Para Paul Heritage
Neste artigo, pretendo identificar a existência de traços comuns em iniciativas culturais de jovens de periferias e favelas de centros urbanos brasileiros, surgidas em meados dos anos 90. Proponho que, embora se constituam como experiências heterogêneas e não-articuladas, algumas delas apresentam, em primeiro lugar, aspectos inovadores no repertório de princípios e práticas das Organizações Não-Governamentais (ONGs) e do campo da esquerda, nos quais as iniciativas da sociedade civil brasileira tradicionalmente se inscrevem. Em segundo lugar, proponho que algumas dessas expressões se tornaram uma referência forte no contexto das manifestações culturais, da segunda metade da década passada e da atual. Ao identificar pontos de contato entre manifestações produzidas por jovens das favelas e aspectos da contracultura dos anos 60 e 70, e estabelecer ligações entre alguns de seus personagens, busco responder à questão: serão os grupos de jovens das periferias, na presente década, com sua “arte a serviço da justiça social”, os herdeiros mais diretos da tradição cepecista de “arte engajada”? Entre “CPC, vanguarda e desbunde”, quais continuidades e rupturas é possível estabelecer?
Três ou quatro características da produção cultural de jovens de favelas
Entre os acontecimentos marcantes na cena política brasileira dos anos 90, no campo de iniciativas da sociedade civil, está o surgimento de grupos de jovens de favelas e periferias ligados a iniciativas de cultura e arte. Em geral, começam como projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, frequentemente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos desses empreendimentos são os grupos Olodum, em Salvador, o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (CUFA), no Rio de Janeiro, além de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip-hop nas periferias de São Paulo, nas vilas de Porto Alegre, nos aglomerados de Belo Horizonte e em bairros pobres de Recife, Brasília e São Luís. Acompanho mais de perto a trajetória de três desses grupos, o AfroReggae, o Nós do Morro e a CUFA e creio que algumas de suas principais características anteciparam aspectos que estão presentes entre dezenas, talvez centenas de grupos espalhados por favelas e bairros de periferias em centros urbanos brasileiros.
Esses grupos expressam, por meio de diferentes linguagens, como a música, o teatro, a dança e o cinema, idéias e perspectivas dos jovens das favelas. Ao mesmo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da criminalidade e do fracasso associados a esse segmento da sociedade. Alguns falam abertamente no compromisso de produzir alternativas para os jovens fora da criminalidade e das fortes atrações materiais e simbólicas oferecidas pela rede de tráfico de drogas, presentes na maioria desses territórios – dinheiro, “respeito” imposto pela ostentação das armas, acesso às roupas e aos tênis da moda, enorme capacidade de atração de garotas bonitas, ambiente onde circulam carros e motos e em que a música rola pela madrugada, além, obviamente, do acesso às drogas. Outros grupos, como indicarei, recusam-se a situar seus esforços num suposto dilema “crime x arte” e apresentam um discurso que recusa a idéia de “tirar jovens do tráfico”; apenas falam em produzir arte de qualidade para romper estereótipos e estigmas. Seja como for, todas as iniciativas procuram exercer não só na comunidade de jovens locais, mas também em outras comunidades, uma sedução ligada ao glamour da arte, à visibilidade e ao sucesso.
