“Nas história antiga, que eu conheci, dos meus bisavós… e os antigos, né?! Porque de livro não me interessa. Pelo menos, eu sei, eu vou contar as histórias do que se contava no passado.”
O presente artigo investiga as narrativas da artista, contadora de caso e benzedeira dona Zefa, moradora de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha. Muitas de suas histórias são baseadas na Bíblia, mas passam por um processo de reinvenção, onde a narradora acrescenta elementos não originários das escrituras sagradas. As forças da natureza aparecem eloquentemente, tanto em seu trabalho escultórico como em sua narrativa, o que nos convence de que suas histórias se referem diretamente ao universo afro-ameríndio. Exclusivamente, por meio da sua performance, a narradora não só encarna a história como reinventa seus significados originais, dando-lhes novos contornos e novos contextos. Seu texto existe apenas como parte da sua performance oral, portanto ele só existe enquanto toma forma na voz e no corpo da performer, que literalmente o corporifica pela comunicação com o ouvinte/espectador. O artigo, portanto examinará a narrativa não apenas como texto literário, mas como elemento propriciador da performance oral, onde a história narrada não só exemplifica a relação do sujeito com o tema, mas o posiciona como criador de imagens vivas. Zefa reúne em seu ofício as diversas atividades ocupadas tradicionalmente pela pessoa de teatro: o dramaturgo ou adaptador do texto, o diretor de cena, o ator e espectador privilegiado da própria história já que ela faz pequenos comentários que poderíamos classificar como próximos à proposta do teatro Épico de Bertolt Brecht, coisa que, naturalmente, nunca ouviu falar. Seu cenário de fundo é composto de duas cortinas com estamparia floral que dão acesso a outros cômodos da casa e duas paredes totalmente revestidas com uma coleção de fotos de família, de colecionadores de seus trabalhos e amigos intercalados com toda a sorte de imagens de santos, cartões postais, recortes de jornal etc. Isto é sua sala de visita e oficina repletas de suas esculturas recém-terminadas ou ainda em processo, feitas em troncos de madeiras. A maioria delas é feita na forma de colunas com caras duras, anjos retorcidos junto, peregrinos e beatos das memórias longínquas das mesmas terras onde pisaram Antonio Conselheiro e Lampião e de onde ela tem as suas raízes familiares e onde viveu a sua juventude.
Mas, ao contrário do griôs conhecidos, Zefa não interpreta os personagens de suas histórias, ela os apresenta. Ela reproduz seus diálogos curtos com uma comedida pontuação, uma prosódia peculiar, emprestando-lhes sempre um tom coloquial como o da conversa de vizinhos na varanda de suas casas nas noites de lua cheia, assim ela trata os seus espectadores, não importa se autoridade ou criança que se chega. Seu teatro aproxima-se do universo da performance, pois ela conta com a imaginação do espectador para completar a história, embora o sentido da mesma ela não deixe escapar. Em nenhum momento cria a mimesis ou a linguagem corporal do personagem, não há em nenhum momento preocupação em recriar alguma atmosfera “teatral”, imitando trejeitos ou forma de falar de algum personagem. Os fatos são mais importantes que as reações físicas dos personagens, o que eles fazem e falam é mais importante do que eles sentem. Ela talha a sua narrativa num tom firme e extremamente convincente. São histórias do sertão, das terras secas e quentes do norte da Bahia, de Sergipe e Alagoas onde perambulou quando jovem, e as terras misteriosas das Gerais, os serros frios e desertos, serpenteados pelo rio Jequitinhonha.
