As palavras que acompanham este trabalho acompanham minha trajetória de pesquisa nos últimos dois anos. Desde a defesa da minha dissertação, no final de 2019, inquieta-me o fato de que as diversas violências contra os corpos feminizados são cada vez mais re-conhecidas na mídia, nas artes e na academia, e também parecem estar em cada vez maior número[1]. Em pleno período pandêmico, as estatísticas dessas violências escancaram o que nós, corpos feminizados, já sabíamos: em momentos de crise, somos alvo das mais variadas brutalidades de um sistema social patriarcal, capitalista e misógino. Neste texto, proponho uma leitura compartilhada, ainda embebida de muitas perguntas, entre a narrativa de um romance, as instalações de uma exposição artística e as estratégias para se contar os relatos de estupros sofridos por mulheres reais, para além da ficção.
(prólogo)
Ele arrancou a minha calça com violência, as luvas ásperas arranhando a minha pele, e enfiou o pau na minha boceta. O pau dele na minha boceta. Eu não suporto usar essas palavras, mas não sei quais seriam as mais precisas. Afinal, era isso: era o pau dele dentro da minha boceta. Mas era tudo, menos isso. Um pau numa boceta é outra coisa.
Tatiana Salem Levy, 2021
A exposição Vermelho como palavra ainda é uma cor fantasma (2019), da artista plástica Lívia Aquino, traz em vermelho neon a pergunta de um general da ditadura militar brasileira feita à jovem Lázara, vítima de um estupro coletivo em um interrogatório por militares do regime. A partir do depoimento revelado no Relatório da Comissão da Verdade, em 2014, Lívia Aquino chama a atenção para a ambiguidade da pergunta “cretina”, que, segundo ela, “é uma pergunta ambígua, que pode ser tomada como uma preocupação sincera, (…) mas naquele contexto diz muito de como o Brasil não está livre de algumas ditaduras – as da política e as que incidem sobre o corpo feminino” (Aquino, 2021). Partindo da ambiguidade da pergunta, Lívia Aquino nos invoca a pensar nas perguntas e nas ferramentas para se contar essas histórias. A literatura brasileira contemporânea escrita por mulheres também está em busca dessas estratégias narrativas.
Como se escreve um estupro? Como se descreve um estupro? Por que escrever sobre um estupro? É possível relatar um estupro? Estaria a literatura pronta para narrar a condição indizível do horror de uma violação sexual? Em uma entrevista para o podcast da revista Quatro Cinco Um, a escritora Tatiana Salem Levy ressalta: “a violência sexual é o indizível do horror”. Embrenhando na mata densa da violação de um corpo, em uma busca de palavras que contam aquilo que está evidenciado nesse corpo, Salem Levy narra, em Vista Chinesa, o horror e o indizível a partir da perspectiva de uma mulher-vítima que tenta replicar em palavras aquilo que está escrito em seu corpo: o estupro. “Está escrito na minha pele, sei que está, tudo o que aconteceu, até os detalhes que eu disse que tinha contado para a polícia, mas não contei, porque nunca se conta tudo, há sempre uma parte que falta” (Levy, 2021, p. 43).
Júlia, a personagem-narradora de Vista Chinesa, é uma arquiteta que mora na cidade do Rio de Janeiro e que tinha, por hábito, correr na Floresta da Tijuca, nas imediações da Vista Chinesa, mirante localizado no Alto da Boa Vista, que oferece aos visitantes uma vista panorâmica da cidade que une a Mata Atlântica, a lagoa e o asfalto. Júlia saía do asfalto para acessar a mata antes de planejar prédios no escritório onde trabalhava como arquiteta. Em uma terça-feira do ano de 2014, Júlia foi arrastada para dentro da floresta e estuprada por um homem anônimo. Ela não conseguiu correr. A floresta e sua mata verdejante, cartão-postal da cidade maravilhosa, tornaram-se o inferno de Júlia.
