escravos, é considerado o primeiro pintor negro com destaque na AIBA. Famoso por suas naturezas-mortas, seu nome é justamente relacionado como um dos maiores artistas dessa temática de todos os tempos no Brasil.

Ao mesmo tempo que a AIBA foi uma promotora de seu talento, esta instituição limitou o seu reconhecimento.

Perante o próprio Imperador Pedro II, na sessão solene de entrega de prémio àqueles que se distinguiram na Exposição Geral da Academia, o pintor levantara-se para protestar contra a premiação que lhe coubera, dizendo-se injustiçado. O escândalo foi enorme, tanto que, quase um ano mais tarde uma comissão nomeada pelo diretor para apurar o incidente aplicava a Estevão a pena de suspensão por um ano, reconhecendo que praticara “um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, da qual só não foi expulso porque a mencionada comissão, após lhe ouvir a defesa, convencera-se de agira “por acanhamento da inteligência” (Teixeira Leite, 1988, p. 476).

A atitude de Estevão Silva deveu-se a ter recebido um prêmio inferior a que não só ele, mas todos os seus colegas de academia esperavam. Estavam plenamente convencidos que o primeiro lugar deveria ser conferido ao pintor negro, como Antônio Parreira escreve em suas memórias “Íamos nos revoltar”. Mas Estevão pediu a seus amigos “Silêncio! Eu sei o que devo fazer.” Estevão se limitou a proferir “Recuso!” Foi suficiente para ser tomado como um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, essa insolência de um negro dito arrogante só não foi mais duramente punida, pois imputaram-lhe generosamente o atributo de “acanhado de inteligência”.

 Durante o período imperial, talvez não se possa elencar, além de Estevão Silva, mais do que cinco nomes de artistas de origem negra que conseguiram algum destaque na arte realizada no Brasil através da AIBA[4].

Além da óbvia discriminação existente no período escravocrata e que continuou (e continua ainda hoje) nas décadas seguintes, a educação artística era dispendiosa e devia se realizada de acordo com o gosto social dominante. O resultado imediato disso é que as obras de todos esses artistas não contêm, pelo menos em relação à técnica, a estrutura espacial, ao modo de composição, nada que seja peculiar a identidade africana ou a qualquer qualidade identitária do negro.

Em relação a temática, há diversas obras onde estão presentes pessoas negras ou mulatas. Em certo sentido isso denota uma presença, dentro da arte dita oficial, dessa negritude. Por outro lado, vários desses retratos exibem essas pessoas executando serviços braçais, como se estas pinturas representassem o retrato uma realidade nacional. Algo que possuía certa reminiscência da pintura holandesa no Brasil ou das aquarelas de Debret.

Há também alguns retratos de pessoas negras em que não estão associadas a qualquer tipo de atividade braçal. O primeiro deles é o retrato do Marinheiro Simão, o carvoeiro de José Correia de Lima, de 1853 (Figura 1). Contudo, essa pintura de Simão escapa àquilo que era costumeiro de ser feito, mesmo na obra de Correia Lima. Em primeiro lugar, Simão não era escravo, e, além disso, foi responsável pelo salvamento de treze pessoas do naufrágio do navio Pernambucana nesse mesmo ano. Sua figura ficou notória através da imprensa, sendo alçado, com esse gesto de bravura, do anonimato para a notoriedade. Ele ganhou assim o status de personalidade, sendo, com isso, passível de ser representado — uma representação não mais associada ao trabalho, mas apenas ao indivíduo Simão.

José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93x72,6 cm, 1853
Figura 1: José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93×72,6 cm, 1853

Certamente o retrato de Simão se configurou uma das poucas exceções. Outros retratos de negros sem a associação com o trabalho foram feitos por artistas negros, como é o caso, por exemplo, de Arthur e de João Timóteo da Costa que teve diversos negros como modelos de seus retratos.

Em grandes telas representativas da história nacional, patrocinadas pelo governo e pintadas por professores da AIBA, como Batalha dos Guararapes, de 1879, de Victor Meireles (figura 2) ou Independência ou Morte, de 1888, de Pedro Américo (figura 3), por exemplo, a figura do negro é retratada fora do centro de ação das obras. No caso da obra de Américo, o único negro presente apenas assiste à ação, como se fosse um elemento componente da paisagem.

Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25x5,0m, 1879
Figura 2: Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25×5,0m, 1879

 

Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888
Figura 3: Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888

A figura do negro não era apenas mal vista como representação, ainda que esta fosse de uma realidade manifesta em uma força de trabalho, mas também como modelo. Neste século XIX, muitos negros, devido obviamente às suas condições subalternas ou mesmo à baixíssima remuneração que recebiam, serviam de modelos-vivos para os artistas da AIBA. Contudo, até mesmo nisso, a presença deles causava desconforto. João Maximiano Mafra[5], então aluno da Academia, em 1839, investiu para que fosse organizada uma associação a fim de trazer europeus ao Brasil com o intuito de substituirem os modelos-vivos negros. Argumentava que as pessoas negras não possuíam beleza física suficiente para serem retratadas em quadros cujo padrão estético adotado pela Escola remetia à Grécia clássica.

Um exemplo significativo deste desprezo ao modelo negro se encontra no quadro de Oscar Pereira da Silva, Escrava romana de 1894 (figura 4), ganhadora da medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1897. A pintura retratava uma escrava, mas sem ter por base o modelo clássico de corpo humano. Ao contrário, seu referencial é de uma mulher de sua época, com pés grandes, sobrancelhas grossas, ventre volumoso, algo que deveria ser muito mais próximo da beleza de uma típica escrava. Contudo, essa escrava retratada possuía pele clara e se situava em um ambiente romano. Por que Pereira da Silva não utilizou como modelo a negra brasileira, que tinha fartamente a disposição? Se a temática era a representação de uma escrava, por que então não colocar na pintura a escrava brasileira que há pouco havia sido liberta?

Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5x72,5cm — 1894
Figura 4: Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5×72,5cm — 1894

3. O negro e o ideal de nação

Certamente a exclusão do negro tanto na Academia quanto a sua representação em pinturas ou em esculturas pode ser vista hoje como o reflexo de uma época preconceituosa e excludente. Contudo, essa exclusão se baseava em dados e em teorias científicas amplamente aceitas e validadas à época.

Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos — “classes perigosas” a partir de então — nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em “objetos de sciencia”. Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (Schwarcz, 1993, p. 28).

A partir da segunda metade do século XIX, começavam a ganhar força teorias que procuravam explicar a inferioridade de determinadas raças, em particular a negra. As teorias evolucionistas e social-darwinistas justificavam cientificamente a supremacia racial através de uma seleção natural em que sobrevivia o mais apto e o mais capaz. Assim, negros teriam sido naturalmente escravizados dada as suas supostas condições de inferioridade racial.

O componente negro existente no Brasil poderia então ser excluído de ser formador de uma identidade nacional.  A filiação francesa existente na AIBA não poderia ser vista apenas como um modelo exótico aplicado em terras brasileiras, mas ao contrário, esse modelo significava a busca de uma identidade nacional calcada em um branqueamento da raça. Significava ainda que se o Brasil quisesse entrar para o concerto de nações desenvolvidas teria que efetivamente excluir raças inferiores e degeneradas. O famoso quadro do pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos y Gomes aluno da AIBA e mais tarde professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)[6], A redenção de Cam de 1895 (figura 5), exposto no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, expõe de modo claro a busca do embranquecimento brasileiro como elemento de salvação pátria.

Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895
Figura 5: Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895

O índio, nesse caso, acabava por ser banido desta exclusão. Baseado na ideia do bon sauvage de Rosseau, o indígena era o homem em seu estado puro e natural, representativo de uma natureza que era, em uma nação destituída de grandes obras, personalidades e feitos, a marca que dava ao Brasil sua peculiaridade em face às outras nações. Por isso, pode-se encontrar, dentro das artes plásticas, como também na literatura, na ópera, a figura do índio sendo exaltada. Contudo, esse índio era representado não em sua condição própria, mas, como observa Roberto Pontual (1987), com nova roupagem indígena elementarmente brasileira que acabava por produzir um pieguismo que só lhes acentuava a estranheza.

Procurava-se criar assim uma nação calcada em virtudes europeias, onde a ciência, a indústria, os valores morais cristãos, a vida privada, a arte eram reflexo de teorias e princípios universais que condiziam com o mundo branco.

A classe de pessoas brancas procurava formar uma nação que tinha como paradigma o mundo europeu. No entanto, ela se distanciava de tudo aquilo que poderia ser tido como ligado as tradições brasileiras.

