1. As dimensões econômicas da preservação patrimonial
“Flores adornam cada estação desse Calvário. São as flores do mal. Aquilo que é atingido pela intenção alegórica permanece separado dos nexos da vida; é, ao mesmo tempo, destruído e conservado. A alegoria se fixa às ruínas. Oferece a imagem da inquietação entorpecida.”
Walter Benjamin, 1989
Charles Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”, é a referência assumida por Walter Benjamin para compreender a Paris moderna do século XIX. Buscava, assim, entender as transformações produtivas e espaciais operadas na modernidade que, ao desmantelar relações sociais e, frequentemente, o suporte físico sobre as quais se desenrolavam, verdadeiras ancoragens mentais da memória coletiva, geravam angústia e um sentimento de perda. Poderiam ser esses espaços e as relações sociais que nele se ancoram ao mesmo tempo destruídos e conservados?
A estratégia de preservar conjuntos históricos da paisagem, espaços urbanos construídos e elementos arquitetônicos de valores excepcionais era, naquele momento, uma prática relativamente recente. Surge como contraponto às ações promovidas a partir da Revolução Francesa (1789) de destruição de símbolos e monumentos que representavam o poder no Antigo Regime. O desejo de preservação da memória surge naquele momento, que coincidia, de um modo geral, com a formação dos Estados nacionais, como uma importante reação. Passa a ser validada pelo sistema de acumulação de capital a memória consolidada em uma seleção de objetos associados, sobretudo, ao poder de determinadas classes sociais. Foram preservados igrejas (clero), castelos (aristocracia), mercados (burguesia comercial) e equipamentos de usos coletivos como, entre outros, teatros, museus e bibliotecas (comunidades locais). O modo de ser nas cidades do novo sistema urbano moderno estaria, a partir de então, intrinsecamente relacionado a esses dispositivos de memória social. Apenas recentemente passaram a ser preservados feiras de artesãos, fábricas, vilas operárias, fortalezas militares, estações ferroviárias, sobrados das classes médias urbanas, e registradas manifestações culturais de comunidades tradicionais.
Podemos situar, assim, na modernidade as condições sociais, culturais, políticas e econômicas que possibilitarão emergir e florescer o discurso da preservação do patrimônio cultural. As rupturas abruptas de valores culturais compartilhados alçaram, neste sentido, objetos arquitetônicos em risco iminente de destruição ao patamar de ancoradouros da memória coletiva. O que nos permite considerar que a modernidade alterou profundamente a concepção humana do espaço (destruindo, construindo) e do tempo (acelerando e desacelerando). A partir de então passam a ser formuladas, com maior ou menor êxito, políticas públicas visando a assegurar a permanência do patrimônio edificado no território.
1.1 Modernidade e cultura
Na modernidade, as cidades tornam-se o espaço da produção material, com a ruptura da unidade espacial – habitação-trabalho – do feudalismo, permitindo a livre circulação de capital, consumidores e mercadorias, de acordo com os novos modos de vida exigidos pela consolidação dos Estados nacionais. Ao mesmo tempo, alterava-se paulatinamente a concepção hegemônica da cultura. Novos símbolos materiais e imateriais foram criados para situar culturalmente o povo no território.
Os principais marcos simbólicos e econômicos da modernidade coincidem com a mudança da noção de cultura, posta pelo Iluminismo. Era preciso criar uma cultura de valores alheios aos compromissos e relações sociais fixas das comunidades tradicionais, estimulando o consumo em massa, o compromisso com jornadas de trabalho rígidas e o respeito à ordem, às leis burguesas e aos valores exógenos.
No contexto geopolítico da América Latina, o início da modernidade coincide com a colonização europeia sobre os povos explorados e escravizados. A teoria decolonial considera como evento inaugural da modernidade as grandes navegações e a chegada dos europeus às Américas. Esses eventos relacionados, a partir do saque de ouro, do trabalho escravo e do domínio da propriedade territorial, explicam as bases de valor para uma acumulação primitiva de capital que culminou, sobretudo na Inglaterra, na Revolução Industrial e na hegemonia do modo de produção capitalista global.
Um dos pontos que compõem a matriz colonial de poder da modernidade/colonialidade foi descrito por Ramón Grosfoguel (2012), decorrente da teoria do sistema-mundo:
um sistema interestatal político-militar de Estados dominantes e subordinados, de Estados metropolitanos e periféricos, correspondentes na maioria dos casos à hierarquia da divisão internacional do trabalho e em sua maioria organizados ao redor da ficção do Estado-nação (Grosfoguel, 2012).
Neste sentido, é possível relacionar a narrativa de preservação do patrimônio cultural ao nascimento dos Estados nacionais como um símbolo para legitimar uma determinada unidade entre o povo e o território, em torno de elementos preponderantemente europeus. Durante o século XVIII, a burguesia e seus valores revolucionários à sociedade feudal alteraram paulatinamente a forma de organização e produção do espaço. O sistema de acumulação rompeu com qualquer tradição incoerente com valores capitalistas. A burguesia era a primeira classe dominante da humanidade que assumia o poder não pelo que os seus ancestrais eram, mas pelo que eles realizavam, não tendo compromisso aparente com identidade e tradição.