Apesar de configurarem um campo heterogêneo, e até bem recentemente não-articulado, é possível identificar pelo menos quatro aspectos comuns a esses grupos. Tais características surpreendem, sobretudo, pelo fato de surgirem no campo de ações da sociedade civil, no qual predominam, desde os anos 90 até a presente década, modelos associativos bem estabelecidos, o das chamadas organizações não-governamentais.1
Celebridades. A primeira característica forte é o componente de investimento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida. Vários grupos valorizam o campo simbólico da subjetividade e investem na formação de artistas e líderes, cuja fama passa a servir como modelo. Numa contra-operação de criação de estereótipos, procuram construir imagens de jovens favelados que, contrariando a profecia, tornaram-se dançarinos, cineastas, artistas de teatro ou músicos. Usam insistentemente a grande mídia e tentam parcerias com os fortes conglomerados de comunicação, aparecendo simultaneamente como artistas e como ativistas que falam em nome dos jovens das favelas. Nesse sentido, eles se afastam do modelo sindical e associativo de esquerda, no qual a cultura do “coletivo” deve imperar sobre as trajetórias individuais. Não há apenas um foco voltado para “o grupo”, “a favela”, mas há um investimento explícito na construção de “personagens”. Anderson e José Júnior, do AfroReggae e MV Bill, da CUFA, são os exemplos mais evidentes dessa estratégia. Em outras palavras, o sucesso e a fama seriam entendidos como metas políticas e as estratégias de mídia, muitas vezes bastante sofisticadas, seriam elementos de uma militância.2
Mercado. Uma segunda característica marcante desses grupos é o seu interesse no mercado. Ao contrário das ONGs tradicionais, buscam a curto prazo alternativas de renda e emprego para seus integrantes, além de colocação no mercado e profissionalização. Neste sentido, criam uma cultura oposta à do “sem fins lucrativos” que caracteriza as ONGs brasileiras.3 Ao serem simultaneamente “ponto-org” e “ponto-com”,4 em geral operam com duas identidades jurídicas: como organização não-governamental (a partir da qual recebem doações de fundações internacionais, nacionais e governamentais), e como “empresa cultural”. Embora reafirmem o pertencimento ao campo do “trabalho social”, a maioria desses grupos move-se no sentido de dependência cada vez menor das doações internacionais e das governamentais, isto é, viver cada vez menos “de projetos”, “de avaliação de impacto” etc.,5 na procura pela capacidade de sustentação como empresas culturais que disputam o mercado.
O Grupo Cultural AfroReggae, por exemplo, estabeleceu explicitamente metas relativas ao autofinanciamento. Em abril de 2007, afirmava que 30% de sua receita total como ONG mantenedora de mais de 60 projetos advinha da venda de shows de sua banda profissional e de produtos associados à marca AfroReggae.6 Neste ano, o AfroReggae passou a custear a maioria de suas atividades por meio de uma nova modalidade de financiamentos: ofereceu “cotas” da organização que foram compradas por duas empresas (uma privada e outra estatal) as quais, por três anos, fornecerão recursos em troca da propaganda das suas marcas em todas as ações do grupo.
Território. A terceira característica bastante comum a quase todos os grupos de jovens de favelas é sua afirmação territorial. As letras de músicas, as camisetas e as roupas, as imagens associadas aos grupos reafirmam permanentemente os nomes das comunidades de origem (Vigário Geral, Vidigal, Cidade de Deus, Alto do Vera Cruz, Capão Redondo, Brooklin, Alto do Pina etc.). Curiosamente, a reiterada afirmação de compromisso com o território de origem não se traduz em bairrismo ou nacionalismo. Os grupos combinam o “amor à comunidade” com a adesão aberta aos signos da globalização (Coca-Cola, tênis Nike e outros) e produzem conexões entre o local e o universal via internet, sites e revistas. Atribuem alta prioridade aos intercâmbios com outras comunidades – inclusive com jovens de classe média – e às viagens nacionais e internacionais.
Orgulho racial. Um último componente do novo repertório introduzido por jovens de favelas é a forte presença da denúncia ao racismo e à afirmação racial negra, seja nas letras das músicas, nas indumentárias (cabelos afro, roupas), seja nos nomes de projetos e líderes (AfroReggae, Companhia Étnica, Negros da Unidade Consciente, Mano Brown, Zé Brown etc.). Nos anos 90, esses grupos foram responsáveis, no âmbito da cultura, juntamente com outros grupos de expressão mais comercial, mas igualmente preocupados com a juventude das periferias, como O Rappa,7 pelo rompimento do silêncio sobre a temática racial que, curiosamente, predominou na fervilhante cena musical desde os anos 60. Isto se deu não só nas expressões culturais tradicionais como o samba, mas também na bossa nova, na jovem guarda e na maioria das manifestações culturais em que “juventude” era sinônimo de estudantes de classe média dos centros urbanos.
