Aos alunos da disciplina Biografias e Vida Literária (2020.2),
do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFESP
Ao longo das últimas décadas, junto com a demanda crescente por biografias no mercado literário, vimos a crítica biográfica impor-se como nova e dinâmica vertente nos estudos literários acadêmicos e suas extensões profissionais no campo da cultura. Se no circuitão do mercado o interesse dos leitores por biografias não chega a ser novidade, no circuito especializado a invasão do biografismo representou algo como uma revolução. Ela veio em paralelo ao fato de se ter aberto e prosperado, no mercado das biografias, o nicho das biografias literárias, o interesse pelas biografias de escritores. O nicho se expandiu para abranger, sob seu guarda-chuva, também biografias romanceadas, biografias de escritores imaginários, autoficções, assim como entrevistas, diálogos, testemunhos e memórias, reais e fictícias.
O emergir da crítica biográfica ocorre pois em diálogo com a relevância adquirida na cena literária por essa escrita biográfica proliferante, seja na forma canônica das biografias documentais clássicas, seja na miríade de formatos assumidos pelas combinações entre o documental, ou real, e o ficcional. Novas tendências críticas estão sempre associadas à emergência de novas práticas e à refuncionalização de velhos princípios. O discurso crítico renovado é tanto pedagogia quanto poética subjacente àquilo que está surgindo. Crítica biográfica e prática da escrita biográfica andam juntas e se existe hoje “evolução” ou “diversificação” formal desta última, ela se dá na intercomunicação entre ambas. A crítica é a dimensão reflexiva e autorreflexiva das práticas discursivas.
O viés do biográfico na contemporaneidade é indissociável do autobiográfico. Remetem ambos a relatos de vida, respectivamente a de terceiros ou a sua própria. Por seu turno, eles se manifestam em dois aspectos. De um lado, relacionam-se com a ubiquidade da narrativa de vida nos circuitos de consumo cultural e de entretenimento, culto ou comercial. De outro, são marcados pela contingência de vida em que se situa e sobre a qual atua o trabalho artístico em geral. Ambos, consumo (ou circulação/recepção) e produção (criação) emergem contra o pano de fundo do que pode ser definido como tendência de época nestas primeiras décadas do século: o imperativo da primeira pessoa, a implicatura do eu nos discursos de arte e de política, assinalando-se a presença de elementos auto e biográficos em boa parte da melhor ficção e poesia literária contemporâneas.
Através da referência à pessoa real de quem escreve, o texto literário contemporâneo busca evidenciar a circunstância concreta de sua produção, explicitando a materialidade do ato da escrita. O real perfura a cortina do ficcional, mas este, por seu turno, fagocita o primeiro, incorporando-o ao jogo de espelhos narrativo. Daí o topos do autor ou narrador referindo-se ao momento em que digita o texto em seu computador, buscando criar efeitos de presentificação e simultaneidade entre o ato da escrita e a leitura. A presença no enunciado de indicadores do processo de criação, ou de seus bastidores, é procedimento que encontra análogos nas artes expositivas, no cinema, no teatro. Narrar ou encenar o processo de criação torna-se a criação ela própria. Entre a mimeses e o reality show.
A presença reiterada de personagens escritores na ficção contemporânea, como em Paul Auster, Gonçalo Tavares, Roberto Bolaño, entre muitos outros e outras, atesta que o ego scriptor é objeto de desejo e interesse na cultura contemporânea. Se antes se dizia que de poeta, louco e filósofo todos temos um pouco, parece que no século da visibilidade total todos reivindicam ser escritores. Nos laboratórios de novas escritas que são as oficinas nas periferias urbanas, assim como nos grupos de slam, com destaque para os “slam das mina”, vive-se um clima de conquista do direito à escrita, a conquista da escrita como direito social, esse direito sendo exercido primordialmente via textos autobiográficos e biográficos. Ao lado da nova importância assumida pela poesia oralizada e pela poesia-performance, a escrita prossegue como instrumento incontornável de subjetivação e ressubjetivação, de elaboração de crise de subjetividade, de ressignificação dos signos recebidos. Somente na escrita o eu se encontra e desencontra, em movimento reflexivo verbal. O devir do(s) sujeito(s) se dá na prótese do escrito.
Mais do que simplesmente um movimento literário, e com potencial para implodir a própria noção de “movimento” ou “tendência” literária, a democratização radical do direito à escrita através do recurso ao literário como “bioescrita” (Chiara et al., 2017) integra-se a processos mais amplos. Estamos na era do artivismo, das impurezas, dos hibridismos e justaposições. Mesmo as mais estetizantes produções precisam autolegitimar-se criticamente frente às guerras culturais em curso. Estamos no terreno da pós-autonomia, tal como definida por Josefina Ludmer (2010).[1] A ficção já não obedece a critérios autárquicos, internos, mas também não se subordina de maneira simples aos imperativos do seu fora. A escrita que a sustenta põe em jogo o poder do ficcional. Nesse jogo entre ficção e não-ficção, a escrita do eu tem sido filtro por meio do qual se reelabora a vivência do despertar histórico de subjetividades coletivas, minoritárias ou excluídas. O coletivo político hoje é a soma por justaposição de experiências individuais irredutíveis. Já não se trata de um nós que se impõe como Voz homogênea capaz de falar por todos dentro de um grupo. O “nós” é cacofonia conjunta de vozes singulares.
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Tais determinantes sociais podem e devem ser situadas no âmbito abrangente da Comunicação. O campo literário é parte do universo da comunicação, com seus múltiplos circuitos e redes de suporte e significação. Narrar o vivido por si ou por outrem é hoje o traço de união entre os múltiplos circuitos e suportes da comunicação. Narrar o vivido é a seiva da midiasfera em que se transformou a esfera pública e que absorveu a totalidade da cultura. Trata-se do “espaço biográfico”, condição definida e descrita por Leonor Arfuch, em duas obras de referência para a crítica biográfica continental: O espaço biográfico (2002) e La vida narrada (2018). A esfera pública é midiasfera e a midiasfera é espaço biográfico.
