Ano XV 030201
1º semestre de 2020
dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

MODOS DE LER A CIDADE

(…) o cronista não abre mão de testemunhar o
seu tempo, de ser seu porta-voz. As crônicas,
quase sempre, são respostas a certas
perplexidades pessoais e sociais.

(Renato Cordeiro Gomes, João do Rio/ por Renato
Cordeiro Gomes
)

A citação, em epígrafe, foi inspirada na obra de João do Rio, escritor-jornalista a quem Renato Cordeiro Gomes dedicou décadas de pesquisa. João do Rio e Renato, cada qual com sua escrita, ressemantizaram a cidade, que se apresenta ambígua, enigmática, labiríntica, fragmentada. João do Rio com suas crônicas. Renato com suas proposições teóricas. É o espaço urbano, “campo da própria significação”, como afirma Julio Ramos (2008), que Paulo Barreto assume em seu pseudônimo mais usado: João do Rio. Assim, o nome fictício, João do Rio, transcende o próprio nome, Paulo Barreto. Ao vagar pelas ruas, formula sua “cidade das letras” (Rama, 1985) e eterniza a belle époque carioca.

Edgar Allan Poe, em 1840, no clássico O homem da multidão, escreveu “es lässt sich nicht lesen”, fazendo referência a um suposto livro alemão do qual se dizia “não se deixa ler”. Desde Poe, ler a cidade se impõe como um desafio a gerações de escritores e intelectuais. Para João do Rio, o exercício de compreendê-la exige um espírito vagabundo e curioso. É preciso ser flâneur, exercer a arte de flanar, nos fala o cronista. Ao caminhar, na tentativa de leitura da cidade, o flâneur reinventa o espaço coletivo. Para Ramos (2008), retórica do passeio. Para Michel de Certeau ([1980] 2003), jogo dos passos ou enunciação pedestre. As denominações se referem a essa operação de transitar sem destino que busca captar o que o mapa da cidade deseja transmitir e, além disso, reordenar o espaço urbano. Assim, menciona Certeau: “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade” (Certeau, [1980] 2003, p. 176). São as nomeadas por Certeau de “figuras ambulatórias”, por meio do processo do caminhar, que vão produzir os discursos fragmentários sobre essa cidade que se apresenta múltipla.

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Se três cartógrafos visitam uma cidade e dela resolvem fazer um mapa. Três mapas completamente diferentes poderão se apresentar. Serão registros distintos do espaço, demarcados por tempos e afetos igualmente distintos. Entre o cristal e a chama, a racionalização geométrica do traçado urbano e o movimento bruxuleante das existências humanas, incontáveis mapas descreverão a mesma cidade. A mesma? Nenhuma cidade é a mesma e jamais dará conta de ser, em seu mapa, todas as cidades. A cidade, assim com determinante definido singular, é Utopia. Antes, no enfrentamento do que pode parecer estar (e de fato está) fora da ordem, a sugestão é acatar os versos de Veloso, como fez Renato em sua Tese de Doutorado[1]: “eu não espero pelo dia em que todos os homens se entendam, mas sei de muitas harmonias possíveis sem juízo final”.

Assim como os mapas, os deuses de uma cidade não são únicos. Isaura é uma cidade vertical, a primeira das cidades delgadas de todas as cidades invisíveis de Calvino. Isaura cresceu na horizontal somente até onde seus habitantes conseguiram cavar poços na extensão das águas subterrâneas que lhe proviam, “seu perímetro verdejante reproduz o das margens escuras do lago submerso, uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas enclausuradas que quebram sob o céu calcário das rochas” (Calvino, 1990, p. 24). Por isso há duas religiões em Isaura. A dos que creem nos deuses inferiores, águas profundas que alimentam e movem a cidade; e a dos que veem os deuses na superfície aonde chegam as águas, nos baldes, nos parapeitos dos poços, nas bombas, na tubulação e nos registros, que chegam aos cata-ventos erguidos acima dos andaimes. Isaura cresce para cima.