Além de contadora de histórias, dona Zefa é uma ativa escultora em madeira, profissão que abraçou depois de fugir da seca do nordeste, onde trabalhou como feirante, vendedora ambulante, construtora de malas e carpinteira de camas “feitas a prego” para finalmente fixar residência no Vale do Jequitinhonha, uma região repleta de histórias e lendas. Ali também encontrou seu oficio mais nobre: a arte – ceramista por três anos, quando adoece e descobre a escultura em madeira que a projetou nacionalmente. Zefa Alves dos Reis é originária da região fronteiriça entre os estados de Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando seu irmão mais velho, em 1958, foi construir Brasília em busca de uma situação melhor para família, viu-se em completa miséria, pois o irmão nunca mais deu notícias e nem retornou ao lar, ela então, como milhares de nordestinos, migrou para o sul ao lado da cunhada, que também não tinha uma profissão definida, em busca de uma vida melhor. O mundo encantado das lendas que ouviu, a Bíblia aprendida dentro de uma tradição oral e a própria história de vida se mesclam em seu trabalho escultórico bem como em suas narrativas épicas. Ela é contadora de caso desde criança como ela própria aponta em uma de suas histórias:
Foi lá na Serra dos Aimorés, (…) também tinha essa família que era de imigrante que veio de Portugal, aí os pais moraram lá numa sede muito boa, eram muito ricos, aí eles morrero e deixou duas filha. Duas foi vizinha nossa, uma morava, a casa dela ficava na frente da casa que nós morava e a outra morava mais longe, não sei cumé o nome dela, sei que eu fiquei na casa dela muitos dias com ela, porque naquela época não havia televisão e eu contava muita história de folclore né, porque na fazenda de meu avô, naquele tempo todo mundo sabia história, mas quem tinha memória boa pra guardá história, pai dizia assim “Zefa vai divertir o povo” contando história né, aquele multidão de gente sentava na calçada e eu sentava o pau pra contá história, e Preta, essa menina de Portugal, chamavam ela Preta. Mas era branca de olho azul, a peça mais bonita, parecia uma grande modelo né, era bonita demais. Ela casou com um tenente, o tenente era mineiro, mas naquele tempo que a tuberculose era igual a AIDS agora, que não encontra remédio, então a tuberculose tava matando gente demais, então o moço um dia começou a sentir uma dor, assim que ele casou, ele começou a sentir uma dor, por dentro nos intestino. Aí ela levou ele pra Belo Horizonte, aí ele passou no raio X, quando passou no raio X aí era tuberculose, tinha começado a mancha da tuberculose. Interessante, que o homem tava quase de lua de mel né, aí o médico disse assim “Aparta a dormida com sua esposa porque você ta contaminado, tuberculoso”, aí ela disse que veio, esse homem veio desesperado, aí passou remédio, aí retorna lá de novo em Belo Horizonte, aí ele foi e chegou, passou um dia, no outro dia, que ele disse assim “Ô Preta vai pegar uma água pra mim”, aí ela foi. Quando ela foi pegar a água, a casa era muito grande, quando ela foi pegar a água lá na cozinha, ele detonou o revólver perto do ouvido e morreu, aí ele morreu e ela ficou desesperada também, bom, quando nós chegamo lá tinha quinze dia que o marido dela tinha se matado e ela tava impressionada né. Aí de parente dela…. tinha uns amigo né, que os pai deixou, os parente são os amigo como eu tenho aqui né, é os amigo, só tinha uma irmã, aí eu contando muita história e o amigo disse assim, “ô Preta vamo divertir na casa de Sô Jão”, Zefa tá lá contando história e tem muita gente assistindo. Aí ela foi, assistiu, se divertiu muito, aí disse “Seu João”, meu pai se chamava João Aldo né, “Seu João Aldo, o senhor pode me dá a Zefa pra ela passar uns dia comigo, pra ela me divertir, contar história”. Porque ela perdeu o marido, tava pra perder o juízo, aí pai disse assim “Ah, a menina ta fazendo nada não, ela pode passa até meses com você, é aqui vizinho…”