O ponto de partida da autora é a cultura escrita entendida como prática de produção discursiva e sua meta a descrição e construção de uma tipologia flexível das transformações sofridas pelas expressões literárias, resultantes das novas dinâmicas discursivas na civilização midiática dominante. A cultura escrita, e a cultura literária como segmento institucionalizado da cultura escrita, uma condicionada pela outra, estão engatadas na dominante simulacral. Entenda-se por simulacro a imagem tecnicamente produzida (televisual, virtual), condutora de informações e narrativas nas redes proliferantes dos circuitos comunicacionais que constituem o que Ludmer chama de “imaginação pública”.
Colado às redes cambiantes da comunicação, o eu se constitui como encenação e performance, presentificado no espaço virtual.[2] Narrar-encenar. Não que já não fosse assim antes, mas a condição encenada do sujeito no simulacro é explicitada e exteriorizada e sobretudo explorada em novas identidades e comportamentos, no devir das novas subjetivações – não há como deixar de apelar a ecos de um vocabulário deleuziano. Busca-se porém uma visão mais sociologizante dos processos de subjetivação enquanto devires coletivos de diferenciação na arena pública. Pragmaticamente, numa civilização onde os modos de vida e mesmo o corpo físico já não são mais herdados como imperativos de uma normatividade transparente e inquestionada, a subjetivação pode ser processo calculado de invenção, vivência/experiência de automodelagem diferencial. Ou seja, a escrita do eu como automodelagem, que significa desafiar modelos preexistentes. Criação individual e coletiva de modos de ser. Novas convenções. A automodelagem, enquanto processo, antecede a convenção. Eis aí um lugar importante para a escrita literária, particularmente a ficcional.
Na dominante midiática, prevalecem os discursos autenticados por experiência, ou seja, as histórias de vida, que serão pretensamente reais, documentais, nas ciências sociais e nas etnografias, mas desfrutarão da liberdade de serem reais ou ficcionais, ou uma mescla de ambos, no campo propriamente literário e em interfaces do literário, como no caso de textos filosóficos ficcionalizados. Diz Arfuch (2010), sobre o modo de ser discursivo das culturas contemporâneas: “um crescendo da narrativa vivencial que abarca praticamente todos os registros – uma trama de interações, hibridizações, empréstimos, contaminações – de lógicas midiáticas, literárias, acadêmicas” (p. 63). Esse é o contexto em que biografia e autobiografia remetem uma à outra. Lemos mais adiante: “espaço cuja significância não está dada somente pelos múltiplos relatos, em maior ou menor medida autobiográficos (…) mas também pela apresentação biográfica de todo tipo de relatos (romances, ensaios, investigações, etc.)” (Arfuch, 2010, p. 63-4).
A nova crítica biográfica, o retorno da pesquisa biográfica e o interesse renovado pelas biografias de escritores ocupam portanto seu lugar num campo literário agora redefinido como parte do espaço biográfico contemporâneo e na literatura recortada como objeto de atenção no interior de uma teoria ou problemática geral dos discursos. A literatura é discurso entre discursos, por um lado fixado como instituição, por outro circulando como valor em circuitos variados. Essa teoria geral dos discursos é uma teoria geral da Comunicação. Ela recolhe como ferramentas úteis todas as metodologias de leitura recebidas das antigas filologia, retórica, poética, assim como, seguindo a linha do tempo, das poéticas e teorias do século 20.
Do sujeito da enunciação ao sujeito autoral: textualismo X biografismo
Detenhamo-nos nessas últimas. A chegada do biografismo teórico e crítico nas primeiras décadas do século atual inverteu os valores, princípios e metodologias dominantes nos estudos literários ao longo de toda a segunda metade do século passado, com raízes nos deslocamentos estéticos e epistemológicos da primeira metade. As teorias (doutrinas) que marcaram esse período despediram o historicismo positivista do século XIX. A despeito das distinções entre elas, as teorias tiveram em comum o fato de especificar o texto como objeto de conhecimento empírico e a visão da leitura crítica como método disciplinar científico cumulativo, por oposição ao impressionismo, subjetivismo e falta de rigor das interpretações que adornavam os esquemas históricos do século XIX. Os discursos críticos e métodos de análise das novas teorias do século XX lançavam mão de esquemas de compreensão que descartavam ou colocavam em segundo plano tanto o dado biográfico, quanto a redução do literário à ilustração (mimese) de elementos contextuais e históricos, geralmente formulados em termos de nação. A positividade do texto como valor absoluto foi colocada no lugar da positividade do autor, de seu tempo e lugar.
No sistema escolar, na formação intelectual, a história literária não mais podia se ater à sequência cronológica de autores e épocas, na medida em que desde fins do século XIX e mais intensamente na primeira metade do XX foi preciso dar conta da diversidade de formas e poéticas trazidas pelas ondas de modernidade e vanguardismos. Cada nova teoria era na verdade uma poética ligada a determinados valores e práticas estéticas inovadoras, impondo a reconceituação do literário a partir da revelação de novas facetas e camadas de significação. Desenvolveu-se um arsenal de metodologias de análise textual. O formalismo russo e o primeiro estruturalismo (eslavo) conceituavam o literário em diálogo com o futurismo. O new criticism era ferramenta para lidar com as complexidades do modernismo anglo-saxônico. O estruturalismo francês conectava-se criticamente ao nouveau roman. Sua desconstituição pela desconstrução conectava-se ao “telquelismo”.[3]
Ultrapassar o positivismo biográfico do século XIX significara deixar de lado a tematização da criação autoral, empurrado-a para domínios extra-acadêmicos, alheios ao labor crítico e seu viés normatizador. Nessa empreitada, as seculares disciplinas filológicas foram abandonadas ou marginalizadas em favor das sofisticadas ferramentas de análise voltadas para produzir formalizações dos jogos de sentidos intrínsecos a cada texto. Buscava-se determinar aquilo que o texto produzia de sentido por si próprio, sua lógica intrínseca, independentemente de seu gesto criador original.