Interessará à sobrevivência da cidade o culto dos seus deuses inferiores tanto quanto a dos superiores. Sabe-se que uns não sobrevivem sem os outros. Dito de outra forma, esses cultos consistem em conhecer a cena e a obscena de uma cidade. Não é possível construir a superestrutura dos moinhos de vento desconsiderando aqueles que ali enxergam gigantes terríveis. Os que assim o fazem mancham de sangue o lago. Nossa água restará imprestável. Os moinhos ruirão como a Torre de Babel.

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Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade, nos esclarece que “ler a escrita da cidade e a cidade como escrita é buscar o legível num jogo aberto e sem solução” (Gomes, 1994, p.16). Tal definição é utilizada aqui enquanto uma espécie de bússola que irá nos guiar no tortuoso e complexo percurso de visita às formas de representar e, principalmente, de ler a cidade. A relevância do trecho citado acima repousa na feição aporética do próprio exercício de leitura da cidade, ofertando aos modelos de representação da paisagem urbana um movimento paradoxal que pode ser facilmente delimitado em uma simples sentença: “Como ler o que é ilegível?”. Por se tratar de um jogo aberto e sem a apresentação de uma solução estanque, a leitura da cidade não é um ato que aponta essencialmente para um fim, para um resultado. Os muitos fios descontínuos que formam a malha discursiva que reveste a cidade moderna sinalizam tal impossibilidade. Percorrer a cidade em busca da identificação de seus inúmeros cruzamentos discursivos, localizando os encontros desses fios descontínuos, é construir e, igualmente, percorrer um labirinto. Perder-se nesse ato é adentrar um jogo aberto e sem solução. É possível dizer que o exercício de leitura da cidade não deve se fixar no desejo de alcançar sua concretude e totalidade, movimento que seria quimérico. Atentos ao percurso de análise que será aqui estabelecido, afirmamos que, mais do que o resultado da leitura da cidade, importa observarmos os mecanismos discursivos que são ativados para a obtenção de uma imagem da cidade.

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“[O] flanar não é simplesmente um modo de experimentar a cidade. É um modo de experimentá-la, olhando e contando o que se viu. Ao flanar, o sujeito urbano, privatizado, se aproxima da cidade como quem vê um objeto em exibição”, afirma Julio Ramos (2008, p. 148). Contar o que viu foi o que fez Paulo Barreto desde que estreou na imprensa, antes de completar seus 18 anos. Em seus escritos, deixou marcada a narrativa dos lugares visitados. Como aliada, elegeu a crônica, gênero que se apresenta como uma mediação entre o sujeito e a cidade e se coaduna ao momento moderno.

Conhecedor da alma encantadora das ruas, Paulo Barreto se coloca como um cronista-flâneur. Nos jornais, escreve, também, crônica-reportagem. E, ainda, dá vida à crônica atravessada pelo cinematógrafo – na qual o cinema, além de ser tema, condiciona o processo de escrita, como demonstram a coluna Cinematographo, publicada na Gazeta de Notícias (1907-1910), e o livro homônimo. Dessa maneira, as novas tecnologias são também, “fator condicionante de uma escrita ágil, sintética, que, em busca da instauração do novo, e da fixação do ‘instante’, se propôs também a dialogar com a mídia” (Gomes, 2007, p. 3). É nessa fase que o entusiasmo em relação à vida frenética e vertiginosa atravessa a produção do escritor-jornalista. Atento a isso, Renato Cordeiro Gomes revela como João do Rio estava em consonância com o que figurava nas cidades europeias que visitou. Ressalta, portanto, a presença de “ideias, metáforas e imagens do Manifesto Futurista de 1909, assinado por Marinetti” (Gomes, 2007, p. 5). Entretanto, as consequências desse mundo moderno não passam despercebidas por João do Rio tampouco por Renato Cordeiro Gomes (2007, p. 9-10), que recorda a sátira “O dia de um homem em 1920” do escritor finissecular: “O texto prevê até onde iria o homem em sua ânsia contínua e crescente de pressa, de movimento, de poder. (…) A vida vertiginosa aponta para a corrosão do humano, para a cidade não-compartilhada do individualismo e da concentração de renda e poder”.