Interessante como ela própria percebe o poder performativo de suas histórias, capaz de, como afirma Schechner, “transportar e transformar o espectador”. (SCHECHNER: 1985) O contato com as narrativas orais permite a viúva da história narrada transcender a sua própria dor individual ao mergulhar num universo místico criado pela contadora. Sua história, mesmo sem intenção, exerce um alto poder terapêutico. Atualmente com 84 anos, Zefa escreve a própia história de mulher e cidadã em Araçuaí, uma comunidade dominada pelo imaginário de vaqueiros e mineiros, tradições de lavadeiras cantoras e com muitos artistas e artesões, onde se destacam também suas conhecidas ceramistas: dona Lira, famosa por suas máscaras com motivos afro-brasileiros e dona Isabel, por suas bonecas grandes de cerâmica vestidas de noivas coloridas com os diferentes barros da região. Dona Zefa, não atribui a si própria a versão das histórias que conta, mas ao que foi aprendido com os mais velhos. Em suas histórias, se destaca a sua relação com a Mãe Terra, algo apreendido ao longo de sua existência e que considera primordial passar para os outros, como narra:
O moço da imprensa falou comigo “Zefa, é engraçado que eu tenho feito entrevista no mundo inteiro. Eu nunca soube da pessoa conversar com Deus considerando a Mãe Terra como mesa da comunhão. É a coisa mais bonita que eu achei na minha vida e eu vô passar pruns amigo meu que é estrangeiro.” Porque é assim: antigamente… são confissão de antigamente, dos antigo. Então antigamente a cidade, pra você conhecer o padre era muito difícil, então tinha a santa confissão é… que os padre andava celebrando santa missão para confessar os povo, para confessar os povo, que era muito bruto e inocente, que morava nas montanha, no centro da roça. Então… você tem uma pessoa doente, que ele tá pra morrer. E como é que ele confessa se num tem padre? Eu moro num lugar distante, e aí? A cidade fica distante 5 ou 6 légua, e meu parente na cama da morte, e como é que ele confessa? Então antigamente a cidade era muito distante uma das outra. O antigo ensinou… essa oração da confissão ela já vem de muito mais de mil anos… muito mais! Muito mais! Isso vem dos antigo. Então diz assim. A pessoa vai conversar com Deus. Foi a confissão que o Cabeça de Ferro fez. Aqui teve um.. no mundo… teve um valentão igual a Lampião, igual a cangaceiro. Vivia matando os outro pra roubar. Só que ele não tinha companheiro, ele era sozinho. Então, chamava… o povo tinha tanto medo dele que chamava “Cabeça de Ferro”, porque não tinha ninguém. Era… o destino dele era o de matar, né? De dia… de noite… de dia ele tava no mato escondido e de noite ele saía escondido pra matar. Só que ele matava porque aquilo parece que era uma fraqueza da cabeça dele, ele era um matador de fama, né? Conta há muitos anos atrás, né? Milhares de anos… o Cabeça de Ferro era conhecido no mundo inteiro, né? Um caçador tava caçando e o Cabeça de Ferro tava escondido no mato que era pra noite… Ele invadir as casas, né? Aí quando o caçador viu o Cabeça de Ferro, ele desmaiou e caiu com a espingarda na mão. Aí o Cabeça de Ferro falou “Já viu um homem cair sem eu matar?” Mas mesmo assim o homem tava morto. Aí ele disse assim “eu não sou gente não, se o homem só de me ver, ele morre, eu não quero ter mais vida”. Aí foi e se ajoelhou num pedá de pau e disse assim: “Aqui me ajoeio, Senhor, nesta mesa de finar, minha alma se alegra de ver tão rico manjar. O manjar excelente dado pelo Senhor, que os pecado que eu tinha, agora num dia se confessou. Eu agora vós digo, Senhor, sem saber quanto eles são, perdoai os meus pecado, na santa mesa da comunhão.’’ Aí vai e beija… a terra, ce reza oiando pra o céu, porque é ajueiado, né? Você se ajueia e reza, porque tá conversando com Deus, com Jesus Cristo.
