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Poesia 00: nota de apresentação e mini antologia | de Italo Moriconi

Cena mutante

Os anos passam e as gerações poéticas se sucedem, como as ondas no mar. Ao grupo dos “novos”, logo se acrescenta o grupo dos “novíssimos”. Esteticamente, cada nova onda de poetas pode situar-se de maneira antagônica ou em continuidade direta com a onda anterior. Tudo indica que a onda da geração 00, sem deixar de representar o resultado e a consequência da cena poética brasileira dos anos 90, traz algumas tendências ou novidades que possivelmente uma pesquisa mais extensa fixará como um perfil. Será certamente um perfil diversificado – a pluralidade de dicções e orientações é um fato. A era dos “ismos” dominantes acabou. No lugar dela, entramos numa era em que prevalecem os focos aglutinadores, os núcleos e laboratórios poéticos que acolhem e onde se gesta a poesia nova.

O estopim que motivou a seleção da presente amostra foi o lançamento em 2007 de três poetas novíssimos pela prestigiosa coleção Ás de Colete, empreendimento conjunto das editoras 7Letras e CosacNaify. Por “novíssimo”, entenda-se poeta estreado em livro a partir do ano 2000 ou pouquíssimo antes – 99, 98. Dos três novíssimos lançados naquela ocasião, Marília Garcia e Ricardo Domeneck já tinham estreado em livro anteriormente, ela com uma plaquete na coleção Moby Dick, da 7Letras, em 2001, ele na coleção de poesia da Editora Bem-Te-Vi, em 2005. No caso da poeta Angélica Freitas, trata-se de estréia tout court. Esse grupo está ligado à revista Modo de Usar, lançada em 2008 como uma espécie de costela do conglomerado 7Letras/Cosac.

Pode-se dizer que os três lançamentos nucleiam boa parte das novas tendências reconhecíveis na cena poética brasileira. Mas para efetivar a seleção solicitada, ampliei um pouco meu universo de mapeamento e pesquisa, aproveitando para atualizar-me minimamente em relação à produção dos novíssimos. Assim, com a inestimável colaboração e interlocução de Luciana di Leone (mestranda de Literatura Brasileira na UERJ), fiz uma primeira leitura – em alguns casos, releitura – de um número expressivo de livros de novíssimos, constantes dos catálogos e coleções das mencionadas editoras, a que acrescentei os lançamentos da editora Azougue e mais alguns livros avulsos espalhados pela minha caótica biblioteca, que há alguns anos não tenho tido tempo de arrumar. O objetivo foi não o de realizar uma antologia de “melhores”, nem mesmo uma antologia de “representativos”, mas apenas uma amostra de bons poemas escritos por novíssimos, marcando o momento da segunda metade dos anos 00. Bons poemas no sentido de manifestarem práticas do poético como prospecção de linguagem. Eu mesmo fiquei surpreso com o que considero ser o alto nível decantado ao fim e ao cabo da sempre precária escolha. Ao leitor, cabe o veredito final.

Em ritmo de esboço apressado, identifico como traço interessante da poesia 00, em primeiro lugar, certo desafogo em relação ao formalismo típico da poesia nova da década anterior. Formalismo esse que se traduzia pela exploração ainda minimalista da elipse poética, ou pela pura e simples volta ao soneto e às formas fixas e metrificadas da tradição mais antiga. Não se trata agora, como tinha sido no caso da geração “marginal” dos anos 70, de um desafogo na linha do “relaxamento” e do coloquialismo, embora este se faça presente de maneira mais estetizada. Trata-se, sim, dentro ainda dos moldes culturalizados que definiram o padrão de exigência próprio dos anos 90, da presença de um outro modo de tratamento da elipse poética, no que se poderia chamar de “desestruturação controlada”. Esse tipo de poesia mais desestruturada, desconstruída, associa-se à presença clara de mais discursividade, mais narratividade (fragmentária), frequentemente obtida pela incorporação do conversacional, não pela simulação de uma interlocução (como em Ana C.), mas pela interpolação de fragmentos de diálogos no corpo do poema (ao jeito de Francisco Alvim). Observamos também que cada vez mais o poeta e a poeta brasileiros lançam mão de recursos alegóricos e alusivos, denotando maior convivência com tradições poéticas estrangeiras. Narrar de maneira oblíqua. Costurar nas descosturas.