As Revoluções, Industrial e Francesa, marcam a grande ruptura da continuidade que abriu espaço para a era das invenções das tradições, estudada por Eric Hobsbawm (2002). As tradições inventadas são reações a situações novas, estabelecendo seu próprio passado, por meio de uma continuidade artificial. Elas são um contraste entre as constantes mudanças do mundo moderno e a tentativa de estruturar, de forma imutável, certos aspectos da vida social.
O que entendemos como patrimônio cultural forja-se também sobre o processo de invenções de tradições para emprestar o sentido de lealdade e coesão aos elementos constitutivos do Estado-nação. Esse conceito origina-se de uma demanda criada pela invenção dos próprios Estados-nações. Nos países europeus foram utilizados como artifícios de manutenção de poder do clero e da nobreza, que foram fortemente abalados pelas revoluções burguesas.
No Brasil, inicialmente, a retórica do discurso preservacionista sustentava-se, sobretudo, em imóveis característicos da colonização de uma elite branca europeia. O Estado, por meio de suas diretrizes, regulamentações legais e ações fiscalizadoras, passa a ser um agente central, que transforma coisas em bens, dirimindo conflitos, determinando quais objetos devem ser protegidos e liberando outros para serem destruídos (Gonçalves, 2002).
A preocupação moderna dos “administradores da vida social”, expressa pela tarefa de substituir a ordem divina pela ordem artificial racionalista, baseada em leis, envolveu também técnicas de moldagem da mente humana e da vontade a partir do controle e da educação comportamentais. Esses elementos fundiram-se na ideia de cultura, de forma paradoxal e ambivalente, posto que a emancipação e a liberdade humana, que a modernidade preconizava, deveriam sofrer limites para impedir uma universalidade no exercício dessas ações, que seria incoerente com o modo de exploração capitalista do trabalho.
O conceito de cultura, assumido desde o início da modernidade, passou a conciliar essa dupla estratégia, ou uma série de oposições: cunhar uma condição humana, buscar a autoafirmação e a criatividade libertadora de uns, e a regulação normativa e a obediência às leis por outros. As definições de cultura como construção de uma ordem social e urbana fazem pensar exatamente no papel que o patrimônio cultural tinha neste momento da modernidade. Bauman (2012) aponta que era preciso mostrar pela morfologia urbana como a ordem e os valores foram produzidos até então e que deveriam ser imutáveis.
A concepção universal de cultura verifica-se pelo vínculo do homem ao solo, através do genius loci, o “espírito do lugar”, que caracteriza o povo nascido em determinado local, a partir de três recursos fundamentais: clima, solo e paisagem. O solo caracteriza-se como o recurso diferenciador para a manifestação da cultura, pois é o lugar onde se assenta o Estado- nação. Além de compor a paisagem, por meio da interação cultural entre homem e meio ambiente, e sofrer as influências do clima, o solo serve como suporte para as diversas atividades humanas (Buela, 2005).
Este sentido de cultura como resultado da ação histórica foi apontado pela primeira vez por Marx, a partir da célebre frase: “tudo que é solido desmancha no ar”, sublinhando o papel transformador das capacidades humanas, acirrado pela luta de classes. A era moderna foi marcada por contradições, geradas pela revolução incessante dos meios de produção. Se, por um lado, os novos suportes às atividades, processos, poderes e expressões demonstram que não há limites para a criatividade, a invenção e a realização da atividade humana, por outro, provocam a destruição constante das relações sociais fixas, uma apropriação indevida de valor e o embotamento do espírito do homem moderno. A contradição em sua base estava no caráter revolucionário da burguesia, que desenvolvia uma moderna tecnologia, organização social, poder produtivo e transformador, mas sem poder seguir sendo plenamente revolucionária, sob o risco de perder seus poderes e privilégios (Berman, 1986).
O que era construído no século XIX era monumental, mas as construções não eram feitas para durar, o que se construía era feito para ser posto abaixo. A autodestruição inovadora do capitalismo, que precisa se desfazer das coisas para refazê-las continuamente, realimentando o ciclo intermitente de produção de taxas de lucro: “ainda as mais belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis, capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas” (Berman, 1986, p. 98).
A aceleração do processo de modernização, fragmentação das narrativas de vida e perda de contato com as raízes culturais associada ao fluxo cada vez mais veloz do tempo transformado em dinheiro colocou o patrimônio cultural como uma tática política dos sujeitos modernos para lidarem com a estratégia do capital de destruir as ancoragens físicas da memória coletiva, para tentar frear a desintegração real e simbólica operada na produção social do espaço.
