* Dados do autor
** Tradutora Rosza vel Zoladz
As tribos pós-modernas fazem parte, agora, nos dias atuais, da paisagem urbana. Isso, após terem sido objeto de uma conspiração silenciosa das mais estritas – quanta tinta elas fizeram correr! Tudo de uma vez, para relativizá-las, marginalizá-las, invalidá-las depois de denegri-las. Coloquemos uma questão simples. Essas tribos, não são elas a expressão da figura do bárbaro que, regularmente, retorna a fim de fecundar um corpo social, um pouco debilitado? O que há de certo é quando uma forma do laço social se satura e que uma outra (re)nasce – isso se faz, sempre, com temor e vacilação. É o que faz com que certas boas almas se choquem por essa renascença, porque ela desloca um pouco a moral estabelecida. Do mesmo modo, certas belas almas podem se ofuscar, pois essas tribos não fazem senão privilegiar a primazia do Político. Eu o disse, em textos anteriores. Política ou Jogo. E a prevalência deste último (Jogo) é tão evidente que a Política, ela mesma, se teatralizou e tornou-se objeto da des-razão: resumindo foi contaminada pelo lúdico.
Qual seja, e qualquer que seja o sentimento que a elas se atribua, essas tribos pós-modernas estão lá. E, a menos que as exterminem todas, o que corre o risco de ser difícil, pois nossas crianças são ingênuas, é preciso fazê-lo com a acomodação de suas maneiras de ser e de aparecer, com os seus piercings e tatuagens diversas, de seus curiosos rituais, de suas músicas barulhentas: em poucas palavras, a nova cultura, da qual elas são seguidoras advertidas de uma seita e dinâmicas. Certo é que a (re)emergência dessas novas maneiras de estar junto não lhes falta ser desconcertantes. Ela não é menos compreensível. Com efeito, como isso se passa pelo indivíduo, traduz um simples processo de compensação. Progressivamente, esquecendo-se do choque cultural que lhe deu nascimento, a civilização moderna se homogeneizou, ela se racionalizou ao extremo. E sabe-se que o enfado nasceu da uniformidade. A intensidade de ser se perde quando a domesticação se generalizou.
De onde e quando, um ciclo acaba o mecanismo da compensação. Pouco a pouco, a heterogeneidade ganha terreno. No lugar de uma razão soberana, o sentimento de pertencença retoma direito de cidade. E, confrontá-la a uma enfadonha segurança da existência, o que denominava a efervescência, como elemento estruturante de toda comunidade, retorna com força sobre o que se tem diante da cena social. O gosto do risco, de maneira difusa, reafirma sua vitalidade, o instinto domesticado tende a se mostrar selvagem; em poucas palavras, sob formas múltiplas, a barbárie se refere a nossa boa lembrança. Mas em uma palavra, pode ser preciso lembrar de onde vem esta tenaz e constante inquietação de domesticação própria à tradição judaico-cristã,ou melhor dizendo, à ideologia semítica. Tudo simplesmente decorre da certeza da natureza corrompida do ser humano. É isto que funda a moral e o que retorna ao mesmo assunto, a política da modernidade. No lento processo de secularização, a Igreja, depois o Estado, cujo braço armado é a Política e a Tecnoestrutura, têm por função essencial corrigir o Mal absoluto e originário. Trata-se de uma missão, na qual se verá mais adiante a hipocrisia, que sob nomes diversos vai continuamente irrigar a vida publica ocidental.
Projeto prometeano, se ele o é, sobre o qual não se dirá jamais o suficiente, que encontrará sua fonte na injunção bíblica de “submeter a natureza” (Genèse.ch.1.,v.28) em seu aspecto envolvente; fauna e flora, mais igualmente fundante do indivíduo e do social. É, seguramente, em uma tal lógica da dominação que vai se elaborar o mito do Progresso e do igualitarismo, que é o seu corolário. Para dizê-lo em termos mais familiares, os três mamilos de um tal projeto eram o higienismo (ou o risco zero), a moral e a sociedade “Nickel”. É preciso acrescentar e isto não é negligenciável, a especificidade cultural dessa tradição que foi o Universalismo. De São Paulo de um ponto de vista teológico, às Luzes de uma perspectiva filosófica, a o que tenha sido o apanágio de alguma tribos nômades do Oriente Médio, depois o que foi peculiar de um pequeno cantão do mundo, a Europa, deveria servir de critério para o mundo em sua totalidade.