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Os três mapas daqueles três cartógrafos estão à venda num empório de estilos. Não só a mesma cidade que mapeiam são outras, como distintos são os traços que as conformam no papel. Mas reconhecem todos, como aponta Raban em Soft city, que as cidades são capazes de neutralizar a distinção entre o sonho e a vida real:

Sociology and anthropology are not disciplines which take easily to situations where people are able to live out their fantasies, not just in the symbolic action of ritual, but in the concrete theatre of society at large. The city is one such situation. Its conditions effectively break down many of the conventional distinctions between dream life and real life; the city inside the head can be transformed, with the aid of the technology of style, into the city on the streets. To a very large degree, people can create their cosmologies at will, liberating themselves from the deterministic schemes which ought to have led them into a wholly different style of life. To have a platonic conception of oneself, and to make it spring forth, fully clothed, out of one’s head, is one of the most dangerous and essential city freedoms, and it is a freedom which has been ignored and underestimated by almost everyone except novelists[2] (Raban, 1998, p. 65).

Eis a indicação de um método cartográfico da cidade menos sociologia, menos antropologia, e mais poetas e ficcionistas como fonte do traçado que deve ser feito na balança (nem sempre fiel) do real que tem como contrapeso o imaginário. A Cidade Maravilhosa, por exemplo – assim batizada, em 1912, pela poetisa francês Jeanne Catulle Mendès e consagrada em 1935 pela marchinha de André Filho – conseguirá sobreviver no concreto de suas ruas fétidas e esburacadas, no descaso evidente nas eternas obras inacabadas e na população que nasce e cresce sob suas marquises? Quanto daquela Cidade Maravilhosa vem à tona no “purgatório da beleza e do caos”, de Fausto Fawcett?

Na sequência do trecho citado de Soft city, Raban evoca Robert Warshow que, em um ensaio de 1958, elegeu o gangster do cinema americano como herói trágico da cidade moderna. O ensaísta reconhece que, apesar de haver criminosos reais, o gangster do cinema é um produto da imaginação que retroalimenta o imaginário urbano. Aqui, na Cidade Maravilhosa, a obscena faz parte da cena. Os gângsteres são eleitos e expropriam o imaginário idílico. É como se a paródia da marchinha (“de dia falta água / de noite falta energia”) se transformasse no emblema da cidade, em que esse imaginário hollywoodiano de gângsteres no submundo e da ordem junto ao poder púbico persiste e se revela quantitativamente nas urnas.

Contra isso, A poesia dos deuses inferiores. Esse é o título de um dos primeiros livros de Sérgio Vaz, atualmente esgotado e rearticulado em O colecionador de pedras. O poeta é de São Paulo, cidade que, na metáfora de Sevcenko (2004), cresceu como metástase. Mas vale trazer de lá uma poética, explicitada num pequeno texto, embrião do que viria a ser o “Manifesto da antropofagia periférica”

É preciso sugar da arte
Um novo tipo de artista: o artista cidadão.
Aquele que em sua arte não revoluciona o mundo,
Mas também não compactua com a mediocridade
que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país.
Que armado da verdade, por si só, exercita a revolução.
(Vaz, s/d, n.p.)[3]

Estamos diante do autor como produtor, aquele que, segundo Benjamin, “consciente das condições de produção contemporânea está muito longe de esperar o advento de tais obras, ou de desejá-lo. Seu trabalho não visa nunca à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, à dos meios de produção” (Benjamin, 1985, p. 131). O trabalho de Vaz não só como poeta, mas à frente da COOPERIFA e de outras ações de produção cultural referenda essa relação. Há, ainda, no manifesto do autor o enfrentamento das “Cinco dificuldades para escrever a verdade” elencadas por Brecht, em 1934, em um panfleto político escrito para ser distribuído ilegalmente na Alemanha nazista[4]: 1) ter a coragem de escrever a verdade; 2) ter a inteligência de reconhecer a verdade; 3) possuir a arte de tornar a verdade manejável como uma arma; 4) ter a capacidade de escolher aqueles em cujas mãos a verdade se torna eficiente; 5) ter a astúcia de divulgar a verdade entre muitos.