1.2 Espaço e tempo
A compreensão humana sobre o espaço e o tempo, de maneira articulada, como duas dimensões idênticas, foi alterada pela invenção humana do tempo desvinculado dos eventos naturais na sociedade industrial. A concepção do espaço e do tempo abstratos permitiu ao homem, ao longo do seu processo evolutivo, planejar no espaço aquilo que acontecerá depois que ele partir, deixando objetos fixos, expressando uma memória evocada pelas novas gerações. Essa capacidade humana tomou outras proporções com a hegemonia do tempo socialmente necessário para a produção e o consumo de mercadorias. O tempo veloz regido pelo capital tornou a cidade o local indispensável para a realização do lucro, deixando-a sem muitos espaços para contatos sociais, compromissos comunitários e vínculos sociais mais duradouros. A vivência humana no espaço urbano moderno é bem caracterizada na Paris reconfigurada pelas reformas de Haussmann (1850-1871), associada ao consumo ocasional e despretensioso, a uma atitude blasée diante do encontro inesperado, a uma vivência no espaço fugaz da metrópole capitalista, livre de vínculos comunitários e laços de vizinhança.
O espaço socialmente produzido em um mundo urbano-industrial caracterizava-se pela homogeneidade, fragmentação e hierarquização, assumindo uma categoria de interpretação da realidade social e política. O conceito de espaço compreendido pelas relações sociais de produção é operacionalizado pela categoria de “espaço social” (Lefebvre, 2006, p. 12), que permite compreender o patrimônio cultural como um “construto social”, preservado em função da memória coletiva e das representações sociais, significando paradoxalmente a demarcação de espaços da memória em que o poder representado está ameaçado.
O tempo social, cujo fluxo é determinado pela velocidade de circulação monetária, torna-se contraditório com o tempo lento e defasado do patrimônio cultural, evidenciando a construção do passado no presente pela seleção de fatos históricos necessários para narrá-lo. Ao entrelaçar passado, presente e futuro, o patrimônio contrasta com a concepção racionalista e linear do tempo abstrato.
O passado é narrado no presente, projetando um futuro que se expressa pela capacidade de imaginar, sonhar, planejar etc. Todas essas são ações capazes de expressar essa memória prospectiva, que se projeta para o futuro, que estamos tentando preservar. O patrimônio cultural oferece essa dimensão temporal ampliada para pensar as cidades, por condensar essas dimensões no conhecimento do passado, na revisão de valores atuais e no planejamento do desejo de preservar ancoragens da memória coletiva.
Por outro lado, o patrimônio vem sendo produzido como espaço híbrido para significar resistência ou espetáculo, sendo facilmente capturado pelos interesses econômicos hegemônicos, gerando cicatrizes nos espaços urbanos e nas relações sociais. A memória coletiva que ainda está viva no cotidiano das cidades confere sentido para a interpretação dos espaços como uma ancoragem fixa e duradoura.
O patrimônio, ao evocar memórias e expressar signos atemporais, dialoga e transmite valores entre as gerações e representa esse atributo simbólico do espaço social compreendido como base para o desenvolvimento de atividades econômicas. Em toda a sua potencialidade simbólica e democrática, o patrimônio edificado reforça a memória coletiva, servindo como suporte físico para as manifestações culturais nas cidades contemporâneas.
1.3 Território e políticas públicas
O controle sobre o tempo e o espaço permitiu o desenvolvimento de um sistema de poder no qual o território torna-se a categoria capaz de mediar as relações sociais. O patrimônio cultural edificado situado no território é um “construto social”, em que, por meios de políticas públicas de preservação, cria-se uma morfologia de gerações entrelaçadas. Cada geração é responsável pela gestão do patrimônio que herdou, ao mesmo tempo que cria patrimônios para as próximas gerações, gerando a produção de um estoque permanente de bens protegidos.
O resultado da transformação do discurso preservacionista em ação política foi estruturado por um sistema de valores, buscando conferir unidade e coesão do povo ao território. O discurso preservacionista, verificado primeiramente na Europa, ainda no século XVIII, nos anos pós-Revolução Francesa, aparece no Brasil no século XIX e se institucionaliza durante os anos de 1930, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, a primeira instituição dedicada ao patrimônio cultural na América Latina.
As cidades vinham sendo remodeladas a fim de atender às transformações homogeneizadoras do capital, arruinando as construções e os aparatos físicos da memória coletiva. Os intelectuais modernistas brasileiros que capitanearam a proposta de preservar o patrimônio nacional teceram narrativas sobre suas impressões de mundo, buscando conciliar crescimento econômico com a preservação das identidades culturais e a herança do patrimônio histórico arquitetônico. Ações que ecoaram nas estruturas mais profundas do Estado nacional, deixando marcas até os dias de hoje.
Naquele momento, observava-se o discurso preservacionista na administração pública. Projetos de preservação cultural foram transformados em decretos-leis, ações ordinárias em políticas públicas articuladas, e se construíram instrumentos jurídicos para definir, selecionar e proteger o que seria o patrimônio nacional. A seleção de valores materiais a serem protegidos, por meio do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional, foi oficializada pelo Decreto-Lei n. 25/1937, instituindo o tombamento como ato do poder público. Tal ato representou o primeiro instrumento institucional no Brasil capaz de regular a propriedade privada, limitando interesses econômicos e reforçando a função social da propriedade, permitindo organizar um sistema de gestão patrimonial, com suas ancoragens institucionais e territoriais (Rabello, 1981).