Ele era baixo, forte, encostou uma pistola na minha cabeça e ordenou, me segue, a voz se fundindo à da Daniela Mercury, a mão me apertando o braço, interrompendo a corrida e me arrastando para a floresta, aquela mata linda, exuberante, cantada nos mais belos poemas, exaltada nos guias turísticos do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas 2016, aquela mata que todo mundo diz que é o que faz a diferença, afinal muitas capitais têm praia, mas uma mata assim, frondosa, casa de tucanos, cobras e macacos, aquela mata que exala um cheiro doce e enjoativo de jaca, aquela mata que todo mundo admira quando está subindo a Vista Chinesa e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo me desligo do mundo, aquela mata virou meu inferno (Levy, 2021, p. 12).
Entrelaçando a violência no corpo de Júlia com as violações históricas da floresta por parte dos colonizadores e da cidade por parte do neoliberalismo, Tatiana Salem Levy explora os fragmentos de opressões perpetrados por uma sociedade sistematizada pelas diversas violências e violações aos corpos. A floresta, explorada e dizimada, torna-se a única testemunha do horror vivenciado por Júlia. A terra une, ao presenciar a violação, o passado (o antes), o presente (o estupro) e o futuro (a vida depois). A cidade, lugar de morada e de trabalho de Júlia, mundialmente conhecida e constantemente visitada, naquele momento, junto de Júlia, iniciou seu processo de bancarrota: nos anos seguintes, escândalos de corrupção, degradação dos espaços públicos, fortalecimento das milícias armadas – esteio ideológico do fascismo que tomou o país de assalto. A mulher-escritora, habitando a linguagem como potência, se irmana a tantas outras escritoras e artistas que suplantam o real com sua estética e vão além de catalogar as mulheres como vítimas. A mulher-escritora escreve a história de uma mulher que tem escrita em seu corpo uma violação. Do corpo-mulher ao corpo-carta, aos corpos-filhos, ao corpo-escritora, ao corpo-leitora. A carta torna possível a elaboração daquilo que a personagem-vítima não dá conta de contar: “por favor, me deem a palavra certa” (Levy, 2021, p. 13). É dessa relação entre os corpos, a linguagem, a mulher, a terra e a cidade que pretendo partir.
1. O silêncio da violação
Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía
El violador eras tú
El violador eres tú
Son los pacos (policías)
Los jueces
El estado
El presidente
El estado opresor es un macho violador
“Un violador en tu camino”, Las Tesis
A violação sexual é um trauma. É o horror que se instala no corpo, na pele, infiltrando-se nos poros por osmose, porque inevitável. A violação sexual é um trauma, porque mata a ingenuidade da autonomia dos desejos e das escolhas. A violação sexual é um trauma que escreve uma história no corpo, como uma tatuagem, sempre lá, marcando o território como se marca o gado da manada. O corpo-território é invadido, saqueado, usurpado, defenestrado. Nunca mais como antes. Ainda que novas sementes, novos plantios, novos cuidados, nunca mais como antes. Mas como é que se narra o trauma do corpo perpetrado pela violência de um estupro?
É desesperador quando a palavra não cola na imagem. Toda fenda é exasperante, mas esta dói no corpo. Eu tenho vontade de sair gritando, por favor, me deem a palavra certa, aí alguém diz, não existe, as palavras certas nunca existem, mas eu não acredito nisso, eu acho que para toda coisa existe uma palavra certa e se a gente falar falar falar uma hora a gente encontra.
As palavras certas poderiam ser: Eu fui estuprada. A mãe de vocês foi estuprada. Eu, a mãe de vocês, fui estuprada. Foi. Fui. Estuprada. Estuprada. Es-tu-pra-da (Levy, 2021, p. 13).