Num estudo sobre cartazes do 25 de abril português, Renato lembra que

os modos usar e comunicar a revolução, se são conjugados com a concepção de modernidade, e aí as categorias de ruptura, mudança progresso, enfim, de crítica, de razão crítica e de consciência histórica, retomam uma longa tradição de uma práxis em que esses modos de usar e comunicar formam uma espécie de arquivo/acervo de procedimentos, de linguagens, de narrativas, de imagens, que estão à disposição dos artistas e dos militantes. (Margato; Gomes, 2005, p.222)

Nesse sentido, o poeta-produtor Sérgio Vaz se coloca na contramão de um ethos – o da “mediocridade que imbeciliza” – que explicita a obscena na cena do próprio poder do estado.

Vale lembrar, no entanto, que esse poder se constitui e se garante, também, por meio de semelhantes modos de usar e de comunicar. Paul Vayne (2014, p. 12), quando nega que “a imaginação anuncia futuras verdades e deveria estar no poder”, evidencia que “as verdades já são imaginações e a imaginação está no poder desde sempre”.

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O caráter múltiplo da cidade requer, antes de tudo, a construção de uma forma de aproximação que permita a elaboração de um eixo de observação que resulte em um discurso. Em princípio, pode-se dizer que a leitura e a percepção da paisagem urbana são demarcadas por duas matrizes formadas na modernidade, de certa forma amplamente revisitadas por diferentes discursos literários e fílmicos: a rua e a janela. Essas duas matrizes foram amplamente discutidas de modo crítico por Renato Cordeiro Gomes, lidas não apenas enquanto operadores teóricos, mas, principalmente, enquanto formas de registro da cidade. Por serem baseadas em mecanismos de observação diametralmente opostos, é possível classificar tais matrizes como antagônicas. Mas tal exercício seria apressado e resultaria em uma leitura equivocada. Esses mecanismos de observação e fixação à paisagem urbana não são contraditórios e excludentes, a aparente oposição pode ser desconstruída quando compreendemos e analisamos as potencialidades e os limites de cada matriz de representação da cidade. A primeira se baseia no movimento, no caminhar, no ato de estar na rua. Na rua, o olhar adentra o labirinto de signos que configuram a cidade e, literalmente, perde-se nele. No sentido oposto, a janela apresenta uma fixação e torna o ato de leitura dotado de certa passividade ao afirmar a separação do sujeito frente ao espaço urbano. Na aguda percepção de Renato Cordeiro Gomes, dois contos foram os responsáveis pela criação dessas duas matrizes: “O homem da multidão”, de Edgar Allan Poe, e “A janela de esquina do primo”, de E. T. A. Hoffmann.

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Como quer que seja, entre todas as formas
épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz
pura e incolor da história escrita é a mais
incontestável. E, no amplo espectro da
crônica, todas as maneiras com que uma
história pode ser narrada se estratificam como
se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história.

(Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política)

Se, como declara Benjamin, o cronista narra a história, qual foi, então, a história narrada por Paulo Barreto? Rio de Janeiro, início do século XX. No lugar da antiga colônia, despindo-se de suas características, surgia uma cidade urbanizada nos moldes europeus, mais especificamente, parisienses. A contradição inerente às renovações urbanas e sociais se apresenta na escrita de Paulo Barreto. Mesmo se mostrando entusiasmado com o Rio que surgia, marcado pela modernização e pelo progresso técnico, o escritor – ao contrário do que apontam muitos estudiosos ao defini-lo como o cronista dos salões, muitas vezes comparando-o a Lima Barreto – não deixa de narrar as mazelas e a perda dos signos da cidade que carregava em sua alma. A “cena” e a “obscena”, conceitos elaborados por Renato Cordeiro Gomes em Todas as cidades, a cidade (1994), se apresentam na obra de João do Rio, que retrata os costumes da “gente de cima” (apud Gomes, 1996, p. 63) – como de “estetas, imitando Montmartre” de “discutir literatura e falar mal do próximo” (Rio, 1909, p. 129) na Rua da Assembléia ou na Rua da Carioca – e também os da “canalha”.

Já em 1903, na coluna “A cidade”, publicada na Gazeta de Notícias, textos do autor evidenciam os problemas do Rio de Janeiro, como a demora da construção de edifício da Maternidade, na Lapa, a falta de policiamento após às 19h e a escassez de água. Em A alma encantadora das ruas (1908), por exemplo, marcam presença as problemáticas da sociedade e o senso de justiça do escritor em, para citar algumas crônicas, A fome negra e Os trabalhadores de estiva. A posicionamento segue em Nos tempo de Venceslau (1917) até a culminação na coluna “Bilhete”, no jornal A Pátria (outubro/1920 a junho/1921), quando a atividade política de Paulo Barreto ganha corpo e se encerra com o seu falecimento.