O conceito de território favorece a relação entre políticas públicas e patrimônio cultural por meio de demarcação e disputas por espaços físicos, recursos, e de reconhecimentos de valor. O território torna-se uma categoria capaz de abarcar relações sociais diversas, em uma disputa para atribuir valores imateriais aos bens presentes nos espaços urbanos construídos. Essa categoria reúne, sob o ponto de vista da democracia, mecanismos de produção e apropriação real e simbólica dos recursos disponíveis.
O patrimônio cultural é um atributo do território, mediando relações sociais diversas: entre gerações, entre objetos e sujeitos, entre estratégias e táticas de ação política etc. É nesse território socialmente construído, concebido a partir de transformações do espaço, no tempo, reflexo das relações sociais, das lutas de classe e das ocupações simbólicas, um território politizado, que se situa o patrimônio cultural edificado. A narrativa patrimonial legitima assim uma disputa por recursos do Estado, que empodera, mantém, reafirma e protege das ameaças aniquiladoras do capital.
Considerando a visão do território posicionado entre o passado e o presente (Santos, 1996), é possível conceber a relação que se estabelece do patrimônio edificado como um recurso à comunidade. Situado na esfera da cultura e operacionalizado enquanto política pública, o patrimônio cultural é capaz de corporificar direitos, ao tornar meros objetos sujeitos ativos, potencializados muitas vezes pelo cotidiano.
Em uma estrutura capitalista periférica, que busca mercantilizar os artifícios da memória e das imagens, o patrimônio edificado adquire, enquanto bem territorial, um caráter de: resistência à generalização imposta pelo capital financeiro, que pode, ao passo, espetacularizá-lo em um ambiente urbano de consumo. O capital, ao transformar o território em “superfície lisa e sem marcas (…) admitidos apenas os sinais indicativos dos contextos propícios à ancoragem, circunstancial e veloz, dos investimentos e, portanto, aos pousos indispensáveis ao lucro” (Ribeiro, 2005, p. 125), pressiona o patrimônio cultural a se associar a um ambiente de consumo espetacularizado e despolitizado.
O patrimônio cultural assume, assim, uma dupla perspectiva: (1) enquanto aparato físico, permanece no tempo, estancando o ciclo do lucro da produção capitalista do espaço construído, corporificando uma ação política; (2) enquanto espaço socialmente construído para evocar a memória coletiva, torna-se um atributo territorial, um espaço de disputa de narrativas, expressão do sujeito coletivo que corporificou direitos. Torna-se um ativo (contra ou para) a penetração da fração financeira do capital, obtendo recursos para manutenção de atividades econômicas, podendo ainda ser facilmente apropriado, mercantilizado, despolitizado e espetacularizado.
2. A origem do valor e a preservação cultural
“A troca de mercadorias começa onde acabam as comunidades, no ponto em que elas entram em contato com outras comunidades ou com membros de outras comunidades.”
Karl Marx, “A Moeda”
No final do século XVIII, um grande contingente humano, desprovido de posses de terra e de meios produtivos, passou a ser submetido a uma rotina de trabalho industrial degradante e a um sistema de trocas desiguais, tendo como única fonte de recursos a sua própria força de trabalho. A grande massa de homens livres passou a trocar horas de trabalho socialmente necessárias para a produção de mercadorias por salários abaixo do nível de reprodução da força de trabalho.
O elemento essencial de transformação humana, expresso pela dignidade do trabalho inalienável, que une homem ao solo através da cultura, começou a ser rompido. O sentido de preservação cultural, material e imaterial, pode ser relacionado com a teoria do valor na história do pensamento econômico.[1]
Até meados do século XVIII, a casa coincidia com o local de trabalho dos ofícios tradicionais e a família era o centro físico da economia. A ideia de que as ordens de produção eram determinadas pela capacidade da oferta, na nova ordem do trabalho industrial, liberou os trabalhadores da vontade do amo, mas os subordinou a uma rotina fabril repetitiva, em que eles não detinham mais o controle de seus esforços nem do processo de trabalho como um todo, que muitas vezes significava a execução diária de uma ou duas funções.
Com a consolidação do mundo urbano-industrial, acreditava-se que o mercado seria capaz de satisfazer de forma ilimitada todas as necessidades sociais. Essa ideia apoiava-se na concepção do que ficou conhecido como “Lei de Say” (1803), do economista francês Jean Baptiste Say (1767-1823), baseando-se na ideia de que a “produção gera a sua própria demanda”, ou seja, toda renda gerada na produção com lucros e salários é inteiramente gasta na compra de mercadorias.
Em termos monetários, a Lei de Say pressupõe que nenhuma troca visa somente ao dinheiro e que este não interfere na produção, nem na circulação, tendo apenas um papel passivo. Se alguém não quiser utilizá-lo de imediato, ele será gasto por outra pessoa, já que os indivíduos visam apenas a produtos, não havendo limites para a satisfação das necessidades individuais. A quantidade de dinheiro se ajusta às quantidades proporcionais das trocas e os indivíduos acabam subordinados a uma força invisível: o mercado.