Em Notas sobre o luto (2021), a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2021, p. 14) aponta que “o luto tem a ver com as palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras”. Sentir o luto é uma busca incessante por dizê-lo, expressá-lo, como se as palavras fossem veículos de ação que movimentam o silêncio e a suspensão do tempo que o luto exige. Escrever a palavra do luto torna o espaço da escrita um espaço de contestação. Escrever a palavra do luto torna possível a elaboração do trauma. As palavras, derrotadas, tentam impor-se ao silêncio perpetrado pelo trauma. Entendendo que esse espaço de contestação se caracteriza por ser um lugar através do qual um outro pode falar, ou seja, um lugar de deslocamento em direção ao outro, um movimento em direção a outra enunciação, compreendo o romance Vista Chinesa como uma necessidade de elaborar o indizível por meio da mediação do diálogo, da troca com o outro. Quando Júlia decide que é necessário escrever uma carta aos filhos, Antonia e Martim, ela atravessa o trauma contestando um espaço de fala íntimo e localizado: do seu corpo aos dois corpos que dele saíram. A carta, alegoricamente, é a concretização do cordão umbilical que une os três corpos em um único. Ao escrever a carta, Júlia reapropria-se do corpo, do pedaço que falta: “vai chegar o dia em que vocês vão ouvir algum rumor, vão descobrir uma ponta da história, talvez outra e mais outra – mas vai sempre faltar um pedaço. Vai faltar a verdade, porque assim, como vou contar agora, eu nunca contei a ninguém” (Levy, 2021, p.10).
Partindo de longas entrevistas com Joana Jabace, Tatiana Salem Levy, a escritora, dá a voz e a vez à personagem Júlia, que, também se colocando na posição de escritora, relata sua violação por meio da escrita de uma carta endereçada a seus filhos gêmeos, Antonia e Martim. A carta é a continuação da história que está escrita em seu corpo, assim como os filhos são a continuação do corpo da mãe. Do corpo de Júlia partem o luto, as vidas e as palavras:
É no corpo que o saber acontece, que o conhecimento vira magia, ganha novo outro lugar. É no corpo que o conhecimento fica encantado. Por isso é a partir do corpo que se escreve, é com o corpo que fundamos um mundo, é com o corpo que experimentamos nossos surtos e é com o corpo que aprendemos a curar nossos processos (Lima, 2021, p. 60).
Quando deslocamos nossa enunciação em direção ao outro, tornamos possível a encenação do que foi vivido, saindo de um lugar de opressivo silêncio para um lugar de possível linguagem. Como postula Beatriz Sarlo (2007, p. 119), a “literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”. A literatura, então, é uma experiência de fora que pretende se “apoderar do pesadelo”. Tatiana, ao ouvir o relato de Joana, sua amiga próxima, de fora da experiência, apodera-se de seu pesadelo, capturando o luto, o horror, o trauma, instaurando-o, agora, também em nós, leitores-interlocutores, convidando-nos a lermos o indizível, a adentrar a dor a fim de fortalecermos o cordão que, estrategicamente, sai de um corpo-vítima transformando-se em um corpo-potência.
Por tudo isso, quando narramos a geografia do medo e do risco (porque se impregna em muitas de nós como um mapa de alertas que, no entanto, fornece a chave para tornar inteligíveis abusos múltiplos e violências), isso não se traduz em vitimização, mas em capacidade estratégica. É mapeamento sensível das explorações vividas cotidianamente em conexão umas com as outras para alimentar maneiras radicais de pensar o território e, em particular, o corpo como território (corpo-território) (Gago, 2020, p. 12).
Transmitir a própria história é uma forma de evitar a clausura que impede a partilha do amor. Partilhar a dor é uma forma de libertar o amor. Joana transmite sua história a Tatiana. Júlia transmite a Antonia e Martim. Tatiana transmite aos leitores. Segundo a professora e pesquisadora Eurídice Figueiredo (2020, p. 265), “estar em luto é, […], ficar no vazio, enquanto fazer o luto é sair do vazio. Fazer o luto é um duplo trabalho de olhar para dentro de si e olhar para fora de si a fim de ir ao encontro do mundo e do Outro”. Quando Júlia escreve a carta a seus filhos – e Tatiana escreve a nós, leitores –, o luto está sendo feito, em um movimento duplo, de dentro e de fora, em uma ousadia de expor a agonia do corpo, dando corpo para a língua, emudecida pelo trauma, rompendo a barreira do silenciamento:
Escrever é dar corpo para a língua, é dar lugar no mundo para a voz de medo, para a voz de coragem, para vozes massacradas, para vozes que não são escutadas, é transmutar, como feitiço, o que se seria antes, redescobrindo em si mesma aquelas histórias escondidas. (…) Escrever e publicar é uma atitude de guerrilha para as mulheres (Lima, 2021, p. 65).
