Resumo: Este trabalho analisa a influência mítica na narrativa de Antônio Olinto e a maneira como a mítica orixaísta influencia sua prosa, buscando comprovar que o romance A Casa da Água (2007), primeiro tomo da trilogia Alma da África, lançado originalmente em 1967, problematiza a reterritorialização de uma família que tenta se estabelecer em solo africano após a abolição da escravatura no Brasil. A representação da reterritorialização presente no romance será analisada à luz de autores como Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) e, finalmente, Lukács (1978), dentre outros. A partir desta análise, buscar-se-á uma melhor compreensão do empoderamento feminino feito a partir do resgate dos valores presentes em um matriarcado tribal fundamental para o processo de descolonização do território africano.
Palavras-chave: A Casa da Água; Antônio Olinto; diáspora; mito; matriarcado.
Abstract: This work analyzes the mythical influence on Antônio Olinto’s narrative and how this orixaist myth influences his prose. We will seek to prove that the novel A Casa da Água (2007), first volume of the trilogy Alma da África, originally published in 1967, problematizes the reterritorialization of a family trying to settle on African soil after the abolition of slavery in Brazil. This representation of the reterritorialization present in the novel will be analyzed according by authors as Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) and, finally, Lukács (1978), among others. From this analysis, we will to demonstrate the proccess of the feminine empowerment made from the recovery of the values presents in a tribal matriarchy comes up as fundamental to the process of decolonization of the African territory.
Keywords: A Casa da Água; Antônio Olinto; diaspora; myth; matriarchy.
Olinto representa, em sua trilogia Alma da África – A Casa da Água (2007), O rei de Keto (2007) e Trono de vidro (2007) – famílias que se desenvolveram ainda dentro das paredes da senzala e que foram, a partir de sua organização e dos laços estabelecidos entre elas e, não raro, com seus senhores, fundamentais para a sobrevivência após a abolição dos sujeitos da diáspora. A história de A Casa da Água (2007) em terras brasileiras, em um período preponderante para a história do Brasil, mostra os primeiros momentos após a abolição da escravatura. A narrativa inicia com a saída da família de Catarina (Ainá) da cidade do Piau, Zona da Mata de Minas Gerais, no ano de 1898, dez anos após a abolição. A escravidão no Brasil, em seus momentos finais, atingia contornos complexos. Em 1822, com a Independência do Brasil, o país necessitava de reconhecimento por parte das outras nações. A Inglaterra, mantendo uma forte pressão, que já realizava em prol da extinção do tráfico de escravos, posicionou-se condicionando o reconhecimento do Brasil enquanto nação independente à abolição. Dois grandes obstáculos se interpunham ao fim da escravidão no Brasil. Por um lado, o grande número de escravizados poderia ocupar lugares na sociedade, adquirindo o status de cidadãos. Por outro, a independência recente fora impulsionada, em grande parte, por recursos oriundos de agricultores escravocratas. Com o fim da escravidão e a entrada de imigrantes europeus como mão de obra, o movimento de retorno de escravizados para o solo africano se intensificou. Esses homens e mulheres valeram-se do dinheiro auferido com seu trabalho, do auxílio de amigos e, não raro, do apoio de ex-proprietários de escravos, como é descrito n’A Casa da Água (2007).
O romance se subdivide em quatro partes, a partir das quais se desenvolve a trajetória da protagonista Mariana e de sua família. Assim, em “A viagem” o foco da narrativa se estabelece em torno das dificuldades a que a família de Mariana será submetida, desde a saída da pequena cidade de Piau, em Minhas Gerais, até sua chegada ao solo africano. A segunda parte, “O marido”, mostrará a chegada de Mariana à fase adulta e sua adaptação a essa outra sociedade culturalmente distinta, dentre os agudá, descendentes de escravos brasileiros retornados à África. Os laços da protagonista são definidos a partir da composição das bases da família Silva, com o casamento de Mariana e o nascimento de seus três filhos, Joseph, Ainá e Sebastian[1]. O terceiro e principal capítulo do romance, “A Casa da Água”, narra o estabelecimento de Mariana enquanto empresária de sucesso em três países africanos: Nigéria, Daomé (atual Benin) e, finalmente, o fictício país de Zorei (ver mapas abaixo). O quarto capítulo, “O chefe”, faz referência a Sebastian Silva (o filho), que protagonizará, a exemplo do pai, poucas cenas antes de sua morte – novamente um assassinato. Sebastian (o filho) é mostrado, preponderantemente, de maneira indireta, a partir de sua ausência, pelo olhar estabelecido por Mariana e outros personagens[2].
O romance se desenvolve a partir de um ponto de vista raramente traçado por uma narrativa literária, o das mulheres (afro-brasileiras ou africanas) que, após a diáspora, reconstroem a si mesmas, na medida em que participam da transformação da sociedade pós-colonial. Essas protagonistas agem sobre as três conjunturas elencadas por Paul Ricoeur (1994) – econômica, físico-política e civilizatória, porém, a partir de valores bem diversos dos que mobilizaram o colonizador.
A prosa é permeada pelo conceito iorubá de owó (do iorubá, valor), pelo qual se percebe a organização do romance de Olinto, cujo eixo semiológico se estabelece a partir de noções de tribalidade-subjetividade-ancestralidade, na contramão da visão marxista[3] monetária de capital, que se desenvolve a partir do eixo semiológico sociabilidade-objetividade-capitalismo. Dessa forma, é a partir do owó e do axé (energia telúrica circulante) que ocorre o empoderamento do matriarcado.