Em paralelo com o viés por assim dizer erudito e sofisticado que o grosso da geração 00 pega da anterior, observamos também, e com alívio, que volta a existir espaço para um tipo de poesia mais abusada, mais paródica, renovando-se a eterna vertente iconoclástica em relação aos também eternos ícones literários, como o leitor poderá ver nos poemas de Angélica Freitas e Douglas Diegues. O traço marcante aqui é que quando o poeta novíssimo ironiza a alta cultura, o faz menos em cima de questões propriamente estéticas e mais através da transformação dos grandes autores em personagens de um drama. Tal reação realça pelo avesso o caráter fetichista de toda e qualquer assinatura poética. Escritores consagrados viram personagens-máscaras de uma comédia mental (no caso de Angélica) ou social (no caso de Douglas).

Outro traço marcante – a meu ver instigante, embora perturbador – da novíssima poesia brasileira é a desestabilização da língua brasileira, que se mostra aqui contaminada por línguas estrangeiras. Fazem-se presentes as línguas dominantes na cultura erudita – o inglês, o francês, até o alemão (vide Domeneck). Mas o dado forte é o mix com o espanhol, chegando ao ponto de termos um autor, Douglas Diegues, que assume o portunhol como língua bandida de expressão poética, na linha experimental de um Wilson Bueno.

Se focalizamos o levantamento de tendências com base no que foi anteriormente postulado, de que a cena poética hoje se estrutura a partir de núcleos de aglutinação, constatamos que a presente amostra apóia-se em duas vertentes principais: a vertente 7Letras e a vertente Azougue. Como se sabe, em ambas temos a feliz conjunção entre revista de poesia (Inimigo Rumor e Azougue) e editora de poesia nova. As duas fazem sua captação de recursos poéticos em âmbito nacional, buscando escapar das limitações impostas pela centralização no eixo Rio-S. Paulo. Os poetas 00 surgidos no território Inimigo Rumor fazem parte de uma história originada nos anos 90 que está à espera de ser contada de maneira sistemática. Essa história poderia ser contada tendo por eixo narrativo os embates contemporâneos entre formalismo e desestruturação, formalismo e discursividade ou narratividade, alta e baixa cultura, sublimação e dessublimação. Já os poetas surgidos na área da Azougue apontam, por um lado, para uma vertente mais “cósmica” e “naturalista” (e até xamânica, na linha de Roberto Piva) da poesia brasileira, assim como acolhe-se nela o resultado da atuação do grupo carioca CEP 20000, cujas raízes remontam aos anos 80, através da presença de gurus como Chacal e Guilherme Zarvos. No caso da área Inimigo Rumor, os gurus identificáveis são Carlito Azevedo e Anibal Cristobo.

Mas é claro que quem eu estou chamando aqui de guru não quer ser guru. Deixemos pois suas figuras momentaneamente de lado e assinalemos que, sobretudo, destaca-se nos poetas aqui selecionados o caráter autônomo, original e singular de suas vozes, numa cena que já pouco ou nada tem a ver com o antigo panteão modernista dos Drummonds e Cabrais.

Antologia

Marília Garcia (20 poemas para o seu walkman)

Aquário

tem o pânico das algas marinhas
quando acorda de frente para o estádio.
o quarto é um aquário
com setas submersas de
sol e seu corpo filtrado
pela luz do insulfilm
tem o contorno
de um magnetismo
inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não
sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com
uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana

Inferno musical

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
– é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