A teoria literária, como disciplina institucionalizada, desenvolveu procedimentos de crítica e análise dos textos que exerceram impacto importante na reflexão mais ampla sobre a formação social do sentido em geral. O impacto pluralizador das vanguardas, das novas correntes e experimentações literárias das primeiras três décadas do século inviabilizavam um conceito unívoco (romântico ou realista) do literário. Paralelamente, a teoria dialogava intensamente com as novas disciplinas humanísticas do século XX, elas também vanguardistas – a linguística, a psicanálise, a etnologia, o marxismo na história e nas ciências sociais. A teoria e crítica literárias tornaram-se parte das ciências humanas. O sentido literário, dado pelo texto e não pelo projeto autoral, ampliava-se para ser entendido como manifestação, projeção, emanação, articulação de um ou mais sistemas de sentido metadiscursivos sobredeterminantes, encarados de formas diversas, mais ou menos dinâmicas, em cada disciplina das ciências humanas.
A positividade autoevidente da figura autoral biográfica deu lugar ao sujeito da enunciação, reconhecível pelo jogo interno do texto, com suas camadas remissivas, perceptíveis pelo que parecia na época ser operação lógica possibilitada apenas pelo ato da leitura e análise e hoje fica mais claro que se tratava de reorganização do repertório canônico. O sujeito da enunciação podia ser a ideologia, o inconsciente, a fórmula ou esquema, dimensões de sentido que conectavam o interior do texto com seu contexto de textos, também ele visto como produtividade de sentido transcendente ao criador, ao agente, em suma. O agenciamento era do jogo de sentidos imanentes ao texto.
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Nesse sentido, a noção teórica e prática de texto ia além das clássicas distinções de gêneros literários, abrindo caminho para a incorporação da teoria literária a uma teoria dos textos em geral. A leitura e análise de objetos da cultura (linguagem, artefatos, discursos) passa a empregar conceitos e metodologias desenvolvidas pela teoria da literatura, buscando identificar estruturas de formação de sentido, a partir do que se identifica como matriz linguística (ou linguajeira) de todo sentido. Relações multidisciplinares podem ser estabelecidas entre “textos” de todo tipo – literários, cinematográficos, etc.
Não que a biografia literária tivesse sumido completamente do cenário, banida pelo textualismo dominante. O que houve ao longo do século passado foi o aprofundamento do cisma entre formação especializada, de um lado, e, de outro, circulação da literatura na cultura e na vida, como bem e como valor. Aprofundou-se o abismo entre a cultura literária como parte da cultura artística e intelectual na esfera pública e a cultura literária dos especialistas, professores e críticos. A autonomia de cada esfera discursiva corresponde à autonomização do grupo social que a sustenta. A cultura especializada apartava-se do “mundo da vida” (evocando o termo de Habermas), de sua circulação no mercado e nos circuitos da consagração, os quais podiam ou não reproduzir avaliações da crítica especializada, já que muitos profissionais desta atuavam dos dois lados. De um lado, o mundo pulsante da vida e da comunicação, a literatura como entretenimento culto e instrumento de autocompreensão individual e coletiva, impulsionadora ou desconstrutora de ideologias. De outro lado, o mundo austero e intrépido da formação universitária, a literatura como passaporte de entrada e saída para a filosofia e ciências humanas. De um lado, a vida literária. De outro, a indagação técnica pelo sentido. De um lado, a tradição das belles lettres, de outro a teoria literária. De um lado, a confraria difusa das pessoas cultas (ou cult). De outro, a república dos professores.
Nesse contexto, durante todo o período em que o textualismo dominou a crítica especializada, o mercado literário nunca deixou de existir, sempre vicejante a oferta de publicações de caráter biográfico, dos coffee table books com fotografias e recordações de grandes autores, às memórias de escritores ou sobre escritores. Sempre existiu lugar para o cultivo de celebridades e mitos nos tribunais e palcos da história das culturas letradas, oscilando entre a devoção religiosa dos mais eruditos e a crônica mundana dos mais superficiais. As vidas de grandes escritores atraíam tanto interesse quanto as vidas de grandes compositores, pintores, interesse contíguo ao dirigido às vidas de personalidades históricas, políticas e outras – não se pode esquecer que as Letras constituem uma república, em vários sentidos da metáfora. Em estantes de livrarias americanas, viam-se seções distintas para “belles lettres”, de um lado, e “literature” ou “theory of literature”, de outro. Nas primeiras, as biografias, os álbuns sobre escritores, os panoramas e histórias de capítulos de vida literária, os volumes de correspondência, os diários de escritores. Na seção “literatura”, os títulos “sérios” de teoria e crítica estudados na universidade, que educaram gerações e gerações de PhDs em humanidades e ciências sociais desde os anos 1950 e 1960, pelo mundo afora.
Sujeito autoral e nova crítica biográfica
Com a guinada biográfica na teoria e prática da literatura no século XXI, sai de cena o sujeito da enunciação e entra o sujeito autoral. Atente-se: trata-se do sujeito autoral, portanto não exatamente, ou não somente, o “autor” como totalidade bem constituída, tal como concebido pelo biografismo empirista/positivista banido pelo século da teoria. O autor empírico fora substituído pelo texto como empiria. Sim, há agora um elemento forte de retorno do autor, ente pragmático, real, empírico, identificado a si como um corpo e registrado no Estado com a identidade civil de seu nome e sobrenome. Mas ele não deve ser confundido com a categoria propriamente teórica e crítica de “sujeito autoral”.