Diversos pensadores contestaram a Lei de Say, dentre os quais destacam-se Thomas Malthus (1766-1834), Karl Marx (1818-1883) e John Maynard Keynes (1883-1946). Porém, a lei acabou influenciando a Escola Clássica, principalmente Adam Smith (1723-1790), Jeremy Bentham (1748-1832), David Ricardo (1772-1823), bem como os pressupostos das teorias da economia neoclássica,[2] sobretudo pela contribuição de John Stuart Mill (1806-1873).
A ideia de valor em sua vertente utilitarista, embasada na Lei de Say, influenciou as disciplinas sociais e as funcionalidades espaciais nos desenhos e desígnios urbanos do modernismo, também na forma de pensar a arquitetura. O utilitarismo extrapolou a disciplina econômica, manifestando-se na forma de planejar as cidades, produzindo patrimônio desvinculado dos aspectos históricos e antropológicos.
2.1 A noção utilitarista do espaço urbano
A concepção utilitarista do valor no pensamento econômico moderno influenciando a construção social do espaço na modernidade é melhor sintetizada pela análise da teoria panóptica de Jeremy Bentham (1784), articulando as causas do valor aos sistemas de controle social. Partindo de premissas racionalistas típicas do Iluminismo, ele acreditava que os homens se comportavam de forma hedonista, buscando permanentemente a satisfação individual imediata, e que eram avessos à dor e ao sofrimento.
Diferentemente de Smith e Ricardo, que desenvolveram a teoria do valor-trabalho, Bentham acreditava que a origem do valor das mercadorias era a escassez e a utilidade. Cada mercadoria deveria conter utilidade para satisfazer uma necessidade de qualquer espécie, que é o valor de uso, de modo a justificar as trocas.
O valor determina o preço, e o dinheiro é apenas um instrumento que mede a quantidade de prazer ou sofrimento. O valor de uso é a base do valor de troca. A utilidade tornou-se uma vertente da teoria do valor, determinando quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais. Pensando no papel do poder disciplinar como forma de aumentar a utilidade e docilidade das pessoas, Bentham buscava institucionalizar políticas coercitivas de racionalização do trabalho, tendo como sua grande adaptação o panóptico, que foi mais bem analisado por Foucault (1975).
O panóptico, projetado por Bentham, teria se inspirado no zoológico de Versalhes, construído por Le Vaux, um importante arquiteto da época escolhido para compor o projeto arquitetônico para o rei Luiz XIV, na França do século XVII. Esse projeto consistia em um octógono central para estabelecer uma observação individualizante e classificatória sobre os animais, comportados em sete celas diante da estrutura central. O panóptico de Bentham era “um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o Rei pela maquinaria de um poder furtivo” (Foucault, 1975, p. 179).
A teoria benthamiana foi aplicada em projetos de manicômios, penitenciárias, escolas, hospitais, fábricas e em vários outros projetos de intervenção urbana, e esse advento de poder transcendeu o aparato arquitetural no qual estava estruturado e acabou orientando a organização social do espaço urbano de forma incompatível com as estruturas das comunidades tradicionais.
O panóptico é composto por uma estrutura periférica, construída em anel, e, no centro, uma torre com janelas virada para o interior desse anel. A estrutura é dividida em celas, com duas janelas, uma direcionada para a parte interna e a outra posicionada para a parte externa, de modo que a luz, vinda da torre, atravesse o espaço interno, possibilitando ao vigilante ver a pessoa sempre dentro da cela, mas sem ser visto, no alto da torre. Qualquer um, ou simplesmente ninguém, poderia estar dentro da torre, para que o efeito fosse o mesmo sobre a mente do indivíduo dentro da cela.
É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação (…). Daí o efeito mais importante no Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder (Foucault, 1975, p. 177).
Nas Figuras 1 e 2, apresentamos o único presídio panóptico construído na América Latina, em Cuba, na década de 1930, preservado atualmente e, com status de patrimônio cultural, transformado em museu. A concepção do projeto vai além das questões específicas tratadas pelo sistema penal, revelando uma organização do espaço e a compreensão do tempo, sob a ótica do controle social, deflagrada na modernidade pela noção de utilidade na formação do sujeito moderno.
O panóptico sintetizava uma organização social e de poder sobre a multiplicidade de corpos, cujo efeito transbordou o espaço físico das celas, generalizando-se enquanto método de controle na organização social do espaço e na vida dos homens, como uma das prerrogativas imanentes do “contrato social” que fora instituído na modernidade, que foi se sofisticando até os dias de hoje. A divisão binária e a marcação dos homens em loucos e sãos, criminosos e inocentes, doentes e saudáveis, produtivos e improdutíveis, aptos e não aptos ao trabalho, etc., impunha um poder disciplinador, coagindo-os antes que ousassem romper com a ordem burguesa. O poder se impõe de forma subjetiva, pelo princípio da (in)visibilidade, no qual o indivíduo retoma a posição de controlado por si próprio.