Notemos que houve fanatismo numa tal pretensão. Mas é esse fanatismo, que ao final do século XIX permitiu que esses valores específicos se tornassem valores universais. E desde que o imperador Meiji abriu suas portas aos navios europeus ou desde que o Brasil inscreveu na sua bandeira a célebre fórmula de Augusto Comte: Ordem e Progresso, se pode dizer que a homogeneização do mundo alcançou um apogeu até aquele momento desconhecido. Mas não se pode ignorar que existe também uma patogênese de certa pulsão dominadora. Sem falar dos estudiosos e outros genocídios culturais. Não será inútil de se lembrar o laço existente entre o mito do Progresso e a filosofia das Luzes de um lado, e os campos de concentração (em nome da pureza da raça ou da classe) e as guerras enraivecidas e suicidas do século XX de outro lado.
A INOCÊNCIA DO DEVENIR
Colocando o acento sobre a moral, do que o lembro repousa sobre uma lógica do dever-se e se acaba em excessos não previstos. Isso se chama hétérotélie. Se obtém o contrário do que se desejava. Por exemplo a tentativa de domesticação do animal humano o conduz a ser bestial. Isto é o que testemunham os diversos campos e goulag do século passado. Efeito perverso se o é, mas bem na lógica da pesquisa da perfeição. Há ainda a sabedoria popular, que vem depois de Blaise Pascal, que pode nos ser de alguma utilidade, remarcando fortemente ao que se diz “quem quer fazer o anjo, faz a besta”. Indicarei aqui sob forma de alusão, mas há aí dois vícios na abordagem dos detentores do universalismo ou o que retorna da mesma maneira nos protagonistas a filosofia da Luzes: a hipocrisia e o auto-engano. Assim R. Roselleck (La règne de la critique, 1979) fez bem em chamar a atenção de que isso se dava, sempre, em nome da moral, de uma nova moral, que queria governar no lugar daqueles que governam. Assim, falar em nome da Humanidade e da Razão é particularmente pérfido, pois isso mascara (de leve) o fato de que a motivação real de todos esses “moralistas” é, pura e simplesmente, o poder.
Poder econômico, poder político, poder simbólico, tais são bem, a finalização normal da filosofia da história e dos filósofos moralistas. E sempre em nome do Bem, do Ideal, do Humano, da classe e outras entidades abstratas que se cometem as piores Torpezas. Há aí sempre no moralista um homem ressentido que está adormecido! Eis de onde se vem. Eis o que constitui o cérebro venal do homem moderno, e que fica no fundamento das formas de pensamento estabelecido e das instituições sociais. Mas essa bela construção, em aparência que não sofre danos, é fissurada de todas as partes. E esta é bem de uma tal porosidade que as tribos pós-modernas são todas, ao mesmo tempo, a causa e o efeito. Que exprimem elas, senão o que de um modo premonitório, Nietzsche denominava “a inocência do devenir” Aceitação do amor fati. Consenso nesse plano a esse mundo. Esse último, ao encontro da doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação que vem do nada, mas ele está ali, tal como um “dado” com o qual convém tanto para o bem como para o mal, concordar. Eis o que o bárbaro um pouco pagão se empenha em nos lembrar!
Certo, tudo isso não é conscientizado, nem mesmo verbalizado enquanto tal. Mas amplamente vivido no retorno às tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades no quotidiano, na revivescência, digamos, das forças primitivas. Isto conduz à (re)valorização dos instintos, das éticas, das etnias. O que induz essa nova sensibilidade, se poderia dizer esse novo paradigma, é um poderoso imanenteísmo. Isso pode tomar formas as mais sofisticadas e mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências, o presenteísmo estão aí tanto como pontuação daquilo que não é um ativismo voluntarista, mas também como expressão de uma real contemplação do mundo. Ou, para dizer em outros termos, a aceitação de um mundo que não é o céu sobre a terra, que também não é o inferno sobre a face da terra, mas, sim, a terra sobre a terra. Com tudo o que isso comporta de trágico (amor fati) mas também de júbilo. Deixai fazer, deixai viver, deixar ser. Eis o que poderiam ser as palavras chave dessas tribos “inocentes”, instintuais, um pouco animais e, certamente, bem vivas.