Se é certo que o “autor” opera uma volta[4], um resgate, polarizando a noção contemporânea de sujeito autoral, o fato é que, no momento pós-teórico trazido pelo século XXI, ele incorpora em nova síntese as desconstruções operadas pela hiperconsciência metodológica da era anterior. Depois da psicanálise e de tudo que se desvendou sobre as camadas latentes de sentido textual, não há como voltar a paradigmas críticos que, sob certos aspectos, nos parecem ingênuos, diante, por exemplo, do total anacronismo de noções de consciência frente a problemáticas de linguagem, como se pudesse existir pensamento de si fora da linguagem. Não se vê caminho de volta por aí. O caráter transcendental absoluto da linguagem (ou dos jogos da linguagem, conforme Wittgenstein[5]) para pensar o humano é talvez o mais importante legado filosófico do século XX, depois do materialismo histórico legado pelo XIX. No século XX, leu-se cultura como linguagem. Deve-se ler, hoje, comunicação.
Se o autor como categoria biográfica íntegra pressupõe uma consciência estável, o sujeito autoral é um dado de linguagem, e também de moldura institucional, na linha do que se pode apreender no texto seminal de Michel Foucault, O que é um autor? Seria de fato ingenuidade ou anacronismo crer que o abismo entre o sujeito biográfico e o sujeito da enunciação pudesse ser simplesmente eliminado pela “retorno do autor”. Este se dá refuncionalizado, noutra economia discursiva. O abismo é transposto por um ato de força externa ao texto, externa à produtividade intrínseca do texto. Voltamos ao termo usado anteriormente: na nova escrita biográfica, o texto é perfurado por sua exterioridade. O sujeito autoral contemporâneo redefine as relações entre “autor” e “narrador”, na medida em que o sujeito da enunciação vigente no textualismo era uma diferenciação interna da categoria “narrador”. O sujeito da enunciação era, por assim dizer, a subjetividade latente ou não manifesta do narrador, jamais do autor. Essa subjetividade que animava o narrador era discernível apenas pelo ato da leitura analítica. Os embates metodológicos, naturalmente sustentados pelas diferentes teorias, fizeram desse ato uma batalha entre decodificação unívoca versus interpretação das entrelinhas, molduras e superposições intertextuais.
Assinalamos então que, sim, por um lado o autor retorna como agente manifesto do discurso, da escrita, retorna como figura-fetiche nos dois lados do campo literário, o mercado e academia. Um retorno que não deixa de ser um desrecalque. O desrecalque da referida implicatura universal do eu. Um resgate correspondente ao resgate da agência em ciências sociais. Porém, como mostra Diana Klinger (2016), o caráter de agente do sujeito autoral é performático e pode ser prismático (eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, diz o poema de Mário de Andrade). Deve ser enfatizado que no espaço biográfico da comunicação, que define uma civilização da visibilização, as facetas inconscientes e latentes dos signos e dos comportamentos tendem a se exteriorizar. Para dar um exemplo: no lugar de um gênero sexual masculino que sufoca seu lado homossexual ou feminino, temos agora sujeitos que são explicitamente homem/mulher ou vivem processos trans e flex, rejeitando o binarismo das identidades de gênero. Não há propriamente “inconsciente”, mas exteriorizações performáticas de possibilidades de ser.
O retorno do autor ocorre também fora das fronteiras disciplinares do campo literário. A implicatura do eu transforma os espaços disciplinares. Como vimos, a escrita de si torna-se elemento de todo discurso de conhecimento, o qual, ao mesmo tempo que conhece, relata a experiência de conhecer. O discurso do conhecimento passa cada vez mais a situar-se em seu aqui-agora, indagado em sua condição concreta de produção e circulação, sua materialidade. Todo saber é situado e, como tal, dialógico, pois não existe escrita de si sem interlocução, mesmo que virtual. Estar situado exige a implicatura do eu e vice-versa, são dimensões mutuamente necessárias. Situar-se é uma afirmação de perspectiva, é uma operação do olhar. De modo que a implicatura do eu é ao mesmo tempo de raiz literária e visual.
Um recorte epistemológico é um ponto de vista sobre a empiria, sobre a matéria do social-cultural-comunicacional. A partir daí, tomamos como exemplo o discurso da psicanálise. Ele é questionado em sua universalidade, por seu viés masculino, branco, burguês, classe média, eurocêntrico, ocidental. As linguísticas estruturais e sistêmicas são desconstituídas em sua logicidade pelo pós-estruturalismo e deslocadas em relevância por filosofias da linguagem situacionais, historicizantes. Na antropologia, cai a máscara: o que se narra é a relação do etnólogo/etnógrafo com o grupo com que interage.
O situar dos enunciados (dos dizeres) em sua própria historicidade faz eclodirem os novos campos disciplinares que definiram campos de saber e ideologias nas duas últimas décadas do século passado: estudos feministas, pós-colonialismo, estudos culturais, estudos queer, novas ancestralidades, antropoceno. As pessoas comuns são reconhecidas como sujeitos, suas histórias de vida tornam-se matéria prima de conhecimento. O trabalho de campo e as pesquisas qualitativas invadem a sociologia, que passa a ter na entrevista e na narrativa da história de vida um de seus instrumentos mais importantes. As entrevistas de escritores são incorporadas ao material crítico e biográfico dos estudos literários. O trabalho de campo logo se torna ativismo político-social, seu papel é dar voz a processos de subjetivação e apoiar a articulação de grupos marginalizados. Assumir a voz até então calada se faz pela performance pública ou pelo exercício da escrita, refuncionalizando a relação entre a intimidade silenciosa do literário e a intervenção personalizada/personificada no espaço público.
