A ideia inicial era escrever uma carta às mulheres negras e periféricas para que nos aproximássemos através de todos os inconvenientes a que somos submetidas. Chamo de inconvenientes o que poderia ser nomeado como um grande conjunto de dores, mas não quero começar recortando as nossas existências.
Contudo, ao pensar que nossa aliança deveria se dar pela identidade, dei-me conta do quão frágil é essa noção de pertencimento, embora sejam inegáveis os nossos atravessamentos; somos múltiplas, muitas, diversas. Por essa razão, ampliei o meu corpo destinatário.
Companheira preta, periférica, suburbana; sei o quanto a raiz de suas dores vem de seus antepassados milenares, de “sua mil avó”. Aprendemos a ser desdobráveis, a fazer malabarismos, nos fizeram crer que éramos fortes, que sentíamos menos dor, que precisávamos de menos anestesia para parir, que podíamos trabalhar mais e dormir menos, comer menos, sorrir menos, gozar menos. Ensinaram-nos a falta. Sei também o quanto nos recusamos a assimilá-la, não era natural e nós bem o sabíamos.
Como dizem os teóricos do afropessimismo, o tempo deve ser entendido como acúmulo de episódios, o futuro é antecipado pelo passado e deste não podemos abrir mão, não conseguimos.
O trabalho escravo executado, sem clemência, durante o longo período da colonização, forjou uma falsa noção de que somos predestinadas a isso, de que nosso lugar é a cozinha das casas grandes, suas áreas de serviço. Hoje, ainda cuidamos de casas que já nem são tão grandes, mas que ainda exigem que outras mãos as conservem limpas. O trabalho sujo, literalmente aquele que remove a sujeira, ainda tem a nossa cara. Por quê? Por que ainda somos maioria entre as profissionais terceirizadas, precarizadas, mal pagas, violentadas em nossas aptidões? Por que ainda temos que cuidar dos filhos dos outros, renunciando ao tempo que poderíamos dedicar a nós e aos nossos, filhos ou irmãos?
Não bastasse esse violento ataque à nossa subjetividade, ainda somos marginalizadas em uma sociedade que não nos permite viver com saúde, tranquilidade e educação. A escola dos nossos filhos é a mais pilhada, falta o piso novo, a parede pintada, faltam professores bem pagos motivados a ensinar. Não querem uma educação libertária que desperte a enorme massa operária em um levante contra a opressão. Sobram trocas de tiros e balas achadas, tantas crianças correndo ou abaixadas para tentarem sobreviver às operações.
Chamam nossas comunidades de áreas de risco, rotulam nossos corpos com um invisível adesivo, indicando perigo e confusão. Sei o quanto é difícil dormir com um filho ainda na rua, o quanto dói que não se possa alimentar os sonhos dos meninos e das meninas que ainda não entendem o drama e projetam, às vezes, em vão. Querem ser artistas, médicos, advogados, empresários em um sistema que programa o contrário, projeta para eles o cárcere, o abandono, a exclusão. O que fazer com um filho que sonha, para o qual queremos infância, adolescência, que se torne um cidadão? E não me venha falar de meritocracia, não me fale das poucas histórias de superação. Todos esses casos pinçados servem para justificar o grave quadro que estrutura nossa atual condição.
Tem tanta coisa sem sentido… Temos grupos de mães que perderam seus filhos para a violência do estado. Bizarro! Há uns anos, um secretário de segurança do Rio de Janeiro afirmava que era preciso quebrar alguns ovos para fazer uma omelete. Os ovos eram os corpos negros e pobres que moravam nas comunidades. A sociedade aceitou fazer essa omelete… Por quê?
Esse grupo de mães deveria ser formado por todos os tipos de mulheres: as que ainda não perderam seus filhos, as que não convivem com o risco de perderem seus filhos pela violência estatal, as que não têm filhos, as que não terão… Deveria ser formado por todos que se indignam – homens, mulheres, aqueles que não se identificam com esse rótulo binário. Todos, sem exceção. Todavia, convoco aqui o protagonismo das mulheres por acreditar em uma nova forma possível de organização, por acreditar em novas poéticas, novas políticas, novas razões.
Entendo a força de um patriarcado que foi institucionalizado como instrumento de opressão. Entendo que haja tantas mulheres que não vivem o que vivemos, mas que podem e devem se comprometer, se incomodar, se envolver. É possível que tenhamos sentido raiva de termos sido ou ainda sermos exploradas por aquelas que não deveriam nos ofender. Tal raiva legítima deve ser reelaborada, para buscarmos força e encontramos armas, para que possamos vencer. É preciso estarmos atentas às aliadas, é preciso mais do que palavras, é preciso ação, é preciso querer.
Paulina Chiziane, em seu contundente testemunho intitulado “Eu, mulher… por uma nova visão de mundo”, questiona os mitos originários, em diferentes culturas, que marcavam a mulher como símbolo da culpa, do erro, da falha. Éramos sempre o problema da fundação. Ela se perguntava se, no lugar de um deus, tivéssemos uma deusa, haveria efetiva inversão. Conclui que só isso não garantiria nada, e é bem verdade, não é só o sexo é a atitude, não é só a palavra, é responsabilidade acumulada, parceria agregada que nos fariam destruir essas lógicas de opressão.
Íamos juntas, mulheres, no plural, com todas as particularidades que essa palavra arbitrária pode conter. Entendemos que mudar é uma escolha política essencial. Aí, veio a pandemia, um evento inesperado atravessando um presente já tão distópico. As diferentes realidades se impõem, enquanto umas estão isoladas, outras continuam “no corre”, driblando faltas, tiros e patrões, ferramentas de um sistema que insiste em nos anular, nos aniquilar, nos separar…
Contudo, ainda hoje temos as redes, as palavras, os textos, as atitudes solidárias para nos aproximarem. Já aprendemos a coser, a nos aliar. É preciso alimentar o incômodo, não banalizar os absurdos, que devem ser vistos como ferida aberta em cada corpo, sem sarar, sem que as possamos olvidar. A empatia tem que ser arma feminista, se não o for, não há revisão epistemológica que nos faça vencer. É preciso criar teorias e atuar nas práticas, em uma colcha gigante, crescente, formada por pedaços distintos que não podem se romper.
Às que se incomodam, deixo o convite, uma convocação à prática, à escuta, à necessidade de ampliar as pautas, de nos vermos. O constrangimento é parte do processo, ele nos mostra quem está junto, quem está perto, o que há de concreto e o quanto devemos sonhar. Na pandemia e, apesar dela, numa parceria sem tréguas, vamos? É fundamental se incomodar…
* Jucilene Nogueira é professora de Língua Portuguesa do CEFET-RJ, doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ e membra do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-Letras da UFRJ.