Enquanto a vítima fica em silêncio, ela é apenas uma vítima, seu sofrimento se repete como em um looping. Romper a barreira do silêncio retira o estupro do horror total e a vítima do lugar enclausurador de vítima: o horror se torna narrativa e a vítima recupera o próprio corpo.
A narrativa de Vista Chinesa constrói-se em movimentos sintáticos fraturados, voláteis, como uma sequência, por ora, ininterrupta de ações e sensações, promovendo uma sinestesia tonteante, como se nos jogasse no limbo da dor de Júlia, dentro da floresta.
Vejo pedaços, fragmentos daquele momento: uma clareira um cinto um tapa minha garganta folhas no céu uma boca se mexendo uma língua sapatos um peito nu um tapa um passarinho um soco um cinto folhas caindo do céu outro soco ânsia de vômito gosto ruim uma nuvem dor vai quebrar mosquitos um cheiro ruim dentro outro tapa fora dor dor dor uma jaca várias jacas um rosto se desfigurando um rosto (Levy, 2021, p. 12).
Esse jogo coesivo que nos interpela uma leitura de palavras soltas e, ao mesmo tempo, sufocantes produz uma narrativa em fragmentos, em fissuras, que demonstra uma insuficiência da linguagem em relatar completamente a experiência de um corpo atravessado pelo estupro. As palavras são apresentadas em uma sequência de fôlego único, convocando-nos, leitores, a respirar no mesmo ritmo do desalento de Júlia. A estratégia não é uma invocação à empatia, é muito mais um estar no corpo-vítima, escrevendo a história em nossos corpos-leitores. A narrativa desenha-se, assim, como um rizoma, cartografando as ações entre os corpos que partilham do relato escrito por Joana, por Tatiana, por Júlia, por Antonia, por Martim, por nós: “… o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas e suas linhas de fuga” (Deleuze e Guattari, 2011, p. 43). As fraturas nas tessituras narrativas também são linhas que se cartografam em um mapa, evidenciando um corpo em partes soltas, como os continentes, por meio das interlocuções estabelecidas nas múltiplas narrativas que atravessam a narrativa-livro. A violência narrada com palavras sem conectivos, em versos livres, demarca um corpo em partes soltas, fragmentando-se naquele espaço. Partes soltas, misturadas à terra, aos galhos, aos sons, desintegrando-se, o corpo-vítima e a mata, deflorados.
Por que é possível que a mulher-escritora escreva o horror vivido em outro corpo? Porque ser mulher em sociedade é também aprender sobre ter um corpo vulnerável a todo tempo. A escritora Tatiana, ela própria interlocutora da amiga, suplanta a realidade criando uma outra, Júlia, que conta a história a dois outros, Antonia e Martim, e a nós, interlocutores outros. A narrativa-livro, então, promove uma espécie de conexão entre os corpos para que a dor, ao ser partilhada, torne possível o relato do que se compreende como indizível. O imperativo de narrar por meio de uma linguagem que não dá conta de contar tudo é alinhavado entre vários corpos: de Joana a Tatiana, de Tatiana a Júlia, de Júlia a Antonia e Martim, do livro aos leitores. Por meio do romance, a história passa a ser escrita em muitos corpos. O trabalho do luto se desenvolve no compartilhamento dessa história em múltiplos corpos: a encenação do lugar incômodo por meio da escrita.
Além do processo de fratura sintática, a narrativa também nos joga em processos alucinatórios. Júlia, em sua prática cotidiana de exercício, entregava-se ao espaço e às sensações que a corrida proporciona a seu corpo e a sua mente, fundindo-se ela mesma à floresta e à cidade, organicamente. As sensações proporcionam prazer.