Dar voz é desrecalcar. À medida que se aproxima o final do século XX, o exercício da memória adquire urgência, o século volta-se para seu passado recente, desrecalca a consciência dos grandes crimes cometidos, reabrem-se arquivos, multiplicam-se depoimentos, testemunhos de tantos derrotados, perseguidos, vitimados – o trauma do Holocausto, o trauma da conquista da América, o trauma da escravidão negra, tantos genocídios. As guerras, os genocídios, as epidemias, os desastres nucleares. Narrar a experiência, narrar o vivido é conteúdo, mas também incrusta-se como forma e moldura determinante do sentido, como sistematizam os estudos de Leonor Arfuch. A narrativa do vivido como suporte formal dos discursos em geral faz do texto jornalístico o modelo ou coração secreto da criação textual verbal e escrita. Modelo a ser emulado ou guerreado.
Cena brasileira
No Brasil, a consolidação do biografismo nos estudos literários contemporâneos associa-se a um movimento paulatino de retorno ao arquivo, como nos aponta Eneida Maria de Souza no livro Janelas indiscretas – Ensaios de crítica biográfica (2011). Depois da consolidação da hegemonia da pedagogia textualista dos anos 1960/1970, emerge nos 1980 uma renovação da história literária e um novo interesse pelo bom e velho tema de Brito Broca – a vida literária. Não existem textos se não existem autores, não existem autores se não existe vida literária, vida que transita entre o artístico e o intelectual, vida que tem sua própria política (falamos de uma “república das letras”). Por ser histórica, por existir dentro da história e entrelaçada a histórias e histórias e instituições, a vida literária toca o político-social.
Porém, a renovação, nos anos 1980, do interesse pela história e vida literárias tem uma forte motivação propriamente crítica. É que o modernismo canônico do século, na sua dualidade conflitiva entre anticonvenção e convenção, começa a ser visto de maneira distanciada, como algo já pronto e monumentalizado, à medida inclusive que vão desaparecendo seus protagonistas, ou vão chegando a idades provectas. Aproximando-se do final do século XX, a crítica literária brasileira vê-se então na contingência de historicizar, relativizar, colocar em perspectiva o modernismo. A noção mesma de modernismo perde sua auto-evidência. Já não se está inquestionavelmente dentro do modernismo. Conformam-se terreno, olhar e gestos pós-modernos. Entre eles, o novo biografismo emerge como releitura do cânone modernista.
Eneida Maria registra a pré-história desse processo, apontando como momento inaugural a doação, em 1971, dos manuscritos de Miguel Angel Astúrias à Biblioteca Nacional da França, gesto que, segundo a autora, motivou a criação da Coleção Archives/Arquivos, por onde vieram a ser publicadas algumas memoráveis edições críticas de grandes obras latino-americanas, incluindo algumas brasileiras. O tombamento do acervo do escritor Astúrias, mesmo além-mar, em Paris, assinalava seu momento panteônico, sua domiciliação, no sentido de Derrida em Mal de arquivo. Era a domiciliação arquivística de um escritor latino-americano integralmente moderno, integralmente século XX. Cabe assinalar que neste mesmo ano de 1971 foi publicado no Brasil um dos grandes marcos do biografismo de escritores, o livro A juventude de Machado de Assis, de Jean Michel Massa.
As antigas disciplinas filológicas, que até os anos 1950/1960 se dedicavam sobretudo à pesquisa sobre romantismo e século XIX, foram resgatadas, em novo diapasão intelectual. O trabalho realizado por notáveis pesquisadores para a Coleção Archives repercutiu no crescente interesse da crítica universitária pela pesquisa nos arquivos de grandes escritores do século[6]. Nesse primeiro momento, marcado pela produção das edições críticas de autores brasileiros para a coleção, o mergulho no trabalho de arquivo ateve-se à crítica textual da velha cepa filológica (descrição das variantes) e à crítica genética (interpretação das variantes). E assim tivemos na coleção Archives as edições críticas de Macunaíma, A paixão segundo GH, Crônica da casa assassinada, Triste fim de Policarpo Quaresma. Em todos esses volumes havia uma seleta de textos da fortuna crítica sobre o autor e elementos de um dossiê, com fac-símiles de cartas, algumas fotos, etc. Seguir-se-iam os volumes de Manuel Bandeira (Libertinagem) e Oswald de Andrade (Obra incompleta).
Mário de Andrade, Clarice Lispector, Lucio Cardoso, Lima Barreto, eram todos grandes autores do século cujos acervos vinham sendo domiciliados naquele momento, ou recentemente, em instituições como o Instituto de Estudos Brasileiros da USP e o Arquivo-Museu de Literatura da Casa de Rui Barbosa. Atravessar o umbral do arquivamento era para pesquisadores em Letras penetrar no oceano revolto da história a ser escrita ou reescrita. Ocorre, no entanto, uma inflexão metodológica e prática nessa trajetória da cultura crítica. Podemos tomar 1988, ano em que veio à luz a edição Archives de Macunaíma, como referente cronológico para assinalar a mudança na maneira como nossos estudiosos passaram a procurar os acervos de escritores. O interesse deixou de ser primordialmente textualista ou filológico. Descobriu-se que um acervo de escritor pode conter muito mais coisa interessante além de seus manuscritos. Sua biblioteca, por exemplo.
Tais descobertas assinalam o advento de um novo tipo de domiciliação/arquivamento, representado pelo Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, em contraste com os modelos clássicos do IEB-USP e da Casa de Rui Barbosa. Naquele, o interesse biográfico adquire valor expositivo. A reconstituição do gabinete de trabalho de cada escritor introduz o dado da vida literária, da vida íntima literária, inseparável da reconstituição de suas redes de relação – sua participação na vida literária. O arquivo é museu num sentido propriamente expositivo, externalizado. Museu de exposição e não mausoléu de papéis velhos.
