Ano XV 030201
1º semestre de 2020
Editorial
Tempo de leitura estimado: 4 minutos

MODOS DE SER NA CIDADE EM QUARENTENA

Alguns acontecimentos aceleram o tempo. A nova edição da Revista Z Cultural, “Modos de ser na cidade”, estava já organizada quando a epidemia da COVID-19 modificou, em poucas semanas, os modos como vivemos nas cidades. De repente, estar perto ou longe mudou de significado, e passamos a experimentar uma temporalidade ao mesmo tempo acelerada – acompanhando em tempo real as atualizações sobre números de infectados e mortos e as medidas de governos em todo o mundo para conter a epidemia – e em suspenso – isolados em casa, sem saber quando a cidade voltará a ser lugar de encontro.

Em uma revista dedicada ao contemporâneo, não podíamos deixar de refletir a emergência desse acontecimento. Por isso, preparamos um primeiro volume da nova edição, “Modos de ser na cidade: a cidade em quarentena”, em que reunimos artigos escritos no calor do momento, híbridos de testemunho e reflexão. A antropóloga Valeria Ribeiro Corossacz, professora da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, adota o ponto de vista da mulher em quarentena na Itália, mostrando como “a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional”. Em “A cidade sob ataque ou como sobreviver entre ruínas”, o professor da Sapienza Universidade de Roma Ettore Finazzi-Agrò discute como a cidade enquanto lugar que torna “a existência individual uma coexistência” transforma-se em “enormes lazaretos”, dando lugar a um “espaço constelado por vazios” e a um “tempo parado”. E Luiz Eduardo Soares, antropólogo e professor aposentado da UERJ, usa a metáfora da respiração artificial – última esperança dos infectados pelo novo coronavírus que tenham desenvolvido a síndrome aguda respiratória – para falar do Rio de Janeiro como cidade sem oxigênio. “A pandemia das desigualdades abissais e do racismo estrutural não sufocava, não matava, não atrofiava tantas vidas?”, pergunta Soares. De Berlim, a poeta, fotógrafa e tradutora Adelaide Ivánova contribui com “Ken Loach #2”, poema-roteiro que é antes de tudo uma escuta do outro – no caso, de uma mulher aposentada e solitária tentando se manter em um bairro que passa por “gentrificação”, na iminência da pandemia.

Além das reflexões-testemunhos sobre a pandemia, esta edição publica três artigos do dossiê sobre a cidade. No primeiro, o arquiteto e ativista Alberto Kerdman Bloch fala da ocupação do entorno da Lagoa de Geribá, em Armação dos Búzios (RJ). O segundo é um ensaio em que o professor Marco Chandía Araya busca na literatura latino-americana a imagem do umbral (o limiar, a soleira) para falar da organização da vida urbana no continente. No terceiro, o economista e urbanista Edmar Augusto Santos de Araujo Junior usa a teoria econômica do valor para repensar criticamente as políticas de conservação do patrimônio público. Publicamos ainda um ensaio da historiadora da arte e curadora Andrea Giunta sobre a artista plástica brasileira Rosana Paulino; entrevistas com os arquitetos e urbanistas Tainá de Paula e Sérgio Magalhães sobre os desafios de um projeto de cidade inclusivo; e uma resenha do romance Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018), de Ignácio de Loyola Brandão, por Augusto Guimaraens Cavalcanti.

Adiado pela emergência da crise, o segundo volume de “Modos de ser na cidade”, já preparado e composto pelos artigos que responderam à última chamada da revista, será lançado em breve. Quem sabe, então, a quarentena tenha nos obrigado a repensar a cidade e estejamos a caminho de cidades muito diferentes, renovadas, potencializadas nos seus dons de circulação e convivência com o diferente.

Agradecemos ao fotógrafo Bruno Veiga pela gentil cessão da foto da capa deste volume da revista.

Revista Z Cultural