O narrador funciona, em Olinto, como a primeira personagem da qual faz uso o autor para comunicar ao leitor sua ideologia, buscando-lhe a adesão necessária ao encantamento que faz da proposta mimética uma efetiva experiência estética. Ainda que, ocasionalmente, não comungue dos pontos de vista do autor, faz-se necessário que o leitor lhe dê crédito, cumprindo a tarefa de se movimentar dentre as páginas do romance. Wayne C. Booth (1980) fala das implicações retóricas na ficção, salientando o viés retórico no texto literário, afetando a percepção do leitor e as produções de sentido a partir de suas estratégias narrativas. O narrador de A Casa da Água (2007) é onipresente e onisciente, acessando as memórias que utiliza para compor sua tentativa de convencimento a partir de possíveis diálogos com a protagonista, valendo-se de sua própria imaginação para preencher lacunas necessárias à sua compreensão dos fatos: “[…] é assim que vejo Mariana começando sua aventura, carregada por alguém” (Olinto, 2007a, p. 11). Nota-se, na construção do narrador de A Casa da Água (2007), ao estabelecer Mariana como o fiel da memória do romance, a tentativa de localizá-la em um ponto cronológico muito distante no futuro, como se tivesse acesso às memórias de uma anciã, fugidias e cambiantes, através do véu do esquecimento erigido pelo tempo. Este narrador recupera, em diversos trechos do romance, seu diálogo com o leitor, na medida em que descreve a protagonista como se a estivesse observando através da narrativa, como se de fato a encontrasse e reencontrasse, constantemente, enquanto conta sua história.
Não sei como surpreendê-la no começo de minha história – de sua história –, mas vejo-a, naquela manhã de enchente, sendo arrancada da cama e do sono, ouvindo palavras de cujo sentido completo nem se dava conta, sabendo que havia perigo e que desejavam protegê-la – é assim que imagino Mariana começando sua aventura, carregada por alguém, a luz ainda não viera de todo, um pouco de noite se prendia como água nas coisas, e só a ideia de que o rio transbordara lhe dava medo […] (Olinto, 2007a, p. 16, grifo meu).
O trecho acima reproduz as primeiras palavras do romance. Dessa forma, Olinto principia sua história posicionando o narrador enquanto um observador onisciente que se propõe a contar a história da protagonista a partir de suas reminiscências, enquanto testemunha ocular da trajetória de Mariana ou ainda seu confidente. Booth define, ao analisar os caminhos retóricos para o texto da ficção, a possiblidade do narrador transmitir suas histórias enquanto cenas – de forma primária; enquanto sumário ou quadro ou, o que afirma ser mais frequente, em uma combinação das duas estratégias figurativas (Booth, 1980, p. 170). Esse narrador permanecerá consciente de si próprio e da natureza literária de seu intento e definitivamente não é envolvido nas ações que irá descortinar ao leitor.
O narrador de Antônio Olinto aponta, frequentemente, para o fato de que versará sobre as recordações de Mariana, seus pensamentos e sua experiência de vida, alternando, sem qualquer sinal maior desta modificação de curso, a descrição de memórias, pensamentos e fatos. No momento em que utiliza o verbo “imaginar”, Olinto localiza a obra enquanto indústria da imaginação, ou ainda, abre espaço para um questionamento sobre o acesso deste narrador sobre os fatos que descreve, uma dubiedade constantemente reiterada – ora posiciona o narrador enquanto observador da vida da protagonista e seu cúmplice, ora adventa com sutileza a possibilidade de ficção – em uma retórica ficcional que perpassa Alma da África (2007). Divisa-se, porém, de maneira definitiva, o projeto de Olinto de desenhar o desenvolvimento e o processo de consolidação da protagonista enquanto indivíduo. A partir do momento em que elege a trajetória de Mariana enquanto objeto de sua história, descreve a consolidação de sua personalidade com riqueza mimética. Dessa forma, este narrador se localiza enquanto sujeito maduro e partícipe dos valores morais e espirituais de sua protagonista, enquanto vai reduzindo sua distância intelectual da mesma, descrevendo o amadurecimento de sua psicologia.
Mariana aparece nas primeiras páginas na vacilante fragilidade e incerteza tipicamente pueris e chega às páginas finais no auge de sua maturidade – momento em que se desenha o ápice do que Carl Gustave Jung (2014) define enquanto individuação (processo de vir a ser do sujeito em indivíduo pleno em sua percepção de mundo). O apogeu de Mariana enquanto sujeito aparece, no encerramento do primeiro romance, na repetição do desfecho trágico e no epicédio[4] da protagonista frente à perda do filho em condições similares à do marido.