II.
– ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.

Laura Erber
(Insones)

arroubos

para Aruac

…ela te escreverá toda noite quando as frases do dia entre duas pálpebras brilharem no rigor de
cada sílaba é o verão desabotoando sem a gente perceber que já bem
no centro de havana comprando sorvetes derretidos e caseiros ou também por um
senhor de nariz fino asas feridas … a dónde crees que te va a llevar todo ese
aprendizaje, chica? numa viagem a céu aberto sucessivos alejamientos y
dissolvências nos llevan a ver la isla desde el mar uma notícia que envolva muita
gente el desliz que compreende su figura el vencimiento de la distancia nessa noite
teus olhos ilhas envoltas por água e sal cuando el espacio se contrae para parir la
llegada de uma fuerza sem veladura sem artifícios a pura luz da rua e o ritmo de
tropeços multitud de sombras lembranças onde caminhas cuidadoso com poder
delicado de revê-lo o sorvete se desfaz mas as respostas são perguntas retorcidas aos quarenta
graus em la habana e também no rio enquanto entre nós o copo de
aguardente espera a mão alcançar um fio de cabelo e as bocas se calarem num
encontro passageiro afinal a dónde te va a llevar todo ese
aprendizaje…………………………………………….

Sérgio Cohn
(Horizonte de eventos)

mnemo.

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.

Angélica Freitas
(Rilke Shake)

na banheira com gertrude stein

gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude
stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público

gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar
atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas

mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum
debaixo d’agua eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha

e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba
a toalha

e sai correndo pelada a bunda enorme descendo a
escada e ganhando as ruas de st.-germain-des-prés

epílogo

gertrude stein cabelo dos césares

alice olhos negros de gipsy

josephine baker djuna barnes

nós cinco na sala de espelhos

eu era alice e djuna era josephine

gertrude stein era gertrude stein era gertrude stein

na saída gertrude me puxou pelo braço

e me disse muito zangada: não achei graça

no que você publicou nos jornais

me derrubaria como um tanque da wehrmacht

não fosse por ezra que passeava ali seu bel esprit

lésbicas são um desperdício ele disse

você já ouviu falar em mussolini?

Ericson Pires
(Cinema de garganta)

Canto de abertura de caminhos

(oju-oritá e /ou conversas de Merleau-Ponty)

Quando você abre os olhos

Você pode ver tudo
Pensar que vê tudo
Tudo pode ser visto
Ver-se em nada que é visto

Quando você abre os olhos

Pode tentar pegar coisas com olhos
Pegar pensamentos nos olhos
Partir do momento onde os olhos
Param de saber que são olhos

Quando você abre os olhos

As coisas perdem os nomes
O tempo é sempre presente
E o presente são os nomes
Nomes do presente

Fluxo
Tempo

Você abre os olhos e vê

Você está

Jardins…

Ricardo Domeneck
(Carta aos Anfíbios)

De madrugada, de manhã

1.

Acordar no meio da noite
com a cabeça do outro
sobre o peito,
travesseiro,

maré e barco;

permanecer desperto, à deriva
o resto da noite, dormentes
e doloridos os membros,
a circulação cindida,

sem desejo de resgate

e sussurrar-lhe ao ouvido:
unsere knochenknospen schnurren und schnorrem,
nossos brotos d’ossos ronronam e imploram,
como em qualquer hino,

meu querido.

2.

Eu desconheço quanto

deserto custa
uma epístola
aos coríntios;

se a cegueira
no caminho
precede sempre

(e vale)

a cidade
de destino;

se na garganta
um novo cântico
dos cânticos aguarda

ou se quatorze anos
de fôlego preso
hidratariam um soneto;

eu falo baixo
porque deixá-lo

dormir meia-hora
a mais é minha forma

de acariciá-lo
logo de manhã

que, envolto em lã,
ignora o abalo

sísmico
em mim:

um bocejo
seu.