A incorporação da temática racial na produção cultural dos grupos oriundos das favelas situou-os, nos anos 90, em uma curiosa posição: aparecem como “porta-vozes” da problemática da desigualdade racial e, ao mesmo tempo, mantêm certa dessintonia com o tom de vitimização usado por lideranças negras tradicionais. Sem pertencerem ao chamado “movimento negro”, esses jovens referem, em grande parte das músicas, dos filmes ou das entrevistas, o fato de serem “negros” e “favelados” e de pertencerem à periferia ou ao “gueto”. E o fazem por meio de uma fórmula curiosa, que combina denúncia com orgulho racial e territorial, muitas vezes cantados e dançados numa explosão de alegria que não combina com a sisudez e as estratégias punitivas que predominaram no movimento negro tradicional, como é o caso de grupos como o Olodum e o AfroReggae. As expressões “atitude” e “auto-estima” são as que melhor definem, na linguagem nativa, a ideia de que em todos os grupos se pretendem forjar novas imagens e novos estereótipos associados aos jovens negros das favelas.8
O papel dos grupos de jovens de favelas nas respostas brasileiras à violência
No campo dos estudos sobre as respostas brasileiras à violência, vários desses grupos tornaram-se importantes como “mediadores”, ou seja, como tradutores entre a juventude das favelas e governos, mídia, universidades e, muitas vezes, atores internacionais, como fundações e agências de cooperação. Esses jovens estabelecem pontes entre os mundos fraturados da cidade e da favela e frequentemente são os únicos pontos de contato para quem pretende entender como pensam, o que sentem, como vivem e o que querem esses moradores de bairros pobres das cidades. Como se sabe, os jovens, em especial os jovens negros moradores das periferias brasileiras, estão no centro do problema da violência, seja como vítimas, seja como protagonistas.9 As ações culturais dos jovens de periferias são parte importante dessas respostas, mas estão longe de ser um campo homogêneo de ações convergentes.
No que diz respeito à violência e à criminalidade, alguns desses grupos procuram exercer diretamente papéis de mediadores na “guerra” entre facções do tráfico de drogas, e assumem a missão de “tirar jovens do tráfico”. É o caso, por exemplo, da CUFA e do AfroReggae,10 mas esta não é a regra. Por exemplo, o grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro, recusa sistematicamente aproximação ou diálogo com os chamados “traficantes” locais e não alude ter qualquer compromisso associado à criação de alternativas à criminalidade entre os seus objetivos.11
Outras iniciativas, por sua vez, assumem posições até mesmo ambíguas em relação ao “mundo do crime”. É o caso do grupo de rap Racionais MCs que, exercendo forte influência sobre muitas “posses” de hip-hop pelos bairros de São Paulo e mesmo do Brasil, identifica-se com os “manos” presos e faz poucas concessões aos discursos politicamente corretos contra a criminalidade, atitude que se depreende das letras de suas músicas. Nas raras entrevistas de componentes deste grupo, as posições são menos duvidosas,12 mas identificam um discurso bastante diverso, por exemplo, daquele do MV Bill que, após a exibição de Falcão, meninos do tráfico, em outubro 2006, aceitou discutir com o presidente Lula e os seus ministros a construção de alternativas para prevenir e recuperar jovens envolvidos com o tráfico de drogas. Um outro tema delicado que parece ser bastante heterogêneo entre os grupos que estamos analisando é o das drogas. Enquanto AfroReggae e MV Bill passaram a assumir discursos críticos não só em relação ao tráfico, mas ao consumo de drogas, Nós do Morro mantém silêncio sobre o assunto e Racionais, entre outros grupos de hip-hop evocam claramente em suas músicas o “barato” do consumo.
Uma outra distinção necessária é que essas iniciativas – que no campo de respostas à violência identifico como novas mediações – não são nem as únicas, nem as principais, nem necessariamente as mais eficientes para “tirar jovens do tráfico”. Hoje desenvolvem-se no Brasil um sem-número de ações em favelas e bairros de periferias voltadas para jovens. São projetos governamentais, empresariais e civis, liderados por grupos religiosos, associações de moradores ou ONGs, ligados à educação, ao esporte, à saúde e também à cultura, que têm capacidade infinitamente maior de atingir diretamente jovens em risco de ingresso na criminalidade.
As marcas específicas e fortes dos grupos que produzem cultura e arte nas favelas e assumem o papel de mediadores entre “favela” e “cidade formal” não são, portanto, os chamados “projetos socais” que eles desenvolveriam, mas sim a liderança assumida por seus jovens componentes. Essa liderança traz como novidade a produção de um discurso na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e, ao mesmo tempo, de criar modelos que recusam as imagens tradicionais; a criação de metáforas por meio das histórias de vida; por último, a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes facções, classes sociais e governos; percorrer o local e o internacional. Em outras palavras, esses grupos são tão ou mais importantes como interlocutores na vida da “cidade” (na relação com governos, mídia, universidades) do que na vida da própria “favela”.