A cosmovisão africana se assenta em três pontos, a partir dos quais um sujeito é bem sucedido em sua vida: a prole – que deve ser numerosa; a fartura – que difere da ideia de mera acumulação de bens e relaciona-se com uma ideia de pleno gozo dos recursos naturais no decorrer da vida e de movimentação das riquezas dentre os membros da tribo (é interessante como o conceito de riqueza relaciona-se diretamente com o de movimento no pensamento iorubá e não com o de acúmulo, tal como ocorre na perspectiva eurocêntrica); e, finalmente, o conceito de longevidade – um sujeito, para concretizar sua existência em plenitude, deve atingir grande prole, a partir da qual imortalizará seu nome e transmitirá os valores de sua tribo para as futuras gerações. Mariana, enquanto personagem central do primeiro romance da trilogia e matriarca da família sobre a qual se desenvolve a épica de Olinto, é uma mulher plenamente sucedida nos três aspectos que norteiam o sujeito no mundo orixaísta.
Para um iorubá, três são os objetivos maiores da existência: a abundância, que difere da ideia de riqueza ocidental, aproximando-se da natureza e da sustentabilidade e razoabilidade do uso de recursos, devendo ser comungada pela comunidade; a longevidade, celebrada na velhice, muito distante da visão narcisista da eterna juventude; e a fertilidade, fundamental para a transmissão dos valores civilizatórios, calcada na tradição e na oralidade. A personagem que representará, acima de todos os outros, o êxito destes valores da civilização orixaísta é Mariana, cujo percurso de vida fundamenta-se no primeiro romance da trama, mas se desenvolve, como coadjuvante, nos demais tomos de Alma da África.
Michel Pêcheux (2010, p. 50) afirma que a memória é formada por diversos matizes que se entrecruzam. Assim, mais que um produto da mera memória individual, a memória mítica, inscrita no inconsciente coletivo descrito por Jung (2014); a memória social, inscrita em práticas do grupo e a memória histórica, construída pelo historiador e inscrita na cultura e na ciência, se misturam na composição de uma narrativa. Olinto propõe, no primeiro romance da trilogia Alma da África, um narrador que parte do processo de evocação dos fatos depositados na mente de Mariana, na medida em que necessita definir um marco zero, um primeiro sujeito em sua proposta literária:
Ponho esse despertar com enchente como início das lembranças de Mariana, e pensei muito na melhor maneira de contar o que aconteceu com ela. Poderia ter escolhido o sistema do narrador alheio, separado dos acontecimentos, mas de tal modo me é íntima, conhecida, a história de Mariana, que só consigo transmiti-la colocando-me de dentro e narrandoa-a como se eu estivesse, a cada passo, acompanhando as cenas, ouvindo diretamente os diálogos e recebendo na cara as emoções da longa viagem da menina (Olinto, 2007a, p. 12).
Com efeito, já nas primeiras páginas do romance, surgem exemplos de memória mítica, social e histórica a se confundirem à experiência das personagens, representadas a partir do ponto de vista da protagonista. A psicologia de Mariana é construída de forma gradual, descrevendo o amadurecimento dos caracteres que irão compor a matriarca da família Silva, desde o momento em que é retirada de sua casa em meio a uma grande enchente, início do deslocamento que é objeto central, segundo o narrador, de sua história: “Porque é de uma viagem que se trata e dela irei falar, a partir da manhã em que Mariana foi tirada da cama e levada para a rua, que ficava em plano mais alto do que a casa” (Olinto, 2007a, p. 12, grifo nosso). A Casa da Água (2007) apresenta ainda, de forma acentuada, uma circularidade dos fatos, que comunga com o pensamento africano[5].
O romance tem início com uma grande enchente. São as águas de um rio, o Piau, que irão fazer com que Catarina (Ainá), no comando da família Santos, tome a decisão de retornar para a África, levando consigo a filha, Epifânia, e os netos, Mariana, então com dez anos, Emília, com cinco anos e Antônio, com três. Catarina posiciona-se como líder da família e é forte seu desejo de retorno para a África. Sofre ao perceber a demora em cada momento de viagem, temerosa de fracassar em seu projeto de retorno. Vê ainda no fato de Mariana já estar com dez anos uma preocupação. Devem iniciar o quanto antes “A viagem” (primeira parte do romance), de maneira que a menina estabeleça sua identidade em África (Olinto, 2007a, p. 16).
Regina Zilberman, ao analisar a presença do mito no romance, salienta o contraste entre mudança e permanência, quando afirma que “as relações se transformam, mas as pessoas continuam ocupando as mesmas posições relevantes” (1977, p. 53). Detecta, no que denomina “saga familiar”, uma circularidade onde a permanência e, portanto, a negação do tempo – que aproxima ainda mais a narrativa romanesca da mítica – ou antes, sua delimitação no que chama de “origem, único tempo verdadeiro e paradigma para o futuro” (Zilberman, 1977, p. 56). Toda a prosa de Olinto evolui a partir de uma sucessão de nascimentos, casamentos e mortes, que serão igualmente comemorados e é conduzida pelo percurso nômade e inconstante, intuitivo e transformador de Mariana. Ao não pertencer unicamente a nenhum continente, Mariana consegue ressignificar seus saberes e reorganizar o mundo de seus antepassados, novo e velho a um só instante. Esta sucessão relaciona-se ao próprio pensamento iorubá, no qual cada pessoa é substituída em seu papel perante a tribo por um de seus descendentes. Na cosmovisão africana, os fatos não são meramente repetidos, mas reordenados e celebrados dentro de padrões idênticos.