A alienação passou a ser a condição mesma desta classe dominante, inconformada com seu mundo atrasado, que só mediocremente conseguia imitar o estrangeiro, e cega para os valores de sua terra e de sua gente. O mais grave é que esta alienação, tornando a classe dominante incapaz de ver e compreender a sociedade em que vivia, tornava seu componente erudito também inapto para propor um projeto nacional de desenvolvimento autônomo (Ribeiro, 1978, p. 144).

Em contrapartida, o mundo negro se filiava ao trabalho braçal, à servidão, às religiões pagãs com rituais tribais e arcaicos, a uma arte dominada pelo sentimento comunitário que nada poderia oferecer àquilo que se pretendia como paradigma de uma nação ou de um ideal maior.

Talvez, assim se explique que no século XX ainda persistiu essa visão. O samba, o carnaval, o futebol, por serem artes coletivas e passionais, são de domínio maioritariamente negro, enquanto que a literatura, a pintura de cavalete, a filosofia, são exemplos de atividades que são realizadas individualmente, precisam de um espírito crítico daqueles iniciados em uma cultura superior.

Sem antecedentes culturais fortes, a ideia de progresso, no Brasil, estava associada a um preceito exógeno fundamentado naquilo que o europeu moderno tomava como inovador e avançado. Assim, “o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, ou seja, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal” (Ribeiro, 1995, p. 249).

Os negros teriam a excelência do artesanato, da arte regionalista, seriam como artífices da época colonial, servos de alguma corporação, presos a uma arte de sobrevivência e de prática herdada pela tradição. Os brancos seriam os herdeiros da École de Beaux Arts, representantes da imagem da nação fundada a partir do translado da Família Real Portuguesa e capazes de realizar a Bela Arte. Darcy Ribeiro observa bem quando afirma que

[e]ssa camada senhorial constitui um círculo fechado de convívio eurocêntrico, que mais cultua a moda que seus próprios valores hauridos no acesso ao centro metropolitano, onde, bem ou mal, se faz herdeira da literatura, da música, das artes gráficas e plásticas, bem como outras formas eruditas de expressão de uma cultura que, apesar de alheia, passaria a ser sua própria (1995, p. 262).

Duas realidades distintas conviviam na mesma espacialidade, separadas por barreiras simbólicas. Quando um elemento de uma realidade adentrava em outra, acabava por ser impelido a assumir os valores que esta outra realidade impunha.

É importante também perceber que é próprio da cultura europeia formular um cabedal teórico e crítico acerca da arte. Desse modo, muitos dos estudiosos da herança africana, em terra brasileira, eram, ou ainda são, brancos. O francês Pierre Verger (1902-1996), o argentino Carybé (1911-1997), o brasileiro Alberto Vasconcellos da Costa e Silva (1931- ) são exemplos de grandes estudiosos da cultura e da história africana sem serem afro-descendentes. Mais preocupado com valores comunitários, sem a necessidade de formular princípios universais a partir de um entendimento individual da cultura e da história, o artista negro acaba por sentir a necessidade de criar uma arte mais sentimental e mais próxima das pessoas de seu mundo e de sua realidade.

4. Considerações finais

Caberia agora refletir quais seriam as possíveis heranças na Academia, ou seja, na atual Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade do Brasil, da presença, ou melhor, da ausência do negro nas artes visuais na capital brasileira do século XIX.

Certamente muita coisa mudou de lá para cá em termos institucionais, conceituais, artísticos etc. A EBA teve um aumento sensível em seus quadros discentes da presença de negros e pardos, principalmente a partir da Lei das Cotas Raciais de 2012, tornando assim o universo de pessoas de origem africana, entre os alunos da instituição, bem maior que no século XIX. Por outro lado, em relação aos docentes, a Escola conta com pouquíssimos representantes. À exceção do recém inaugurado curso de Conservação e Restauro, há apenas um professor afro-descendente, em um universo de aproximadamente 140 docentes.

Ainda dentro das estatísticas da Universidade do Brasil, de que a EBA faz parte, esse número causa perplexidade, já que há entorno de 2% de negros e 8% de pardos de professores do quadro efetivo[7].