Eu sabia identificar o local porque na subida para a Vista Chinesa há um lugar emblemático, um paredão cheio de grafites, conhecido como o Muro do Alívio, por ser o ponto em que a estrada deixa de ser tão íngreme e a Vista Chinesa se avizinha. Mais um quilômetro e já se pode vislumbrá-la. Eu gostava de correr ao lado desse muro porque os grafites são muito coloridos, provocam uma ilusão ótica. As cores entram na cabeça, se misturam com o pensamento, a música, a endorfina. Um homem e uma mulher se beijando, um cogumelo gigante, uma árvore psicodélica, uma baleia, uma boca fumando um baseado. Quem desenhou aquilo devia estar muito louco: uma baleia no meio da floresta, uma baleia-azul, tudo muito colorido, vermelho, laranja, roxo, as cores bastante vivas, chamativas, ao contrário da floresta, que é só verde (Levy, 2021, p. 32).
Mas a aparição do homem anônimo transformou o prazer em dor e as sensações em interrupção do tempo:
…de repente o tempo virou tudo menos pressa. Estava suspenso e permaneceria assim, eu só não sabia até quando. Um trauma, palavra que eu ouviria da polícia dezenas de vezes, interrompe tudo ao seu redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem (Levy, 2021, p. 19).
Tatiana escreve Júlia em paralelo à cidade do Rio de Janeiro. O trauma, que embaralha o tempo e joga o corpo-vítima para fora da paisagem, estende-se à cidade – e ao país – em seu processo de bancarrota nos anos seguintes ao estupro. Júlia, em um limite entre a loucura e a lucidez, se vê partilhando as angústias da cidade e do país, como se junto da interrupção de sua corrida também ocorresse a interrupção de um futuro promissor para ela e para a cidade maravilhosa: “pela primeira vez nem o Rio foi capaz de salvar o Rio, que foi enlouquecendo, enquanto eu também talvez tenha enlouquecido, ou esteja enlouquecendo, mas a minha loucura ninguém vê” (Levy, 2021, p. 26). Em um bloco de fluxo de consciência, a narrativa segue por três páginas em um único fôlego, sem ponto final, com o relato de Júlia misturando-se às vozes de muitas pessoas que falavam sobre Júlia e a gravidez dos gêmeos. Nessa sequência do primeiro capítulo, mergulhamos mais uma vez na angústia do corpo de Júlia, mas agora do corpo-mãe de Júlia:
as pessoas me olham e pensam, nossa, que corpo inteiro, elas já nem se lembram do acontecimento ou, quando se lembram, põem numa balança e dizem, mas ela teve tudo depois, casou, pariu, é ótima mãe, mora numa casa linda e é linda, olhem esse corpo, nem parece que foi dilacerado, partido, fragmentado, nem parece que um dia essa mulher esteve em frangalhos, ninguém vê o que estou pensando, ninguém sabe que estou ficando louca (Levy, 2021, p. 27).
A narrativa do horror é a narrativa da falta ou do excesso, porque a violação de um corpo é a imposição do desequilíbrio, da ruptura, da fragmentação. A violação sexual é a interrupção abrupta de um fluxo. A violação sexual rompe o corpo.
A filósofa italiana Silvia Federici afirma que a tomada dos corpos das mulheres, com a ascensão do capitalismo, se dá para “apaziguar” as tensões dos homens na sociedade opressora do capitalismo, consolidando, assim, a instrumentalização do estupro.
Somos estupradas, tanto em nossa cama quanto na rua, precisamente porque fomos configuradas para ser as provedoras da satisfação sexual, as válvulas de escape para tudo o que dá errado na vida dos homens, e os homens têm sido sempre autorizados a voltar seu ódio contra nós se não estivermos à altura do papel, particularmente quando nos recusamos a executá-lo (Federici, 2019, p. 57).
A correlação na narrativa entre a violação do corpo de Júlia e a bancarrota da cidade é uma chamada à consciência para o modelo de exploração que orienta a sociedade: colonial e patriarcal. A filósofa argentina María Lugones acreditava que a “missão civilizatória” é um eufemismo para o acesso brutal aos corpos. Segundo ela, a colonização efetuou, de modo pejorativo, uma associação entre os corpos subalternizados e a natureza. Na narrativa-livro, a floresta, a cidade e a mulher são violadas pelo homem anônimo, que se apropria do território saqueando-o, destruindo-o, colonizando-o.