Sem ser propriamente africano e sem ser considerado negro em seu país, o homem afrodescendente Olinto compõe, a partir da tentativa de libertação do país imaginário de Zorei – mimese e homenagem ao corpo da mulher amada, Zora – uma obra feminina e afro-brasileira, ou antes, como lembra Mariana, agudá, palavra que significa, a um só tempo, brasileiro e cristão. Aguessy (1980) afirma que a filosofia e o pensamento africanos são expressos na oralidade dos mitos repassados para além da religiosidade e, acima de tudo, no modo de vida e na maneira como este comunga uma alma (ou psique) comunal, onde o espírito individual se relaciona constantemente com o espírito da tribo. Mariana se percebe agente de uma (re)evolução que se deu pela própria evolução, como se vê nos momentos finais de A Casa da Água, quando se principia um movimento de democratização liderado por seu filho, com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Mariana se sentiu ligada àquele chão, estava na África há tempo suficiente para saber que suas imagens eram daquelas terras, tornara-se africana antes de tudo, tanto de Lagos como da Casa da Água e de Aduni, não via muita diferença entre esses lugares, aqui, porém, era onde o filho mais próximo, o último, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que tinha o nome do marido, o que nascera depois da morte do pai, era onde ele trabalhava e morava, onde fora preso, aqui ficava sendo sua terra, como podia ser na Casa da Água ou em Lagos […] (Olinto, 2007a, p. 327-328).
A protagonista, nesse instante, compreende que não pensou o mundo de forma política, mas o contradisse e o modificou pelo estar no mundo. Sem apagar sua origem brasileira, a protagonista se vê como africana. Produz-se, portanto, a definitiva reterritorialização dos sujeitos da diáspora simultânea e intimamente ligada à descolonização da qual a matriarca toma parte:
Na independência nunca pensara com atenção, talvez por se ter sempre achado independente, por ter vindo do Brasil que naquele tempo já era independente e nunca se haver sentido dependente de ingleses, alemães ou franceses. Pouco falara com eles, só se sentira dependente na ocasião em que os ingleses haviam exigido que todos os brasileiros de Lagos falassem inglês e durante a guerra entre os franceses do Daomé e os alemães de Zorei, mas o filho tinha razão, chegara o tempo de cada região tratar de seus próprios assuntos, lembrou-se de que era proprietária importante em três lugares da África, sua opinião teria de pesar […] (Olinto, 2007a, p. 328).
Zilberman (1977), em seu estudo Do mito ao romance, define o primeiro enquanto “elemento unificador e fundamental da vida primitiva”, localizando sua presença de modo notável no interior de romances que chama de “sagas familiares”, na revelação de acontecimentos originais, cercados por outros “sinais míticos” (Zilberman, 1977, p. 47), na composição de um sujeito ligado ao mundo de forma intuitiva.
O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num mundo “aberto” embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e, para compreender esta linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos. […] O mundo não é mais uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos, mas um Cosmo vivente, articulado e significativo (Eliade, 2013, p. 125).
É interessante notar que não apenas encontramos marcas da narrativa mítica e importantes arquétipos representados na prosa de Olinto quanto seus personagens são herdeiros deste pensamento primitivo que subjaz no texto. Dessa forma, investigar o mito que se entrelaça à narrativa de Alma da África e investigar a maneira como este universo é retratado no pensamento das personagens são importantes possibilidades de estudo sobre as maneiras como a macroestrutura arquetípica condiciona a trilogia; evidenciando ainda o fato de que o autor também compartilha das crenças orixaístas de suas personagens, possuindo, portanto, uma ligação ainda mais íntima com a mítica que recupera em sua obra. Eliade (2013) afirma que o conhecimento de ordem esotérica, transmitido ao iniciado em um culto, traz em si uma capacidade, um atributo de controle “mágico-religioso” associado a esta narrativa, comum a diversas crenças (Eliade, 2013, p. 82).
A viagem de que trata a narrativa de Olinto, reiterada pelo narrador, consiste em uma indústria arquetípica per se – o retorno do degredado, a partir de uma travessia de mares perigosos, ao solo nativo – mas se reveste ainda do pensamento africano, pois celebra um arquétipo central na cultura orixaísta: a retomada do poder por parte do matriarcado (como será visto nos mitos que introduzem cada um dos capítulos seguintes). Mariana compreende-se como herdeira de suas ancestrais divinas que já haviam lutado pela manutenção do poder feminino e entende, ao fim, que, se a força matriarcal permanece viva no mundo em que vive, está sufocada pelo poder do colonizador, como percebe na conclusão do primeiro romance, momento em que reflete, igualmente, sobre a circularidade e inevitabilidade dos fatos em uma cronologia, porém, que pode ser recuperada – ou revertida, pelas palavras de Eliade (2013) – até o momento em que as mulheres dividiam o governo do mundo. Este (re)empodarento se faz necessário e é o cerne da trilogia, a partir de múltiplas referências aos mitos ligados às iyabás (orixás femininos), especialmente aos mitos referentes a Oxum, em A casa da água (2007).
Esse mundo “transcendente” dos Deuses, dos Heróis e dos Ancestrais míticos é acessível porque o homem arcaico não aceita a irreversibilidade do Tempo. Como constatamos por diversas vezes, o ritual abole o Tempo profano, cronológico, e recupera o tempo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore. A revolta contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a “construir a realidade” e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu mundo (Eliade, 2013, p. 124, grifo nosso).