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Os mapas, aparentemente tão díspares, apresentam outro elemento em comum. Os cartógrafos não creem ser válido revelar o profundo da cidade em detrimento do que ali é superfície. Não apostam na dicotomia ontológica entre essência e aparência, pois sabem que o oculto é obvio. Não há nisso, no entanto, um devaneio rizomático, mas a noção de que a cidade constitui de tal forma uma heterogeneidade de representações que constituem em si uma tradição:

um significativo arsenal de imagens, símbolos, mitos, metáforas, narrativas, formando um repertório pronto a ser realocado, repetido, na tentativa de construir sentidos para a realidade urbana, enquanto fenômeno moderno e pós-moderno. Dessa maneira tal repertório constitui uma tradição. E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é impregnada por essas imagens que foram inscrevendo-se nessa tradição (em continuidade e transmissibilidade): a representação do objeto cidade é ela própria formatada pelas ações e imaginações dos sujeitos que o percebem, mesmo com concepções distintas de cidade (Gomes, 2009, p. 74).

Tome-se, então, como concretização metafórica dessa situação em que a representação é o próprio objeto, um dos poemas do livro Agora aqui ninguém precisa de si (2015), de Arnaldo Antunes, “pedra de pedra”, que tem um fragmento que aqui interessa para explicitar essa percepção cartográfica:

o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?
casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
repleta apenas de pedra?[5][6]

As indagações ajudam a relativizar um suposto sentido oculto, profundo, de existência. O que se dá a ver é o que é. A pedra, que volta à poesia brasileira pelas mãos de Antunes, não é a de Drummond, no meio do caminho, nem a de Cabral, adocicada na glace que disfarça sua rudeza, nem a de Vaz, feita para quebrar vidraças[7], mas uma pedra heraclitiana, sabedora de que o tempo a transformará em areia. Para falar desse objeto sem substância secreta, ou melhor, cujo segredo de sua consistência é a própria superfície, outras metáforas são potentes. Os que aprenderam a cartografar literaturas e cidades com Renato hão de se lembrar da metáfora da cebola. A casca que se retira revela outra casca, e outra e outra, até o âmago de um objeto que é só casca.

A obscena não é cena, mas também não é oculta.

Caetano Veloso é autor de duas imagens imprescindíveis para ler essa questão na cultura brasileira. A primeira delas, aparece no verso “aqui tudo parece construção e já é ruína” numa canção que já foi citada mais acima, do início da década de 1990, em que denuncia o subdesenvolvimento que permanece fora da nova ordem mundial. A suposta oposição entre aparência (construção) e essência (ruína) não se sustenta. Ruína, neste caso, não é mais do que outra predicação dada à aparência da construção. “Construção-ruína” pode ser elencado como mais um dos paradoxos que configuram a modernidade. Outro dizer, crítico, do mundo que acaba se conformando na superfície da linguagem. Não pode, sequer, tratar-se de uma formulação metafísica, na medida em que fere um princípio clássico da lógica aristotélica, segundo o qual enunciados contraditórios não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo. Je est un autre, diria Rimbaud, inaugurando este paradoxo da modernidade em que A é não-A, e deslocando a questão da identidade de sua tautologia fundamental.

A segunda imagem, mais diretamente relacionada à reflexão que aqui se faz, está na canção “Um índio”, de 1976. A percepção final de que o herói mítico “surpreenderá a todos pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”. Óbvio-oculto é um paradoxo que articula a imaginação do poder no Brasil. Do racismo que se vende como democracia racial, ao poder armado que se legitima no Estado. Tudo é cena e obscena, óbvio-oculto.