Em livro Memórias da minha inexistência (2020), partindo das observações de David J. Morris – ex-fuzileiro naval e autor de um livro sobre transtorno do estresse pós-traumático – de que o TEPT é muito mais comum em sobreviventes de estupro do que em veteranos de guerra – “pense nisto: ser estuprada é quatro vezes mais perturbador, do ponto de vista psicológico, do que ir para a guerra e levar um tiro ou uma explosão de granada” (Solnit, 2021, p. 58) –, a escritora americana Rebecca Solnit analisa, com certa desconfiança, as narrativas sobre violência de gênero, principalmente as midiáticas:
Em geral, quando as pessoas escrevem sobre a violência de gênero, descrevem o trauma como causado por um evento ou um relacionamento horrível e excepcional, como se alguém de repente levasse um tombo e caísse no mar. Mas e se você estiver nadando nesse mar durante a vida toda, sem terra firme à vista? (Solnit, 2021, p. 59).
Segundo a escritora, viver como uma mulher na sociedade é como nadar em um mar de instabilidade e perigos iminentes, na medida em que estamos constantemente à deriva, vulneráveis a todo tipo de violência contra nossos corpos. Ser mulher é ter um corpo e não poder se esquecer disso, uma vez que sempre à vista e à cobiça alheias (ainda que o alheio também, muitas vezes, possa ser íntimo, próximo).
2. O grito da reapropriação
Socorro tô num mato sem cachorro
ou eu mato ou eu morro
e ninguém vai me julgar
E foda-se se me rasgar a roupa
te arranco o pau com a boca
e ainda dou pra tu chupar
Pra ver como é severo o teu veneno
Eu faço do mundo pequeno
E Deus permita me vingar
“P.U.T.A.”, Mulamba
“Gritemos. Um grupo de luta, de indagação: o que é que a gente faz com tanta informação sobre a violência praticada contra mulheres? (…) As informações por si só já eram um susto. O que restava era gritar” (Aquino, 2021). A invocação ao grito é também uma urgência pela interrupção do silenciamento que vitimiza e cala os corpos femininos violentados. Gritar é, ao mesmo tempo, expor-se e impor-se diante da brutalidade direcionada às mulheres em uma sociedade patriarcal, capitalista e misógina. Lívia, assim como Tatiana, interrompe o silenciamento de sótão para atravessar o luto cotidiano de ser um corpo-alvo em uma sociedade falocêntrica.
Em Teoria King Kong, Virginie Despentes também grita e relata histórias de estupros (inclusive o próprio), deslocando-se do lugar de vítima para o lugar dona das escolhas, desobrigada de produzir sedução masculina:
Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar à sombra. É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora, mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar (Despentes, 2016, p. 9).
Com esse movimento, Despentes promove uma escrita (e uma vida) calcada na resistência a uma tradição narrativa falocêntrica despreocupada com as consequências das violências contra os corpos femininos. Ao retirar o estupro (e a continuação da vida após a violência) do lugar da vítima eternamente traumatizada, Despentes rompe a barreira do silêncio e derruba o confinamento “de sótão” a que as mulheres-vítimas deveriam se submeter diante do crime: “A ferida de uma guerra que se trava no silêncio e na obscuridade” (Despentes, 2016, p. 31). Falar (e escrever) sobre a violência perpetrada no corpo torna-se um escape para a sobrevivência deste corpo.
Caminhando nessa mesma direção do escape, no fabuloso Potência feminista, a socióloga argentina Verónica Gago propõe uma conexão entre as violências a partir da perspectiva compartilhada, específica e expansiva, crítica e que enlaça experiências. Segundo ela, quando não perdemos de vista a singularidade dessas violências, podemos “produzir uma linguagem que vai além de catalogar as mulheres como vítimas” (Gago, 2020, p.79). Tatiana Salem Levy, buscando imaginar o inimaginável, retira o trauma de seu lugar de irrepresentabilidade, dessacralizando-o por meio de uma linguagem ativa na produção de uma máquina de justiça (Gago, 2020) que torna a imaginação uma política de escrita promotora da transformação do corpo-vítima em um corpo-vívido. Como recurso criativo, Tatiana se ancora no sexo, na linguagem crua do ato sexual, que é, ao mesmo tempo, início e fim do luto. O sexo foi o trauma, mas também foi a cura.