Se como afirma Xavier Greffe, a profissão de artista atrai mais os representantes das classes mais baixas do que das superiores, pois estes procuram mais profissões que propiciem mais segurança e prestígio profissional, como engenharia, medicina, direito, seria obviamente de se esperar que haveria mais artistas de poucos recursos do que o contrário. Porém, esses profissionais ainda continuam a ter grande dificuldade, ou pelo menos, baixo interesse em aceder aos quadros acadêmicos. Um estudo pormenorizado dessa causa certamente não caberia nesse espaço, mas vale ressaltar que passado mais de um século, a Academia continua a possuir um ensino ministrado por uma elite social e econômica, aos moldes do Brasil Império.

É ainda pertinente observar que das aproximadamente 400 disciplinas oferecidas pela EBA existe apenas uma dedicada à arte africana[8] e apenas uma outra que trata da questão da antropologia e sua relação com a arte[9].

Mesmo que a Academia, no decorrer de mais de cem anos, tenha criado vários outros cursos de graduação e de pós-graduação, aumentado enormemente o número de alunos, aderido ao sistema de cotas, que esteja a buscar uma formação plural e que procure incorporar a diversidade cultural, étnica, social etc. é fundamental que ela repense as suas propostas levando em conta que a tradição que incorpora é importante, mas que, ao mesmo tempo, deve haver um diálogo profundo com uma realidade que vem sendo obliterada há mais de duzentos anos. Se negros, escravos ou libertos, eram uma realidade que não queria ser incorporada à imagem da nação brasileira no século XIX, hoje eles são parte integrante e fundamental para a produção de uma nova imagem nacional sem estar atrelada a estereótipos. Repensar os seus respectivos papéis na época do império é possibilitar entender uma construção identitária que, em boa parte, perdura até os dias atuais. Superá-la significa repensar modelos de arte e de ensino que sejam críticos e inclusivos de uma pluralidade de formas e conceitos de arte e de cultura.


* Marcelo da Rocha Silveira é arquiteto e urbanista (FAU/UFRJ), mestre em Filosofia (IFCS/UFRJ), doutor em História, Teoria e Crítica da Arquitetura (ProArq/UFRJ). Professor Associado do Departamento de História e Teoria da Escola de Belas Artes/UFRJ. Autor do livro A cidade informal: arquitetura e projeto; co-autor do livro No centro do problema arquitetônico nacional, a modernidade e a arquitetura tradicional brasileira; organizador e autor do livro A cidade e o patrimônio, Ouro Preto, Paraty, Cataguases.

Referências

BONNET, Márcia C. Leão. Entre o artifício e a arte: pintores entalhadores no Rio de Janeiro, setentista. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, 2009.

DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.

GREFFE, Xavier. Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013.

MARQUES, Luiz. “O século XIX, o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro”. In ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.

PONTUAL, Roberto. Entre dois séculos: arte brasileira do século XX na coleção Gilberto Chateaubbriand. Rio de Janeiro: JB, 1987.

RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: I teoria do Brasil. 3ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RODRIGUES, Raimudo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil.  [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. Disponível em <https://static.scielo.org/scielobooks/h53wj/pdf/rodrigues-9788579820755.pdf>. Acesso em :21 fev. 2019. Livro.

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. “Negros, pardos e mulatos na pintura e na escultura brasileira do séc. XVIII”. In: ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

Notas

[1] Mais tarde essa Escola viria a se tornar Academia Imperial de Belas Artes (AIBA)

[2] Segundo o censo de 1872 — o primeiro do Brasil — a taxa de analfabetismo, para pessoas com idade igual ou superior a cinco anos, para o conjunto do país era de 82,3%. (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf)

[3] Segundo Censo de 1872, disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf

[4] São eles, o escultor Manuel Chaves Pinheiro (1882-1844), e os pintores Leôncio da Costa Vieira (1852-1881), Horário Hora (1853-1890), Antônio Firmino Monteiro (1855-1888) e Rafael Pinto Bandeira (1863-1896).

[5] Mafra (1823-1908) entrou na Academia como discente em 1835, com apenas 12 anos. Foi professor de Pintura Histórica e de Desenho de Ornatos, lecionando entre 1854 e 1890.

[6] Com a República, a Academia Imperial de Belas Artes, passou a ser chamada de Escola Nacional de Belas Artes e mais tarde Escola de Belas Artes.

[7] Disponível em https://adufrj.org.br/noticia/apenas-2-dos-docentes-da-ufrj-se-declaram-negros/

[8] A disciplina de Arte Africana e Afro-brasileira.

[9] A disciplina de Arte e Antropologia.