A EXPERIÊNCIA TRIBAL
A modernidade terminante em seu estrito sentido ”desinervou” o corpo social. O higienismo, a securização, a racionalização da existência, as interdições de todas as ordens, tudo isso foi agregado ao corpo individual ou ao corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias na sua sobrevida. Pareceria, para retomar uma expressão de Georg Simmel, que se assiste, com a pós-modernidade, a uma “intensificação da vida nervosa”. O instinto, o primitivismo, encontra seu lugar nos “nervos”. Isto é considerar que o peculiar da natureza humana não se resume somente ao cognitivo, ao racional, mas bem um “complexio oppositorum” que se poderá traduzir como uma assemblage, uma tecelagem de coisas opostas. Tudo isso que convém saber ver na efervescência tribal contemporânea. Algumas dessas manifestações podem, eu o disse, nos desgostar ou nos ofuscar. Elas exprimem, por vezes de uma maneira desajeitada, a afirmação que ao encontro do pecado original, que à oposição da corrupção estrutural, existe uma bondade intrínseca ao ser humano. E que no cofre no qual esse último se situa, a terra, ela é igualmente desejável.
Mas um tal imaneteismo acaba por murchar a política. Ou antes, ao que essa, estando de alguma forma transfigurada, se inverte em doméstica, torna-se ecologia. Domus, oikos, termos designando a casa comum que convém proteger dos saques aos quais a modernidade nos fez habituar. As maquinações deste homem “mestre e possuidor do universo” segundo a expressão de Descartes, acabaram na devastação que se sabe. As tribos, mais prudentes, mais precavidas também, se empregam a menos “maquinar“ os outros e a natureza, e é isto que faz sua inegável especificidade. É igualmente a recusa da maquinação política que está na origem do seu receio, que inspira essa nova maneira de estar junto. Receio, que engendra as muitas faltas cometidas pelas bárbaras tribos, em particular nas “cidades” e diversas periferias urbanas. A “imprensa de todas as peles”, e não somente aquelas direcionadas ao sensacionalismo fez sua escolha sem obter resultado. E numerosos são os foliculares que se utilizam disso para fazer chorar Margot. No franglês contemporâneo, isso se chama a pesquisa doscoop. A expressão habitualmente utilizada para estigmatizar o fenômeno tribal é o termo “comunitarismo”. Como toda estigmatização oriunda do medo daquilo que é, é uma forma de preguiça pela qual se pode pagar caro. Tique de linguagem amplamente distribuído, tanto à esquerda como à direita. Isso é também uma forma de tolice. Com efeito, não se resolve o que é posto em questão suprimindo-o ou denegando-o.
Atitude infantil, igualmente, que é a de encantação: se repetem as palavras, a maioria delas vazias de sentido, e se pensa assim resolver um problema. Mas para além do medo, da preguiça, da tolice é do infantilismo de fato do que se trata? Foi a especificidade da organização social da modernidade no que pretendeu reduzir toda coisa à unidade. De evacuar as diferenças. De homogeneizar as maneiras de ser. A expressão de Auguste Comte: redutio ad unum, resume bem um tal ideal, o de uma República Una e Indivisível. E não se pode negar que se trata aqui de um verdadeiro ideal cujos resultados culturais, políticos, sociais foram inegáveis. Mas, na longa duração, as histórias humanas nos ensinam que nada é eterno. E não é a primeira vez que se observa a saturação desse ideal unitário. Impérios romano, inca, asteca, se poderia, ao infinito, multiplicar os exemplos de formas organizacionais centralizadas, reunidas no ossário das realidades.