Camila Marques (2012) propõe, ao revisar a historiografia da família escrava brasileira, um papel para os escravos enquanto agentes sociais na história do Brasil, levando em conta o ponto de vista dos próprios escravizados. Afirma que “os escravos não foram meros objetos manipulados, desorganizados e que agiam guiados por instintos”, em contraponto a teóricos como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., que, segundo a autora, em linhas gerais, culpabilizavam os descendentes dos escravos por sua situação socioeconômica atual, associando-a a uma pretendida “ausência da instituição familiar” dos escravos (Marques, 2012, p. 56). A autora enfatiza a existência de laços de solidariedade surgidos ainda dentro do cativeiro entre os escravos e mesmo relacionamentos que transcendiam o mero vínculo de paternalismo-subordinação a que se refere Freyre, assumindo verdadeiros laços de afetividade (Marques, 2012, p. 57-58). Freyre representa um “equilíbrio de antagonismos de economia e de cultura”, entre os quais o mais geral e o mais profundo ainda é o do “senhor” e do “escravo” (Freyre, 1980, p. 53), reduzindo a relação entre senhor e escravo a aspectos de exploração e violência e ignorando afetos estabelecidos entre escravos na senzala e entre estes e seus senhores.
Entender esta sociedade enquanto uma organização com polos estanques, definidos entre senhores e escravos, não é o melhor caminho, como lembra Nila Michele Bastos Santos (2014). A autora vê a cultura enquanto um elemento polissêmico, a compor um “jogo conflituoso e tenso nos espaços de convívio social” (Santos, 2014, s. p.), no qual sujeitos, não raro, firmavam afetos e relações das mais diversas, independentemente do vínculo de servidão. O olhar que Olinto estende para a sociedade pós-escravidão brasileira abarca afetos que podem parecer, a um primeiro momento, incompreensíveis. Tio Inhaim é visto por Catarina como um amigo, independente da relação de senhor-escravo que existia entre eles até então.
Sem poupar nada em sua mimese do drama da diáspora africana, Olinto foge, porém, de alternativas maniqueístas de representação. Assim, o primeiro fato que chama a atenção do leitor é o do auxílio recebido por Catarina (Ainá) para seu retorno para a África, após a abolição, por parte de seu antigo proprietário, afetivamente tratado como “Tio Inhaim”. Analisando os limites da mobilidade social de mulheres e mães negras ainda no século XVIII, Dantas (2012) mostra uma relação entre mulheres negras e seus senhores que transcende o jugo escravagista. É notório, vide exemplos como os da célebre Chica da Silva, que mulheres negras cultivavam relações sociais – frequentemente familiares ou afetivas – com homens brancos para que se pudessem beneficiar. Estas mulheres, ainda segundo Dantas, construíram redes de sociabilidade que lhes permitiram um reposicionamento social, a partir de sua libertação mediante alforria (Dantas, 2012, p. 104). Catarina (Ainá), nascida em Abeocutá, Nigéria, fora vendida como escrava pelo próprio tio, durante uma visita à cidade de Lagos, aos dezoito anos. Olinto narra o processo de adaptação da personagem à realidade brasileira. Nesta adaptação, a língua aparece como metáfora do apagamento identitário gradual que se processa. A jovem, ainda conhecida como Ainá, chega primeiro à Bahia, sendo levada até Juiz de Fora, Minas Gerais, onde receberá o nome de Catarina, que termina por obliterar sua identidade de origem.
Conhecera Juiz de Fora muitos anos antas, ainda moça, recém-chegada da Bahia, sem entender a língua daquela gente, achando as palavras duras, lembrando-se da sonoridade das palavras que usara em casa, ekaró, odabó, mó fé jé, tudo tão claro, aberto, simples. Aprendera com raiva suas primeiras palavras de português, no princípio não queria falar a língua e fora exatamente em Juiz de Fora que se dera conta de que os sons lhe entravam sem esforço na cabeça e passavam a ter significado, um dia teve sede e pediu água, teve fome e falou que tinha fome (Olinto, 2007a, p. 21).
A Casa da Água (2007) se afirma enquanto possibilidade poética de revisão de um período da história cujas narrativas são preponderantemente eurocêntricas e masculinas. Assim, a arte e a ciência articulam-se enquanto tentativas de reorganização da realidade, partindo de elementos que as constituem. O estudo da arte é, pois, um estudo da particularidade que constitui o objeto observado, associada ou comparada à realidade que a sustenta. Pode-se afirmar, em dada medida, respeitando as construções teóricas estéticas e éticas (de Lukács), lógicas e antropológicas (de Kuhn), que é possível a percepção de uma estética do texto científico, assim como de uma lógica da reflexão estética. Há ordem na arte, e é esta que permite ao sujeito a compreensão mínima necessária à experiência dita artística. Da mesma forma, sem uma dose mínima de sensibilidade associada ao senso crítico, a descrição científica careceria de um apelo ao homem, em sua busca pela compreensão do mundo, que imprimisse em sua alma a verdadeira cognição. Tem-se, pois, arte e ciência, estética e lógica em situação de armistício, ainda que temporário, no campo de batalha epistemológico que, não raro, relega à arte o estatuto de mero devaneio e à ciência o epíteto de enfadonha. Dedicamo-nos ao estudo da trilogia de Olinto sob estes dois vieses, constantemente buscando um senso estético que faça um sentido igualmente científico. A eficácia do trabalho científico, lembra Julia Kristeva (1978), sempre foi contestada no domínio das ciências humanas. A autora anuncia nas humanidades uma lógica outra, que não a científica.