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Seja na passividade do olhar distanciado (a janela) ou na enunciação pedestre (a rua), essas duas formas de representação possuem seus limites e potencialidades. Ao contrário da experimentação do ato de penetrar na densidade de signos que formam a cidade, a janela produz um isolamento que permite a observação e impede a participação do sujeito. O olhar emoldurado comporta a atenção a determinado ponto, tornando a janela um quadro vivo por onde transitam os elementos que formam a cidade. A janela, nessa perspectiva, oferta uma imagem que se assemelha a um palco no qual é construída uma encenação do cotidiano, ao qual o expectador alcança uma visão privilegiada e observa o desenrolar das ações. Em operação oposta, no ato de leitura da cidade que utiliza a rua enquanto espaço de observação, produzindo uma enunciação pedestre, perde-se a acuidade do olhar e o elemento efêmero é resultante do próprio ato de percorrer a cidade, sem fixar-se em um ponto determinado, perdendo-se no labirinto de signos. O ato de observar a cidade pela moldura de uma janela é dotado de uma pedagogia, de um aprendizado; não é apenas entretenimento. Debruçar-se sobre uma janela e focar a vida que se desenvolve no exterior é um exercício que requer atenção e técnicas próprias. Não é um olhar descontraído e, muito menos, contemplativo. Observa-se a cidade de modo agudo, resultante de um método específico, voltado especialmente para a criação de um olhar que se quer nítido. Cria-se um olhar que busca ordenar o aparente caos do cotidiano e para ler na superfície da materialidade dos edifícios e dos transeuntes uma imagem possível da cidade contemporânea.

Rua e janela. Janela e rua. Essas duas formas de olhar e representar podem igualmente estar relacionadas à famosa reflexão criada por Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, ao afirmar que a cidade é o símbolo capaz de exprimir a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas. Tal reflexão, conforme analisa Renato Cordeiro Gomes, é formada a partir do acionamento de duas metáforas que sintetizam o complexo jogo de leitura da cidade: o cristal e a chama. Por seu turno, a racionalidade geométrica apresentada por Calvino passa a ser metaforizada no cristal e o emaranhado das existências humanas assume o corpo da chama. Cria-se, nessa perspectiva, uma equação que pode ser simplificada na seguinte sentença: o cristal é forjado pela chama. Não há possibilidade de leitura da cidade que possa se ater em apenas uma única esfera de representação, se faz necessário produzir uma leitura que coadune o cristal e a chama. A constatação do sentido dialógico resulta em um novo entendimento para a investigação da experiência urbana e, principalmente, de sua representação. O ato de transitar pela cidade – seja em um percurso a pé, em uma enunciação andante, seja em um veículo de transporte coletivo, andar de ônibus – é a realização de um movimento aberto ao contato com o outro, produzindo um processo dual. Creio que se faz necessário afirmar que os encontros são efêmeros: verdadeiros instantâneos. Fisionomias entrecortadas pela visão ou esbarrões não evitados pelos desvios dos corpos. Os encontros são, em alguns casos, choques em uma paisagem dotada de artérias sobre as quais uma massa trafega de forma obstinada rumo a um destino.

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Penso se não somos, todos, a mescla das ruas em que habitamos.
(Marcelo Moutinho, Na dobra do dia)

“Por onde anda o flâneur?” é o título de matéria elaborada por Eliane Salles e publicada na revista Veredas, do Centro Cultural Banco do Brasil, em 1999. Se o interesse pela cidade enquanto tema desde a modernidade ainda figura, mudanças urbanas, culturais e sociais levam pesquisadores a acreditar que, na contemporaneidade, a flânerie já não é mais possível. Se falta consenso sobre a existência (ou sobrevivência) da figura do flâneur, não é o caso da produção intelectual e literária que tematiza o espaço urbano.

João do Rio, com sua crônica, Renato Cordeiro Gomes, com suas proposições teóricas, são inspirações para pesquisadores e escritores que perseguem a leitura da cidade, que “es lässt sich nicht lesen” (Poe). A bem da verdade, é o que se contempla em Rubem Fonseca; Luiz Ruffato; Rubens Figueiredo; Luiz Antonio Simas; Marcelo Moutinho; e outros. E é, também, o que buscamos neste ensaio.