Realidades que nos forçam a constatar, como indiquei sob a forma de alusão, que a heterogeneidade está de volta. É aquilo a que Max Weber dava o nome de politeísmo dos valores. Assim, a reafirmação da diferença, os “localismos” diversos, as especificidades das línguas e culturais, as reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, as múltiplas coisas parecidas em torno de uma origem comum, real ou mitificada.
Tudo serve para celebrar um estar junto, cujo fundamento é menos a razão universal que a emoção partilhada, o sentimento de pertencença. É assim que o corpo social se difracta em pequenos corpos tribais. Os corpos, em sua teatralidade, se tatuam, se furam. As cabeleiras se eriçam ou se cobrem de lenços, de kipas, de turbantes ou de outros acessórios, tal como griffe Hermès. Em breve, no incandescido cotidiano, a existência com manchas púrpuras de cores novas traduz assim a fecunda multiplicidade das crianças dos deuses. Porque se sabe que aqui existem muitas casas na morada do Pai.
Eis o que caracteriza o tempo das tribos. Sejam sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e até políticas, elas ocupam o espaço público. É uma constatação que é pueril e irresponsável de negar. Não leva a nada as estigmatizar. Será mais bem inspirado, fiéis com isso a uma imemorial sabedoria popular, acompanhar uma tal mutação. E isto, para evitar que ela se torne perversa, depois totalmente incontrolável. Após tudo, por que não enfocar a res publica, a coisa pública que se organiza a partir do ajustamento, a posteriori dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social, mais perto de sua etimologia (cum sensualis) possa repousar sobre a partilha de sentimentos diversos?
Desde que elas estão ali, por que não aceitar as diferenças comunitárias, ajudar a encaixá-las e aprender a compor com elas? O jogo da diferença, longe de empobrecer, enriquece. Após tudo uma tal composição pode participar de uma melodia social, ao ritmo talvez um pouco mais “coaligido”, mas não menos dinâmico. O ajustamento dos diversos teclados da música techno traduz, também, uma forma de cultura. Resumindo, é perigoso, em nome de uma concepção um pouco retrógrada da unidade nacional, não reconhecer a força do pluralismo. O centro da união pode se viver na conjunção, a posteriori, de valores opostos. À harmonia abstrata de um unanimismo, digamos, de fachada, está se sucedendo, por meio de múltiplos ensaios-erros, um equilíbrio conflitual, causa e efeito da vitalidade das tribos.
INTERNET: A INICIAÇÃO A UMA NOVA ORDEM COMUNICATIVA
Não há mais lugar para ser velhos rabugentos, ofuscados pelos “bons velhos-tempos” de uma Unidade fechada sobre si mesma. O que os filósofos da Idade Média denominavam unicidade, exprimindo uma coerência aberta, poderia ser uma boa maneira de compreender uma ligação, um laço social fundado sobre a disparidade, o policulturalismo, a polissemia. O que, certamente, se denomina de uma audácia intelectual. Essa de saber pensar o verdor de um ideal comunitário em gestação. Sim, há momentos onde é importante pôr em marcha um pensamento de longo curso que seja capaz de aprender as novas configurações sociais. E por isso não se pode ficar satisfeito com esses conceitos autistas, rarefeitos, fenômeno a que, em italiano, se dá o nome, bem adequadamente, deconcetti, vistos do espírito. Em resumo, não se pode, o que é o pecado mignon do intelectual, criar o mundo do que se quer que ele seja. Audácia, portanto, permitindo entender que, em oposição à solidariedade puramente mecânica que foi a marca da modernidade, o ideal comunitário das tribos pós-modernas repousa sobre o retorno de uma sólida e rizomática solidariedade orgânica.
Porque, paradoxo que não é menos considerável, esta velha coisa que é a tribo, e estas antigas formas de solidariedade que são vividas no cotidiano, exercidas o mais próximo, nascem, se exprimem, se confortam graças às diversas redes eletrônicas. Daí a definição que se pode dar à pós-modernidade: sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico. Lembrando certamente que o arcaico, no seu sentido etimológico, o que é o primeiro, fundamental, vê desdobrados seus efeitos pelos novos meios de comunicação interativa. A imagem do que foi a circunavegação na madrugada dos tempos modernos, navegação sendo a causa e o efeito de uma nova ordem do mundo (o que Carl Schmitt denomina o “Nomos da terra”), certos sociólogos mostram bem em que a “circunavegação” própria à Internet está na iminência de criar novas maneiras de ser, de mudar, em profundidade, a estrutura do laço social (www.ceag-sorbonne.org, Gretech, grupo de pesquisa sobre a tecnologia, direção Stéphane Hugon).