Se é inegável que tais iniciativas culturais fizeram desses grupos atores centrais do debate sobre juventude e personagens definitivos das soluções que o país terá que encontrar para reduzir a violência e a chamada “exclusão” da juventude pobre, resta perguntar: que importância esses grupos, esses artistas têm para a cena cultural dos anos 90 e da presente década?
Tropicalismo, contracultura e favelas: personagens e pontos de contato
Ao contrariar o bom senso, eu gostaria de argumentar que há mais arte e produção cultural na trajetória de alguns desses grupos do que a onipresença dos “projetos sociais” permite identificar a olho nu. Que foi exatamente a incorporação do papel de artistas – músicos, escritores, cineastas, atores – que impediu que essas lideranças e esses grupos tivessem se tornado, ainda nos anos 90, apenas operadores da justiça social ou defensores dos oprimidos.
Quando traduzimos a questão para os termos do debate que suscitaram o presente livro, em que medida esses grupos de jovens de favelas, voltados para cultura e para a arte, seriam tributários de influências do CPC, da esquerda nacionalista e populista ou da opção revolucionária dos anos 70? No dilema luta armada x desbunde (ou mais especificamente arte engajada x vanguarda experimentalista) dos anos 60 e 70, que grosseiramente poderia ser transposto hoje para trabalho social x produção cultural, quanto existe de produção de arte nos grupos oriundos das favelas preocupados com a violência e a justiça? Efetivamente, há uma tensão permanente, um dilema entre a “cultura a serviço do social” e a opção pela arte. Isto se verifica e se reitera ao longo da história de organizações como o AfroReggae e o Nós do Morro,13 que têm feito esforços para não sucumbir aos riscos inerentes ao seu percurso: a influência demasiada de seus patrocinadores, especialmente quando eles são grandes empresas ou governos e as eleições se aproximam, e a construção involuntária de novos estereótipos, como o de garotos negros bem comportados que fazem música e teriam “escapado do crime”, ou ainda o de “favelados que fazem teatro” etc.14
No caso da banda AfroReggae, o grupo parece responder a isto procurando uma solução estética própria, fugindo não só do estereótipo “meninos que tocam tambor”, mas também do estilo “batidania”.15 O antropólogo Hermano Vianna definiu assim a música da banda:
o multiestilo afroreggae é produto do encontro de algumas das manifestações mais vitais surgidas na música brasileira em tempos recentes: mangue beat; rap paulistano; samba-reggae baiano; funk carioca. Aqui e ali os ecos do reggae jamaicano traduzido pelo Rappa, do hip-hop-hardcore transformado pelo Planet Hemp, das batidas de xaxado e techno ou de toques de capoeira e candomblé. Não é fusão. Mas é mais que justaposição. Música-Barraco: construída com uma variedade estonteante de elementos, mas elementos que se juntam seguindo um método, um plano e transformam-se em lares (sonoros ou não), e o conjunto dos lares forma uma comunidade.16
As novas produções musicais de MV Bill, segundo a crítica, vêm seguidamente incorporando formas mais musicais, além de samplers de samba e de músicos, como Caetano e Sandra de Sá,17 inovações heterodoxas no contexto hip-hop, como se observa em seu último CD, Falcão, o bagulho é doido. Como escritores, MV Bill e Celso Athayde tornaram-se primeiramente co-autores, com Luiz Eduardo Soares, e depois autores de livros com grande vendagem nacional. Como cineastas, Bill e Athayde optaram pela parceria com a Rede Globo para finalizar seu primeiro documentário.18
O Nós do Morro tem dado inúmeras mostras de sua preocupação com uma produção efetivamente artística e de qualidade. Ao combinar, na trajetória de 20 anos, criações coletivas (Amores trágicos) com textos clássicos (Sonhos de uma noite de verão e Dois cavaleiros de Verona), uma preocupação central tem sido a profissionalização de atores e a produção de bons espetáculos.
Tudo indica que esses grupos sabem que sucumbirão num mercado altamente competitivo se permanecerem na perspectiva dos “jovens de projetos socais”, e vêm investindo enormes esforços para se capacitarem como artistas profissionais. Além disso, a circulação desses grupos e de suas lideranças entre artistas da música, da literatura e do cinema contemporâneos da cena cultural brasileira dos anos 90 e da presente década marcou possivelmente suas trajetórias culturais tanto quanto seus compromissos com a comunidade.