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Os cartógrafos ocupam uma posição privilegiada de intelectuais, apesar dos impasses relacionados ao declínio e à queda da cidade letrada. Renato lê esse processo por meio da articulação entre o clássico de Angel Rama, La ciudad letrada, e o estudo de Jean Franco The decline & fall of lettered city. Suas conclusões articulam a ideia de deslocamento, uma das três propostas para o próximo milênio de Ricardo Piglia, como forma de

requalificação da cidade letrada, não mais como um espaço de legitimação ligado aos discursos hegemônicos, e que possa ir além da institucionalização cultural e do processo ilustrado que foi implantado como parte dos planos de progresso e de modernização social (como demonstrou Angel Rama). Reconfigura Piglia a posição do escritor e o imperativo da atividade política, que Antonio Candido detectou em Rama (Margato; Gomes, 2004, p. 127).

As invasões bárbaras, filme de Denys Arcand, ou cenas da novela Celebridades, da rede Globo, em que João Ubaldo Ribeiro e Silvio Tendler fazem pontas, são exemplos a que Renato recorre, para explicitar, a partir de entrevista do próprio Tendler, “a morte da cidade letrada, com o desmantelamento ético de uma sociedade corrompida pela razão cínica desses tempos de capitalismo globalizado” (Margato; Gomes, 2004, p. 128). A esses exemplos seria possível acrescentar uma série de outros fatos, mais recentes, que vêm tornando as redes sociais o mais radical palco de uma guerra não mais de relatos, mas de shitstorm, que colocam parcela significativa dos intelectuais absolutamente fragilizada e atônita.

Aquele lugar, professado por Sergio Vaz, e aqui lido como o do autor como produtor, o da literatura dita marginal ou periférica de uma forma geral, mas não só, deixa claro que as fronteiras da cidade letrada contêm uma circunscrição de classe, de raça e de gênero muito bem definida. A abertura com que Renato enxerga esse processo excludente, racista, sexista, de extração ilustrada está na maneira precisa como formula a percepção da obscena, em Lima Barreto, mas também na abertura com que se dispôs a orientar teses e dissertações sobre a literatura marginal-periférica, sobre a favela, sobre personagens a partir dos quais esse olhar deslocado, à margem, pudesse garantir traços mais justos e inclusivos, mais cores para a cartografia da cidade e da nação, dos temas e dos problemas.

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Hoje, diante de uma cidade devassada pela violência dos agentes de segurança do Estado, em uma cidade marcada pela fragmentação das experiências e pelo galopante isolamento dos sujeitos, a janela e a rua assumem novas feições e agora estão dotadas de novas características. Os romances Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, e Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, podem ser acionados enquanto exemplos deste movimento de ressignificação dos modelos de narrar a cidade. No romance de Figueiredo, a cidade é vista a partir da janela de um ônibus que realiza o trajeto entre o centro e a periferia. A moldura que tornava o olhar mais contemplativo e permitia a indexação dos vários elementos do cenário urbano agora é marcada pela mobilidade. Afinal, a janela não é mais fixa, esta se coloca em movimento. Além de ser o espaço de mediação com a cidade, a janela do ônibus igualmente passa a fazer parte da paisagem urbana, integra o cenário na mesma medida em que é um dispositivo de observação. Em outra perspectiva, Luiz Ruffato problematiza a ideia de romance e representação ao propor uma narrativa que experimenta um percurso pela cidade de São Paulo. O autor opta pelo fragmento enquanto estratégia narrativa e compõe um mosaico de vivências e perspectivas que produz um olhar prismático para a metrópole contemporânea. Ao propor esse recurso, o autor nos revela que não existe mais a possibilidade de produzir uma enunciação pedestre, um percurso linear pelas ruas da cidade. O flâneur, personagem símbolo da cidade moderna, é substituído pelo zapeur, um modelo contemporâneo de narrar a cidade que se notabiliza por uma errância fragmentada e não linear, conforme observaram Renato Cordeiro Gomes (2007) e Giovanna Dealtry (2007).