Intensifica-se a partir daí o boom dos estudos de correspondências, diários, crônicas, todo um material paralelo até então esquecido ou relegado para o segundo plano de mera crônica mundana da vida literária do modernismo. As pesquisas desenvolvidas pelo Setor de Filologia da Casa de Rui Barbosa resgatam autores e cronistas ditos pré-modernistas, instaurando uma visão crítica que desloca a noção de modernidade cultural brasileira de uma compreensão excessivamente centrada na Semana de Arte Moderna paulista.
O interesse pela edição de cartas e diários tornou-se uma autêntica paixão literária que dominou a virada para o atual século e prossegue até hoje. Poucos textos literários terão exercido tanto impacto sobre a pesquisa acadêmica, e sobre a formação crítica atualizada, quanto as publicações das cartas de Mário de Andrade à qual se vinculou produção crítica robusta. Todos nós da área de literatura brasileira mergulhamos vorazmente na leitura da correspondência de Mário de Andrade. Por meio dela, revivificava-se o drama das vidas literárias interconectadas em seu tempo – era o espaço biográfico e era a anamnese do modernismo, agora enquadrado pelo olhar fora, entre etnográfico (a etnografia das redes de relação em estudos de vida) e histórico. A correspondência de Mário passa para o século XXI como um dos principais monumentos literários legados pelo século anterior. Esse trabalho de monumentalização e ao mesmo tempo devoração antropofágica desenvolveu-se num primeiro momento sobretudo nos departamentos de letras da USP, da UFMG, da PUC-Rio. A fascinação pela correspondência de Mário disseminou o interesse pelas correspondências de outros autores, como nas pesquisas e publicações de Nádia Batela Gotlib. De maneira pioneira mas bastante representativa de todo um espírito de época, toda uma transformação do gosto literário, Nádia caminhou da epistolografia para a biografia, tornando-se a autora das imprescindíveis e amorosas biografia e fotobiografia de Clarice Lispector.
Cânone e extracânone
Por ser transformação no gosto, a paixão pelas cartas e biografias de escritores esteve desde sempre articulada a movimentos de interesse no público geral não especializado, afetando a estrutura do mercado e por conseguinte a definição mesma de literatura e de seus princípios de valoração crítica. Na relação entre instituições de ensino/pesquisa/exposição e mercado literário, não se sabe qual dos dois exerce mais influência sobre o outro como fonte de valores, conteúdos, consagração de obras. Ler literatura deixou de significar ler apenas ou principalmente romances ou poemas e peças canônicos e passou a incluir em pé de igualdade a leitura de cartas, diários, biografias, memórias. Resulta desse movimento a ampliação do conceito de literário, situando-o no espaço biográfico. Trata-se de um movimento de desierarquização e descentramento na economia dos gêneros textuais, na medida em que o que era sub ou para literário passou a ocupar o centro do cenário junto com as matrizes romance, poema, drama. Foram rompidas as fronteiras entre os gêneros canônicos e sancionaram-se a porosidade e toda sorte de hibridismos, particularmente entre o discurso crítico e a criação ficcional.
O campo do literário cindiu-se e existe hoje de maneira dual, simultaneamente canônico e extracanônico. A referência ao canônico confere identidade ao campo todo, sempre no entanto elusiva nas famílias de textos extracanônicos. Surgem dinâmicas na produção e circulação do literário que podemos compreender melhor fazendo analogia com a distinção entre criação artística moderna e movimento geral da criatividade na pós-modernidade, segundo o crítico de arte Mário Pedrosa (1981).[7] A poética extracanônica é contínuo exercício de criatividade, mais que criação solidificada em obra acabada.
Temos então, de um lado, o terreno canônico, convencional, herdado de uma longa tradição institucional de origem europeia, espraiada globalmente à medida que se universalizava a cultura intelectual e artística ocidental. Terreno ainda plenamente vigente, referência central nos circuitos dominantes do mercado e da formação escolar, definido pela clareza de fronteiras entre os gêneros discursivos que o constituem: as formas curtas e longas da prosa ficcional, a poesia em versos épica e lírica, a tragédia antiga e o drama moderno. Na economia geral dos discursos, o literário histórico se recorta, segundo a conceituação emprestada de Aristóteles, pela verossimilhança versus a verdade do fato, pela mimeses versus relato histórico. A possibilidade de autonomia do literário reside na poiesis ficcional, que se distingue, diga-se de passagem, da mentira factual, do engodo criminoso, da demagogia política.
Do outro lado, o terreno pós-autônomo, pós-moderno, pós-crítico, pós-canônico, contemporâneo. É nesse terreno que se insere a contribuição de Eneida Maria de Souza ao giro biografizante da crítica no Brasil. A presença ubíqua do prefixo “pós” aponta para a permanência fantasmática do modernismo. Na verdade, o pós-canônico consolida-se como extracanônico, suplementar ao canônico.[8] Em termos de uma hermenêutica, o sentido do prefixo “pós” indica um esquema histórico que é posterior e devedor de um cânone moderno e simultaneamente contíguo e parceiro, num jogo de semelhanças, diferenças e desvios. O campo literário é definido pela duplicidade constitutiva entre cânone e extracânone.[9] Na história intelectual recente, o debate-movimento do “pós” (anos 1980, ápice) de certa forma estabiliza-se no cenário alternativo do “extra”, a pulsão pelo desbordar convivendo com a persistência da herança. Quem vem depois está tão fora quanto dentro de sua herança.
O terreno extracanônico se define pela revolução, pela abertura das fronteiras entre os gêneros da tradição, rejeitando seu caráter normativo e autoevidente. É a norma (aquilo que dá formatividade ao desejo) do não-normativo, das antinormas. O gesto estético e narrativo se dá como ato mesmo de abrir fronteiras discursivas. Os gêneros clássicos, com suas identidades, permanecem presentes, como referência, pois para haver abertura, é preciso que algo esteja sendo aberto.