Estávamos muito excitados, o pau dele na minha boceta, a minha boceta no pau dele, os nomes se colocando às coisas, um alívio junto com o tesão, o alívio dando tesão, o tesão dando alívio, só erguíamos as máscaras de vez em quando, para nos beijarmos, mas um de vez em quando que se repetiu várias vezes, longo o tempo que ficamos ali, fazendo sexo na cabana, de quatro, deitados, sentados, de lado, as mãos dele sobre o meu corpo, as minhas sobre o corpo dele, o hálito bom da boca dele, os gemidos, as máscaras, a porta da varanda aberta, a brisa (Levy, 2021, p.72).
Júlia inicia seu processo de luta e de cura por meio do sexo consentido e desejado com outro homem, este sim escolhido por ela, a convite dela. Permitir-se o tesão é uma contestação ao boicote imposto pela violência, que impõe o silêncio e a morte do desejo. A personagem, ao entregar-se ao sexo prazeroso e consentido, escreve outra história em seu corpo, em outro cenário, com outro coadjuvante, todos presentes por sua livre escolha, a seu convite. Gozar o sexo é uma ferramenta de justiça contra a violência perpetrada em seu corpo. “Um pau numa boceta é outra coisa”: “o pau dele na minha boceta, a minha boceta no pau dele, os nomes se colocando às coisas, um alívio junto com o tesão, o alívio dando tesão, o tesão dando alívio” (Levy, p.79 e 72).
Em O inventário das coisas ausentes, Carola Saavedra revela fragmentos dos diários escritos pela personagem Nina, desaparecida ainda jovem na ditadura chilena. O narrador do texto nos lê os diários de Nina e nos invoca a angústia do desaparecimento repentino de uma jovem estudante universitária de 23 anos. O corpo de Nina, uma espécie de ausência-presença, revela-se em sua escrita, como uma continuação natural de sua constituição física. Estar com os diários de Nina é também sentir seu corpo próximo.
Meu corpo se revela onde terminam as minhas frases, uma interrogação, um ponto final, até mesmo reticências, basta um pequeno silêncio e ele perde seus contornos, restando apenas essa massa moldável, o movimento. Células, tecidos, órgãos que não chegam a se formar. Não é fácil ter um corpo, não é algo necessariamente natural, para isso é preciso coragem. Faço alguns ensaios. Abro um pote de creme, passo pelas pernas, coxas, braços, o creme promete manter a pele brilhante e elástica. Uma pele que não se desfaça, que mantenha órgãos e vísceras ordenados naquele espaço vazio, ou o que menos dê limites a esse espaço. O corpo é uma rede que nos envolve (Saavedra, 2014, p. 46).
“Meu corpo se revela onde terminam as minhas frases”. De modo orgânico, sabemos o corpo de Nina, quando acompanhamos suas linhas escritas, em uma espécie de rede, rizoma, que interconecta na complexidade do que é e se revela sobre a personagem. “O corpo é uma rede que nos envolve”. O corpo e as palavras de Nina formam uma aliança que revela e esconde ao mesmo tempo sua história. A escrita passa pelo corpo porque começa no corpo. Júlia afirma mais de uma vez em seu relato-carta que a violência, apesar de não pronunciada, está escrita em seu corpo. E é também no corpo que ela escreve a história que deseja para si: o sexo com prazer e consentimento, a gravidez, a corrida. Assim como a escrita do trauma começa e termina no corpo, a experiência de atravessamento do luto começa e termina na floresta.