É o que se denota da intensa e surpreendente relação entre o grupo AfroReggae e Waly Salomão, desde o segundo ano de criação do grupo, em 1993. Segundo longos depoimentos de José Júnior, coordenador executivo do AfroReggae, Waly foi responsável por ter intuído que o AfroReggae “seria uma potência social e cultural quando a base do grupo era um quarto e uma dúzia de garotos voluntários com muita boa vontade”.19 Além de tê-los apresentado a Caetano Veloso e a Regina Casé, que depois se tornariam “padrinhos” do AfroReggae, Waly levou o grupo para tocar no lançamento de Algaravias, na livraria Timbre, no Shopping da Gávea, em 1996; também os levou ao lançamento de Tarifa de embarque, em 2000, com um show na rua Dias Ferreira, no Leblon – experiências que Júnior descreve como altamente impactantes no livro Da favela para o mundo.
Segundo Júnior, Waly amava as favelas, os becos, Vigário, Conexões Urbanas – este um projeto que entre 2002 e 2005 levou 40 shows com artistas famosos para o interior de favelas do município do Rio de Janeiro. O livro Da favela para o mundo é dedicado a dois “mestres”, Waly Salmão e Lorenzo Zanetti (coordenador da FASE, organização não-governamental que orientou a elaboração dos primeiros projetos do AfroReggae).
Sintomaticamente, Júnior fala da importância de Waly, como “mestre, guru e ídolo”, que o ajudou a lapidar o conhecimento artístico e cultural que tem, que o ensinou a ler e a escrever e que semanalmente agendava encontros e eventos culturais para o grupo. Waly é sempre referido em reuniões do AfroReggae como o responsável pela quebra de paradigmas e preconceitos, não só musicais e artísticos, mas também de padrões afetivos e sexuais.20 A casa-estúdio multimídia que está sendo construída em Vigário Geral e que pretende ser o principal pólo de produção cultural de favelas da cidade será chamada “Waly Salomão”.
De fato, não só Caetano, Gil e Regina Casé, personagens com intensa participação no movimento tropicalista e “pós-tropicalista”,21 no caso de Casé, mas Jorge Mautner e, posteriormente, Gerald Thomas tornaram-se parceiros artísticos do AfroReggae,22 em um caminho certamente tributário à influência inicial de Waly. Também é expressivo o fato de que no festival “Tropicália, a Revolution in Brazilian Culture”, organizado pelo Barbican, em Londres, entre fevereiro e maio de 2006, o AfroReggae tenha sido o grupo jovem convidado para apresentar dois shows e a participar de uma semana de oficinas e debates.23 Efetivamente, é possível estabelecer linhas de contato entre a “atitude incorporativa”, a operação com a idéia de “inclusão”, e a “bricolagem”, típica dos tropicalistas,24 e o multiestilo AfroReggae, que não é fusão e é mais que justaposição, segundo Hermano Viana, citado acima.
Também a assunção radical do palco, a movimentação cênica parodística25 conectam-se ao estilo de palco do grupo de Vigário Geral, já definido como de uma “alegria guerreira”. O namoro com os canais de massa e o desejo de “cantar na televisão”, abertamente assumidos pelos tropicalistas, em oposição às restrições da “produção cultural engajada” dos anos 60 e 70, reportam para as posições do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro. Incluem-se, ainda, os debates acalorados no interior do movimento hip-hop e as restrições das organizações de esquerda. Por último, a desconstrução das oposições fetichizadas entre o “nacional” e o “autêntico”, de um lado, e o “alienígena” e o “descaracterizador”, de outro,26 operada pela atitude tropicalista, encontra nexo na curiosa capacidade de convivência que o AfroReggae e os outros grupos são capazes de estabelecer com a dedicação quase obsessiva à “comunidade” e a abertura para signos e marcas nada locais, como internet, Coca-Cola ou Red Bull.27 Em outras palavras, a possibilidade de manterem o foco na favela sem se tornarem provincianos, bairristas ou nacionalistas e a capacidade de articularem diálogos com o “estrangeiro” e o “multinacional” indicam uma operação sofisticada que a maioria desses grupos tem sido capaz de fazer até aqui, mais relacionada à ousadia tropicalista do que à tradição cepecista ou de esquerda.