Quase sempre ela ilustra o pensamento com uma história, criando uma espécie de parábola em que demonstra uma espécie de moral sobre o assunto abordado. Em outra ocasião ela teoriza sobre o poder da Mãe Terra:
Porque a Mãe Terra é a dona de nosso corpo. Ela tem todo o poder. Ela tem a graça de Deus de criar nóis. Ela criô nóis, cria tudo que nela existe, ela muda uma serra de um lugar pro outro, conforme uma tempestade de chuva. Ói, eu merma visitando a Lapa de Bom Jesus, eu merma vi o rio onde é que era… ele foi mudado… mudado, né? Bom, então a Mãe Terra muda a serra dum lugar pro outro. Por que ela não pode mudar nossa vida?
Dentre as inúmeras histórias colhidas, sem dúvida, a da Criação do Mundo, por ser a mais conhecida de todos, se torna a mais interessante por apresentar uma versão bastante inusitada, pois seus protagonistas são apresentados de forma coloquial, demasiadamente humanos em suas reações: Adão um tipo curioso e metido a esperto, Eva ingênua e gulosa, o Anjo um tanto futriqueiro e Deus, onipresente, mas meio esquecido. Ela não faz comentário sobre os personagens, percebemos seu comportamento através de algumas reações tão diferentes da percepção clássica de quadros estereotipados como “A tentação de Eva”, “A expulsão do paraíso” etc. A história de Zefa começa com que o já é conhecido, Deus criando Adão a partir de um monte de barro e deixando-o para que ele possa descobrir, sozinho, a natureza. Em algum momento depois, ele fica curioso para saber como está a sua criação e ele pede ao Anjo:
“- Óia, vai ver como Adão tá.” E Deus sabia tudo que ia acontecer né. Aí o Anjo chegou lá, Adão tava acocorado por trás do pau com a mão na cabeça. O Anjo chegou assim: “- Ó Adão, que tristeza é essa? Você tem tudo nas suas mão, tem tudo à vontade e você tá triste assim, tem tudo enquanto é bicho pra você se divertir.” E ele tá calado. “- É o quê, Adão? Por que você tá triste? O que é que te faz alegrar?” E ele dizia assim ó: “- Só tenho alegria se aparecer uma companheira.”
Em sua narrativa mítica ela trata os personagens sagrados sem nenhuma cerimônia, como fazendo parte do universo caipira em que ela se insere, com tranquilidade e respeito; eles são extremamente informais e falam a linguagem do povo. Quando o Anjo dá a notícia para Deus, ele decide ir lá falar com Adão pessoalmente:
“- Adão”, “- Tô aqui.” “- Cê tá querendo uma companheira, né, Adão? Tão deita aí.” Aí pegou a costela mindinha dele e fez a mulher, deu vida. Aí Deus contou a ele; aí ele perguntou assim: “- Por que o Senhor tirou o osso menor, a costela menor da cintura?” “- Porque a mulher tem que ser igual a você.” “- Por que não tirou da cabeça?” “- Porque a mulher não pode dominar o homem.” “- E por que não tirou dos pés?” “- Porque o homem não pode pisar na mulher.” Aí foi perguntando tudo.
Aqui a preocupação entre a equidade entre os gêneros surpreende, pois tradicionalmente o papel da mulher tem sido pouco enfatizado pela visão ortodoxa católica. Entretanto, o enunciado acima pode ser interpretado também como uma máxima reguladora da visão do universo católico rural, na qual o homem é quem tradicionalmente domina a mulher, portanto o inverso nunca pode acontecer. Ele, uma vez exercendo esse domínio, nunca deve maltratá-la. Mas de qualquer forma, a igualdade do paraíso, onde pareciam feitos um para o outro, nivelados pela inocência, um estado de graça foi definitivamente perdido e alcançado apenas num mundo mítico.
