Ano XVI 0201
dossiê
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MORRO DE PÁSCOA


O quarto quente, impiedosamente iluminado pela luz abrasiva do sol, mostra que um novo dia chegou ao morro. Vozes vêm de algum cômodo da casa, junto com o cheiro de café. Na verdade, são sussurros, falas incompreensíveis. A menina só, que habita o quarto quente e iluminado, não parece feliz em acordar, em despertar, para aquele primeiro dia de sua vida sem o seu rebento. Como se acorda e se vive num dia assim? Ela não sabe. E nem se importa em aprender, por ora. Dormir apenas, é o que deseja.

Quando engravidara aos quinze anos, várias eram as experiências parecidas que havia à sua volta. Todas as suas conhecidas, de todas as idades, tinham alguma coisa a lhe dizer, ensinar e a fantasiar sobre o assunto. Pessoas desconhecidas também sempre lhe ofereciam pareceres não requisitados. E a menina ouvia, a todas e a todos. Ouvia de coração aberto, pois achava bonita a atenção que passara a receber das pessoas, estimuladas por sua grande “barriga de menino”.

A realidade de sua jovem experiência de vida era que as pessoas falavam, e falavam, e falavam muito, o tempo todo, mas poucas pessoas, entre as que conhecia, realmente conversavam.

Conversar era algo que lhe parecia coisa de gente muito velha – tipo, coisa de gente de uns 40, 50 anos, pensava. Ou coisa de gente que quisesse fazer filho com alguém, soubera.

Foi assim que se encantou pelo homem que fez um filho nela, como acusava sua mãe: ele a chamou para conversar. Aliás, toda vez que a via, ele a convidava, do seu jeito, para uma conversa. Dizia, “vem cá pra mim te dá uma ideia. Na moral”. Na primeira vez que o menino chamou, a menina foi no susto, por medo de não ir. Depois foi se acostumando e gostando da atenção que recebia, e de seu novo status entre suas colegas, exatamente por causa daquelas conversas que vinham tendo aos olhos de todos – e como olhavam!

A real daquela interação é que a menina era toda ouvidos, enquanto o menino falava. Sua fala era um misto de flerte, autopromoção, ameaça, desabafo, teatro. É isso: o jogo de comunicação que tinham era marcado por uma teatralidade, uma dança, um teatro de oprimidos – diríamos, ao observá-los de longe. E ele vociferava:

– Tu tem quantos anos? Estuda ainda? Qual é o baile que tu gosta? Tu desfila? Sua mãe deixa? Tu dorme fora? Tem aula amanhã? Vai chegar que hora da escola? Vai pra escola com quem? Já fumou baseado? Posso te esperar amanhã? Ciúme de quem? Vai ficar de bobeira?! Ouviu o que eu falei?! Quantos meses? Já sabe, né? Precisa de quanto? Já foi no médico? Que que tua coroa disse? Já sabe se é menino? Tá sentindo dor? Quem vai te levar pro hospital? Tá com medo? Tu liga pra avisar quando já tiver acabado tudo? É menino? Como é o moleque? Lembra do nome que falei pra tu, se fosse menino? Tem alguém pra te trazer? Já tirou os pontos? Quem tá contigo? Quer vim pro baile? Cadê a camisa nova dele, que eu mandei ontem? Dá pra mim dormir aí hoje? Tá tranquilo por aí? Sua coroa tá ligada? Quando tu vai vim me visitar? Tá sabendo que tu tem que vim, né?! Vai trazer ele? Tá sabendo que num vai pra baile porra nenhuma, né? Recebeu a grana pro ovo de Páscoa dele? O que que houve?! Quem?! Fala, porra!

Estampidos. Gritos. Correria. Sangue. Tumulto. Choros. Gritos. Desespero.

Dor. Flores. Multidão. Choros. Vizinhos. Dor. Repórteres. Jornal. Televisão. Fotógrafos.

Abril. Cemitério. Procissão do menino morto. Páscoa sem ressurreição. Dor. Maternidade interrompida. Felicidade rompida. Felicidade clandestina abortada. Dor. E a implacável e infalível luz do sol.

Hoje, dia 1 pós-perda, ninguém se aproxima. As pessoas não têm nada além de lágrimas para oferecer à menina. Elas não tocam suas lágrimas, como tocavam a sua barriga de menino, ou o rostinho de seu recém-nascido – Ryan, como ordenara o pai.