Na abordagem do panóptico, os efeitos sobre o urbanismo ocorrem por meio da relação estabelecida pelo poder disciplinador com a ideia de utilidade como medida classificatória de valor na construção do espaço urbano. A liberdade e seus dispositivos codificados juridicamente, como supostamente a condição da democracia ocidental moderna, defrontam-se com o contradireito, representado pelo poder disciplinador.
Esse é o lado obscuro do sistema representativo igualitário que a burguesia preconizava, pois sustenta, reforça e multiplica as assimetrias de poder. O poder disciplinador era a “contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder” (Foucault, 1975, p. 196) e pune, por meio do direito penal, somente determinados grupos sociais.
No século XX, a projeção física e técnica do panóptico se transformou em um modelo generalizável de relações de poder, na vida cotidiana dos homens, infiltrando-se nas estruturas já existentes e aperfeiçoando outras, tornando possível amplificar as forças sociais: “aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1975, p. 183). Aumentar a utilidade dos trabalhadores, como forma de crescer a economia, com base no valor utilitário: “as disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que produzem indivíduos úteis” (Foucault, 1975, p. 185).
Ao expor o papel que o poder assume, Foucault aborda o capital como uma técnica econômica, resultante inevitável de condições conjunturais, do exercício desse poder nas relações produtivas e na organização dos corpos múltiplos. A concepção utilitarista sobre o valor aparece na sequência: moral – disciplina – utilidade – produtividade – crescimento – lucro – acumulação.
A economia é representada como uma modalidade de poder na estrutura panóptica generalizada, em que o controle disciplinar exercido sobre os indivíduos é semelhante ao papel desempenhado pelo “mercado” na contemporaneidade. Ambos estão vazios, não há vigia, nem ninguém lá dentro, a coerção invisível é estabelecida sem a necessidade de aplicar força física, submetendo os indivíduos ao humor do mercado. Essa visão utilitarista do valor se transformou em critério para a formulação de políticas públicas, em detrimento da divisão social do excedente.
2.2 O valor trabalho abstrato e a preservação cultural do espaço urbano
A teoria do valor trabalho abstrato considera que a origem do valor no sistema de produção capitalista é o trabalho. Adam Smith (1776) e David Ricardo (1817) fornecem o arcabouço de ideias iniciais que ajudaram a desenvolver essa teoria do valor. Karl Marx (1867) consolida a teoria do valor trabalho abstrato, superando os gargalos teóricos postos por Smith e Ricardo, oferecendo as ferramentas para futuramente ser desenvolvida uma teoria da renda do solo urbano, tão importante ao patrimônio cultural edificado.
Smith apresenta uma teoria do crescimento econômico, investigando o processo de geração de riqueza por meio do produto anual per capita obtido pela produtividade do trabalho útil. O que caracteriza a riqueza de uma nação é a capacidade que os indivíduos têm de produzir um volume maior de bens que sejam úteis para satisfazer as mais diversas necessidades humanas no período seguinte.
Uma condição para que uma nação possa aumentar a produção desses bens é a divisão social do trabalho. Se cada membro da sociedade se especializar na atividade para a qual se mostre mais produtivo e trocar o excedente por outras mercadorias produzidas por seus concidadãos, essa sociedade estará assim aumentando a possibilidade de satisfazer suas mais ilimitadas necessidades, com um mínimo de esforço.
A permuta de bens úteis pelo conjunto dos indivíduos pressupõe uma dupla definição de valor que estaria em jogo para cada mercadoria: o valor de uso e o valor de troca. A mercadoria deve conter utilidade, a fim de satisfazer uma necessidade humana de qualquer espécie. Ela deve pressupor também um valor de troca, que se expressa na quantidade de qualquer outra mercadoria pela qual ela pode ser trocada. O valor de troca da grande maioria das mercadorias, de todas aquelas cuja oferta pode variar ilimitadamente, em função da atividade humana, seria determinado pela quantidade de trabalho empregada na sua produção. Para Smith, o valor de cada mercadoria, expresso através de um montante de dinheiro, nada mais seria do que uma quantidade de trabalho. Tanto de trabalho poupado da parte daquele que compra a mercadoria, quanto de trabalho efetivo da parte daquele que se deu o esforço de produzi-la. Embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as mercadorias, não é possível tomá-lo como critério para avaliar o valor das diferentes mercadorias.
Smith não define um padrão de medida invariável para mensurar o valor relativo das mercadorias em função da quantidade trocada por essa medida padrão. As trocas dos produtos são intermediadas pelo dinheiro, e o valor nominal da remuneração nem sempre corresponde ao seu valor de compra real. Não existe essa correspondência proporcional entre a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria pode comprar no mercado. A teoria do valor de Smith não explica o papel do equivalente geral e universal, o dinheiro, que medeia as relações sociais.
Ricardo[3] argumenta que é o trabalho que define o quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais, buscando resolver a questão da determinação dos preços relativos, como parâmetro de valor. O objetivo era estabelecer um padrão de medida invariável para definir o valor relativo e estimar a variação no valor de troca. Para ele, o critério para medir a variação do valor relativo das mercadorias seria a quantidade de trabalho, que no nível macro depende da relação entre salários e lucros, na divisão do produto entre as classes sociais, apontando pela primeira vez a participação dos proprietários de terras na divisão do excedente, por meio do recebimento da renda da terra.