Mas Deus sabia de tudo que ia acontecer. Aí foi mostrou os arvoredos tudo. “- Agora desse arvoredo aí, que vocês não podem comer, viu?” E a serpente tava perto, escutando. “- Não pode, porque se vocês comer desse arvoredo é pecado mortal, não pode de jeito nenhum!” A tentação ficou lá. Não apareceu a Adão. A mulher sempre tem a cabeça, o juízo, mais leve, leve, assim iludida né (riso). Aí a tentação tava toda graciosa lá no pé do arvoredo, né?! Aí a mulher assim: “- Ô fruta bonita, meu Deus!” Aí ela foi e comeu. Aí disse: “- Ó, Adão, vem cá. Vem comer um pouco pra você ver.” Aí Adão chegou e falou:” “- Devera, mas é bão de mais, tá doido! (riso).
E quando Deus mandou o Anjo ver como Adão estava, a visão foi inesperada e ele detalhou para Deus a situação em que encontrou o primeiro homem:
“- Ó Senhor, ele desobedeceu ao senhor porque ele tá vestido de fôia. Tá vestido. E se apadrinharam, tudo envergonhado com vista no chão.” E foi ele pessoalmente chamar a atenção “- Ó, Adão, que que aconteceu com você mais com sua mulher? Foi você que inventou de atrair ela pra comer daquela fruta?” “- Foi ela. Foi ela que me iludiu e eu comi. Fiquei nesse estado.” “- Pois é, se vocês agora vocês tão vestidos, vocês se viram. Eu vou dar uma semente pra você plantar, dagora por diante você vai comer do suor do teu rosto. Porque você perdeu a veste da graça de Deus. Então agora você vai se vestir e comer do suor do teu rosto. Ademais, eu vou mandar o Anjo trazer tá?! Pra você plantar.” Aí foi, mandou o Anjo. O Anjo chegou com a enxada e a semente. Diz: “- Óia Adão, aqui é a semente do algodão, que a profissão de Eva é tecer roupa. Porque vocês, a geração de vocês vai se estender. Aí você pega a enxada e vai trabaiá. Aí ele foi, aí o Anjo foi embora.
A história bíblica toma um caráter extremamente nordestino, campesino: aqui a divisão do trabalho é claramente definida, embora sem hierarquia. O homem é o lavrador e a mulher a tecelã, enquanto ele lida com a terra, ela com o trabalho da criação das vestimentas. Entretanto, o grande ponto de mudança proposta pela história de dona Zefa ocorre neste momento:
Quando bateu a enxada no chão aí brotou sangue da… do corte da enxada na terra, a terra foi e gemeu. Aí ele disse assim: “- Você é igual meu corpo, pois eu não vou cortar mais não, cê gemeu. Ah não, ah não. Não vou desobedecer, cortar ninguém não.” Aí foi pra casa, foi comer fruta. No outro dia, aí Deus mandou o Anjo: “- Vai ver se Adão plantou mesmo.” Chegou lá: “- Adão, por que você não plantou?” Aí ele contou o caso. Aí o Anjo voltou. Já foi ao Senhor: “- Ele não plantou nada não. Que a primeira enxadada que ele deu, a terra gemeu e brotou sangue. E ele disse que se era igual o corpo de que ele não ia plantar não.” Aí o Senhor falou: “- Eu tenho que ir lá.” Chegou assim: “- Ó Adão. Como é que aconteceu que diz que você cortou a terra e ela gemeu?’E disse assim:“- Ó Adão, é porque ela é virgi, porque o homem nunca cortou, porque o homem nunca trabalhou na terra. Eu vou conversar co ela pra fazer sua plantação.” Aí foi ele e disse assim ó: “- Mãe Terra você deixa Adão cultivar você, cortar você, porque você mesmo dá, você mesmo come.”Você vê que tudo que a terra produz ela mesmo come, né. E aí falô: “- Corta terra agora.”Aí ela não gemeu mais e Adão foi e plantou.