Não é necessário ser perdidamente apaixonado por essas novas tecnologias interativas para se compreender a importância do que se convencionou denominar, justamente, de sites comunitários. My Space, Facebook, que permitem aos internautas tecer os laços, trocar idéias e sentimentos, paixões, emoções e fantasmas. Do mesmo modo You Tube favorece a circulação do vídeo, da música e de outras criações artísticas. E, mais ultimamente, Lively tenta liderar a vida on line de seus usuários. A expressão mestra, se declinando até não ter mais sede, é a da vida comunitária. E ali onde se vê que o medo do comunitarismo é bem o fantasma de uma outra época, e é totalmente defasado em relação ao mundo real daqueles que constituem a sociedade, já hoje, num golpe certo de amanhã.
Graças à Internet, com efeito, uma nova ordem comunicativa se coloca. Quem favorece os encontros, o fenômeno dos flashmob como testemunho; onde, a propósito das coisas fúteis, sérias ou políticas, as mobilizações se fazem e se desfazem no espaço urbano e virtual. Dá-se o mesmo com o streetbooming, permitindo que nas grandes megalópolis contemporâneas, nessas selvas de pedras que favorecem o isolamento, ao se conectarem à Internet as pessoas se encontram, se falam, se conhecem, criando assim uma nova maneira de estar junto, fundada sobre a partilha da criatividade. Tais redes sociais on line, assim como os fenômenos de encontros a que isto induz, deverão nos tornar atentos a uma sociedade específica, onde o prazer lúdico comporta a simples funcionalidade. Aliás, é interessante notar que se utiliza, cada vez mais, os termos dos iniciados para caracterizar os protagonistas desses sites de encontro.
Iniciação sob novas formas de generosidade, de solidariedade em minúsculo, que não têm mais nada a ver com o “Estado providência” e sua visão deformada. Se, como indica Hélène Strohl, um boa conhecedora deste problema, “L’État social ne fonctionne plus” (Albin Michel, 2008), isto é bem porque é a base, no quadro comunitário, graças às técnicas interativas, que se difundem, mutuamente, sob todas as forma. Retorno curioso a uma ordem simbólica que se acreditava ultrapassada. Mas para bem compreender uma tal ordem, importa colocar a mão na massa não com pensamento crítico, i.e., judicativo, mas um questionamento bem mais radical, tendo de apreender os arcanos da socialidade. Há, aqui, com efeito, no coração mesmo do desenrolar histórico, como ação política, um princípio secreto que é preciso saber descobrir. Nesse ponto é que nos diz a verdade, na sua origem grega: aletheia, o que desvela o escondido? Ainda é preciso que se saiba respeitar o velado! Estranho paradoxo do pensamento radical: saber dizer claramente o que é complicado, aceitando totalmente reconhecer que as “pregas” do ser individual ou coletivo permanecem uma realidade intransponível. É esta a lição de coisas que, continuamente, nos dá a existência. É isto aqui que constitui o mistério da vida.
PROCURAR O ESSENCIAL NO INAPARENTE DAS APARÊNCIAS
No desprezo do romantismo, desde o surrealismo, os situacionistas, nos anos 60 do século passado, partiram à procura dessa mítica passagem do noroeste abrindo sobre os horizontes infinitos. E para fazer isso, colocaram em marcha uma psicogeografia, ou deriva, lhes permitindo descobrir, para além da simples funcionalidade da cidade, que existe um labirinto do vivido, contrariamente mais profundo e assegurando, invisivelmente, os fundamentos reais de toda existência social. Pode-se extrapolar um tal questionamento poético-existencial e os arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura tácita que, em certos momentos assegura a eternidade da vida em sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que tudo é subentendido. Implícito: que vai se alojar na dobra do mistério e do inconsciente coletivo.