A escravidão nas Américas sempre esteve ligada ao projeto colonial, de forte caráter comercial. Dessa forma, a maior parte dos escravos em solo americano era de africanos e afrodescendentes. Esses homens e mulheres, convertidos em propriedade, trabalhavam sob regimes duríssimos e eram comercializados abertamente. Gabriel Aladrén (2012) enfatiza que, nas Américas, a escravidão, diferentemente do modelo do Velho Mundo, possuía uma base racial – “com o crescimento do tráfico de africanos, os escravos se tornaram sinônimo de negros” (Aladrén, 2012, p. 20). Desta forma, embora nem todos os negros fossem escravos, a maioria o era. A cor da pele converteu-se rapidamente, em forte elemento de identificação da condição do escravo, marcando sua inferioridade social. Este sentimento perpassou toda a escravidão e perpetuou-se após a abolição, intervalo de tempo representado por Antônio Olinto. Outro fator decisivo no modelo de escravização colonial atinha-se à destinação destes escravos enquanto mão de obra – preeminentemente serviços braçais, voltados para a agricultura, pecuária e mineração, além de serviços domésticos. Os escravos rapidamente converteram-se em maioria populacional, eram em maior número em fazendas e nas cidades.
No Velho Mundo, como atenta Aladrén (2012), os escravos tinham origens étnicas e características raciais variadas (gregos, eslavos, egípcios, ingleses e alemães, dentre outros) em diferentes períodos da história dos países e exerciam funções muito mais amplas que nas Américas – trabalhando como artesãos, soldados, administradores, tutores ou criados – e, portanto, tinham seu potencial intelectual tão explorado quanto o braçal. Nas Américas, a ênfase era da mão de obra básica, composta por um número muito maior de escravos e de duas origens básicas – indígena autóctone e africana. Necessitava-se, portanto, para a manutenção dos liames da escravidão e da submissão dos escravos que sua língua, sua cultura, sua ciência, suas tradições e sua religiosidade fossem apagadas, pois, em maior número em terras americanas, o esquecimento de sua história e de seu manancial de saberes era fundamental para o domínio de seus senhores.
Se, no universo discursivo do romance, o destinatário está incluído enquanto discurso (Kristeva, 1978, p. 71), o escritor eleva-se enquanto um dos macrodiscursos que (re)unem o texto. Em Alma da África, em especial em A Casa da Água (2007), tem-se a sociedade enquanto um terceiro discurso subjetivador. A sociedade que atua discursivamente na obra tem características bastante distintas da que se vê no romance europeu da metaficção historiográfica delimitada por Linda Hutcheon (1991). Muito antes do pensamento engendrado pela experiência da União Europeia expressar-se no romance, Alma da África brinda ao leitor com uma proposta que é, a um só tempo, tribal e supranacional de sociedade, a interpelar o brasileiro em meio à ditadura e o processo de redemocratização (o primeiro romance da trilogia foi lançado em 1969 e o terceiro em 1987).
Em uníssono ao pensamento de George Lukács (1978), este trabalho tem a teoria marxista como uma das possibilidades para o estudo da literatura que representa a os sujeitos da diáspora no período da pós-colonialidade. Embora não se possa abandonar o pós-estruturalismo e as teorias fabricadas no Ocidente, as discussões sobre transnacionalização, hibridismo, nomadismo, sincretismo, crioulização e as literaturas poliédricas produzidas na representação desta realidade não podem ser analisadas unicamente por teorias que se atém ao pós-colonialismo. A teoria marxista poderia servir para um melhor entendimento sobre o imperialismo, enquanto uma característica do capitalismo. A dialética materialista, a partir de autores como Lukács, analisa as literaturas pós-coloniais, porque ela é capaz de enfrentar as coordenadas materiais do imperialismo sem reduzir o texto literário a um relacionamento mimético com a realidade, tampouco limitá-lo a um simples objeto de análise dos discursos veiculados. Sem se ignorar, por exemplo, a importância das teorias feministas e do pós-colonialismo na composição do manancial teórico necessário à desconstrução do imperialismo e do patriarcalismo, percebe-se a necessidade da crítica de conectar os textos literários aos contextos históricos, valendo-se da dialética marxista.
Em sua forma ortodoxa, a teoria pós-colonial e os feminismos analisaram, com muita propriedade e profundidade, embora frequentemente no viés apenas discursivo, os mecanismos, as causas, as consequências e os resíduos do colonialismo e do patriarcalismo, mas parece que deixaram de entender a história dos movimentos sociais de libertação, explicar as teorias de libertação total, e compreender a centralidade do imperialismo para o capitalismo (Bonicci, 2006, p. 14).
Em conformidade ao olhar de Thomas Bonicci (2006), este trabalho busca ampliar as possibilidades de reflexão sobre o texto literário a partir do materialismo marxista, porém, faz eco ainda ao olhar de teóricos como Edward Said, que vê, em seu Orientalismo (1996), a necessidade de uma descentralização dos pensamentos eurocêntricos para se tratar de sociedades que tiveram, justamente, na Europa, seu algoz. Dessa forma, pensar o mundo a partir da cosmovisão tribal orixaísta pode lançar luzes sobre a maneira como essas mulheres, a partir da celebração de seus valores ancestrais e de seu empoderamento enquanto coletividade, lançam-se ao mundo patriarcal, desafiando suas regras. O universo de Alma da África supera, porém, o imediatismo materialista de Karl Marx (s.d.). Na obra, é o bem tribal que deve ser privilegiado, e este leva em conta dimensões espirituais, divinas e ancestrais.