A terra desempenha um papel crucial na história, pois o próprio Deus vai pedir licença à Grande Mãe para que seu filho possa trabalhar nela. A explicação sobre o sangue e a virgindade da terra a torna humana. Mesmo sendo a Grande Mãe, ela permaneceu virgem até o homem perder a sua “vergonha”. A terra não fala, mas geme, ela parece ter sofrido ao primeiro corte dado, pois Adão a ouve e recua. Poderíamos levantar questões sobre uma religiosidade pré-cristã, relacionar aos mitos romanos e gregos, a Deméter e a Gaia, mas certamente estas culturas não parecem estar presentes nas palavras de Zefa. Ao que tudo indica devemos considerar muito mais o manancial indígena das culturas fortemente presentes na região de onde ela veio, inúmeros grupos, dentre os quais poderíamos destacar os Kariri-Xocós, os Pankarus, os Funiôs, os Pataxós, cujas culturas estabelecem uma forte relação com a Mãe Terra. E embora a presença Guarani nesta região não seja significante, sua mitologia é de forte impacto no imaginário da população brasileira, assim vemos muita semelhança com este momento engendrado na mitologia bíblica pela contadora. Na mitologia de origem Guarani, a Mãe Terra nasce do sopro do cachimbo do Grande Deus, que mandou os sete anciãos com as sementes-desenhos de tudo que seria criado com a missão também de criar o ser humano como o guardião da roça.
Na história narrada por Zefa, a terra ao se permitir ser germinada, após ter oferecido o seu próprio barro, a matéria prima para criação do primeiro corpo humano, ela então permite que em seu ventre sejam geradas as sementes plantadas por mão humana que vão servir de alimentos e algodão para criar abrigos. E desta forma, permitir ao homem que possa executar o seu castigo principal, o trabalho, pois a sua prole é uma consequência inexorável de sua existência comum com o sexo oposto.
“- Ói, só tem uma coisa. A sua desobediência foi demais. Seu trabalho é plantar algodão. Agora vai vim filho de toda parte. Vai encher a casa deles. Faz uma casa grande porque home não pode morar no tempo. E o trabalho de Eva é só fiar pra vestir os filhos porque vem filho demais por aí.” Aí foi de geração em geração e foi gente toda vida, e gente toda vida, e Adão trabaiando e trabaiando junto com os filhos mais véio.
A história poderia terminar aqui, como geralmente acontece, “e a partir daí as gerações foram se sucedendo…” Mas Zefa introduz um elemento inesperado, a incapacidade do homem de vestir a sua prole. Quanto mais o casal trabalhava, mais filhos tinha e mais gente nascia para ser vestida. E Deus mandou o Anjo, mais uma vez, para verificar como estava indo a coisa. Mas aí, novamente, a narradora expõe Adão como um orgulhoso a querer enganar ao seu pai.
“- Cês se esconde pro Anjo não ver.” Mas os menino queria ver né. Aí ele disse assim: “- Amanhã o Senhor vem te visitar e conhecer seus filho.” Aí ele foi mais Eva e disse assim:“- Vocês fiquem bem ó, vocês se esconde viu?! Porque o Senhor não pode ver vocês despidos não. Só aparece os vestidos.” O Senhor sabia de tudo né. Aí quando o Senhor chegou, chegou a multidão de filhos tudo vestido. E arvoredo tava por todo lado, os outros ficaram por lá apadrinhado, escondido, à frente dos arvoredo e apontando as cara, como macaco ainda por cima. O Senhor tava conversando com ele e disse assim: “- Que mói de gente é esse aí?” Quando Adão, não pôde falar nada, abaixou a cabeça assim.” “- Adão cê mentiu pra mim né? Né Adão?! Que tanta gente pelado é esse me espiando atrás dos pau? Nem é filho seu não Adão?” “- Não, num é meus fio não. Deve ser de algum bichinho por aí.”