Faz-se necessário ativar um novo referente para alcançar um molde de representação da cidade que possibilite observar essas mudanças e que permita novamente exercitar o experimento da representação. O olhar surge como metáfora possível para alcançar um foco que coloque em destaque uma possibilidade de leitura da paisagem urbana, proporcionando a existência de novos relatos. Afinal, como nos informa Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano 2, a cidade é o “teatro de uma guerra de relatos”. Ainda que breve, a definição apresentada pelo autor serve como ponto de referência para o estabelecimento de um horizonte de questões acerca da produção teórica que examina a relação entre literatura e experiência urbana. Dessa forma, a partir da leitura produzida por Certeau, é possível identificarmos o princípio prismático da subjetividade que determina a forma de narrar e ler a cidade. Ao ser classificada enquanto um palco de uma disputa discursiva, a cidade surge como espaço que se constrói não apenas em sua materialidade física, mas, igualmente, no próprio ato de narrá-la. A edificação da narrativa resulta no estabelecimento de uma imagem para a cidade que entra em choque com outras imagens já existentes, evidenciando a perpetuação de uma guerra de relatos. No entanto, conforme o autor afirma, tal conflito é operado no espaço da performance e tem como cenário o campo da fabulação: o teatro. Por esse viés, não se trata do estabelecimento dos relatos enquanto verdades acerca da cidade, mas, sobretudo, como construções discursivas que refletem a subjetividade de quem as produziu.


* Alexandre Graça Faria é doutor em Letras pela PUC-Rio e professor da Faculdade de Letras da UFJF. Aline da Silva Novaes é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio e professora da Faculdade de Comunicação do Centro Universitário Ibmec. Autora de João do Rio e seus cinematographos: o hibridismo da crônica na narrativa da belle époque carioca. (FAPERJ/Mauad, 2015). Paulo Roberto Tonani do Patrocínio é doutor em Letras pela PUC-Rio e professor da Faculdade de Letras da UFRJ. Autor de Escritos à margem, a presença de autores de periferia na cena literária contemporânea (FAPERJ/7Letras, 2013) e Cidade de lobos: a representação de territórios marginais na obra de Rubens Figueiredo (FAPERJ/EDUFMG, 2015).

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 22ª edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 2014.

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Notas

[1] Esta citação está na tese arquivada na Biblioteca da PUC-Rio, mas não no livro Todas as cidades, a cidade, dela derivado.

[2] A sociologia e a antropologia não são disciplinas que levam facilmente a situações em que as pessoas são capazes de viver suas fantasias, não apenas na ação simbólica do ritual, mas no teatro concreto da sociedade em geral. A cidade é uma dessas situações. Suas condições quebram efetivamente muitas das distinções convencionais entre a vida dos sonhos e a vida real; a cidade de dentro da cabeça pode ser transformada, com a ajuda da tecnologia do estilo, na cidade das ruas. Em um grau muito grande, as pessoas podem criar suas cosmologias à vontade, libertando-se dos esquemas deterministas que deveriam tê-las levado a um estilo de vida totalmente diferente. Ter uma concepção platônica de si mesmo e fazê-la emergir, completamente vestida, para fora da cabeça, é uma das liberdades mais perigosas e essenciais da cidade, e é uma liberdade que foi ignorada e subestimada por quase todos, exceto pelo os romancistas (tradução nossa).

[3] Esta é edição do autor, sem referências. Vários poemas nela presentes serão reeditados em Vaz, Sergio. O colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2007. O texto citado constitui fragmento que será aproveitado no famoso “Manifesto da antropofagia periférica”, publicado em VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011. Interessou-me citar essa edição, em especial pelo título do primeiro livro de Sérgio Vaz, A poesia dos deuses inferiores, imagem que vai sendo articulada ao longo do texto.

[4] Cf. https://www.marxists.org/portugues/brecht/1934/mes/verdade.htm. Acessado em 17/02/2020.

[5] Antunes, Arnaldo. Agora aqui ninguém precisa de si. Companhia das Letras. Edição do Kindle.

[6] “O texto do Arnaldo Antunes me fez lembrar de uma passagem de Cidades invisíveis em que Marco Polo descreve uma ponte em arco, descreve pedra por pedra. Kublai protesta e diz que tem interesse em conhecer o arco. Polo responde que só existe o arco devido as pedras.” (Comentário de Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, durante a leitura prévia desses fragmentos).

[7] Cf. FARIA, Alexandre; BARRETO, Carolina de Oliveira. “Epicentro na periferia: trânsito e fronteiras em Colecionador de Pedras, de Sergio Vaz”. In: PEREIRA, Terezinha Maria Sher e FERREIRA, Rogério de Souza Sergio. (Org.). Literatura e política. 1ed.Juiz de Fora: UFJF, 2011, v.XX, p. 187-201.