Adelaide Ivánova (Recife, 1982) é poeta, fotógrafa, jornalista e ativista social. Publicou autotomy (…) (2014), Polaroides (2014), O martelo (2016, vencedor do Prêmio Rio de Literatura) e 13 nudes (2019). Edita o zine MAIS PORNÔ PVFR e traduziu, entre outros, Ingeborg Bachmann, Hans Magnus Enzensberger e Paul Celan. Mora desde 2011 em Berlim, na Alemanha.
Fred tinha menos de 60 anos quando
Foi encontrado no apartamento
De menos de 60 metros quadrados
No qual vivia há anos
Sozinho.
Fred era desempregado
E apesar de ter ex-mulher e filhos
Não tinha família
Eu não sei quais circunstâncias levaram
Fred a ser tão solitário
Estou ciente que Fred não deve ter sido nenhum
Anjo
Mas Fred morreu muito sozinho muito bêbado e muito pobre
Num apartamento
Numa cidade
Que é Berlim
Mas que poderia ter sido qualquer outra.
O prédio onde Fred morava
Pertenceu outrora à Stasi
a polícia secreta da Alemanha Oriental
E o Muro de Berlim passava bem na frente
Depois que o Muro “caiu”
O prédio foi vendido pra um investidor privado
Que além deste tem muitos outros prédios (é claro)
Este edifício é onde Fred foi morar
Fred aí encontrou sua última casa
Um apê quarto-e-sala
Onde construiu com as próprias mãos
Um grande beliche de madeira maciça
Da qual anos depois ele mesmo caiu
E morreu
Numa época que os aluguéis em Berlim ainda eram
Baratos e os apartamentos vazios eram
Devidamente ocupados: por punks, estudantes, trabalhadores ou refugiados.
A vizinha de cima de Fred
Que gostava muito dele
Se chama Eva Eva é
Uma ex-jornalista de moda da Alemanha Oriental
Ser jornalista de moda na Alemanha Oriental ao que parece era bonito
Porque sem mercado capitalista os editoriais eram feitos
De forma artesanal
As próprias jornalistas e stylists inventavam
E costuravam os looks que não precisavam
Fazer propaganda ou lobby pra nenhuma marca
ninguém era obrigado a botar nenhuma dondoca na capa
Devia ser massa
(eu recomendo buscar a revista Sibylle na internet)
A carreira de jornalista de moda de Eva
não vingou depois que o Muro caiu
Ela disse: “acima de tudo era um mercado etarista que não aceitava
Nem respeitava mulheres mais velhas”.
Eu imagino os fashionistas do oeste
Desvalorizando a expertise única de Eva
Jornalista de moda anticapitalista
Que se aposentou como autônoma
e hoje ganha uma mixaria que ela
Complementa trabalhando
Aos 72 anos
Como cozinheira duas vezes por semana numa casa de família.
Eva veio morar nesse bairro quando ninguém queria
Não tinha café não tinha lojinha
“A única coisa que tinha era um monte de bêbado na pracinha”
Hoje em dia diz Eva “é melhor
Tem mais vida e mais jovens no bairro
Só ficou ruim porque o aluguel vai ficando cada vez mais caro
E cada vez se fala mais inglês no prédio”
(Eva não aprendeu inglês aprendeu russo)
Eva diz que gentrificação é ruim, mas é boa
pra mulheres e idosos
Porque nos beneficiamos do fato
De que se tem vida nas calçadas do bairro temos menos medo
De voltar pra casa de noite sozinha
Depois do trabalho
Só continuamos evitando a pracinha
Que continua sem iluminação pública
Porque sabemos que iluminação pública é do interesse de:
1) mulheres 2) propriedade privada
Se na pracinha não tem nada de valioso
Só uns desempregados e mulheres voltando de noite da uni ou do trabalho
Pra que gastar esses euros iluminando a praça pública?
Se na pracinha tivesse uma loja de carro
Certamente que uns postes já teriam sido instalados
Não é mesmo?
Gentrificação então é isso
É quando o setor privado
É quem investe na melhoria dos bairros
“Provendo” o que Estado tinha que prover
Tornando privado aquilo que na real é público
E o preço que pagamos é alto
(mães-solteiras e idosos são os primeiros a serem despejados)
E é por isso que ativistas da moradia
Falam tanto não somente do direito de morar
Mas do direito à cidade
aliás viva Kotti und Co., viva o London Renters Union, viva o MTST!
Esses dias tentando driblar o “Mietendeckel” antes dele ser aprovado
nome coloquial da lei tramitando no Senado de Berlim de regulamentação e redução dos aluguéis
O investidor privado dono do seu prédio
Mandou um aumento de aluguel pra Eva
Que ficou muito preocupada
Ela levou seu caso pra Associação dos Inquilinos
E depois foi num evento informativo
Com Katalin Gennburg
Sobre expropriação dos grandes proprietários
#DW&Co.Enteignen!
Mas nada disso ajudou a resolver a situação concreta de Eva
Além de tudo Eva tinha levado uma queda
E quebrado um braço
Então não podia trabalhar na casa da família
E se não tinha como trabalhar não tinha como complementar
A aposentadoria chocha
Que Eva ganha depois de trabalhar
Anos e anos
Como jornalista autônoma
Então não tinha como pagar o aumento.
Eva ainda não perdeu seu apartamento.
Eva é minha vizinha de cima
E eu moro no apartamento onde Fred antes morava
E eu durmo na cama que Fred construiu
E eu tenho muito carinho por Fred
que nunca conheci
Mas cujo trabalho braçal produziu uma cama muito gostosa
Na qual eu às vezes perco o sono
Sem saber como vou pagar o próximo aluguel
Ou o aumento do preço da calefação
que apesar de cara não funciona e o senhorio não conserta
Já que até junho todos os meus trabalhos foram cancelados
por causa do Coronavírus
Às vezes eu fico me perguntando se Fred foi feliz aqui
Como às vezes eu sou mas nem sempre
Será que ele também perdia o sono
Com medo de ser despejado?
O que será que nos conecta, nós três, pra além de um endereço?
Não sei direito.
Eu também não tenho família
Também trabalho na casa dos outros
Apesar de ser jornalista
Certamente também será chocha minha aposentadoria
E quando estou triste bebo sozinha em casa.