Nesse âmbito, a autobiografia literária e a biografia, no sentido clássico ou canônico, passam a ser encarados como modalidades discursivas, numa família de gêneros afins, puros e híbridos. São formas matriciais, modelos referenciais herdados da tradição, muitas vezes quase como resíduos em relação aos quais se situam suas derivas modernas, pós-modernas e contemporâneas, como planetas mais ou menos desgarrados, com destaque para a autoficção de um lado e as múltiplas combinações entre fato e ficção na escrita biográfica. Biografia e autobiografia passam a ser atributos do discurso biográfico, que abarca o autobiográfico, modalidades de uma mesma escrita, bio, bioescritas, a biografia e a autobiografia.
Os gêneros clássicos são formas matrizes que ajudam a balizar as aproximações por afinidade dos proliferantes e livres gêneros extracanônicos. Constituem um repertório de fundo (o cânone) de pretensão universal a que recorre de maneira própria cada ato idiossincrático de formação e criação literária (criação verbal escrita). No terreno do pós-autônomo, os gêneros são agrupados por afinidades, são famílias de textos, como sugere Leonor Arfuch (2010), situando sua proposta no campo wittgensteiniano das Investigações, propondo em lugar da lógica da construção conceitual, os agrupamentos vocabulares por “semelhanças de família”. Por seu caráter indutivo e pelo fato de que o espaço biográfico é comunicacional, portanto, dialógico, essa visão remete às teorizações sobre gêneros discursivos de Bakhtin.
Tais movimentos arqueológicos na epistemologia do literário obrigam a reposicionar todos os conceitos herdados da tradição canônica, passando a perspectivá-los de maneira dual. Isso acontece também, como não poderia deixar de ser, com os conceitos de autobiografia e biografia. Eles passam a ter dupla inscrição. Por um lado, ainda devem ser concebidos na sequência da tradição, em que constituem gêneros relativamente bem estabelecidos, cujas fronteiras são auto-evidentes. No caso da biografia, as fronteiras são circunscritas ao universo disciplinar da História e ao pacto do compromisso com a veracidade documental. Em torno dessas fronteiras, constitui-se o “pacto biográfico”, evocando o “pacto autobiográfico” de Philipe Lejeune (2014).
O pacto com a verdade factual empiricamente documentada é inescapável na forma matriz da biografia. Por lidar muitas vezes com um imbróglio documental, essa verdade é, no mais das vezes, puramente interpretativa, chegando, claro, ao limite da funcionalização. Embora não seja de modo algum determinante ou dominante, o lugar da ficção numa biografia pode se fazer presente desta e de outras formas, diante da necessidade de preencher lacunas documentais. Sem poder escapar de sua definição como gênero histórico, a biografia convencional não deixa de ocupar um espaço fundador no campo literário, senão como gênero, certamente como catalizador de suas ideologias, mitos, políticas, versões. Biografias de escritores são o núcleo dos estudos de vida literária, material imprescindível para a história literária, assim como autobiografias e memórias. As biografias de escritores e as histórias da vida literária sustentam o valor de fetiche do literário, ou seja, seu valor como mercadoria e pedagogia.
Grafias de vida, escritas de si
Na literatura, a biografia pode ser tida como o romance documentado da vida real de uma personagem histórica. O recorte conceitual muda de figura no âmbito da ciência geral dos discursos e da comunicação. Procuramos traços “bio” na urdidura de assinaturas autorais. O espaço biográfico é nuvem em expansão, perpassando os discursos. Ele se superpõe sobre todo escrito, como atmosfera, e imiscui-se em toda letra, como oxigênio. O que chamamos de discurso autobiográfico, ou elemento autobiográfico, tanto pode se apresentar de forma plena na autobiografia, como pode subjazer a quaisquer outros tipos de textos, em dosagens (ou intensidades) variadas, a serem rastreadas e sopesadas pela leitura crítica. Apropriamo-nos do termo escrita de si, tal como trabalhado por Diana Klinger (2016) a partir do conceito de Foucault, termo adequado como guarda-chuva para agrupar famílias de textos e elementos textuais.
São escritas de si as autobiografias reais ou ficcionais, as memórias, as autoficções. A escrita de si abrange ainda cartas, diários, entrevistas, sem esquecer sua presença dominante (embora não exclusiva) no âmbito do bom e velho, e bem brasileiro, gênero literário que é a crônica. A crônica brasileira seria uma manifestação avant la lettre do pós-autônomo, entre o profissional e o amador, entre o casual (uso comum da língua, interessado) e o literário (uso artístico, desinteressado no sentido kantiano). Pode-se dizer que o gesto literário por excelência combina a gratuidade inerente ao “não-interessado” à necessidade pessoalizada de dizer.
Já para designar a família ou o traço definidor do recorte crítico capaz de abarcar a variedade de gêneros biográficos, não faltam fórmulas – da “vidaobra” de Augusto de Campos sobre Pagu, à “escrita da vida” em vários autores de diferentes áreas[10], à bioescrita, ao “escreviver” de Guimarães Rosa e à “escrevivência” de Conceição Evaristo. Adota-se aqui a preferência pelo termo grafia de vida, cunhado por Silviano Santiago (2014, 2015, 2020a, 2020b) em dois ensaios marcantes de sua produção nos anos 2010, retomado em Fisiologia da Composição, estudo crítico-metodológico recentemente lançado. Neles, o crítico e mestre revisita e complexifica a questão autobiografia/biografia que sempre lhe foi cara, intervindo no debate da crítica biográfica intensamente travado no campo literário brasileiro desde os anos 1990. Sua persona autoral de prosador encenaria criativamente esse estágio do debate no par formado pela autoficção de Mil rosas roubadas e por Machado, híbrido de romance, biografia e ensaio. Como se sabe, a obra inteira de Silviano Santiago aborda seus temas ora no suporte teórico, ora no suporte ficcional, e poderíamos estender isso biograficamente para o suporte docente. Essa ida e vinda num entrelugar categorial regido pela lógica do suplemento fez de sua obra pioneira na mescla entre ensaio e ficção.