Longe de se ater à noção de bem social comunista, um senso de responsabilidade tribal leva Mariana, ao comerciar a água que extrai de seu poço, a vendê-la por diferentes valores, de acordo com o poder aquisitivo dos compradores, ou antes, a doá-la secretamente àqueles que, necessitando do bem vital, não podem comprá-lo, em A Casa da Água. Desde o princípio da trama, as mulheres desenvolvem-se em âmbito privado e público sem a presença masculina. Já sob a Lei do Ventre Livre, Catarina (Ainá) dá à luz sua filha, Epifânia, sem qualquer menção ao pai da criança. Seus netos, que a acompanham também em sua aventura de regresso, Mariana, Emília e Antônio, nascem já após a abolição, sendo criados sem saber a identidade do pai. Após uma grande enchente que alaga a cidade do Piau, onde se localiza a fazenda onde ainda vivia com a família, a mulher, já anciã, decide pela volta ao país de origem. Catarina (Ainá) passa a juntar dinheiro, aceitando ainda o auxílio de seu antigo proprietário, que chama, familiarmente, de “Tio Inhaim”, e de outros ex-escravos, após o fim da escravatura. A família demorará, porém, ainda dois anos até que o retorno à África seja possível. Saindo de Minas Gerais, passam por um período no Rio de Janeiro, indo estabelecer-se, finalmente, na Bahia, onde buscam uma embarcação que propicie seu retorno. Durante esse período, passam a trabalhar em um mercado, na venda de peixe, lugar onde passarão as noites.
Uma leitura atenta de Alma da África exige do crítico a disposição de questionar, ao mesmo tempo em que se utiliza de conceitos eurocêntricos tais como feminismo (ou feminismos) e pós-colonialismo. Nascida no Zimbábue, a escritora (e feminista) Anne McClintock (1994) percebe a ideia de um pós-colonialismo eivada de contradições, na medida em que, para se pensar a superação do período das colonizações é necessário imaginar-se um mundo onde não exista a inegável crise generalizada e histórica da concepção de “progresso” (McClintock, 1994, p. 91). McClintock vê a necessidade de uma revisão constante de conceitos como feminismo e pós-colonialismo para a análise de sociedades onde práticas capitalistas e pré-capitalistas podem ocorrer simultaneamente e, não raro, simbioticamente. Da mesma forma, a teoria feminista não considera a intrincada estrutura social de realidades onde países “imaginados” por interesses externos romperam com a tessitura tribal e a complexa relação étnica de grupos que convivem há milênios, como é o caso da Nigéria, Benin e da fictícia Zorei. A geografia política é relativizada, nestas sociedades, por uma geografia étnico-tribal e, não raro, mítica. Assim, o pensamento mágico determina que culturas se diferenciem em prol de seus deuses fundadores e que a própria topografia dos territórios pode ser determinada por um mito ou divindade, que, diferentemente do que acontece na Europa – onde diversos acidentes geográficos ou a topografia de cidades tiveram seus mitos fundadores apagados pelo tempo – o mito permanece vivo e constantemente celebrado. Assim, determinados limites geográficos, culturais, econômicos, são respeitados e outros são relativizados ou esvaziados por força do pensamento mágico.
O hábito de grandes deslocamentos feitos a pé, sem qualquer apoio de meio de transporte, passando noites ao relento, nas proximidades da estrada, mostra-se uma prática herdada da África por Catarina, como se vê em sua ida a um ritual de sacrifício para Xangô. Xangô é o primeiro orixá que surge na narrativa, divindade de devoção de Catarina. É nesse episódio que aparece a primeira representação de uma possessão religiosa. Durante esse ritual, jovens são tomadas pelo orixá, sob o olhar atônito da pequena Mariana.
Mariana viu a avó entrar na roda e sair dançando como as outras. O som do tambor e dos cânticos se tornou íntimo, as danças foram ganhando força, de repente uma das mulheres deu um grito e ficou num canto da sala, os braços esticados, olhos fechados, o lábio inferior estendido, e logo se atirou numa dança rápida, o corpo dando voltas sobre voltas, todos ao redor gritaram kauô, e outra mulher imitou a primeira, e em alguns instantes eram várias que dançavam na maior das entregas, a roda se desfez numa alegria geral, Mariana acompanhou cada volteio das mulheres que dançavam, uma parecia às vezes que ia chocar-se com outra, mas as duas se detinham a tempo (Olinto, 2007a, p. 51-52).
Outra alegoria que aparece com grande força em Olinto é a da máscara Egungun. A partir dela, o religioso iorubá resgata do mundo dos mortos (o Orum) a presença dos ancestrais, que poderão, personificados pelo religioso que ostenta a máscara, passear pelos lugares que visitava em vida. Assim, o ancestral é revivificado e se propõe a uma retomada de sua trajetória habitual. O fato cotidiano e a experiência do sujeito enquanto membro de sua tribo é, desta forma, fortalecido e alçado ao status de fato mágico e sagrado. Há ainda um papel moralizador do egum, espírito de um antepassado, que poderá erguer-se dos mortos para reestabelecer valores tribais perdidos momentaneamente, em ato de moralização da urbe. Assim, os antepassados, a partir da visão de mundo iorubá, participam da vida de seus descendentes.