Chama a atenção igualmente que outros participantes ou personagens do momento da contracultura, como Cacá Diegues, seja conselheiro e colaborador da CUFA – e diretor de clipes de artistas desses grupos, além de diretor de um documentário sobre o AfroReggae – assim como André Midani, colaborador deste último grupo.
Em 2006, o Nós do Morro iniciou sua comemoração de 20 anos com a apresentação de Dois cavaleiros de Verona, em montagem apresentada em Stratford-upon-Avon, a convite da Royal Shakespeare Company. Trata-se de encenação que dialoga com elementos do tropicalismo, reunindo dança, música e acrobacias, num resultado que surpreende não porque os atores são negros e da favela, mas porque são jovens e preparados. Enfatizo este ponto para indicar que o Nós do Morro não comemora seus 20 anos com um teatro “engajado” ou “do oprimido”, nem com um espetáculo que “fala sobre a favela”, mas com uma, digamos, montagem-favela de Shakespeare.
Recentemente, no início de 2006, três desses grupos – AfroReggae, Nós do Morro e CUFA – criaram, juntamente com a organização Observatório de Favelas (um grupo que trabalha com educação e pesquisa, originalmente baseado na favela da Maré), uma instância, um “dispositivo” chamado Favela 4, ou F–4. Trata-se da primeira articulação formal entre essas iniciativas e, segundo José Júnior, resulta de uma ação “política e empresarial”, que procura ligar conceitos, saber e tecnologias sociais. Possivelmente essa articulação deverá aprofundar ou potencializar os dilemas ou a tensão entre trabalho social e produção cultural; em torno dela a vida desses grupos – muitas vezes intuitivamente – tem se organizado desde os anos 90. Os próximos anos dirão se serão capazes de sobreviver ocupando com tanta intensidade, como têm feito até aqui, os cadernos de cultura e os cadernos de política dos jornais.
Na minha opinião, engana-se quem imagina que a função ou o “valor” dessas manifestações seja “tirar jovens do tráfico”. Pelo contrário, há milhares de iniciativas que desenvolvem esse papel provavelmente melhor que esses grupos. As novas lideranças políticas surgidas nos anos 90, esses jovens artistas, estão trazendo novidades importantes para a cena cultural. E isto não só porque transportam a periferia para o centro e produzem um discurso, falado na primeira pessoa, sobre a favela – ou porque, pela primeira vez, um movimento político e cultural jovem não corresponde a um acontecimento exclusivo das classes médias – mas também porque têm a função de indicar que não há só marasmo depois dos anos 70.
A despeito das restrições desses grupos em relação às drogas, acho que não há nenhuma experiência tão forte atualmente, no Rio de Janeiro, no sentido das “viagens que podem mudar a sua vida”, muitas vezes referidas no contexto da “explosão anárquica do tropicalismo” ou da “opção vitalista de produção alternativa”,28 como a de ir a uma favela à noite para assistir a uma peça do Nós do Morro ou a um show do AfroReggae.
* Silvia Ramos é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.
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YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
NOTAS
1 Ver Landim, 1988 e Fernandes, 1988.
2 Note-se que essas operações nem sempre se realizam sem contradições. O acordo da CUFA com a Rede Globo de televisão, para a exibição do documentário Falcão, meninos do tráfico, e a participação de MV Bill no programa Fantástico, em outubro de 2006, gerou polêmica no “mundo do hip-hop”. Acalorados debates em entrevistas e sites se verificaram na ocasião. A superexposição de José Júnior, do AfroReggae, promovida tanto por entrevistas como por filmes, muitas vezes gerou suspeitas de lideranças de grupos de favelas e de militantes de ONGs. Os argumentos mais frequentes são de que o AfroReggae estaria perdendo seus ideais. Igualmente, o contraste com a estratégia do grupo Racionais MCs, de São Paulo, que via de regra não dá entrevistas e “não vai onde a Globo está”, demarca posições fortes sobre como a produção dos grupos de favelas deve se relacionar com a grande mídia.
3 Ver Landim, 1988.
4 Sintomaticamente, as páginas web do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro, podem ser acessadas tanto pelo endereço de prefixo “org” como “com”.