(a cadela sem Logos)

Décima Faixa – 0:55
(em “Poema começando ´Quando’”)

Algo amadurece à distância
mas aproxima-se aos
poucos para poucos
antes de todos
perceberem que
do chão à copa
o espaço é da queda.
Tudo deve ser documentado
é uma pergunta do processo
que se inicia no terror
para alcançar a beleza,
o risco do esquecimento
o primo leve da memória,
o preço breve do ato.
O trabalho árduo de convencer
a fruta
de que já se encontra madura.
Com os dentes.
Tempo movendo-se em volume
alto, duração contínua
segundo a segundo
para depois
ser sujeito
às elipses da atenção
da história.
A mão que escreve
pode querer-se à margem,
silenciosa, mas seu
tom de voz ecoa
por todos os cantos.
Camuflagem falha.
Equívoco da tentativa
de uma “epistemology
without a knowing
subject”.
Toda presença
é central mas pode
sabotar-se
melhor como ventríloquo
do que invisível.

Pedro Cesarino
(Oceanos)

Se chamo a árvore de “espelho”,
o faço não por capricho, mas por reconhecer nos galhos
certos traços meus que em algum momento
se misturaram à trama das coisas.

Se chamo o céu de “elefante absurdo”
é porque não o consigo abarcar
com nenhuma imagem melhor.

Ele escapa por todos os lados feito água arredia,
que aliás eu trato por “cristal”, o que é um paradoxo,
pois as pedras são essência irremovível,
enquanto a água, tal como o céu, escorre
inevitavelmente pelas bordas do mundo.

Mas chamo-a assim pois é na realidade
à substância do olho que me refiro:
esse prisma de carne
banhado pelo líquido de luz.

Se chamo a noite de “pássaro”
é porque não há pássaros na noite,
a não ser por alguns solitários
voando anônimos no escuro.

Os pássaros eu não trato por nenhum
outro nome, a não ser “pássaros”.
Daquilo que voa, o que falar?
Como chamar?

Douglas Diegues
(uma FLOR na solapa da MISÉRIA – poemas em portuñol)

le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio
parecia un idiota cruzando la tarde sin sentido
bebia de la imundície sin problemas
porque desde crianza estaba acostumado a beber de la imundície terrena

sabia como convivir com la imundicie que produce el hombre.
había ainda en sus ojos un resto de brilho feliz de infância perdida
escalando la planicie de los dias
com su muleta de alumínio non precisaba más nin nombre

parecia que había salido de algun libro de Manoel de Barros
un personagem de carne gosma esperma escama sangre osso misterio
escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una planície del lado paraguayo escalar una montanha del lado paraguayo era escalar una planície del lado brasileiro

em ambos los lados de la frontera que implacabelmente apodrece
ninguém consigue escalar planicies tan bién como ele

 

Por que escrebo?
Escrebo para ficar menos mesquinho
belleza de lo invisible
non tem nada a ver com berso certinho

en el culo de qualquer momento
escreber pode ser mais que apenas ir morrendo
la belleza de lo invisible
non se pudre com el tempo

la bosta dos elefantes seca verde clara dura
es altamente inflamáble – dá uma llama bem pura
nunca se termina de aprender a transformar bosta em luz y
otros desenganos –
todos fomos bellos quando teníamos 4 anos

hoje la maioria solo se preocupa com sus narizes
su esperma, su bosta, su lucro, sus missíles

 

Rodrigo Magalhães
(O legado de Beltrano)

Deus e João no mundo cão

Primeiro, a emboscada e o chão era de barro.

Não deu para ver se alvos ou mestiços.
Mas não eram machos.

Tavam numa espreita, dessas em que o sujeito mira acocorado,
da qual só restam dois: o estampido e o baleado.

Cabul,
era míssil nomeando a cidade.

Após o acontecido, comi um tanto da poeira.
Que era do chão. Que era de barro.

E só havia um sol de fazer ouro na retina,
que, entre os gumes de minha sina, alastrava o seu mormaço.

Era lá, à espreita
pelo Tomahawk em assovio
– parecia o simum no canudo,
alguém dizia.

À espera do suspiro que nos finda,
cobriu-me a certeza de alguns nomes sobre a força dos cajados.
Foi o coronel. Ele honrou o seu gado, a sua família.
Soprou a minha vida.

Alguém se persignava.

 

*

1 Texto e antologia originalmente publicados na revista Margens/Margenes, n. 9-10, Belo Horizonte, 2008, que gentilmente cedeu os direitos de publicação em Z.