Ricardo discorda de Smith em que a quantidade de trabalho varia em função da quantidade da medida padrão do valor relativo das mercadorias, buscando definir um padrão para verificar se as demais mercadorias subiram ou diminuíram de valor de troca. A mercadoria que realiza uma mediação entre as quantidades permutadas das demais mercadorias também sofre ela própria uma variação de seu valor de troca. A relação estabelecida pelo dinheiro como parâmetro de valor é indicada pela primeira vez, mas continuava a exercer um papel passivo.
Marx aponta como o trabalho consiste na substância do valor das mercadorias, demonstrando que a distinção entre valor de uso e valor de troca comporta aspectos qualitativos e quantitativos. Todas as coisas úteis, como o ferro, o papel etc., constituem o conteúdo material da riqueza, o suporte material do valor de troca. Este último, por sua vez, não seria um aspecto intrínseco ou imanente à mercadoria, tal como ocorre com a utilidade.
O valor de troca surge como aspecto puramente relativo, estabelecendo uma igualdade entre proporções quantitativas de valores de uso diferentes, necessitando de um equivalente geral e universal que explique essa inversão de valores lançada pelo capitalismo, em que o trabalho assume a perspectiva de trabalho morto e as mercadorias assumem a perspectiva de trabalho vivo.
Quando se abstraem todas as qualidades específicas das diferentes mercadorias, a única qualidade que lhes resta seria a qualidade de ser produto do trabalho humano. Desaparece até mesmo a qualidade de ser produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro etc., restando apenas a propriedade de ser dispêndio de força humana em abstrato.
Para Marx, a forma do valor de troca fornece a gênese da forma-valor mais comum das mercadorias, que seria a forma-dinheiro. Ele acredita que as mercadorias somente vêm ao mundo, somente podem entrar em circulação, na medida em que apresentam um duplo aspecto: objetos de uso e suportes de valor. Em contraste com a materialidade palpável do primeiro aspecto, como objeto de valor, a mercadoria seria uma realidade puramente social.
O trabalho também é ele próprio uma mercadoria, mas uma mercadoria de tipo especial, adicionando seu valor integral às mercadorias, mas sendo vendido exatamente por seu valor de mercado – a quantidade de valor-trabalho necessária para reproduzi-lo. Cada mercadoria possui uma mesma forma-valor, um mesmo equivalente-geral para definir seu valor. O dinheiro enquanto intermediário necessário das trocas passa a ser a manifestação do valor, passa a comandar a produção e o consumo, ocultando o aspecto social da determinação do valor, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria.
O dinheiro que entra inicialmente no modo produtivo termina o processo com uma magnitude superior. Esta é exatamente a expressão da mais-valia, verificada no esquema simplificado: dinheiro (D) – mercadoria (M) – dinheiro (D’), em que D’> D, em uma magnitude que corresponde exatamente à mais-valia: uma fração do tempo não remunerada, a base da acumulação de capital, caracterizada como uma apropriação indevida de valor gerado pela força de trabalho.
O dinheiro cumpre um papel social na medida em que alguém compra uma mercadoria, possibilitando a realização do valor e de uma relação social de produção. O dinheiro aparece como expressão de uma relação social, que oculta o processo de geração de valor por meio do trabalho corporificado, mesmo sendo fruto de relações coletivas, sentenciando o trabalho vivo.
Mas está aí aberta também a possibilidade de crise, diante do “salto mortal da mercadoria”, já que a compra do produto pode não se realizar e o dinheiro pode ser entesourado, não exercendo um papel passivo no processo de produção e circulação, pois o produto só se transforma em mercadoria se for comprado no mercado.
O valor se realiza por meio do trabalho abstrato, mas, para manter a competição capitalista, o uso de tecnologia libera a força humana nas atividades mais rentáveis. A substituição de trabalho por máquinas apenas assegura uma lucratividade setorial de curto prazo, excluindo competidores intensivos em mão de obra do processo de produção capitalista. No longo prazo, o capital se concentra nas empresas mais poupadoras de mão de obra, diminuindo a base para a realização do valor, levando a uma diminuição das taxas de lucro, que apresentam uma trajetória decrescente, deflagrando uma crise do valor.
O fetiche do dinheiro ocorre, na medida em que, ao se tornar expressão de uma relação social de produção, parece que “ser dinheiro” consiste em uma propriedade natural de uma coisa. Em sua dimensão abstrata, o dinheiro em si possui um caráter tão material que a sua abstração já seria suficiente para constituir o modo de produção capitalista, por meio da formatação da consciência coletiva. É exatamente aí que entra o papel da cultura na possibilidade real de abstração do dinheiro, apontado por Marx no livro III de O Capital. A cultura é responsável por organizar o modo de produção capitalista, deflagrando valores simbólicos e possibilitando uma organização burguesa da classe trabalhadora.