Jean Baudrillard, no seu tempo, tornou-se muito atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ventre mole” do social. Da minha parte, de diversas maneiras, analisei a centralidade subterrânea, a socialidade obscura e outras metáforas, pontuando a retirada do povo sobre seu Aventino. Orfandade da tradição mística, retornando, subrepticiamente, ao gosto do dia! Um tal tecido repregueado é frequente nas histórias humanas. E ele é sempre o indicador de uma demanda de reconhecimento. Contra o patriciado romano, o povo se refere a seus direitos. Isso se dá igualmente em nossos dias. E a demanda implícita, silenciosa, que tem dificuldade em se formular, necessita que se saiba fazer uma espécie de geologia da vida social. E, na maneira de ser, uma pesquisa das estruturas heterogêneas que a constituem. Mas fiquemos nesta ambivalência. Esta bipolaridade entre isto que é retraído e o que se mostra. Ainda mais hermético que em evidência. Salvemo-nos aqui do comentário que fez Lacan do conto de Edgar Poe, “a carta roubada”. É porque ela está aqui, sob o manto da chaminé que o comissário que está à sua procura não a vê. E como em eco, ouçamos o conselho de Gaston Bachelard: “não há ciência fora do obscuro”.
Dizendo com clareza esse escondido nos arruína os olhos. E por pouco que se tome seriamente a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi, de antiga memória, se saberá aí ver os novos modos de vida em gestação. Para além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas, religiosas, científicas, convém se por em acordo simplesmente, humanamente, ao que se dá a ver. Procurar o essencial no inaparente das aparências. Estas da vida cotidiana. Estas desses prazeres miúdos e de pouca importância, constituindo o humano onde cresce o estar-junto. Não será isso a cultura? “Os aspectos os mais importantes para nós estão escondidos por causa de sua banalidade e de sua simplicidade” (WITTGENSTEIN). Talvez a partir de um tal principio de incerteza se será capaz de fazer um bom prognóstico. Quer dizer, ter a intuição dos fenômenos, esta visão do interior, fazendo tanta falta à paranóia tão frequente nas elites. A partir do olhar penetrante nos será permitido ver o núcleo fatíco das coisas. Fatídico, porque nos falta ser mestres. Isso vem de bem longe, e não se deixa dominar pela pequena razão instrumental peculiar à modernidade. Núcleo arquetípico, no qual é importante localizar a fecundidade.
(2007)
* Michel Maffesoli é professor na Sorbonne e membro do Institut Universitaire de France.
** Rosza vel Zoladz: Sou imensamente agradecida ao sociólogo da Sorbonne, Michel Maffesoli, pelo envio do texto por mim traduzido. Foi uma satisfação enorme traduzí-lo, às vésperas das Festas do fim de ano (2008). A amizade, a colaboração intelectual com Maffesoli estão sempre, para mim, se renovando por meio de iniciativas acadêmicas, concretizadas no Brasil e no exterior, que já datam de 1981 e se reforçaram com o convite que lhe enderecei para fazer palestras, conferências, seminários, na Escola de Belas Artes da UFRJ. Ali, as iniciativas dessa ordem devem muito à Linha de Pesquisa da Imagem e Cultura do PPGAV, sempre com o estímulo do Coordenador do Programa, Prof. Dr. Rogério Medeiros, e o apoio do Consulado da França no Rio de Janeiro. Agora, tenho que agradecer a Heloisa Buarque de Holanda, Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-FCC-UFRJ) que, de muitas maneiras, com seu apoio e amizade, me faz encorajar para o que é aqui apresentado e também me incentiva a realizar, publicar, produzir inúmeras iniciativas acadêmicas. Beatriz Resende, com quem realizei o Pós-doutorado no Programa, me estimulou tanto que continuo as minhas pesquisas iniciadas naquele Programa. Last but not least, não posso deixar de mencionar o psicanalista Dr. Edson Lannes, um interlocutor inestimável, que muito contribui, com as suas idéias, disponibilidade e pertinência, nos meus trabalhos e pesquisas. Continuo fiel ao meu objeto de estudo de toda a vida, ou seja, o artista e a arte. Agora, examinando o seu mundo do trabalho.