5 Para uma discussão sobre o “império dos projetos” como formato obrigatório de sobrevivência de organizações que vivem de doações internacionais, ver Arantes, 2000 e Landim, 2002.
6 Veja referência na página web: www.afroreggae.org.br (acessado em 10 abr. 2007).
7 Frases que ficaram famosas nos anos 90, como “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (O Rappa) e músicas como Negro Drama, Periferia é periferia, Racistas otários, Favela Sinistra, Favela 100%, A cada 13 minutos (Racionais MCs); Coisa de Negão, Som de VG e Tô Bolado (AfroReggae); Preto em movimento, Um crioulo revoltado com uma arma e Manifesto do Gueto (MV Bill) são expressões da reiterada tematização do racismo, do pertencimento à favela e da violência policial.
8 Ver Soares, 2004.
9 Entre os quase 50 mil brasileiros assassinados por ano no Brasil, os jovens de 15 a 24 anos são vitimados em proporções extraordinariamente altas. A taxa de homicídios do país situava-se em 27 por 100 mil habitantes em 2004 (países da Europa Ocidental, como França, Inglaterra e outros, têm taxas de 3 homicídios por 100 mil habitantes). Em alguns estados, como Rio de Janeiro e Pernambuco, essas taxas atingiram 50 por 100 mil. Entre jovens de 15 a 24 anos, as taxas ultrapassam 150 por 100 mil habitantes, como é o caso de São Paulo, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro. A grande maioria dessas vítimas é pobre, negra e mora nas favelas dos grandes centros. Para uma discussão sobre o assunto, ver Silvia Ramos, 2006.
10 Neat & Platt, 2006 e Bill Soares & Athayde, 2005.
11 Ver www.nosdomorro.com.br (acessado em 10 abr. 2007).
12 Para conhecer posições dos Racionais ver, por exemplo, entrevista de K.L Jay em julho de 2002: http://cliquemusic.uol.com.br/br/entrevista/entrevista.asp?Nu_Materia=3699 (acessado em 16 abr. 2007). Em uma entrevista em outubro de 2005, ao jornal Agora São Paulo, Mano Brown, líder dos Racionais, assumiu a defesa do desarmamento.http://www1.folha.uol.com.br/agora/spaulo/sp1010200501.htm (acessado em 10 abr. 2007).
13 Para uma discussão sobre o dilema, ver Yúdice, 2004 e Ochoa, 2003. Para conhecer os pontos de vista dos próprios grupos, ver Júnior, 2003 e entrevista concedida por Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, a Mauro Ventura, s/d. (http://www.nosdomorro.com.br/acontece.htm) (acessado em 10 abr. 2007).
14 Fraga, idem.
15 Referência à idéia de batida e cidadania. Ver Yúdice, 2004:208.
16 CD Nova Cara.
17 Ver Luiz Fernando Vianna. Folha de S. Paulo, 09 de junho de 2006.
18 É sintomático que MV Bill e Celso Athayde venham se definindo em entrevistas, a partir de 2006, como “escritores e cineastas” e não como ativistas sociais. Ver http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG73596-6014-410,00.html. Publicada em 23 mar. 2006 (acessado em 10 abr. 2007).
19 Júnior, 2003:11.
20 É preciso ter em mente que grupos como o AfroReggae e diversos outros ligados aos jovens de favela são organizações predominantemente masculinas, marcadas por evidentes traços de misoginia e homofobia. A “bissexualidade” de Waly, seu estilo de amor declarado pelos meninos, suas risadas e brincadeiras irreverentes marcaram fortemente a formação do AfroReggae.
21 Hollanda, 2004.
22 Além de Mautner, chama a atenção que uma das músicas de grande sucesso do grupo é Mosca na sopa, de Raul Seixas. O último CD do grupo traz canções compostas em parcerias com Arnaldo Antunes, Nando Reis e Geraldinho Carneiro, além dos rappers ingleses Ty e Estelle.
23 Ver http://www.barbican.org.uk/artgallery/series.asp?ID=261 (acessado em 16 abr. 2007).
24 Ver Naves, 2001.
25 Naves, idem.
26 Naves, 2002:54.
27 No caso específico do AfroReggae, os pontos de interdição situam-se na recusa de patrocínios ou parcerias com empresas de cigarro ou bebida alcoólica. Ver Júnior, 2003.
28 Ver Hollanda, 2004:15.