Todos a observam de longe. Desde a hora da desgraça que todos temiam esbarrar na dor da menina. E a dor que sentia era muito mais profunda do que seus familiares e vizinhos pudessem imaginar – o que os espantava. Dores de perdas daquele tipo, por ali, sempre lhes pareceram aguardadas, profetizadas, condenadas. Por isso chorava-se, gritava-se, e seguia-se com a vida, sem que ninguém visse mais a dor de quem perdeu alguém abatido à luz do sol. Às vezes acontecia, é verdade, de alguma mãe ficar tantã. Mas geralmente a vida seguia, e logo.

A dor da menina de vinte anos lhes parecia a dor de quem não sabia que se morre também no nosso ventre, na nossa casa, no nosso quintal. Mesmo que seja num Domingo de Páscoa – fosse o que fosse a tal Páscoa –, quando isso vai além dos chocolates-com-brinquedos-dentro.

É que ninguém sabia. Ninguém sabia que, com o seu menino, a menina vinha aprendendo muitas coisas naqueles recém-exterminados quatro anos.

Com Ryan, a primeira coisa que a menina aprendeu foi a amar.

Conhecera, finalmente, aquele amor que via nas novelas. Talvez fosse maior que o das novelas, acreditava ela. O seu era um amor tão grande, por seu menino, que sentia seu coração inchado, tomado, ocupado, satisfeito.

E o trabalho que lhe diziam que teria, e que passou a ter com aquele ser amado, fora tão grande que tomara todo o seu tempo e interesse. Aquela vida que dependia da sua libertou-a da necessidade juvenil e tirana de estar no baile todos os domingos. Libertou-a da saga de fim de semana para chegar às praias, mantidas cada vez mais distantes. Libertou-a ainda das vexaminosas revistas corporais que sofria para entrar no presídio nos dias das exigidas visitas ao pai do menino.

E a menina também tinha passado a ter, para tudo, perguntas. E a que mais usava e que a libertava era: – Mas com quem eu vou deixar o Ryan?

Enquanto seu interlocutor, suas colegas e outros incomodados se eximiam da resposta, a menina e seu menino seguiam cultivando aquele novo espaço, onde nem a bola de fogo que torrava o morro os atingia. O bom, pensava ela, era que o lugar que os dois construíram não tinha atrativos para mais ninguém. Cuidados com menino e trabalhos de mãe não interessavam às pessoas. Menina com filho é invisível – aprendera.  Menina preta com filho preto não interessa a ninguém – descobrira.

Compreendera também, à sua maneira, que menina-mãe preta de filho preto de pai preto-preso podia, sim, ser livre na sua sina – sina para quem os olhava, pois para ela era liberdade.

Liberdade de ser mãe de amor, sem temores. Sim, amor sem temor. Cuidado sem obrigação. Cuidado de amor.

E de repente…

Num dia pós-terror, depois de ter seu corpo trêmulo retirado de cima do corpo perfurado e congelado de seu menino preto-lindo – sobre o qual intuitivamente espalhara-se para o aquecer e proteger do passo seguinte – a menina se via de volta àquela prisão conhecida.

A falta do menino a devolvia a tudo aquilo de que escapara com ele. Os murmúrios que agora vinham lá de longe, aquecidos pelo sol desumano, confirmavam que, sim, o menino não a levara com ele, apesar de seus apelos para que ele a levasse, para que a libertasse consigo.

A menina preta invisível voltou só para os holofotes, de novo refém da vida, até que outra explosão aconteça dentro da prisão onde voltara a viver sem o amor que a havia libertado.

Despertando nesse novo dia de sua vida, de mãe menina-preta de menino preto-morto, já sabia, no coração, que ninguém saberia como ensiná-la a lidar com a falta da vida do seu preto-menino, com a falta da liberdade gerada em seu útero de menina preta ignorada.

A bola de fogo impiedosa arrancava-a do minúsculo quarto sem ar, e a devolvia às entranhas do morro acostumado a triturar meninas pretas sem amor. E ela foi. Meio morta, mas foi.

Indiferente. Inconsciente. Translúcida. Preta.[1]


* Katia Costa-Santos é professora de culturas e literaturas da Diáspora Negra, com ênfase no Brasil e nos Estados Unidos; tradutora, escritora, contista; pesquisadora da vida cultural privada dos sambistas cariocas; idealizadora do curso itinerante Mulheres Negras & Escrita: Reflexão e Produção Textual; e cocoordenadora do Laboratório Estudos Negros do PACC/UFRJ.

 

Nota

[1] Fabulação inspirada na foto (e no fato) da cobertura da morte do menino Ryan em Madureira, no Rio de Janeiro, em 27 de março de 2016, atingindo por um tiro durante um tiroteio entre traficantes na Favela do Cajueiro. A fotografia é de Fabiano Rocha, fotógrafo do Jornal Extra e da Agência O Globo.