Percebemos já no primeiro homem, os graves defeitos da raça humana, querer enganar ao próximo, e no caso o próximo era Deus. Mas, ao contrário da imagem do Deus colérico judaico-cristão, temos nesse de Zefa um Deus com um grande senso de humor. Pois diante da multidão de cabeças saindo de trás das árvores, e ao perceber que Adão estava trapaceando ele completa:
“- Pois é, esses que tão me espiando é seus fio né. Mas você escondeu de mim, então, em macaco eles se transformará.” Aí ficou a geração braba de macaco no mundo todo. Mas é tudo família de Adão. Tudo que é completo no homem é completo no macaco.
A história aponta para as semelhanças entre o homem e o macaco e sua origem comum, explicando de forma mítica o elo perdido entre as duas espécies. É crucial percebermos na narrativa desta história a luta entre o mundo perfeito, sem pecado, proposto por Deus, (mesmo sabendo do seu insucesso na empreitada da criação, de acordo com a autora) e a vida humana enquanto conflito permanente. Ou poderíamos avançar e tomar a definição de Fitzgerald, empregada por Deleuze na abertura do seu capítulo Porcelana e Vulcão: “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição.” Comentando o autor, Deleuze acrescenta:
Eis um homem e uma mulher, eis casais (por que casais, a não ser porque já se trata de um movimento, de um processo definido como díada?) que têm tudo para serem felizes, como se diz, belos, encantadores, ricos, superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa se passa, fazendo com que eles quebrem exatamente como um prato ou um copo. (DELEUZE, 2006:157).
É claro, que na ótica de Zefa, o sentido da demolição ou da fissura, como aponta Deleuze passa por um filtro extremamente bem humorado. Ela, como mística e perfeitamente harmonizada com as forças da natureza está muito mais próxima da perfeição do criador do que do mundo da geração braba de macacos consumidores. Ela, portanto, vê o casal primeiro, que mal pode saborear as delícias do paraíso, para ter que dar duro para sustentar uma prole, cada vez mais necessitada, como algo que cotidianamente escolhemos na nossa vida distraída e descomprometida com as necessidades da Mãe Terra. E conclui com certa ironia a sua história da Criação do Mundo: “As história antiga são essas, é piada, né?! Uma coisa muito bonita pra se contar. Bom, eu gosto do antigo, a história antiga faz sentido né?!” O sentido que faz é sua possibilidade de associação e contextualização, a sua performance.
Zefa conta as suas histórias sentada no mesmo banquinho, junto ao chão em que trabalha fazendo suas esculturas em madeira. Seus gestos são econômicos, sua voz mansa, não dramatiza e não dá pronto os estados dos seus personagens. Sua palavra então, como uma lâmina de cristal, oferece transparência total e o verbo se faz carne não pelo que representa, mas pelo que criamos enquanto ela desfila seus incontáveis casos antigos. Acompanhamos sutilmente a sucessão de fatos, nos quais suas lembranças mais remotas se desenovelam em fios de lembranças recuperadas, sentimentos recuperados, não em função de um princípio religioso, mas pelo prazer fundamental de fazer do verbo carne. E por momentos fugazes experimentamos as delícias do paraíso perdido, transformados e transportados pelas palavras-imagens de Zefa.
Fotos de Lucas Vandebeuque
* Zéca Ligiéro é professor do PPGAC-UNIRIO, coordenador do Núcleo de Estudos de Performances Afro-Ameríndias -NEPAA. Dirigiu espetáculos no Brasil e no exterior. Entre os seus livros se encontram: Iniciação ao Candomblé (1993),Iniciação à Umbanda (1998) e Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra um malandro típico da Lapa Carioca (2004), Teatro a partir da comunidade (2005) eCarmen Miranda: uma performance afro-brasileira (2007).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Editora Perspectiva, São Paulo, 2006.
LIGIÉRO, Zeca. Entrevistas realizadas pelo autor com dona Zefa, Arquivo do Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias, NEPAA-UNIRIO (2006, 2007 e 2008).
SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. University of Pennsylvania Press, 1985.