O volume que aqui se apresenta é o breve, mas consistente traçado de uma cartografia da diversidade na qual se inscreve o diálogo entre literatura, arte e política, com atenção especial para o feminismo. Se os últimos anos têm sido marcados pelo que Adriana Armony denomina de “brutalidade semiótica (que às vezes chamamos de polarização)” no importante artigo que encerra o dossiê, neles também podemos reconhecer um movimento crescente de experimentos e práticas éticas e estéticas nas quais a escrita e o corpo interrompem e escapam a essa brutalidade. Essas experiências passam também quase necessariamente por uma reinscrição do erotismo, criando novos caminhos para o desejo, para a relação entre indivíduo e coletivo, na qual, segundo escreve Italo Moriconi, “o nós é uma cacofonia conjunta de vozes singulares”.
Nessas outras tramas eróticas, o trauma e a violência a que os corpos e as subjetividades são submetidos em um sistema capitalista e patriarcal não são apagados nem esquecidos, mas levados para a cena da escrita, para o palco da política, para que possam ser ressignificados.
O dossiê é aberto e fechado por duas Adrianas. Entre “Uma piropoética lésbica do fogo”, de Adriana Azevedo, sobre os potentes The Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), dirigido por Sue Friedrich, e Retrato de uma jovem em chamas (2019), de Céline Sciama, e o texto-depoimento sobre literatura e sexo de Adriana Armony, “O sexo dos anjos”, o dossiê conta com contribuições variadas que testemunham não só uma grande diversidade de temas feministas, mas uma escrita propriamente feminista, híbrida e libertária.
Cidinha Silva, e seu “Percurso de uma escritora durante o período de doutoramento”, nos oferece sua experiência como escritora e doutoranda durante a pandemia e o nascer de uma nova escrita a partir do tédio da academia e da angústia dos prazos; o texto de Priscila Gontijo, “Por uma poética da passagem”, cria um tecido de pensadoras feministas, de Virginia Woolf a Anna Tsing e Rosa Montero, para refletir sobre a criação teórica e literária. “Mimoso”, de Claudia Oliveira, estabelece uma leitura da obra da artista plástica Juliana Notari a partir de noções propostas por Donna Haraway e da discussão sobre o antropoceno. Danielle Magalhães desafia as ideias canônicas de maternidade e de corpo feminino em “Vingar os vales derrotados” e Glaucia Secco, em “Gritemos!”, discute as violências sofridas por corpos feminizados em um texto acompanhado de um romance, uma instalação de arte e testemunhos. Finalmente, em “Universidade, webinários e novas epistemologias”, Drica Madeira relata suas experiências em eventos acadêmicos, demonstrando a energia que ainda pode mover mulheres a se expressar, apesar de todos os percalços impostos pela pandemia.
Os artigos de temática livre que compõem esta edição também passeiam por formas diversas, discutem questões urgentes, como os artigos de Nataly Costa e Fred Le Blue, e contribuem para os estudos sobre teatro e sobre a literatura, como o texto de Rafael Conde e a importante “narrativa teórica” (a expressão é nossa) de Italo Moriconi.
A resenha deste volume é dedicada a Pré-história (2020) de Paloma Vidal e termina por apontar um panorama do romance contemporâneo, ou, ao menos, um pathos, como esclarece Lucas Bandeira de Melo. A entrevista é uma conversa imperdível com Angélica Freitas sobre sua arte, Berlim e o futuro; e, na seção “Vale a pena ler de novo”, Heloisa Buarque de Hollanda recupera uma entrevista publicada em 2009 com Miriam Moreira Leite, uma das mais importantes estudiosas de gênero, família, fotografia e memória.
É com grande alegria que apresentamos mais um número da Z Cultural, informando que, devido ao grande número de artigos submetidos, ele será dividido em dois volumes, o segundo a ser publicado no primeiro trimestre de 2022. Este volume encerra um ano difícil, mas do qual foi possível extrair grandes aprendizados e criações, alguns deles reunidos aqui.
Revista Z Cultural