O espaço urbano construído tombado, de propriedade privada, é uma mercadoria do tipo especial: possui valor de troca, é um bem alienável e comporta um espaço cultural de reprodução das relações de produção e de sociabilidade, mas está sob a tutela do Estado que preservou o espaço, impedindo a transformação pelo capital.
Ao impedir a destruição e reconstrução do espaço urbano, o patrimônio cultural torna-se um atributo valorado pela renda movimentada pelos seus usuários, que lhe conferem valor de uso, reconhecendo símbolos e convenções sociais, mas o Estado terá que impor critérios definidos pelos princípios da equidade urbana e da divisão de ônus e bônus do processo de urbanização para restaurar valores de uso em áreas com boa infraestrutura instalada, embora sem transferir recursos coletivos para proprietários privados de forma indevida.
3. Considerações finais
A crise do valor, expressa pelo decréscimo da taxa de lucro no longo prazo, atinge os espaços urbanos tombados, que passam a ser reconfigurados por políticas de conservação que contribuem com a produção de novos sentidos do patrimônio cultural. O conteúdo simbólico associado ao patrimônio interpela uma massa de valores culturais capazes de moldar a inserção econômica de uma cidade, muito atrelada a uma rede de serviços, em um período atual marcado por um processo de desindustrialização e um descompasso generalizado de divisão do excedente produtivo.
A teoria do valor foi fundamental para a formulação de uma teoria da renda do solo urbano, de modo a identificar também uma mais-valia fundiária, ou um valor coletivo presente no solo, que vem sendo apropriado indevidamente por grandes proprietários privados da terra. A propriedade privada permitiu historicamente que os proprietários de terra se apropriassem de parte das taxas de lucro, cobrando uma renda da terra, contornando a falta de controle do capital em relação à irreprodutibilidade da terra enquanto meio produtivo.
No patrimônio cultural edificado, o conteúdo em que o valor se realiza (os fatores de produção, trabalho e capital e suas respectivas remunerações, salários e lucros) para a produção da mercadoria “espaço urbano construído” está se exaurindo. O espaço construído tombado, situado geralmente em áreas centrais, deprecia-se gradualmente, de modo que, em algum ponto da deterioração completa da edificação, ao final do último período, quando se esgota o valor de uso com o consumo definitivo do bem, o preço do imóvel será equivalente apenas ao preço do terreno, delimitado pela renda absoluta e outras categorias de renda, e os componentes do preço teriam magnitudes nulas.
O preço do solo urbano é uma função da renda da terra sobre a taxa de lucro média da economia. O preço do espaço construído corresponde à renda do solo, ao capital investido na construção do espaço e à remuneração desse capital, expresso pela taxa de lucro e pagamento de salários. A depreciação do imóvel corresponde à perda de valor de uso, ao desgaste da estrutura física com o consumo paulatino, e aplica-se apenas ao valor da edificação. O preço do solo está relacionado ao direito de receber uma renda, não se caracterizando como um produto nem como um custo, associado à apropriação privada de bens comuns.
O valor social contido no preço do solo, por meio da renda da terra urbana, pode ser utilizado para restituir o valor de uso do patrimônio edificado, por meio de políticas de conservação e restauração de imóveis, a partir de critérios muito bem delimitados e ajustados aos instrumentos do “Solo Criado” presentes no Estatuto da Cidade, de 2001.
Argumenta-se que recursos necessários para a conservação patrimonial podem ser obtidos pela recuperação da renda da terra gerada pelas autorizações de adensamento, que geram ganhos financeiros extraordinários alheios aos esforços dos proprietários e construtores e que são de origem coletiva. A noção de patrimônio cultural pelo tombamento foi o primeiro instrumento capaz de regular a propriedade privada da terra e agora, associada à teoria do valor, pode contribuir para a noção de bens comuns.
* Edmar Augusto Santos de Araujo Junior é economista, graduado pela UFF, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ e colaborador do Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidade Contemporânea (LAPA/PROURB/UFRJ).
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Notas
[1] A “fisiocracia” é considerada uma das primeiras teorias econômicas, nascida no século XVIII, na França, por expoentes como François Quesnay (1694-1774). No momento da passagem da hegemonia das cidades sobre o campo, pré-Revolução Francesa, os fisiocratas viam nos produtos agrícolas a fonte da riqueza e origem do valor. Esse movimento lançou a base empírica que deu origem à palavra economia, significando algo como “organização da casa”.
[2] A “economia neoclássica” é inaugurada a partir do processo conhecido como “revolução marginalista”, que ocorreu entre 1862 e 1873. Os pensadores Stanley Jevons, na Inglaterra, Léon Walras, na França, e Carl Menger, na Áustria, com métodos e visões que aproximaram a economia à física por meio das ferramentas matemáticas, restringiram o objeto de estudo da economia à questão técnica da alocação dos recursos e otimização de utilidades marginais, despolitizando os processos sociais de formação e divisão do valor econômico.
[3] David Ricardo contribuiu para o desenvolvimento da teoria geral da renda da terra, iluminando a distribuição do produto total entre as três principais classes sociais da época: proprietários de terra, capitalistas agrícolas e industriais e trabalhadores assalariados.