[…] ouviu dizer que a festa era de Eguns, em homenagem às almas dos antepassados que se chamavam Egunguns na África e eguns na Bahia, os eguns surgiram tarde da noite, com roupas coloridas, pareciam lisos como tábuas, haveria alguém embaixo daqueles panos?, o rosto desaparecia, todos se ajoelhavam, diziam agô, esfregavam uma das mãos na outra, perguntavam coisas, agradeciam a resposta, os adupés e modupés ecoavam pela sala, […] (Olinto, 2007a, p. 51-54).
Ao teorizar sobre a diáspora, Stuart Hall (2003) afirma que cada dispersão carrega consigo a esperança de um “retorno redentor”. Fala de uma identidade cultural fixada no nascimento, enquanto parte da natureza impressa através do parentesco e da genética, constitutiva da subjetividade. Essa visão de identidade fixa e herdada como tradição (na sua acepção mais centralizadora) não abarca questões como a hibridização das culturas pelo inevitável contato do contexto diaspórico e a crioulização decorrida do contexto multicultural. Essa hibridização e o sofrimento pela adaptação ao estatuto irreversível do sujeito da diáspora é representado em diferentes pontos de vista pelo drama de Catarina (Ainá) em sua tentativa de retorno que é frustrada pela realidade da diáspora; pelo sofrimento de Epifânia pela desterritorialização sentida por uma afrodescendente brasileira em solo africano e pela adaptação de Mariana ao contexto híbrido das comunidades pelas quais transita na África – africanos, brasileiros descendentes de africanos retornados e colonizadores europeus. Mariana representa a riqueza do que Edward Said 1996 chama de “culturas irremediavelmente impuras” e, por isto mesmo, ricas de significações novas, em uníssono a uma modernidade inevitável. Ao retornar a seu país de origem, Catarina busca para si o passado que lhe fora roubado e seu vínculo com estes ancestrais, capazes de passear pelas ruas. Um passado que a assombra, na medida em que é capaz de se levantar dos mortos, tal como os Egunguns, mas que lhe devolve sua razão de existir, em seus momentos finais.
Catarina respondia com poucas palavras, usava muito “eu quero”, o som iorubá de mó fé permanecia no ouvido da filha, que sonhava com ele, a mãe sempre fora de poucas vontades, anulava-se, hoje afirmava que queria isto, queria aquilo, em Lagos ia querer tal ou qual coisa (Olinto, 2007a, p. 64).
Destarte, a diáspora fragmenta a identidade de Catarina (Ainá) e o processo de reconquista desta identidade perdida dá-se a partir do retorno à África. Lentamente, a personagem adquire um traço que, até então, era desconhecido pela filha: vontade própria. Torna-se, no navio, silenciosa, em um primeiro momento, voltando-se para suas memórias, tentando remontar os traços de sua antiga personalidade. Ainda que sua transcendência ao sofrimento da diáspora dê-se apenas com a morte, Catarina (Ainá) integra a espiritualidade que alimentará o matriarcado que se inicia, irá reencontra-se como parte de uma família que se une à comunidade a partir de sua ancestralidade.
*José Ricardo da Costa realiza doutorado na área de Estudos de Literatura, em Pós-Colonialismo e Identidades, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Estudos de Literatura, Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas (UFRGS). Algumas de suas publicações: Opaxorô, o cetro dos ancestrais: mímese e mito na representação de mundo afro-gaúcha (UFRGS, 2016); Emília e Oxum, da Reinação à ação no reino: indícios e vestígios em uma proposta comparatista (UNIPAMPA, 2014), dentre outras.
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Notas
[1] Reforçando a abordagem desta pesquisa de um ocultamento da participação masculina na narrativa central, o “marido” de que trata a segunda parte do romance é representado em sua ausência, na medida em que Sebastian Silva (o pai) parte logo após o nascimento da pequena Ainá, retornando apenas ao fim do capítulo para poucas cenas antes de sua morte, deixando Mariana grávida de seu terceiro filho.
[2] Um movimento neo-sebastianista, encabeçado pela filha de Sebastian, Mariana, será a temática central do terceiro romance da trilogia, O rei de Keto (Olinto, 2007).
[3] Para Karl Marx (s.d.), o valor de uma mercadoria está ligado ao trabalho que é necessário para que seja produzida, e sobre o qual diversas circunstâncias se sobrepõem, implicado ao conceito de capital. Valores subjetivos, porém, como prazer ligado ao trabalho e tradição de trabalho, bem como implicações espirituais do trabalho perante a comunidade e a divindade, presentes no conceito de owó e axé, ultrapassam os aspectos desenvolvidos pelo autor.
[4] Do grego, epikêdeios (Moisés, 1982, p. 188), sofrimento ou canto plangente de personagem em presença do corpo do morto.
[5] Como será visto, esta circularidade se intensifica pela ruptura com o tempo cronológico em O rei de Keto (2007) e é enfraquecida em Trono de vidro (2007), de acordo com as intenções retóricas do autor.