Quando achei que o efeito do peiote fosse passar, senti a terra subindo embaixo dos meus pés, as raízes das árvores se esticando, dobrando, até alcançarem as minhas pernas, me puxando para baixo, me enterrando aos poucos, era como se meu corpo fosse se desintegrar na mata e de repente me faltou o ar, as raízes se enroscavam no meu pescoço, eu não conseguia respirar. Levei as mãos até o colar da minha avó, talvez ele fosse me apertar, tentei tirá-lo sem sucesso. Só voltei a respirar quando senti a mão da mulher me puxando, quando ouvi a sua voz, vem, vamos andar, a sua voz doce e terna que me acalmava, que me fazia ir da angústia para a sensação de paz.
A noite passou entre os delírios que iam e vinham, alegria e tristeza. O regresso ao meu estado normal foi tranquilo, claro e suave. Os homens deixaram de parecer monstros, e as mulheres não me traziam nenhum conforto em especial.
(…) Tive então a certeza de que precisava retornar ao lugar de onde havíamos partido, ao ponto da mata onde aquela sensação tinha me paralisado.
(…) Agora, ao contar essa história para vocês, me dou conta de que o luto é assim: a gente enterra na floresta, enterra na análise, enterra no trabalho, enterra na vida que segue, mas há sempre uma parte que volta (Levy, 2021, p. 9-10, grifo meu).
A experiência alucinatória do estupro narrado na primeira parte da carta-livro de Júlia é repetida em uma floresta na cidade de Tulum, no México, em um ritual de mascação de peiote. México, assim como o Brasil, um país marcado pelas violências contra os corpos femininos, foi o lugar escolhido por Júlia para ir em busca de amenizar o aperto que a consumia diariamente (Levy, 2021, p. 47). O país foi a escolha da personagem por conta das histórias que sua avó, já falecida, lhe contava sobre as viagens que fez para lá. E é exatamente ao enterrar o colar que sua avó lhe deu de presente que Júlia enterra também o aperto que a paralisou em ambas as florestas: a do Rio e a de Tulum. O luto pela ausência da avó, o luto pela violência sofrida no corpo e o luto da alucinação reveladora do ritual com o peiote.
Assim como a vida de Júlia, a cidade maravilhosa é atravessada por lacerações de fenômenos em seu corpo, do asfalto à floresta, derivadas das ações do sujeito masculino patriarcal capitalista que torna a vivência no território uma experiência permeada de fascínio e caos. Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro, um dia capital do império e do país, sofre com o desmatamento e as consequências dessa erosão imposta à terra por sistemas econômicos insalubres e insustentáveis. A filósofa ecofeminista Karen Warren (1996) identifica que há interconexões entre a dominação das mulheres e a dominação da natureza (não humanos, plantas e ecossistemas). A floresta, única testemunha da violência sofrida por Júlia, também é parte de um sistema exploratório que a violenta desde o início da colonização masculina, branca e europeia.
e de repente penso que de dentro da terra surgirão as violências sofridas naquela terra, as violências sofridas por aquela terra; como a água, a lama e as árvores, deslizarão também as dores, os ossos, os pedaços de carne ali arrancados, arrastando as histórias, a memória, enquanto sirenes de bombeiro invadem meu ouvido, e digo a mim mesma que a salvação virá da terra ou não virá, a floresta invadindo e devorando a cidade, a mata comendo o asfalto, a salvação para o Rio é, sempre foi, a sua própria morte (Levy, 2021, p. 106).
A salvação do Rio, assim como a de Júlia, passa pelo luto, que é morte e, também, renascimento pela terra, reflorestamento, grito.
* Glaucia Moreira Secco é aluna do doutorado em Literatura Comparada do PPGCL/UFRJ, membra no Laboratório de Teorias e Práticas Feministas (PACC/UFRJ) e professora adjunta do Colégio Pedro II, RJ.
Referências
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Videoclipe
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Notas
[1] Segundo o Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva 2020, a população tem a percepção de que a violência contra as mulheres aumentou no contexto de pandemia, principalmente em ambiente doméstico. Fonte: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/violencia-domestica-contra-a-mulher-na-pandemia-instituto-patricia-galvao-locomotiva-2020/>, acesso em 28 out. 2021.