No vocabulário proposto nos ensaios referidos, autobiografia, biografia e romance são reunidos sob o guarda-chuva da categoria grafias de vida. Nesse sentido, o estudo de autobiografias, memórias, diários, correspondência, biografias reais ou ficcionais incluem-se entre estudos de grafias de vida. A própria escrita de si será portanto um tipo de grafia de vida. A amplitude da noção de “grafia de vida” (Silviano Santiago) corresponde à amplitude da noção de espaço biográfico (Leonor Arfuch). A noção de “grafia de vida” projeta o dado sociológico-comunicacional sobre a problemática da letra. É a gota de sangue de cada poema, o dado “bio” de todo discurso-prática-performance artística.
Os modelos paradigmáticos da grafia de vida são a biografia convencional e o romance moderno clássico (de Cervantes ao romântico-realista). Neles, um biógrafo ou um ficcionista conta a vida de uma pessoa do nascimento à morte, seguindo linearmente a sequência cronológica das idades e fases (as “edições” machadianas) e declaradamente comprometido com a verdade factual daquilo que narra. Os limites desse modelo serão parodicamente explorados em obras como Tristam Shandy de Sterne, Orlando de Virginia Woolf, assim como, em modo autobiográfico, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro de Machado de Assis.
Atenção: por verdade factual, na ficção literária (romance, conto), entenda-se a verossimilhança interna, ao passo que na biografia histórica, entenda-se comprovação documental. A verdade é um gradiente que vai da composição da verossimilhança ao grau de comprovação documentada do factual. Comprovação factual e interpretação constituem o gradiente em que se movem a escrita e a leitura do documental. O recurso à interpretação exige a construção de verossimilhança. E assim se fecha o círculo. A exigência de verossimilhança é o pedágio pago tanto pela interpretação quanto pela criação ficcional.
Biografia e romance moderno são diferenciações históricas na grafia da vida. A reflexão de Silviano Santiago, de natureza ensaística, faz uma linha do tempo singular, ao situar a biografia em espaço próprio, originado das grafias de vidas ilustres dos anais e verbetes enciclopédicos às biografias propriamente ditas desde a Antiguidade. São evoluções do registro, do relato, do epitáfio. A biografia canônica mantém no seu DNA o compromisso de narrar a vida de pessoas que a priori possuem nome ou posição na esfera pública. Nesse sentido, ela se distingue claramente das histórias de vida de pessoas anônimas no espaço público, tal como vemos nas histórias de vida da sociologia, da etnografia, da história oral e mesmo da psicanálise. Nesta última, as histórias de vida são anamneses quebradiças, de certa forma ritualizadas e dialogais, que constituem “casos” clínicos.
Possivelmente, os problemas práticos da escrita biográfica (incluindo aqui as escritas de si), assim como de sua crítica, exigem uma combinação entre fantasmas ou resíduos de categorias da escrita psicanalítica, refratadas pelas percepções advindas das ciências sociais e estudos culturais, além de uma pragmática linguística reanimada pelo prefixo multi de “multilinguismo”, “multilíngua”. Cabe terminar lembrando que biografias de pessoas “comuns” ou anônimas podem catapultá-las como “nomes” na esfera pública, assim como personagens de romance acabam por tornar-se nomes públicos, tanto quanto os de realmente existentes políticos, celebridades, artistas, intelectuais, músicos, filósofos e, por fim, escritores. Grafar é lançar sobre a pedra seu traço de vida.
Rio de Janeiro-Guarulhos, 2020/21
(Ano da Pandemia)
* Italo Moriconi é ex-Professor Associado (aposentado) do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor Visitante (2019-2021) do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Referências
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Notas
[1] Ver também capítulo com esse título em Pedrosa et al (org.), 2018.
[2] Sobre o eu como encenação e performance, v. Klinger, 2016.
[3] Sobre a noção de telquelismo, ver Wolff, 2009.
[4] Sobre o “retorno do autor”, Klinger, op.cit.
[5] O Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Ele não gostaria de ver seus “jogos de linguagem” chamados de transcendentais ou absolutos, já que esses jogos se propõem como avesso de qualquer pretensão transcendental da linguagem. Deve-se distinguir “linguagem” de “sentido”.
[6] Sobre a Coleção, ver Souza e Miranda (org.), 2003.
[7] Sobre o mesmo assunto, Otília B. F. Arantes, 1991.
[8] Refiro-me aqui à “lógica do suplemento” tal como formulada por Silviano Santiago em diversos trabalhos, a partir de leituras de Jacques Derrida. O suplemento é o elemento que se agrega a algo já completo. Ele vem depois, pressupõe um antes e se agrega ao que já existe marcando diferença, replicando em diferença. Ver Santiago, 2020a e 2020b. O leitor e a leitora reconhecerão na polaridade cânone/extracânone aqui proposta (ver a seguir) a dívida para com as trilhas hermenêuticas abertas pela obra crítica de Santiago.
[9] Observe-se que no presente texto deixo de lado o campo da “literatura expandida”, em que o extracanônico extrapola a escrita fonética, a dimensão verbal, e transborda em hibridismos e combinatórias com outros suportes, basicamente visuais. Mencionem-se os trabalhos de Flora Sussekind, de Florencia Garramuño.
[10] Ver Dosse, 2015, para uma apresentação abrangente da questão biográfica, na área da História, em viés francófono.